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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Pinto, Pase. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 2(gt33):1-21
A construção do conhecimento em torno dosprodutos gourmet: uma experiência no sul doBrasil
GT 33 - Sociotécnica e cultura contemporânea
Nathalia Lima PintoRicardo Francisco Paes
Resumo: Gourmet, originalmente, é um substantivo francês que se refere a um indivíduo que é bomapreciador e entendedor da arte culinária, alta gastronomia e bons vinhos. Entretanto, no Brasil, e nomundo, este termo passou a qualificar inúmeros produtos alimentares de forma difusa e seu consumoé atribuído em muitos casos como distinção social. Para além dos rótulos, o objetivo deste trabalho éanalisar como se constroem o conhecimento que qualifica os produtos gourmets. Partindo de doisestudos de caso no Sul do Brasil, o Arroz do Litoral Norte Gaúcho e a Cerveja artesanal do estado deSanta Catarina, buscaremos compreender, a luz da teoria sociológica construtivista, como atoresutilizam-se dos standards e regimes de propriedade intelectual para reinventar o tradicional, e conferirstatus de qualidade a seus produtos. Utilizamos como técnicas de coleta de dados, a observaçãoparticipante, bem como, entrevistas semiestruturadas com atores chave que compõem redessociotécnicas. A partir dos contextos estudados percebemos que as comunidades epistêmicasinfluenciam os processos de legitimação da qualidade dos produtos gourmet de forma sui generis.
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1. Introdução
A popularização do termo gourmet como adjetivo que se refere à qualidade de um
produto, cresceu muito nos últimos anos. É muito comum encontrar produtos e ingredientes
classificados como gourmet. Nos restaurantes, cafés e bistrôs este termo pode acompanhar
pratos nos cardápios, referência a ingredientes usados na preparação ou até mesmo, em muitos
casos, os próprios restaurantes carregam o termo em seu nome. Na internet, o termo gourmet
não é menos popular, sendo que sua utilização em blogs e mídias sociais são demarcadores
para criar conteúdo e filtros de interesse para os grupos cada vez mais interessados em
gastronomia, como chama Solier (2013), os foodies. Claro que em um grande número de
casos, o consumo destes produtos e serviços possui um adicional no preço, que pode ser
justificado por quem os produz através de inúmeras razões: exclusividade, qualidade, origem,
modo de produção, artesanalidade, embalagem, dentre os muitos outros fatores que podem
afetar sua estratégia de diferenciação, tornando-se assim um conceito difuso.
Diante disso, surgiu o questionamento que motivou esse breve ensaio. O que é
considerado um produto gourmet? Quem diz o que é gourmet e o que não é? Como se
constroem os atributos qualitativos que distinguem os produtos gourmet? Apesar da escassa
bibliografia sobre o tema, buscamos através de uma análise que utiliza o método da Teoria
Ator-Rede, dentre outros autores, buscar respostas que possam auxiliar na compreensão deste
fenômeno tão recorrente no mercado agroalimentar contemporâneo. Para isso analisamos dois
casos no sul do Brasil: a Denominação de Origem do Arroz do Litoral Norte Gaúcho e a
Cerveja Artesanal de Santa Catarina - ambos os trabalhos derivam de uma pesquisa de
mestrado e trabalho de conclusão de curso dos autores, respectivamente.
Nosso principal argumento se encerra na assertiva de que a construção do que seja um
produto gourmet depende incondicionalmente da existência de redes sociotécnicas, composta
por atores humanos e não humanos que constroem e contextualizam um universo,
configurando uma realidade. Neste âmbito, o bem ou mercadoria – ou até mesmo um rótulo –
possui um papel de agência dentro dessa rede, em que os “actantes” mobilizam interesses,
narrativas, biografias e performances para contextualizar determinado universo a ser traduzido
enquanto um produto gourmet. Sendo assim, nossa tentativa foi de seguir as redes,
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compreender como elas se estabelecem, quais os principais atores e actantes presentes em seu
interior e como são mobilizadas suas contextualizações e mediações.
Assim como aponta Latour (2000; 2005) buscamos analisar tais redes na sua forma de
construir o que configura – e distingue – os produtos gourmet nos casos estudados, bem como
as controvérsias que giram em torno das maneiras de delimitação destes. Uma das
controvérsias que apontamos é a disputa crescente pela melhor maneira de se definir um
produto ou o próprio conceito de gourmet, bem como as demandas por uma desgurmetização
da culinária.
2. Referencial Teórico
Neste ensaio, utilizaremos como ferramenta de análise a Teoria Ator-Rede (TAR)
proposta por Bruno Latour e John Raw. A TAR propõe um deslocamento epistemológico da
sociologia do social para a sociologia das associações. Para o pesquisador da TAR o social
não representa mais um termo que transmite um estado de estabilidade aos fatos capaz de da
uma “explicação social” (Latour, 2005), mas o termo propõe uma redefinição do social
mediante a natureza e especificidades de cada associação. Para Latour, a ideia de coletivo
representa de maneira mais adequada o projeto de agrupar os elementos que outrora não eram
considerados como sociais. Estas associações ocorrem através do estabelecimento de redes
que são compostas por atores humanos e não-humanos, ou seja, coloca-se em evidencia na
análise a importante presença de objetos e artefatos que passam a ter um papel de agência e
mediação nas ações. Para Law (1992, p.2) as redes são um processo de “engenharia
heterogênea” onde muitos são os elementos (técnicos, sociais, textuais) que estão em conexão,
sendo “traduzidos” em produtos científicos heterogêneos delineando toda a vida social. Para o
autor é “este é o movimento crucial feito pelos autores da teoria ator-rede: a sugestão de que o
social não é nada mais do que redes de materiais heterogêneos”. A TAR permite que o
pesquisador acompanhe a fabricação dos fatos, através da análise das relações entre pessoas e
a materialidade nas práticas cotidianas, analisando como estas relações produzem efeitos.
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As certezas que sustentam um fato são diretamente dependentes daqueles que o
movimentam, ou seja, humanos e não-humanos interligados. Latour (2000) propõe o
entendimento dos fatos através do conceito de “caixa-preta”. Este termo refere-se à ideia de
complexidade envolta de um fato, ou seja, os fatos e tecnologias se constroem através das
redes sociotécnicas (humanos e não humanos) que pouco a pouco vão se estabelecendo dentro
de uma rede até conformarem uma “caixa-preta”.
“A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou umconjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é desenhada umacaixinha preta, a respeito da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra eo que dela sai. (...) Ou seja, por mais controvertida que seja sua história, por maiscomplexo que seja seu funcionamento interno, por maior que seja a rede comercialou acadêmica para a sua implementação, a única coisa que conta é o que se põe nelae o que dela se tira”. (Latour, 2000, p. 14)
As caixas-pretas refere-se a um fato que já foi aceito como verdade, que não existem
mais controvérsias a seu respeito e cujo debate já fora estabilizado, possuindo autonomia.
Nobre e Pedro (2010) discutem que quando um fato encontra alguma barreira que se oponha a
sua circulação, ele será conduzido à falsidade. Quando isso ocorre é possível que seus aliados
venham a trair seus porta-vozes, e é neste cenário em que se estabelece um cenário de
controvérsias, onde seja possível abrir a caixa-preta. Os autores, ainda dentro da perspectiva
da TAR, apontam que diante de uma controvérsia existem dois lados: os grupos e antigrupos.
Estes conceitos estão no centro de uma controvérsia e surge a partir da produção de grupos
amplamente dispostos a oposição criando fronteiras entre tais grupos. Para Nobre e Pedro
(2010, p. 50) “muitos são os aliados trazidos pra a defesa dos limites grupais. Ciência,
filosofia, religiões, leis, tecnologias, etc. A existência de um grupo depende sempre de um
constante trabalho”.
Seguindo a perspectiva Latouriana, a construção de um objeto científico não se dá
através da explicação de seu “contexto social”, ao contrário, é justamente o contexto que deve
ser explicado e não tomado a priori como uma evidência (LATOUR, 2000). Esta explicação
presume que Sociedade e Natureza não representam o plano de fundo onde surgem tais
objetos, pois são denominações produzidas, construídas através da associação de atores
humanos e não-humanos que compõe os objetos ou tecnologias. Deste modo, o contexto não
pode explicar a falha ou sucesso dos fatos científicos ou a tecnologias, tampouco a
perspectiva dos atores envolvidos pode se tornar nossas próprias explicações sociológicas.
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Ainda que apareçam diferenças entre estes autores, buscaremos trazer aqui um
possível diálogo entre Latour (2000) e Appadurai (2008), numa tentativa de compreender
como se dá a construção de um produto gourmet através da ênfase na materialidade. Este
autor propõe uma perspectiva para a circulação de mercadorias, argumentando que, assim
como as pessoas, as mercadorias também possuem uma vida social. Deste modo, o valor não
é inerente à mercadoria, mas antes um julgamento subjetivo que os sujeitos fazem sobre ela.
Para isso, o autor sugere um fetichismo metodológico1, ou seja, transferir o foco de análise
das relações de trocas para as coisas em si mesmas, pois os seus significados estão em seus
usos, formas e trajetórias, sendo que “somente pela análise destas trajetórias podemos
interpretar as transações e os cálculos humanos que dão vida às coisas”. Essa “vida sócio-
espacial das coisas” visa demonstrar o complexo universo presente por de trás da mercadoria,
que nos revela diferentes cenários, construção social do valor, atores, relações de poder,
conflito e desigualdades. Deste modo, pelo transito das mercadorias, é possível tornar visível
as relações sociais que estão por trás da ligação entre objetos e pessoas. Assim Foster (2006
apud PINHEIRO MACHADO, 2009) afirma que este fetichismo “crítico” e o movimento
destes bens através de redes sociais são capazes de unir geograficamente diferentes locais,
promovendo a conexão de diferentes atores.
As mercadorias podem representar uma forma de compartilhar conhecimentos, através
da negociação do conhecimento inerente durante seus fluxos e trajetórias. Este conhecimento
pode ser integrante da produção da mercadoria (social, técnico e estético) ou o conhecimento
que compõe parte integrante do consumo desta mercadoria. Ao longo da cadeia de produção e
consumo das mercadorias “o conhecimento, em ambos os pólos, tem componentes técnicos,
mitológicos e avaliadores, e os dois pólos são suscetíveis a interações mútuas e dialéticas”
(APPADURAI, 2008, p. 61). Deste modo, combinam-se diferentes estratos tecnológicos e
cosmológicos nos discursos sobre a produção, podendo-se dizer que “conforme os percursos
institucionais e espaciais das mercadorias se tornam mais complexos e a alienação mútua
entre produtores, comerciantes e consumidores aumentam, há uma tendência de surgirem
mitologias culturalmente modeladas acerca do fluxo de mercadorias”.
1 Este termo é uma referência ao conceito de “fetiche da mercadoria” proposto por Marx, que consiste naanálise das relações sociais mediadas por mercadorias nas sociedades capitalistas. Para Marx, a mercadoriaoculta as relações de trabalho humano que as produzem, de modo que as “coisas” assumem uma vida própria,descolando-se de quem as produziu (MARX, 1983).
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Já Kopytoff (2008, p.1) sugere que as mercadorias possuem uma história de vida, ou
ainda, uma biografia cultural, e demonstra que os diversos pontos de vista sobre uma
mercadoria revelam uma “economia moral subjacente à economia objetiva das transações
visíveis”. Assim sendo, os bens possuem uma série de biografias históricas, econômicas,
técnicas ou ainda idealizadas cujas sociedades elegem como modelos desejáveis. Com a
crescente mercantilização de bens e a homogeneização de seu valor, as sociedades acabam por
proteger determinados aspectos de seu ambiente, numa tentativa de “resingularizar” o que já
fora mercantilizado anteriormente, de modo que são singularizados justamente por serem
retiradas de sua esfera mercantil. Em outras ocasiões, certas formas de singularizar objetos se
dão a partir de uma mercantilização restrita, ou seja, de modo que as mercadorias são
destinadas a uma esfera restrita de troca.
Outro conceito importante a ser trabalhado nos estudos de caso é o de “comunidades
epistêmicas”. Caro principalmente ao domínio das análises voltadas as relações
internacionais, Haas (1992) argumenta que devido as crescentes incertezas oriundas do
desenvolvimento tecnocientífico em um contexto global, os “policy makers” (os
“responsáveis pelas diretrizes políticas” ou “formuladores de políticas”), que não partilham de
conhecimentos técnicos específicos, demandam a existência especialistas em determinadas
áreas com o objetivo de ajudar nas tomadas de decisão. Na mesma linha de raciocínio, o autor
expõe ademais que a análise voltada para as formas de controle do conhecimento e da
informação são importantes para entender como se dá a difusão de novas ideias, o surgimento
de novos padrões de comportamento ou, até mesmo, os rumos de determinadas políticas
internacionais. Nas palavras do autor (Haas, 1992, p. 3)
Comunidade epistêmica é uma rede de profissionais, especialistas em umdeterminada área do saber, que adquire autoridade sobre o conhecimento relevantepara a definição de políticas em uma área específica. Estes grupos podem identificarinteresses, delinear debates públicos, apontar para questões que devem ser objeto denegociação, além de propor medidas específicas. Eles compartilham crençasnormativas (sobre como o mundo deve ser), crenças casuais (sobre a relação entrepolíticas específicas e resultados possíveis), noções de validação do conhecimento eo envolvimento em práticas associadas a determinado conjunto de problemas.
Desta forma, as comunidades epistêmicas tem um papel importante na definição de
categorias (conceitos), objetos tecnocientíficos, bem como decisões políticas. Em relação a
nossos objetos de análise, as comunidades epistêmicas também partilham de significativa
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relevância, uma vez que, quem confere grande parte das definições do que vem a ser um
produto gourmet – da mesma forma que, quem define também o que não é um produto
gourmet – são as redes de especialistas que lutam, mobilizando e sendo mobilizados pelos
demais atores envolvidos nas controvérsias, pela demarcação e definição do conceito de
gourmet.
Na tentativa de seguir as redes se constituem em torno dos produtos gourmet em questão,
buscamos a partir da proposta metodológica da TAR, compreender como os atores humanos e
não-humanos contextualizam seus universos e como são realizadas as mediações por estes
“actantes” na suas redefinições de realidade.
3. Estudos de caso
3.1 Denominação de Origem Arroz do Litoral Norte Gaúcho
As Indicações Geográficas2 são um regime de propriedade intelectual que surge como
uma estratégia que propõe a valorização e proteção dos territórios, identidades, “saber-fazer”
e tradições associadas a bens e serviços localizados. Originalmente as IGs surgem na Europa,
onde são populares de longa data. No Brasil, representam um fenômeno recente, sendo que
sua expansão deu-se somente nos últimos dez anos. Atualmente, mesmo no mercado de
produtos considerados commodities agrícolas, a busca pela diferenciação tem se tornado uma
estratégia recorrente. Hoje em dia, é possível encontrar inúmeras opções de arrozes
diferenciados na prateleira do supermercado, variando conforme a artesanalidade produtiva, a
variabilidade de fenômenos biológicos, ou ainda diferentes condições edafoclimáticas.
Diante deste cenário, rizicultores da planície costeira externa do Rio Grande do Sul,
viram nos processos de Indicações Geográficas uma possibilidade de diferenciação frente às
demais regiões produtoras de arroz, e, por conseguinte, uma possibilidade de aumento no
2 De acordo com a legislação de IGs no Brasil, existem duas categorias de IG distintas, que se diferencia porpossuírem marcos legais específicos. A Indicação de Procedência (IP) designa um nome geográfico a uma regiãoque seja conhecida pela reputação e notoriedade na produção de um bem, ou pela prestação de um serviço, nãodependendo de outras características. Já a Denominação de Origem (DO) refere-se a um nome geográfico deonde se destaca a produção ou serviço que possuam características peculiares em virtude de qualidadesexclusivas ao meio geográfico, abarcando os fatores naturais e humanos.
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valor agregado do produto. A região do Litoral Norte é conhecida pelo predomínio da cultura
do arroz irrigado, outrora introduzido por imigrantes no início do século XX, cultivado numa
região de agroecossistema peculiar, que compreende uma península arenosa de 300 km de
extensão situada entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, compondo um complexo de
ecossistemas costeiros que proporciona condições edafoclimáticas singulares ao arroz
produzido neste território (APROARROZ, 2011). A produção de arroz no Litoral Norte
Gaúcho tem sua intensificação no início da década de 1930; isto se deve, em grande medida,
às boas condições climáticas aliadas à abundância de recursos hídricos que proporcionaram o
desenvolvimento socioeconômico da cultura orízicola na região.
A atividade econômica mais expressiva na região é a monocultura do arroz irrigado,
distribuídos em sua maioria, em grandes propriedades rurais concentradas em um grupo
composto por uma elite rural. Isto repercute em alguns impactos sociais na região estudada na
medida em que a subordinação dos sistemas produtivos ao monocultivo do arroz representa
uma das barreiras para o fortalecimento da agricultura familiar na região bem como a
concentração de renda e o monopólio latifundiário dos recursos hídricos.
No ano de 2005, um grupo informal de produtores de arroz da região, evidenciando as
qualidades do grão e seu vínculo territorial, inicia o debate sobre a Denominação de Origem,
criando em 2007 a instituição APROARROZ (Associação de Produtores de Arroz do Litoral
Norte Gaúcho) entidade que é a requerente e controladora da DO. A obtenção da DO foi
concedida em agosto de 2010, sendo a pioneira no país, mediante a comprovação cientifica de
que perante as demais regiões produtoras de arroz do Brasil e do Rio Grande do Sul, a
produção do Litoral Norte se diferencia durante o processo de cultivo do arroz, apresentando a
permanência de um índice maior de grãos inteiros - aproximadamente 65% produzido,
variando de acordo com a safra – esta média é cerca de 10% maior que a média do Rio
Grande do Sul, que fica em torno de 55% a 59% de grãos inteiros . Com isto, os atores
passam a conferir ao grão características superiores, com atributos distintos que se dão
exclusivamente devido às condições ambientais do território de origem (NABINGER, 2007).
Neste âmbito, a região do Litoral Norte, historicamente, construiu uma reputação no mercado
de região produtora de arroz de qualidade diferenciada diante das demais regiões do estado,
refletindo inclusive em um preço superior de mercado, cerca de 10% para o arroz em casca,
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comercializado, sobretudo, com a região centro-oeste do país a fim de ser utilizado como
blend, com o objetivo de qualificar o arroz produzido nesta região.
Na área de abrangência do território certificado pela DO, que compreende os 11
municípios, 1474 agricultores dedicam-se a atividade orizícola numa área de 130 mil hectares.
A APROARROZ, no ano de 2013 – período de realização do trabalho de campo - possuía 40
sócios produtores de arroz e duas cooperativas. Destes 40 sócios, apenas 12 produzem arroz
certificado dentro das normativas da Associação. A região que concentra o maior número de
produtores que compõe a APROARROZ, e que foram em grande medida os protagonistas da
conquista da DO, está situada entre os municípios de Mostardas, Tavares e Palmares, que
conta aproximadamente com 400 produtores de arroz. Deste modo, fica em evidência que a
construção do processo da DO fora engendrada por uma pequena elite de produtores, cujos
interesses foram contemplados de acordo com estratégias de negócios desde uma perspectiva
setorial, de tal modo que estas restrições iniciais para articulação da DO se refletem
atualmente no baixo envolvimento dos atores e no pouco reconhecimento a seu respeito no
território.
Apesar do recorte metodológico desta pesquisa ter abordado o trabalho de campo a
partir de um olhar que dê maior ênfase aos produtores de arroz que pertencem a
APROARROZ, pelo fato de representarem a entidade requerente e controladora da
Denominação de Origem, acreditamos, contudo, que este olhar não podia restringir-se
unicamente a este universo de informantes. Diante desta pluralidade, optamos, numa tentativa
de perceber os demais atores, identificar os principais grupos sociais que estão diretamente
ligados à produção orizícola. Para isso, criamos quatro grandes tipos envolvidos diretamente
na produção orizícola e compartilhamento dos recursos hídricos: Elite Agrária, Agricultura
Familiar, Comunidades Quilombolas e Pescadores Artesanais.
As experiências do Litoral Norte a reflexo de algumas experiências no Rio Grande do
Sul3 constituíram uma rede de institucional de atores - Federação da Agricultura do Estado do
Rio Grande do Sul (FARSUL), importante representação política do setor; Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) através da consultoria do professor Doutor Nabinger;
Serviço de Apoio a Pequena e Média Empresa (SEBRAE) que se destaca no papel de
consultoria em diversas experiências de IGs no Brasil; Federação das Associações de3 Ver mais em Pinto (2014)
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Arrozeiros do Estado do Rio Grande do Sul (FEDERARROZ) cujo presidente da instituição
fora o mesmo da APROARROZ; Instituto Rio-grandense do Arroz (IRGA) autarquia
administrativa responsável por coordenar e superintender a defesa da produção, industria
comercialização do arroz no estado; foram às principais instituições envolvidas para
consolidação das IGs. Isto explica, em partes, como as experiências, conduzidas pelos
mesmos atores institucionais, reproduziram reflexos semelhantes nos territórios onde foram
conjecturados.
Ao longo da biografia do arroz do Litoral Norte, nota-se que sua reputação foi
construída através da comercialização direta com grandes empresas beneficiadoras de arroz,
sempre vendido em casca e em grandes quantidades. A busca pela DO parece acompanhar
esta mudança de estratégia de mercado que se buscava alcançar, direcionando parte da
produção diretamente para o consumidor final, em mercados mais sofisticados. Destarte, este
fato parece representar uma tentativa de (re) construir a biografia deste arroz, remetendo a
uma possível desvinculação de sua imagem de commoditie homogênea, que não obstante
representa um dos alimentos mais populares na mesa dos brasileiros, para um produto
singular, que possui atributos únicos, projetando para os consumidores parte do seu território.
Deste modo, os atributos naturais e culturais construídos socialmente através de signos
distintivos que conferem uma identidade ao arroz realçam as qualidades da mercadoria
através das imagens e narrativas, mudando os sentidos dados ao arroz tanto pelos produtores
quanto para os consumidores. A partir da manipulação destes signos, narrativas e
performances inscritas na mercadoria, é que os produtores buscam a singularização de seu
produto diante das demais regiões produtoras de arroz.
Esta tentativa compõe uma estratégia construída por um grupo de produtores do
território, que buscam nas IGs uma forma de agregar valor ao produto, transformando o status
do “arroz commoditie” para “arroz de qualidade”. Todavia, a percepção sobre o arroz no
território é heterogênea, não representando um fato tão nítido para os demais atores do
território, produzindo uma pluralidade de visões dos diferentes atores sociais sobre a mesma
mercadoria. Com base no trabalho de campo, pode-se perceber que, de maneira geral, os
produtores familiares e os quilombolas não compartilham desta mesma visão sobre o arroz, de
modo que não participam das esferas que conduzem os negócios na região. A produção
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orizícola no âmbito destes atores restringe-se a níveis de produção de subsistência e
comercialização do excedente produtivo, e, quando questionados sobre a DO, estes parecem
pouco saber sobre o tema ou possuem informações superficiais. Ademais, estes atores não
parecem partilhar da mesma visão dos produtores da APROARROZ no que diz respeito ao
imperativo do vínculo histórico e ambiental que garantem ao arroz qualidades bem definidas e
que conferem elementos distintivos tão enfatizados nas narrativas dos produtores da
APROARROZ.
Este fato chama a atenção sobre como os sistemas de conhecimento manifesto nos
discursos dos produtores da APROARROZ, através da codificação de práticas e de técnicas,
colocam em evidencia as relações de poder dentro deste espaço. No entanto, a possibilidade
de transformar o meio natural num ativo que possa ser traduzido em potencialidades e gerador
de renda para estes produtores permanece pouco evidente, de modo que os discursos dos
grandes produtores estabelecem relações de dominação diante dos pequenos arrozeiros.
A linha Palmares possui um produto com foco na qualidade superior de seus grãos,
como o caso do arroz Palmares Gold Standard que é produzido através de cultivares nobres,
sem manipulação genética e os grãos somente são beneficiados após um período mínimo de
seis meses de repouso. Os apelos da embalagem fazem referencia à origem das lavouras do
Litoral Norte do Rio Grande do Sul, “região onde condições climáticas muito particulares,
produzem plantas cujos grãos têm características especiais e únicas”. Este produto é
comercializado exclusivamente em redes de supermercado especificas no Rio Grande do Sul,
destinados ao nicho de mercado que os atores denominam Gourmet.
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Figura 1 - Arroz tipo especial da Cooperativa PalmaresFonte: www.arrozpalmares.com acesso em: nov. 2013.
3.2 Cerveja Artesanal de Santa Catarina
O mercado de cervejas artesanais (gourmets) vem crescendo consideravelmente nos
últimos anos no Brasil. Apesar da produção deste tipo de cerveja representar uma parcela
ainda pequena do montante geral (cerca de 0,15%), a previsão de crescimento para esse
segmento da economia – segundo a Associação Brasileira de Bebidas (ABRABE) – é
significativa e deve atingir a marca de 2% do mercado nacional nos próximos 10 anos. Este
fato é denominado, por alguns representantes do mercado, como o renascimento da cultura
cervejeira artesanal no país, justamente por que argumenta-se que houve um período de
predominância desse tipo de produção – em grande medida no estado de Santa Catarina – que
perdeu força em razão do surgimento das cervejarias industriais.
No entanto, as definições do que são propriamente as cervejas artesanais não estão
claras, verificando-se portanto, disputas em torno da melhor maneira de classificar esse tipo
de produção em consonância com a necessidade de distinção das mesmas frente as cervejarias
que produzem em escala industrial. O que está em jogo quando analisamos essas disputas pela
definição do que é uma cerveja artesanal – e, por consequência, quais são os parâmetros que
definem o que é uma cerveja de qualidade – é a própria construção do conhecimento envolto
no que se passa a considerar como gourmet.
Partindo-se das reflexões iniciadas no Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “A
construção da qualidade: estudo sobre a legitimação do standard da Lei de Pureza Alemã no
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mercado catarinense de cervejas4”, procuramos, nesta sessão, analisar as maneiras de construir
o conhecimento que define o que se entende por cervejas artesanais. Para tanto,
empreendemos um trabalho de identificação e cartografia de alguns de atores (humanos e não
humanos) ligados a produção de cervejas no estado de Santa Catarina. Consideramos que
estes últimos mobilizam e são mobilizados por outros atores na edificação de redes
sociotécnicas que se empenham em delimitar as características do que se define por “cerveja
artesanal” – ou Gourmet. Utilizamos dados de entrevistas em profundidade realizadas com os
responsáveis pela produção de três cervejarias artesanais (também conhecidos como mestres
cervejeiros) localizadas em diferentes municípios do mesmo estado (à saber: Santo Amaro da
Imperatriz – região da Grande Florianópolis; Gaspar – região do Vale do Itajaí; e Treze Tílias
– região Meio Oeste).
Segundo classificação comumente utilizada, existem dois tipos de produção de
cerveja no Brasil. O primeiro é a produção industrial, formada por uma rede de grandes
cervejarias que servem a maior parcela do mercado – cerca de 98% da produção nacional.
Destinadas ao grande público, as cervejarias industriais produzem cervejas de baixo custo,
não variando muito suas receitas (estilos de cerveja), e não elaborando muito seu produto em
relação a variedade de ingredientes considerados “de qualidade” pelos peritos na produção da
bebida.
Já o segundo tipo de produção é o das microcervejarias – conhecidas por produzir
cervejas que denominam como “cervejas artesanais” ou “gourmets” –, que se fundamentam
na tentativa de dar conta de uma demanda nova, dentro de um nicho de mercado deixado
pelas cervejarias industriais, elaborando suas cervejas com características que as diferenciam
dos produtos das grandes cervejarias. Este nicho diz respeito a demanda de consumidores por
cervejas com maior qualidade sensorial, que surge, em grande medida, a partir da abertura do
mercado nacional para cervejas importadas – tema este que será tratado mais adiante. Seja na
qualidade sensorial, seja na importação de sua matéria prima, na elaboração de um produto
com menor quantidade de aditivos químicos – ou mesmo sem nenhum aditivo químico –,
entre outros fatores, as cervejarias artesanais tentam fazer com que seu produto se destaque
para um público específico. Porém, em virtude dos elementos listados, o preço do produto
4Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/130417/TCC%20Ricardo%20Paes.pdf?sequencs=1>
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final acaba sendo mais caro, o que, de certa maneira, faz com que o acesso a ele fique
comprometido a certos públicos que dispõem de condições financeiras para tanto.
A questão da abertura do mercado para as cervejas importadas é um ponto
importante, uma vez que ela mobiliza atores relevantes, justamente no momento em que esse
processo de construção conhecimento – que envolve as cervejas artesanais como “produtos de
qualidade” – começa a tomar corpo. Esses atores são as primeiras importadoras de cervejas a
entrar no mercado brasileiro em meados da primeira década dos anos 2000. Em uma
entrevista cedida à Rádio Estadão do dia 21 de abril de 20145, dois executivos fundadores de
uma das primeiras empresas importadoras de cerveja no Brasil, a Uniland, destacam que, a
partir de 2002, com a alta no poder de consumo das classes A e B, e a consequente abertura de
mercado para as cervejas importadas, o consumidor começou a tomar conhecimento de
diferentes tipos, receitas, estilos e sabores deste produto.
A mesma linha de discurso encontramos em duas das três entrevistas realizadas com
os mestres cervejeiros em Santa Catarina: o fato de algumas poucas empresas, como a
Uniland, terem trazido para o mercado nacional alguns rótulos de cervejas importadas – em
especial da Alemanha e da Bélgica – pode ter sido elementar, também, para o surgimento das
primeiras cervejarias artesanais no Brasil, devido a observação de um possível nicho de
mercado deixado pelas cervejarias industriais que dizia respeito a crescente disposição de um
contingente de consumidores que pagaria por um produto mais elaborado e,
consequentemente, mais caro.
Um bom exemplo do surgimento dessas cervejarias artesanais pioneiras no mercado
brasileiro, é a Cervejaria Eisenbahn, fundada no ano de 2002, na cidade de Blumenau, Santa
Catarina. Desde o ano de sua fundação, a empresa teve sua produção elevada de 15 mil
litros/mês para 350 mil litros/mês apenas 6 anos depois. No ano de 2008, a cervejaria foi
vendida ao Grupo Schincariol pelo valor aproximado de 80 milhões de reais6. Esta cervejaria,
juntamente com algumas outras poucas concentradas em maior número no sul do país, nesta
época, trazem produtos que carregam em si uma tentativa de distinção frente aos oferecidos
pelas cervejarias industriais.
5 Disponível em: <http://pme.estadao.com.br/noticias/noticias,empreendedores-revelam-os-segredos-da-importacao-de-cervejas-especiais,4245,0.htm> Acesso em 12/11/20146 Disponível em <http://mundodasmarcas.blogspot.com.br/2010/06/eisenbahn.html> Acesso em 25 de novembro de 2014
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Essa distinção se caracteriza, por exemplo, pela utilização de um método de
produção bastante conhecido no meio cervejeiro: a Lei de Pureza Alemã, também chamada de
“Reinheitsgebot”.7 Essa lei aparece também como um importante ator no processo de
construção do que se entende como cerveja de qualidade, tendo em vista que, no momento do
surgimento das primeiras cervejas artesanais, havia a necessidade – por parte das empresas
produtoras deste tipo de bebida – de algo que distinguisse claramente seu produto daquele
oferecido pelas cervejarias industriais8.
No entanto, com a consolidação do mercado deste tipo de bebida, a utilização do
método da Lei de Pureza começa a perder espaço. Como apontam os mestres cervejeiros
entrevistados, isso acontece em virtude do crescimento no nível de informação dos
consumidores em relação aos diferentes estilos de cerveja e, por consequência, a criação de
demandas novas por uma maior variedade de estilos e sabores dos quais a Lei de Pureza não
abriria espaço em função da utilização, neste, de apenas quatro ingredientes. Deste modo,
abre-se espaço para cervejas artesanais que não seguem a lei como parâmetro, mas que
utilizam também – além dos ingredientes centrais na Lei de Pureza – alguns outros que
também são considerados de qualidade (como polpas de frutas, aveia, café, chocolates, entre
outros). Nas palavras de um dos entrevistados:
7 A Reinheitsgebot – como é conhecida na Alemanha –, ou Lei da Pureza Alemã – como é conhecida no Brasil,foi promulgada em 23 de abril de 1516, na Baviera, pelo Duque Guilherme IV. Segundo Santos (2004, p.48),esta lei é uma das primeiras normas de regulamentação de um produto alimentício do mundo – apesar de já haverrelatos de que o Código de Hamurabi regulamentava a atividade na Mesopotâmia. Os critérios da lei da purezaalemã determinavam que toda a cerveja produzida no Ducado da Baviera poderia utilizar em sua composiçãosomente três ingredientes: água, malte de cevada e lúpulo. Com o passar do tempo o fermento (SacharomycesCerevisae) foi incluído na regulamentação, pois na época, ainda não havia sido descoberto. A única exceçãopermitida hoje na lei é a do uso do malte de trigo, se o processo for para cervejas de alta fermentação.
8 É importante salientar que, as cervejarias industriais não utilizam o método da Lei de Pureza Alemã naprodução de suas cervejas. Pelo contrário, empregam ingredientes que não constam no referido método, como,por exemplo, outros tipos de cereais não maltados – como arroz e milho –, além do uso de antioxidantes eestabilizantes de espuma (Paes, 2015, p. 17-18).
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Hoje até pode ser que não. Mas no ano que vem, ou daqui a dois anos, a Lei dePureza não vai mais ser o atrativo, porque tem muitos estilos de cerveja surgindo.Então, a Lei de Pureza já foi um chamariz, mas hoje eu não diria que ela é. Muitosestilos ingleses, americanos entrando no mercado... hoje, na verdade, o produto parase manter é: qualidade e padronização. Qualidade sim, para que o produto não sejaazedo. E padronização dentro do estilo que está escrito no rótulo. E a qualidade vemdo processo... desde a chegada da matéria prima até a expedição. Porque pode ter omelhor ingrediente, mas se a estocagem do produto não for boa...
Nota-se aqui uma certa disputa no tocante a definição do que é cerveja de qualidade
que vai se transformando ao longo do tempo. Em princípio, a Lei de Pureza era um parâmetro
do que se podia classificar como boa cerveja e, da mesma forma, o que não seria uma boa
cerveja. Porém hoje, esse parâmetro vai se transformando na medida em que cervejarias que
produzem cervejas com outros ingredientes vão tomando gradativamente a preferência do
consumidor, sendo consideradas no mercado como cervejas de qualidade.
Essa transformação ocorre também a partir do trabalho de outros atores envolvidos
deste processo, como, por exemplo – além dos especialistas em cerveja, como o caso dos
mestres cervejeiros que entrevistamos – algumas associações desses produtores que, de certa
maneira, formam e influenciam seus membros através de cursos, palestras, congressos, venda
de equipamentos, insumos, etc. No estado de Santa Catarina podemos citar algumas delas,
como a Associação dos Cervejeiros Artesanais de Santa Catarina (Acerva Catarinse9), a
Associação das Microcervejarias Artesanais de Santa Catarina (Acasc10). Essas entidades
também promovem concursos para escolha e premiação de cervejas e cervejarias. Essas
últimas são julgadas por especialistas na área, que também podem ser classificados como
atores importantes no processo de definição da qualidade.
Esses especialistas, em geral, são formados por cursos ofertados por instituição de
ensino, tanto técnico quanto superior – como, por exemplo, a Escola Superior de Cerveja e
Malte11 –, onde também ocorrem as trocas de informações e se fomentam as definições que,
de maneira geral, ajudam a construir o conhecimento envolto na qualidade das cervejas
artesanais.
9 Ver em <www.acervacatarinense.com.br> Acesso em 21/06/201510 Ver em <www.acasc.com.br> 21/06/201511 Ver em <www.cervejaemalte.com.br/a-escola> 21/06/2015
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Em resumo, procuramos nesta seção, traçar uma descrição – o mais resumidamente
possível – do contexto em que se insere a produção de conhecimento acerca do que se entende
como cervejas artesanais (gourmet). A lista de atores que identificamos reflete a rede de troca
de informações e tentativas de definições do que envolve o mundo da cerveja e da qualidade
que se deve conferir a um determinado produto para se concretizar, perante o público
consumidor, como um produto gourmet.
Figura 2 – Rótulo Cerveja Schorntein Imperial Stout. Fonte: http://www.criatives.com.br acesso em: junho/2015
4. Considerações finais
Nesta breve análise sobre como se constroem os produtos gourmet, buscamos seguir
as associações em duas redes sociotécnicas distintas, colocando objetos como mediadores
para descrever tais redes. Através da materialidade como sugere a TAR ou fetichismo crítico
de Appadurai (2008), a análise se inicia tendo como centro dois objetos, o arroz do Litoral
Norte Gaúcho e a Cerveja Artesanal de Santa Catarina. A partir disso, pudemos seguir as
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conexões com elementos heterogêneos que sustentam essas redes. O produto gourmet que
encontramos nas prateleiras no supermercado ou no interior dos restaurantes nada mais são do
que um processo de tradução desta rede, que carrega consigo uma série de associações
heterogêneas que possibilitam ser reconhecidas por tais elementos. No caso do arroz, para a
construção de um fato que corresponde à qualidade de um produto gourmet, os atores
mobilizam diversos elementos para torná-lo aceitável, sendo resultado de esforços coletivos.
O arroz se relaciona com o mundo por meio de mediadores como as calorias, os nutrientes, os
selos, os rótulos, as propagandas etc. O território e a natureza possuem papeis de agência
centrais para a ideia dessa qualidade do arroz, onde elementos biográficos, técnicos,
narrativos e estéticos sobre a qualidade do arroz são selecionados e postos em evidência, até
que essa qualidade não seja mais questionada, transformando-se numa caixa-preta. A
certificação de propriedade intelectual, também representa um importante mediador neste
processo, tendo em vista que a comprovação científica da qualidade do arroz e um standart
internacional - que já representam caixas-pretas pouco controversas - sustentam o fato da
qualidade do produto. Em outras palavras, o consumidor ao ver na prateleira um arroz ou
uma cerveja que se denomina gourmet (ou artesanal), vai traduzir elementos da rede através
do compartilhamento de conhecimentos inerente durante a trajetória e fluxo da mercadoria. Se
existe um aval da ciência e de certificações dadas por peritos, muitos consumidores poderão
dar credibilidade ao produto mesmo que não saibam como esses processos se desenrolem em
seu interior. Isto remete ao que Appadurai sugere sobre a alienação mútua entre quem produz
e quem consome, de modo que com o aumento do percurso entre os atores maior é a
tendência de surgirem mitologias construídas sobre tais bens.
No tocante as definições do que se entende como “cervejas artesanais” no Brasil – e
fundamentalmente no estado de Santa Catarina – também encontramos na presente análise,
um determinado esforço coletivo de frentes de atores que mobilizam elementos com objetivo
de transformar a sua definição de “cerveja artesanal” naquela aceita pela grande maioria da
comunidade epistêmica, bem como, pelos consumidores de maneira geral. Uma das disputas
mais emblemáticas que se relacionam com as tentativas de definição de cervejas artesanais,
diz respeito à utilização do método de produção conhecido como Lei Alemã de Pureza. Como
exposto acima, esse método de produção foi fundamental para o surgimento das primeiras
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cervejarias artesanais brasileiras justamente porque ele se fundamenta como um processo de
produção que diferencias as cervejas produzidas através dele das cervejas produzidas pela
grande indústria. Em outras palavras, o uso da Lei de Pureza Alemã é mobilizado por uma
série de atores (as cervejarias, os produtores, bem como os especialistas em marketing das
cervejarias) como uma tentativa de distinguir seu produto daquele elaborado pelas cervejarias
industriais.
Em um segundo momento – quando o mercado de cervejarias artesanais começa a se
estabilizar no Brasil – a Lei de Pureza deixa de ser mobilizada pelos atores como um sinal de
qualidade, tendo em vista que – como argumentam os entrevistados – o público consumidor
passa a ficar mais familiarizado com o “mundo da cerveja”, fazendo com que abra a
possibilidade de descartar a Lei, que limita a criatividade no uso de ingredientes na bebida, e
se passa a utilizar outros insumos para a produção de cervejas artesanais. A partir de então,
esses novos ingredientes (aveia, polpas de fruta, café, chocolate), também são mobilizados
como atores que conferem diferencial e qualidade as cervejas, mudando, assim, os sinais de
distinção que conferiam as cervejas um status de artesanal. Nota-se portanto que existe um
certo conflito entre os atores, de modo geral, acerca de qual é a melhor definição do que se
entende por cerveja artesanal: as que utilizam a lei de pureza como parâmetro (como sinal do
não uso de ingredientes que confiram impureza da bebida), ou as cervejarias que utilizam
outros ingredientes considerados de qualidade (como sinal de liberdade frente as restrições
contidas no método da Lei de Pureza Alemã).
No caso das cervejas artesanais, essas disputas se concentram e são fomentadas no
âmbito escolas de ensino técnico e superior, de associações, reuniões, encontros, concursos,
palestras, grupos hospedados em redes sociais, listas de e-mails destinados a troca de
informações, ou seja, lugares onde a informação e o conhecimento são trocadas pelos atores
envolvidos e as definições são construídas. Outra questão que perpassa a análise são os papeis
das comunidades epistêmicas, ou seja, os especialistas em determinadas áreas que identificam
os interesses e negociam como as políticas validam a crença em determinadas práticas e
conhecimentos. Isso parece ocorrer no caso dos produtos gourmet. Assim, o jogo de interesses
presentes nos regimes de propriedade intelectual, na legislação de pureza, nas associações de
classe etc. decorre de uma rede de atores institucionais e actantes que agem através do jogo de
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negociações e que contribuem para legitimar determinado conhecimento. A própria ideia de
utilizar uma IG para certificação de uma commoditie agrícola parece apontar um contrassenso
diante a ideia original das IGs.
Por fim, numa tentativa de criar categorias sociológicas para compreender como
ocorre a construção de produto gourmet, buscamos mostrar através da TAR, a reconstituição
da rede sociotécnica heterogênea que constrói seu próprio universo. Inúmeros são os atores
humanos e não humanos que a sustentam e o papel da materialidade e das técnicas nestas
redes são fundamentais. Vimos que, o que é um produto gourmet depende variavelmente de
uma comunidade epistêmica composta por especialistas que criam elementos que são
considerados como normas, padrões para os conhecimentos e práticas. Esta é uma reflexão
inicial que busca contribuir, sobretudo nas discussões sobre alimentação no atual modelo das
associações globais.
6. Referências Bibliográficas
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