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8/7/2019 a construo social da cor
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A Construo Social da Cor - Desigualdade e Diferena na construo e desconstruo doEscravismo Colonial
Jos DAssuno Barros1
Igualdade,Desigualdade eDiferena so destas noes complexas que interagem entre
si de diversas maneiras, e j tivemos a oportunidade de discutir em um ensaio anterior2 a idia
fundamental de que a confuso ou converso de certas Diferenas em Desigualdades, e vice-
versa, pode gerar problemas sociais especficos de maior ou menor gravidade. Antes de
avanar na questo que conduzir este ensaio a da aplicao daquele referencial conceitual
ao desenvolvimento da temtica daDesigualdade Escrava e daDiferena Negra na formao
histrica da sociedade brasileira ser oportuno recolocar alguns desenvolvimentos tericosimportantes.
Partiremos de algumas exemplificaes, de modo a favorecer uma maior compreenso
sobre o que so, efetivamente, diferenas e desigualdades. Negro e Branco, Homem e
Mulher, Brasileiro e Americano, Idoso e Jovem, Cristo e Muulmano, Operrio e Campons
... todos estes so exemplos bastante claros de diferenas. Quando se considera o par
Igualdade x Diferena (ou igual x diferente), tem-se em vista algo da ordem das
essncias, ou das modalidades de ser: uma coisa ou igual a outra (pelo menos em um
determinado aspecto) ou ento dela difere. Por exemplo, relativamente ao aspecto da
nacionalidade, ser brasileiro ou ser americano so diferenas muito bem delineadas. Um
indivduo, em alguns casos extremamente excepcionais, pode at ser as duas coisas se
pensarmos nos casos de dupla nacionalidade mas no pode ser meio brasileiro e meio
americano, a no ser que estejamos utilizando uma figura de retrica, e tampouco possvel
encontrar uma situao intermediria entre ser brasileiro e ser americano. No universo de
inmeras nacionalidades possveis, ser brasileiro e ser americano, enfim, no so
realidades ou plos que se opem, mas sim diferenas que se confrontam, cada uma
conservando seu prprio espao de delimitao com referncia a certa unidade geopoltica, a
1 Doutor em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF, Brasil); Professor Visitante daUniversidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e professor titular da Universidade Severino Sombra (USS) deVassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduao em Histria. Entre as obras mais significativas do autor,destacam-se os livros O Campo da Histria (Petrpolis: Vozes, 2004), O Projeto de Pesquisa em Histria(Petrpolis: Vozes, 2005), Cidade e Histria (Petrpolis: Vozes, 2007) eA Construo Social da Cor(Petrpolis:Vozes, 2008).2 O ensaio em questo foi publicado no nmero 175 da revista portuguesa Anlise Social (BARROS, 2005: 345-
366) e em verso ampliada em outra obra do autor, com o ttulo Igualdade, Desigualdade e Diferena (BARROS,2007). Uma comunicao sobre o tema foi proferida no XII Encontro Regional de Histria da ANPUH, em14.08.2006.
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uma determinada identidade histrico-cultural, a uma cidadania legalmente aceita, e,
sobretudo, a certo local de nascimento ou relaes de filiao.
J para aventar exemplos relativos s Desigualdades, podemos opor adjetivos como
Forte e Fraco, Instrudo e Analfabeto, Rico e Pobre, ou mesmo substantivoscomo Liberdade e Escravido, de modo a evidenciar mais claramente que o contraste
entreIgualdade eDesigualdade refere-se quase sempre no a um aspecto essencial, mas sim
a uma circunstncia. Distintamente da oposio por contrariedade que se estabelece entre
Igualdade e Diferena, a oposio entre Igualdade e Desigualdade da ordem das
contradies. No se considera um homem pobre ou rico, e tampouco muito instrudo ou
pouco instrudo, seno por comparao com um outro homem. E entre o homem mais
instrudo e o menos instrudo, ou entre o homem mais forte e o mais fraco, se for
hipoteticamente possvel imagin-los, existem inmeros graus (e no degraus) que podem ser
percorridos. De igual maneira, o homem mais prestigiado pode passar rapidamente a ser
socialmente execrado, e a Riqueza pode ser revertida em Pobreza de uma para outra hora.
Todos estes pares que tomamos como exemplos remontam a mbitos relacionados s
desigualdades: so aspectos circunstanciais e contraditrios, mutuamente reversveis, somente
compreensveis do ponto de vista relativizador. As desigualdades, reforaremos esta idia,
presidem em todos os casos possveis a relaes contraditrias, e no a meras oposies por
contrariedade.
As contradies, este o ncleo da questo, so sempre circunstanciais, enquanto os
contrrios necessariamente se opem ao nvel das modalidades de ser. Vale dizer, as
contradies so geradas no interior de um processo, aparecem ou se explicitam em um
determinado momento ou situao, e, de resto, pode-se dizer que os pares contraditrios
integram-se dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Por seu turno, os
contrrios no se misturam (amor e dio, verdade e mentira, igual e diferente), e desta forma
fixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Esta distino entre contrrios e
contradies traz importantes implicaes. Para resumir esta primeira aproximao, pode-se
dizer que em geral a Diferena se coloca no mbito do Ser, enquanto a Desigualdade
pertence inteiramente ao mundo do Estar ou da Circunstncia.
A compreenso das distines fundamentais entre Diferena e Desigualdade, que
buscamos desenvolver mais sistematicamente at aqui, de fato imprescindvel para que se
possa perceber como estas noes tm se relacionado entre si no mbito social, e de que modo
cada uma delas se relaciona com a noo de Igualdade. Somente a partir disso poderemos
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iniciar um maior esforo para a compreenso de certos aspectos relacionados Escravido e
s Diferenas de Cor. Desde j, contudo, pontuaremos a complexidade do tema da
Escravido, uma vez que esta noo tem sido alternativamente postulada como pertencente ao
mbito da Desigualdade ou Diferena conforme os interesses sociais envolvidos e osdesenvolvimentos histricos que podem ser examinados.
Deslocamentos entre Desigualdade e Diferena: introduzindo a questo escrava
As relaes entre Desigualdade e Diferena, j o dissemos, constituem de fato um
captulo bastante complexo na histria das sociedades humanas, e uma das questes mais
intrigantes no mbito destas relaes refere-se s possibilidades de que uma determinada
contradio relacionada com Desigualdade passe a ser lida socialmente como uma
contrariedade relacionada com Diferenas. O exemplo que estaremos examinando mais
sistematicamente neste ensaio o da oposio entreLiberdade eEscravido, e a sua posterior
relao com as diferenas de cor no mbito do escravismo colonial do perodo moderno.
Naturalmente que, se considerarmos que a Escravido implica, em uma primeira
instncia, na privao de Liberdade, deveremos tendencialmente localizar este par de
contraditrios no eixo circunstancial da Desigualdade. O Escravo aquele que perdeu a
Liberdade. A escravido ou a condio de homem livre constitui cada qual um estado, uma
circunstncia (a princpio, pode-se postular, estas duas noes interagem reciprocamente
como contradies, e no como diferenas).
Se quisermos ultrapassar o nvel mais abstrato das definies generalizantes, a idia de
liberdade se colocar necessariamente em certo patamar: liberdade em relao a algo.
Liberdade de ir-e-vir, liberdade para dispor de sua prpria vida, liberdade para negociar a sua
prpria fora de trabalho, liberdade de se afirmar no mbito social no como a propriedade de
outrem, mas como algum que detm uma razovel parcela de autonomia sobre o seu prprio
destino liberdade, enfim, de tecer ou conservar a sua trama de pertencimentos com algum
nvel de escolhas possveis. A idia de liberdade, compreendida como um complexo de
irredutveis direitos e poderes do indivduo sobre si mesmo, pode naturalmente ser
contraposta a certo nmero de tipos de escravido e de servido. Sabe-se que existiu uma
considervel variedade de tipos de escravo e de outros trabalhadores compulsrios tanto na
Antiguidade como na frica do incio do perodo moderno, e que o escravo das Amricas
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coloniais introduz-se singularmente como um escravo de novo tipo. Esta variedade de tipos ,
obviamente, uma questo a se considerar. Destarte, de modo a contornar o risco da
imobilidade conceitual, enquadraremos alguns destes vrios tipos (embora no todos) na
rubrica da escravido, sem nos perdermos nas interminveis aventuras tericas de tentarencontrar um nome diferente para cada tipo de escravo que seja mais adequado s diversas
formaes sociais antigas ou modernas.
O escravo, definido por oposio ao homem livre com nfase nas implicaes scio-
culturais desta oposio ser nosso ponto de partida, ainda que o contraste mais
economicamente direcionado de escravido por oposio a trabalho livre pudesse render
ainda outro circuito de consideraes, igualmente rico de reflexes teis para a Histria e para
as Cincias Sociais. Neste particular, ressalta o fato de que o trabalhador livre por mais que
esteja sendo super-explorado na sua vida produtiva e cotidiana sofre apenas coaes de
mbito exclusivamente econmico para realizar o seu trabalho em certas condies (a presso
do mercado de trabalho, a necessidade de possuir uma renda para satisfazer as exigncias
vitais mnimas no mundo capitalista). Enquanto isto, o escravo, entre outros trabalhadores
compulsrios, forado ao trabalho ou ao servio de outrem com base em coaes de ordem
extra-econmica basicamente fundadas na captura, violncia fsica, ou ameaas de violncia
fsica e morte (alm disto, a ameaa de venda a qualquer instante, e outros deslocamentos para
condies ainda piores de trabalho, constitua uma coero adicional presente no horizonte de
vida do escravo). A coao extra-econmica , portanto, um primeiro aspecto a considerar
quando buscamos entender o que a escravido.
Outro contraste que poderia particularmente nos ajudar a iluminar a singular condio
do escravo, seria oportuno lembrar neste momento, aquele que situa o trabalho escravo
diante de outras formas de trabalho compulsrio que existiram na antiguidade, no perodo
medieval e na idade moderna. Apenas para dar um exemplo bastante significativo, e que
remonta Grcia Antiga, o contraste entre o escravo propriamente dito e o hilota permite
lanar luz sobre um importante aspecto que caracteriza a escravido de modo geral. Os hilotas
correspondiam, na Grcia Antiga, a populaes ou grupos de populaes submetidas pelos
espartanos e obrigadas, a partir da, a uma forma especfica de trabalho compulsrio. Uma de
suas caractersticas essenciais que eles eram dependentes coletivos, em contraste, por
exemplo, com o escravo ateniense do perodo clssico, que via de regra estava preso a um
destino individual de dependncia (FINLEY, 1991: 73). Enquanto o hilota insere-se em um
grupo escravizado por uma comunidade de senhores, j o escravo propriamente dito passa
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a pertencer a um indivduo: ele propriedade de algum. Este aspecto obviamente de
mxima importncia na definio do escravo.
Ser propriedade de algum inseparvel da idia de escravido. Dizer que algum est
privado de liberdade, obviamente, no definiria o escravo em todos os seus aspectos, j que oprisioneiro condenado a viver confinado aos limites de uma cela tambm estar privado de
liberdade e nem por isto poder ser definido como escravo. Mas estar privado da liberdade
(nos mbitos mais acima considerados), estar sujeito a trabalho compulsrio atravs de
coaes extra-econmicas, e particularmente estar sujeito a ser classificado como
propriedade de um outro, que passa a deter poderes de definir os destinos do indivduo
escravizado em uma totalidade de aspectos ... isto j nos aproxima de uma percepo mais
completa do que o escravo.
O fato de que o escravo propriedade de um outro mais especificamente de um
indivduo que o seu senhor traz-nos algumas implicaes adicionais que podem tambm
ser iluminadas atravs do j mencionado contraste entre o escravo-mercadoria e o hilota da
antiguidade espartana. Enquanto este ltimo detinha o direito a uma parte formalmente
definida do produto do seu trabalho, em tese o escravo no possui qualquer direito formal a
uma parte sequer do produto de seu prprio trabalho, a no ser que o seu senhor lhe conceda
isto (o que veremos alis ocorrer eventualmente na escravido moderna, tal como certamente
ocorria na escravido antiga). Esta participao na produo decorrente do seu trabalho,
contudo, mesmo que possvel de ocorrer eventualmente em funo da generosidade senhorial
ou de estratgias motivacionais, no existe certamente referida em nenhuma definio jurdica
do escravo propriamente dito. Em tese, o escravo propriedade individual, e tudo aquilo
que ele produz pertence quele que o possui formalmente. A ausncia de liberdade estende-se
aqui ao direito de dispor minimamente do prprio trabalho, eliminando-o, e oportuno
lembrar a definio de escravido proposta por Petterson (1977), segundo a qual a escravido
aquela condio na qual h uma alienao institucionalizada dos direitos sobre o trabalho e
o parentesco. Enquanto um dependente de qualquer tipo paga um certo tributo quele que o
submete, ou mesmo obrigado a colocar amplamente a sua fora de trabalho ao dispor de
outro mas conservando formalmente um minimum que pode ser revertido para si, o trabalho
do escravo a este no pertence em absoluto.
A oposio entre Liberdade e Escravido, conforme se v, pode ser iluminada atravs
do contraste do trabalho escravo propriamente dito em relao ao trabalho livre, de um
lado, e a outras formas de trabalho compulsrio, de outro. Por outro lado, quaisquer destas
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formas de trabalho, inclusive o trabalho livre, podem estar sujeitas a processos de
desigualdade e de acentuado grau de explorao econmica.
Posto isto, a reflexo sobre a Escravido como complexo cultural leva-nos, como j
postulamos, a posicionarmos esta noo de maneira bastante singular no mbito do eixofundador das desigualdades: adentra-se a escravido quando se tem por perdido certo nmero
de liberdades e do ponto de vista semitico aqui teremos uma circunstncia, um estado
reversvel (mesmo que no se reverta nunca). Contudo, conforme veremos oportunamente,
ser bastante comum diante das situaes concretas a possibilidade de visualizarmos o
reenquadramento da Escravido no eixo de contrariedades que ope as Diferenas
Igualdade: o escravo passa a ser aqui, ento, o estrangeiro absoluto, aquele que perdeu
todos os direitos sobre si e j no possui praticamente nenhuma familiaridade com relao ao
homem livre, a no ser a sua humanidade mnima, que mesmo assim por diversas vezes
negada. O escravo tornado diferena, perde at mesmo o mais simples elemento que poderia
preservar para a afirmao desta humanidade mnima: o parentesco.
A estratificao social no Brasil Colonial (embora isto tambm ocorra em outras
sociedades e tempos) fundou-se no deslocamento imaginrio da noo desigualadora de
Escravo para a coordenada de contrrios fundada sob a perspectiva da Diferena entre
homens livres e escravos. Nesta perspectiva, um indivduo no est escravo, ele escravo.
Toda a violncia maior do modelo de estratificao social tpico do Brasil Colonial esteve
alicerada neste deslocamento, nesta transformao de uma contradio em contrariedade,
nesta estratgia social imobilizadora que transmudava uma circunstncia em essncia. digno
de nota que os abolicionistas tenham se empenhado precisamente em reconduzir o discurso
sobre a Escravido para o plano das desigualdades, recusando-se a discutir a oposio entre
Livres e Escravos no plano das diferenas. Alguns passaram inclusive a discutir a
desigualdade da Escravido em conexo com outras formas de desigualdade, e ao tempo em
que propunham a abolio, preconizavam tambm reformas fundirias e jurdicas. Destronada
do plano imobilizador das Diferenas em que fora assentada durante o processo de formao e
implantao do escravismo colonial, a Escravido passava a coabitar no discurso abolicionista
com outras desigualdades, e algumas destas desigualdades podiam ser enfrentadas naquele
momento pelas mesmas prticas, pelos mesmos discursos, pelas mesmas aes sociais.
muito interessante observar que estas oscilaes do conceito de Escravido entre os
planos da Desigualdade e da Diferena j podiam ser identificadas na Antiguidade. Assim, a
Escravido por Dvida que podia ser infligida aos atenienses empobrecidos do perodo
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anterior s reformas de Slon situava-se claramente referida ao plano das Desigualdades (das
circunstncias), e j a Escravido imposta ao estrangeiro brbaro comprado ou capturado em
guerra, que conflui no perodo posterior a Slon para a idia do escravo-mercadoria,
mostra-se mais claramente vinculada categoria das Diferenas. Por outro lado, tambmparticularmente interessante observar que o primeiro captulo do Livro I da Poltica de
Aristteles desenvolve-se em torno da dificuldade de se pensar a escravido como uma
questo de essncia (de diferena) e no de circunstncia (de desigualdade). Aristteles tenta
contornar estas contradies elaborando uma distino entre escravos legais e escravos
naturais. Os escravos legais seriam aqueles que no nasceram para serem escravos so
portanto homens livres por natureza que foram escravizados equivocadamente ou
circunstancialmente e em seu horizonte pairaria a possibilidade de conquistarem a liberdade
por merecimento (isto , de reverterem a sua posio no eixo das desigualdades). J os
escravos naturais seriam aqueles que teriam nascido para serem escravos e neste ponto
Aristteles levado a considerar algo como uma condio sub-humana do escravo, ou ao
menos uma concepo do escravo (natural) como possuindo uma espcie de qualidade
humana deficiente, ao invs de falar de um humano tratado de maneira desumana (isto , um
ser humano tratado com desigualdade). O escravo ser visto aqui como mera propriedade
privada, uma coisa que fala (mais do que uma coisa que sente), um desenraizado, um
estrangeiro absoluto (isto , Diferena plenamente realizada).
No que tange questo escravocrata, portanto, a concepo aristotlica gira em torno
deste esforo, e ao mesmo tempo em torno desta dificuldade, de enxergar o escravo como
diferena. O filsofo grego chega a reconhecer a humanidade do escravo, mas afirma que este
escravo (isto , o escravo natural, e no o escravo legal) um homem que possui uma
natureza distinta, embora humana, em relao ao homem pleno. A qualidade que singulariza o
escravo natural refere-se ento a um certo aspecto do seu esprito, a uma natureza humana
deficiente. E neste sentido, para acompanhar de perto uma reflexo de Jorge Martnez
Barrera (2007), que se pode dizer que em Aristteles a escravido apresentada como uma
categoria de natureza tico-psicolgica. No se trata, no seu ncleo mais singular, de uma
categoria relacionada ao trabalho ou poltica (ou seja, uma desigualdade), e tampouco
de uma categoria racial (o que dela faria uma diferena de natureza social ou coletiva).
Situar o escravo como uma categoria tico-psicolgica faz da escravido aristotlica uma
diferena, de fato, mas uma diferena individual, que remete ao esprito de cada ser humano
singularizado.
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Este esforo de enxergar o escravo sob a tica de uma natureza deficiente estaria
presente em toda uma tradio do pensamento socrtico que remonta Memorabilia de
Xenofonte (1, 5, 5-6). De alguma maneira, embora se referindo a uma questo diversa, o que
teramos naRepblica de Plato seno este esforo de enxergar nos seres humanos diferenasde esprito, suficientemente clivadas para que Plato se veja autorizado a falar em almas de
ouro, almas de prata, almas de bronze e almas de ferro? Uma clivagem, diga-se de
passagem, que se vai manifestando ou se explicitando na medida em que o indivduo avana
no processo da educao, considerando-se ainda a propsito que Plato est se referindo aqui
aos cidados, e no aos escravos, o que os colocaria ainda em um nvel mais inferior desta
escala de diferenas.
A proposta do moderno sistema escravocrata implantado pelos europeus na Amrica, a
partir da fora de trabalho africana, encontra-se fundamentalmente organizada em torno de
um modo ainda mais radical de enxergar a Escravido como Diferena. A racializao da
escravido, nesta nova tica que ser a moderna, implica em que a escravido possa ser vista
como uma diferena coletiva. No seriam certos indivduos de natureza humana deficiente,
como propunha Aristteles, que deveriam estar destinados escravido, mas sim um grupo
humano especfico, que traria na cor da pele os sinais de uma inferioridade da alma. Esta
concepo, do mesmo modo, ver-se-ia autorizada por certas releituras de algumas passagens
bblicas, que buscariam conceber a escravizao coletiva dos africanos como resultado do
Pecado. Deus no havia criado os homens diferentemente j diziam os Padres da Igreja na
Antigidade, preparando aqui uma sutil correo ao pensamento aristotlico mas os prprios
homens que teriam criado esta diferena a partir do Pecado cometido por alguns deles
(veremos mais adiante o episdio bblico da maldio a Cam). Com isto, se a escravido no
era natural, como propunha Aristteles (o que seria mais difcil de sustentar a partir da idia
de igualdade humana aos olhos de Deus, proposta pelo Cristianismo), ao menos seria
legtima.
oportuno acrescentar que ao mesmo tempo em que se institua o sistema escravista
colonial sob as novas bases de um trfico atlntico adaptado aos interesses coloniais e,
sobretudo, alicerado em uma escravido racializada e espacializada (isto , com suas fontes
humanas concentradas no continente africano) foi sendo construda a idia de uma raa
negra, na verdade uma nova Identidade que se edificava s custas de inmeras identidades
tnicas que os povos africanos possuam no seu continente de origem. Esta questo, que nos
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permite falar em uma Construo Social da Cor, bastante complexa, e aqui remetemos ao
ensaio de mesmo nome em que buscamos refletir sobre esta temtica (BARROS, 2008).
Vale lembrar ainda, e esta outra questo igualmente complexa que examinamos no
mesmo ensaio, que a montagem do Escravismo Colonial tambm assistiu em diversosmomentos a processos de releituras da Escravido uma Desigualdade como Diferena, de
modo a que o escravo vindo da frica no pudesse ser encarado em termos de um ser humano
submetido a uma desigualdade radical (estarescravo), mas sim como uma diferena que a ele
se agrega (ser escravo). Inverter esta leitura isto , dar a perceber que a Escravido era
Desigualdade e no Diferena foi tarefa dos movimentos abolicionistas, das sociedades anti-
escravistas de ao direta, da resistncia quilombola, dos discursos polticos anti-escravistas, e
de todo um complexo movimento social diante do qual a abolio da escravatura representou
apenas um momento emblemtico.
A questo da Escravatura, conforme discutimos na obra em referncia (BARROS,
2008), permite-nos sustentar que as releituras de uma Desigualdade como Diferena podem,
de um lado, implicar em opresso ou dominao. Por outro lado, pode-se tambm produzir
libertao com a desconstruo do deslocamento opressor no sentido inverso, como foi o caso
dos discursos abolicionistas e movimentos anti-escravistas que reconduziriam a noo de
escravatura do plano das diferenas ao eixo das desigualdades. preciso fazer compreender a
Escravido como Desigualdade para, ato contnuo, propor sua extino atravs de uma ao
social. Tal foi a histria da desconstruo do Escravismo Colonial no Brasil.
REFERNCIAS
ARISTTELES Poltica. Traduo de M.G. Kury.Braslia: Editora. UNB, 1985.
BARRERA, Jos Martnez. A Poltica em Aristteles e Santo Toms. Rio de Janeiro: Stimo Selo,2007.
BARROS, Jos DAssuno. A Construo Social da Cor Diferena e Desigualdade na formao
da sociedade brasileira. Petrpolis: Editora Vozes, 2008.BARROS, Jos DAssuno. Igualdade, Desigualdade e Diferena rediscutindo trs noes inAnlise Social (Revista do Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa). n.175, volume 11,vero de 2005, p.345-366.
BARROS, Jos DAssuno.Igualdade, Desigualdade e Diferena. Vassouras: LESC, 2007.
BARROS, Jos DAssuno. Desigualdade e Diferena: duas noes em dilogo in GEBRAN,Philomena; LIMA, Carlos; SEDA, Paulo e MOURA, Ana Maria (orgs) Desigualdades. Vassouras:LESC, 2003. p.13-39.
FINLEY, Moses.Escravido Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991.
PETTERSON, Orlando The Study of Slavery in Annual Review of Sociology, III. 1977, p.407-449.