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    A Construo Social da Cor - Desigualdade e Diferena na construo e desconstruo doEscravismo Colonial

    Jos DAssuno Barros1

    Igualdade,Desigualdade eDiferena so destas noes complexas que interagem entre

    si de diversas maneiras, e j tivemos a oportunidade de discutir em um ensaio anterior2 a idia

    fundamental de que a confuso ou converso de certas Diferenas em Desigualdades, e vice-

    versa, pode gerar problemas sociais especficos de maior ou menor gravidade. Antes de

    avanar na questo que conduzir este ensaio a da aplicao daquele referencial conceitual

    ao desenvolvimento da temtica daDesigualdade Escrava e daDiferena Negra na formao

    histrica da sociedade brasileira ser oportuno recolocar alguns desenvolvimentos tericosimportantes.

    Partiremos de algumas exemplificaes, de modo a favorecer uma maior compreenso

    sobre o que so, efetivamente, diferenas e desigualdades. Negro e Branco, Homem e

    Mulher, Brasileiro e Americano, Idoso e Jovem, Cristo e Muulmano, Operrio e Campons

    ... todos estes so exemplos bastante claros de diferenas. Quando se considera o par

    Igualdade x Diferena (ou igual x diferente), tem-se em vista algo da ordem das

    essncias, ou das modalidades de ser: uma coisa ou igual a outra (pelo menos em um

    determinado aspecto) ou ento dela difere. Por exemplo, relativamente ao aspecto da

    nacionalidade, ser brasileiro ou ser americano so diferenas muito bem delineadas. Um

    indivduo, em alguns casos extremamente excepcionais, pode at ser as duas coisas se

    pensarmos nos casos de dupla nacionalidade mas no pode ser meio brasileiro e meio

    americano, a no ser que estejamos utilizando uma figura de retrica, e tampouco possvel

    encontrar uma situao intermediria entre ser brasileiro e ser americano. No universo de

    inmeras nacionalidades possveis, ser brasileiro e ser americano, enfim, no so

    realidades ou plos que se opem, mas sim diferenas que se confrontam, cada uma

    conservando seu prprio espao de delimitao com referncia a certa unidade geopoltica, a

    1 Doutor em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF, Brasil); Professor Visitante daUniversidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e professor titular da Universidade Severino Sombra (USS) deVassouras, nos Cursos de Mestrado e Graduao em Histria. Entre as obras mais significativas do autor,destacam-se os livros O Campo da Histria (Petrpolis: Vozes, 2004), O Projeto de Pesquisa em Histria(Petrpolis: Vozes, 2005), Cidade e Histria (Petrpolis: Vozes, 2007) eA Construo Social da Cor(Petrpolis:Vozes, 2008).2 O ensaio em questo foi publicado no nmero 175 da revista portuguesa Anlise Social (BARROS, 2005: 345-

    366) e em verso ampliada em outra obra do autor, com o ttulo Igualdade, Desigualdade e Diferena (BARROS,2007). Uma comunicao sobre o tema foi proferida no XII Encontro Regional de Histria da ANPUH, em14.08.2006.

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    uma determinada identidade histrico-cultural, a uma cidadania legalmente aceita, e,

    sobretudo, a certo local de nascimento ou relaes de filiao.

    J para aventar exemplos relativos s Desigualdades, podemos opor adjetivos como

    Forte e Fraco, Instrudo e Analfabeto, Rico e Pobre, ou mesmo substantivoscomo Liberdade e Escravido, de modo a evidenciar mais claramente que o contraste

    entreIgualdade eDesigualdade refere-se quase sempre no a um aspecto essencial, mas sim

    a uma circunstncia. Distintamente da oposio por contrariedade que se estabelece entre

    Igualdade e Diferena, a oposio entre Igualdade e Desigualdade da ordem das

    contradies. No se considera um homem pobre ou rico, e tampouco muito instrudo ou

    pouco instrudo, seno por comparao com um outro homem. E entre o homem mais

    instrudo e o menos instrudo, ou entre o homem mais forte e o mais fraco, se for

    hipoteticamente possvel imagin-los, existem inmeros graus (e no degraus) que podem ser

    percorridos. De igual maneira, o homem mais prestigiado pode passar rapidamente a ser

    socialmente execrado, e a Riqueza pode ser revertida em Pobreza de uma para outra hora.

    Todos estes pares que tomamos como exemplos remontam a mbitos relacionados s

    desigualdades: so aspectos circunstanciais e contraditrios, mutuamente reversveis, somente

    compreensveis do ponto de vista relativizador. As desigualdades, reforaremos esta idia,

    presidem em todos os casos possveis a relaes contraditrias, e no a meras oposies por

    contrariedade.

    As contradies, este o ncleo da questo, so sempre circunstanciais, enquanto os

    contrrios necessariamente se opem ao nvel das modalidades de ser. Vale dizer, as

    contradies so geradas no interior de um processo, aparecem ou se explicitam em um

    determinado momento ou situao, e, de resto, pode-se dizer que os pares contraditrios

    integram-se dialeticamente dentro dos processos que os fizeram surgir. Por seu turno, os

    contrrios no se misturam (amor e dio, verdade e mentira, igual e diferente), e desta forma

    fixam muito claramente o abismo de sua contrariedade. Esta distino entre contrrios e

    contradies traz importantes implicaes. Para resumir esta primeira aproximao, pode-se

    dizer que em geral a Diferena se coloca no mbito do Ser, enquanto a Desigualdade

    pertence inteiramente ao mundo do Estar ou da Circunstncia.

    A compreenso das distines fundamentais entre Diferena e Desigualdade, que

    buscamos desenvolver mais sistematicamente at aqui, de fato imprescindvel para que se

    possa perceber como estas noes tm se relacionado entre si no mbito social, e de que modo

    cada uma delas se relaciona com a noo de Igualdade. Somente a partir disso poderemos

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    iniciar um maior esforo para a compreenso de certos aspectos relacionados Escravido e

    s Diferenas de Cor. Desde j, contudo, pontuaremos a complexidade do tema da

    Escravido, uma vez que esta noo tem sido alternativamente postulada como pertencente ao

    mbito da Desigualdade ou Diferena conforme os interesses sociais envolvidos e osdesenvolvimentos histricos que podem ser examinados.

    Deslocamentos entre Desigualdade e Diferena: introduzindo a questo escrava

    As relaes entre Desigualdade e Diferena, j o dissemos, constituem de fato um

    captulo bastante complexo na histria das sociedades humanas, e uma das questes mais

    intrigantes no mbito destas relaes refere-se s possibilidades de que uma determinada

    contradio relacionada com Desigualdade passe a ser lida socialmente como uma

    contrariedade relacionada com Diferenas. O exemplo que estaremos examinando mais

    sistematicamente neste ensaio o da oposio entreLiberdade eEscravido, e a sua posterior

    relao com as diferenas de cor no mbito do escravismo colonial do perodo moderno.

    Naturalmente que, se considerarmos que a Escravido implica, em uma primeira

    instncia, na privao de Liberdade, deveremos tendencialmente localizar este par de

    contraditrios no eixo circunstancial da Desigualdade. O Escravo aquele que perdeu a

    Liberdade. A escravido ou a condio de homem livre constitui cada qual um estado, uma

    circunstncia (a princpio, pode-se postular, estas duas noes interagem reciprocamente

    como contradies, e no como diferenas).

    Se quisermos ultrapassar o nvel mais abstrato das definies generalizantes, a idia de

    liberdade se colocar necessariamente em certo patamar: liberdade em relao a algo.

    Liberdade de ir-e-vir, liberdade para dispor de sua prpria vida, liberdade para negociar a sua

    prpria fora de trabalho, liberdade de se afirmar no mbito social no como a propriedade de

    outrem, mas como algum que detm uma razovel parcela de autonomia sobre o seu prprio

    destino liberdade, enfim, de tecer ou conservar a sua trama de pertencimentos com algum

    nvel de escolhas possveis. A idia de liberdade, compreendida como um complexo de

    irredutveis direitos e poderes do indivduo sobre si mesmo, pode naturalmente ser

    contraposta a certo nmero de tipos de escravido e de servido. Sabe-se que existiu uma

    considervel variedade de tipos de escravo e de outros trabalhadores compulsrios tanto na

    Antiguidade como na frica do incio do perodo moderno, e que o escravo das Amricas

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    coloniais introduz-se singularmente como um escravo de novo tipo. Esta variedade de tipos ,

    obviamente, uma questo a se considerar. Destarte, de modo a contornar o risco da

    imobilidade conceitual, enquadraremos alguns destes vrios tipos (embora no todos) na

    rubrica da escravido, sem nos perdermos nas interminveis aventuras tericas de tentarencontrar um nome diferente para cada tipo de escravo que seja mais adequado s diversas

    formaes sociais antigas ou modernas.

    O escravo, definido por oposio ao homem livre com nfase nas implicaes scio-

    culturais desta oposio ser nosso ponto de partida, ainda que o contraste mais

    economicamente direcionado de escravido por oposio a trabalho livre pudesse render

    ainda outro circuito de consideraes, igualmente rico de reflexes teis para a Histria e para

    as Cincias Sociais. Neste particular, ressalta o fato de que o trabalhador livre por mais que

    esteja sendo super-explorado na sua vida produtiva e cotidiana sofre apenas coaes de

    mbito exclusivamente econmico para realizar o seu trabalho em certas condies (a presso

    do mercado de trabalho, a necessidade de possuir uma renda para satisfazer as exigncias

    vitais mnimas no mundo capitalista). Enquanto isto, o escravo, entre outros trabalhadores

    compulsrios, forado ao trabalho ou ao servio de outrem com base em coaes de ordem

    extra-econmica basicamente fundadas na captura, violncia fsica, ou ameaas de violncia

    fsica e morte (alm disto, a ameaa de venda a qualquer instante, e outros deslocamentos para

    condies ainda piores de trabalho, constitua uma coero adicional presente no horizonte de

    vida do escravo). A coao extra-econmica , portanto, um primeiro aspecto a considerar

    quando buscamos entender o que a escravido.

    Outro contraste que poderia particularmente nos ajudar a iluminar a singular condio

    do escravo, seria oportuno lembrar neste momento, aquele que situa o trabalho escravo

    diante de outras formas de trabalho compulsrio que existiram na antiguidade, no perodo

    medieval e na idade moderna. Apenas para dar um exemplo bastante significativo, e que

    remonta Grcia Antiga, o contraste entre o escravo propriamente dito e o hilota permite

    lanar luz sobre um importante aspecto que caracteriza a escravido de modo geral. Os hilotas

    correspondiam, na Grcia Antiga, a populaes ou grupos de populaes submetidas pelos

    espartanos e obrigadas, a partir da, a uma forma especfica de trabalho compulsrio. Uma de

    suas caractersticas essenciais que eles eram dependentes coletivos, em contraste, por

    exemplo, com o escravo ateniense do perodo clssico, que via de regra estava preso a um

    destino individual de dependncia (FINLEY, 1991: 73). Enquanto o hilota insere-se em um

    grupo escravizado por uma comunidade de senhores, j o escravo propriamente dito passa

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    a pertencer a um indivduo: ele propriedade de algum. Este aspecto obviamente de

    mxima importncia na definio do escravo.

    Ser propriedade de algum inseparvel da idia de escravido. Dizer que algum est

    privado de liberdade, obviamente, no definiria o escravo em todos os seus aspectos, j que oprisioneiro condenado a viver confinado aos limites de uma cela tambm estar privado de

    liberdade e nem por isto poder ser definido como escravo. Mas estar privado da liberdade

    (nos mbitos mais acima considerados), estar sujeito a trabalho compulsrio atravs de

    coaes extra-econmicas, e particularmente estar sujeito a ser classificado como

    propriedade de um outro, que passa a deter poderes de definir os destinos do indivduo

    escravizado em uma totalidade de aspectos ... isto j nos aproxima de uma percepo mais

    completa do que o escravo.

    O fato de que o escravo propriedade de um outro mais especificamente de um

    indivduo que o seu senhor traz-nos algumas implicaes adicionais que podem tambm

    ser iluminadas atravs do j mencionado contraste entre o escravo-mercadoria e o hilota da

    antiguidade espartana. Enquanto este ltimo detinha o direito a uma parte formalmente

    definida do produto do seu trabalho, em tese o escravo no possui qualquer direito formal a

    uma parte sequer do produto de seu prprio trabalho, a no ser que o seu senhor lhe conceda

    isto (o que veremos alis ocorrer eventualmente na escravido moderna, tal como certamente

    ocorria na escravido antiga). Esta participao na produo decorrente do seu trabalho,

    contudo, mesmo que possvel de ocorrer eventualmente em funo da generosidade senhorial

    ou de estratgias motivacionais, no existe certamente referida em nenhuma definio jurdica

    do escravo propriamente dito. Em tese, o escravo propriedade individual, e tudo aquilo

    que ele produz pertence quele que o possui formalmente. A ausncia de liberdade estende-se

    aqui ao direito de dispor minimamente do prprio trabalho, eliminando-o, e oportuno

    lembrar a definio de escravido proposta por Petterson (1977), segundo a qual a escravido

    aquela condio na qual h uma alienao institucionalizada dos direitos sobre o trabalho e

    o parentesco. Enquanto um dependente de qualquer tipo paga um certo tributo quele que o

    submete, ou mesmo obrigado a colocar amplamente a sua fora de trabalho ao dispor de

    outro mas conservando formalmente um minimum que pode ser revertido para si, o trabalho

    do escravo a este no pertence em absoluto.

    A oposio entre Liberdade e Escravido, conforme se v, pode ser iluminada atravs

    do contraste do trabalho escravo propriamente dito em relao ao trabalho livre, de um

    lado, e a outras formas de trabalho compulsrio, de outro. Por outro lado, quaisquer destas

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    formas de trabalho, inclusive o trabalho livre, podem estar sujeitas a processos de

    desigualdade e de acentuado grau de explorao econmica.

    Posto isto, a reflexo sobre a Escravido como complexo cultural leva-nos, como j

    postulamos, a posicionarmos esta noo de maneira bastante singular no mbito do eixofundador das desigualdades: adentra-se a escravido quando se tem por perdido certo nmero

    de liberdades e do ponto de vista semitico aqui teremos uma circunstncia, um estado

    reversvel (mesmo que no se reverta nunca). Contudo, conforme veremos oportunamente,

    ser bastante comum diante das situaes concretas a possibilidade de visualizarmos o

    reenquadramento da Escravido no eixo de contrariedades que ope as Diferenas

    Igualdade: o escravo passa a ser aqui, ento, o estrangeiro absoluto, aquele que perdeu

    todos os direitos sobre si e j no possui praticamente nenhuma familiaridade com relao ao

    homem livre, a no ser a sua humanidade mnima, que mesmo assim por diversas vezes

    negada. O escravo tornado diferena, perde at mesmo o mais simples elemento que poderia

    preservar para a afirmao desta humanidade mnima: o parentesco.

    A estratificao social no Brasil Colonial (embora isto tambm ocorra em outras

    sociedades e tempos) fundou-se no deslocamento imaginrio da noo desigualadora de

    Escravo para a coordenada de contrrios fundada sob a perspectiva da Diferena entre

    homens livres e escravos. Nesta perspectiva, um indivduo no est escravo, ele escravo.

    Toda a violncia maior do modelo de estratificao social tpico do Brasil Colonial esteve

    alicerada neste deslocamento, nesta transformao de uma contradio em contrariedade,

    nesta estratgia social imobilizadora que transmudava uma circunstncia em essncia. digno

    de nota que os abolicionistas tenham se empenhado precisamente em reconduzir o discurso

    sobre a Escravido para o plano das desigualdades, recusando-se a discutir a oposio entre

    Livres e Escravos no plano das diferenas. Alguns passaram inclusive a discutir a

    desigualdade da Escravido em conexo com outras formas de desigualdade, e ao tempo em

    que propunham a abolio, preconizavam tambm reformas fundirias e jurdicas. Destronada

    do plano imobilizador das Diferenas em que fora assentada durante o processo de formao e

    implantao do escravismo colonial, a Escravido passava a coabitar no discurso abolicionista

    com outras desigualdades, e algumas destas desigualdades podiam ser enfrentadas naquele

    momento pelas mesmas prticas, pelos mesmos discursos, pelas mesmas aes sociais.

    muito interessante observar que estas oscilaes do conceito de Escravido entre os

    planos da Desigualdade e da Diferena j podiam ser identificadas na Antiguidade. Assim, a

    Escravido por Dvida que podia ser infligida aos atenienses empobrecidos do perodo

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    anterior s reformas de Slon situava-se claramente referida ao plano das Desigualdades (das

    circunstncias), e j a Escravido imposta ao estrangeiro brbaro comprado ou capturado em

    guerra, que conflui no perodo posterior a Slon para a idia do escravo-mercadoria,

    mostra-se mais claramente vinculada categoria das Diferenas. Por outro lado, tambmparticularmente interessante observar que o primeiro captulo do Livro I da Poltica de

    Aristteles desenvolve-se em torno da dificuldade de se pensar a escravido como uma

    questo de essncia (de diferena) e no de circunstncia (de desigualdade). Aristteles tenta

    contornar estas contradies elaborando uma distino entre escravos legais e escravos

    naturais. Os escravos legais seriam aqueles que no nasceram para serem escravos so

    portanto homens livres por natureza que foram escravizados equivocadamente ou

    circunstancialmente e em seu horizonte pairaria a possibilidade de conquistarem a liberdade

    por merecimento (isto , de reverterem a sua posio no eixo das desigualdades). J os

    escravos naturais seriam aqueles que teriam nascido para serem escravos e neste ponto

    Aristteles levado a considerar algo como uma condio sub-humana do escravo, ou ao

    menos uma concepo do escravo (natural) como possuindo uma espcie de qualidade

    humana deficiente, ao invs de falar de um humano tratado de maneira desumana (isto , um

    ser humano tratado com desigualdade). O escravo ser visto aqui como mera propriedade

    privada, uma coisa que fala (mais do que uma coisa que sente), um desenraizado, um

    estrangeiro absoluto (isto , Diferena plenamente realizada).

    No que tange questo escravocrata, portanto, a concepo aristotlica gira em torno

    deste esforo, e ao mesmo tempo em torno desta dificuldade, de enxergar o escravo como

    diferena. O filsofo grego chega a reconhecer a humanidade do escravo, mas afirma que este

    escravo (isto , o escravo natural, e no o escravo legal) um homem que possui uma

    natureza distinta, embora humana, em relao ao homem pleno. A qualidade que singulariza o

    escravo natural refere-se ento a um certo aspecto do seu esprito, a uma natureza humana

    deficiente. E neste sentido, para acompanhar de perto uma reflexo de Jorge Martnez

    Barrera (2007), que se pode dizer que em Aristteles a escravido apresentada como uma

    categoria de natureza tico-psicolgica. No se trata, no seu ncleo mais singular, de uma

    categoria relacionada ao trabalho ou poltica (ou seja, uma desigualdade), e tampouco

    de uma categoria racial (o que dela faria uma diferena de natureza social ou coletiva).

    Situar o escravo como uma categoria tico-psicolgica faz da escravido aristotlica uma

    diferena, de fato, mas uma diferena individual, que remete ao esprito de cada ser humano

    singularizado.

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    Este esforo de enxergar o escravo sob a tica de uma natureza deficiente estaria

    presente em toda uma tradio do pensamento socrtico que remonta Memorabilia de

    Xenofonte (1, 5, 5-6). De alguma maneira, embora se referindo a uma questo diversa, o que

    teramos naRepblica de Plato seno este esforo de enxergar nos seres humanos diferenasde esprito, suficientemente clivadas para que Plato se veja autorizado a falar em almas de

    ouro, almas de prata, almas de bronze e almas de ferro? Uma clivagem, diga-se de

    passagem, que se vai manifestando ou se explicitando na medida em que o indivduo avana

    no processo da educao, considerando-se ainda a propsito que Plato est se referindo aqui

    aos cidados, e no aos escravos, o que os colocaria ainda em um nvel mais inferior desta

    escala de diferenas.

    A proposta do moderno sistema escravocrata implantado pelos europeus na Amrica, a

    partir da fora de trabalho africana, encontra-se fundamentalmente organizada em torno de

    um modo ainda mais radical de enxergar a Escravido como Diferena. A racializao da

    escravido, nesta nova tica que ser a moderna, implica em que a escravido possa ser vista

    como uma diferena coletiva. No seriam certos indivduos de natureza humana deficiente,

    como propunha Aristteles, que deveriam estar destinados escravido, mas sim um grupo

    humano especfico, que traria na cor da pele os sinais de uma inferioridade da alma. Esta

    concepo, do mesmo modo, ver-se-ia autorizada por certas releituras de algumas passagens

    bblicas, que buscariam conceber a escravizao coletiva dos africanos como resultado do

    Pecado. Deus no havia criado os homens diferentemente j diziam os Padres da Igreja na

    Antigidade, preparando aqui uma sutil correo ao pensamento aristotlico mas os prprios

    homens que teriam criado esta diferena a partir do Pecado cometido por alguns deles

    (veremos mais adiante o episdio bblico da maldio a Cam). Com isto, se a escravido no

    era natural, como propunha Aristteles (o que seria mais difcil de sustentar a partir da idia

    de igualdade humana aos olhos de Deus, proposta pelo Cristianismo), ao menos seria

    legtima.

    oportuno acrescentar que ao mesmo tempo em que se institua o sistema escravista

    colonial sob as novas bases de um trfico atlntico adaptado aos interesses coloniais e,

    sobretudo, alicerado em uma escravido racializada e espacializada (isto , com suas fontes

    humanas concentradas no continente africano) foi sendo construda a idia de uma raa

    negra, na verdade uma nova Identidade que se edificava s custas de inmeras identidades

    tnicas que os povos africanos possuam no seu continente de origem. Esta questo, que nos

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    permite falar em uma Construo Social da Cor, bastante complexa, e aqui remetemos ao

    ensaio de mesmo nome em que buscamos refletir sobre esta temtica (BARROS, 2008).

    Vale lembrar ainda, e esta outra questo igualmente complexa que examinamos no

    mesmo ensaio, que a montagem do Escravismo Colonial tambm assistiu em diversosmomentos a processos de releituras da Escravido uma Desigualdade como Diferena, de

    modo a que o escravo vindo da frica no pudesse ser encarado em termos de um ser humano

    submetido a uma desigualdade radical (estarescravo), mas sim como uma diferena que a ele

    se agrega (ser escravo). Inverter esta leitura isto , dar a perceber que a Escravido era

    Desigualdade e no Diferena foi tarefa dos movimentos abolicionistas, das sociedades anti-

    escravistas de ao direta, da resistncia quilombola, dos discursos polticos anti-escravistas, e

    de todo um complexo movimento social diante do qual a abolio da escravatura representou

    apenas um momento emblemtico.

    A questo da Escravatura, conforme discutimos na obra em referncia (BARROS,

    2008), permite-nos sustentar que as releituras de uma Desigualdade como Diferena podem,

    de um lado, implicar em opresso ou dominao. Por outro lado, pode-se tambm produzir

    libertao com a desconstruo do deslocamento opressor no sentido inverso, como foi o caso

    dos discursos abolicionistas e movimentos anti-escravistas que reconduziriam a noo de

    escravatura do plano das diferenas ao eixo das desigualdades. preciso fazer compreender a

    Escravido como Desigualdade para, ato contnuo, propor sua extino atravs de uma ao

    social. Tal foi a histria da desconstruo do Escravismo Colonial no Brasil.

    REFERNCIAS

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