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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
KARLA PINHO DA FONSECA LEITE
A CONSTRUO SOCIAL DO VALOR:
um estudo antropolgico sobre o mercado imobilirio do bairro de Icara e suas fronteiras,
Morro do Cavalo e Jardim Icara.
NITERI
2013
KARLA PINHO DA FONSECA LEITE
A CONSTRUO SOCIAL DO VALOR:
um estudo antropolgico sobre o mercado imobilirio do bairro de Icara e suas fronteiras,
Morro do Cavalo e Jardim Icara.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps
Graduao em Antropologia do Instituto de
Filosofia e Cincias Humanas da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
obteno do ttulo de mestre.
Orientador:
Prof Dr Jos Svio Leopoldi
Niteri, RJ
2013
KARLA PINHO DA FONSECA LEITE
A CONSTRUO SOCIAL DO VALOR:
um estudo antropolgico sobre o mercado imobilirio do bairro de Icara e suas fronteiras,
Morro do Cavalo e Jardim Icara.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps
Graduao em Antropologia do Instituto de
Filosofia e Cincias Humanas da Universidade
Federal Fluminense,como requisito parcial
obteno do ttulo de mestre.
Aprovada em 29 de agosto de 2013.
BANCA EXAMINADORA
Prof Dr Jos Svio Leopoldi UFF Orientador
Prof Dr Janana Nascimento Simes UFRRJ
Prof Dr Laura Graziela Gomes - UFF
Prof Dr Nilton Santos UFF
Niteri
2013
AGRADECIMENTOS
A realizao deste trabalho s foi possvel graas ao apoio e ao incentivo do meu estimado
orientador Jos Svio Leopoldi.
Agradeo ao professor Nilton Santos por me acolher em suas aulas, na graduao de Cincias
sociais da Universidade Federal Fluminense. Aos professores do Programa de Ps graduao
em Antropologia da UFF, particularmente aqueles que me receberam em suas salas de aula;
Edilson Mrcio Almeida da Silva e Fbio Reis Mota. Agradeo tambm a Capes por seu
apoio. No poderia deixar de mencionar a grande ajuda da Associao das Damas de Caridade
de So Vicente de Paulo. Agradeo em especial ao Seu Csar, Dona Snia, Dona Conceio,
Dona Graa e a Cristiana por toda a ateno dispensada a mim durante a minha pesquisa de
campo.
Agradeo as palavras de estmulo da amiga e professora da UFRRJ Janana Nascimento
Simes e ao Dr. Mrcio por seus esclarecimentos, fundamentais para o meu trabalho de
campo.
Finalmente, agradeo a confiana e a grande ajuda da minha famlia. Meu amigo, meu amor e
minha casa, Geraldo. Minha filha muito amada, Maria Fernanda. Por fim, agradeo aos meus
amigos Vanderlei, Valria, Verinha, Roberto, Iron, Delmar, Juliane, Patrcia, Fernando,
Viviane e Carlos Henrique, ao meu pai, Antonio Jorge e a minha sogra Gilda pela torcida e
boas vibraes que tornaram possvel a concluso deste trabalho. Por ltimo, preciso
agradecer a calorosa acolhida da professora Laura Graziela, em suas aulas de Antropologia
Econmica e ao amigo Rafael Velasquez por seu companheirismo durante nosso estgio de
docncia.
RESUMO
O presente trabalho procura refletir sobre as orientaes culturais e sociais que norteiam a
formao do valor econmico (preo). Assim, foram observadas as mltiplas lgicas, cdigos
de conduta e valores que orientam as prticas das pessoas em suas aes no mercado
imobilirio do bairro de Icara. Dois limites do bairro, Morro do Cavalo e Jardim Icara, se
mostraram um solo frtil para a compreenso das articulaes que so estabelecidas na
construo do valor. A proposta foi verificar por um lado, o discurso que justifica o valor
econmico do imvel, contrastando perspectivas de dentro e fora da favela. E, por outro,
compreender como tal discurso apropriado por interesses aparentemente conflitantes quando
se fala de casa como investimento (interesse individual) e casa como moradia (interesse
social).
Palavras chave: Valor; Mercado; Individualismo; Racionalidade; Antropologia Econmica;
Consumo.
ABSTRACT
This paper seeks to reflect on the social and cultural orientations that affect the formation of economic
value (price). Thus, there were observed the multiple logics, conduct codes and values that guide the
people actions in the property market of the region of Icara. There are two boundaries at the place,
Morro do Cavalo and Jardim Icara, as a possibility for understanding the nature of the joints, which
are established in the construction of value. The proposal is to verify the discourse that justifies the
economic value of the property, contrasting perspectives from inside and outside of the shantytown.
And, in the other hand, to understand how such discourse is appropriated by seemingly conflicting
interests when the subjected is the house as an investment (as individual interest) and home such as
housing (as social interest).
Keys Word: Value; Market; Individualism; Rationality; Economic anthropology; Consumption
LISTA DE ILUSTRAES
Fig. 1 Logomarca de Niteri...................................................................................... 81
Fig. 2 Limites dos bairros de Niteri......................................................................... 84
Fig. 3 Limites Municipais da Comunidade do Morro do Cavalo............................ 90
Fig. 4 Vias de acesso ao Morro do Cavalo e principais avenidas de circulao...... 91
Fig. 5 Localidades do Morro do Cavalo.................................................................. 93
Fig. 6 Bingo na sede da ADCSVP............................................................................. 125
Fig. 7 Creche SVP..................................................................................................... 126
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Evoluo histrica da populao de Niteri e do bairro de Icara.................. 21
Tabela 2 Classificao das cidades do Brasil por preo mediano do metro quadrado.. 83
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADEMI Associao dos Dirigentes do Mercado Imobilirio
ADCSVP Associao das Damas de Caridade de So Vicente de Paulo
AMAMC Associao dos Moradores e Amigos do Morro do Cavalo
CCOB Conselho Comunitrio da Orla da Baa de Niteri
CDL Cmara de Dirigentes Lojistas de Niteri
CLIN Companhia Municipal de Limpeza Urbana de Niteri
COMPERJ Complexo Petroqumico do Rio de Janeiro
COMPUR Conselho Municipal de Planejamento Urbano
FAMNIT Federao da Associao de Moradores de Niteri
FNHIS Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social
GPAE Grupamento de Polcia em reas Especiais
IAB Instituto de Arquitetos do Brasil
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IDH ndice de Desenvolvimento Humano
IGPM ndice Geral de Preos do Mercado
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano
ITBI Imposto de Transmisso de Bens Imveis
NEPHU-UFF Ncleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade
Federal Fluminense
ONU Organizao das Naes Unidas
ONU HABITAT Programa das Naes Unidas para os Assentamentos Humanos
ONGS Organizaes No Governamentais
PEMAS Plano Estratgico Municipal para Assentamentos Informais Urbanos de
Niteri
PIB Produto Interno Bruto
SAE Secretaria de Assuntos Estratgicos
SNHSI Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social
SVP So Vicente de Paulo
UFF Universidade Federal Fluminense
UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
SUMRIO
Apresentao, p. 12
Introduo, p. 15
Parte I A sociedade moderna: o capitalismo e a centralidade da categoria econmico, p. 26
1- Comportamento e escolha: os limites da racionalidade econmica, p. 33
2- O valor econmico: produto das relaes de troca, p. 46
3- A mercadoria moradia, p. 58
Parte II -Espao, lugar, moradia e favela: consideraes sobre o bairro de Icara e o Morro do
Cavalo, p. 69
4- Cdigo formal e prtica social: mercados imobilirios de Icara e Morro do Cavalo, p. 93
4.1- Entendendo o mercado: situaes e depoimentos, p. 99
4.2- Relativizando a autoria da escolha: espao social e espao simblico, p. 109
4.3- Mdia e representao no mercado imobilirio, p. 112
4.4- Moradia em reas de interesse social: valor social sem valor econmico, p. 117
5- Para alm do individualismo moderno: a economia solidria da Associao das Damas
de Caridade de So Vicente de Paulo, p. 124
6- Consideraes finais, p. 128
7- Referncias bibliogrficas, p. 132
8- ANEXOS, p. 139
8.1- Fotos de Icara e Morro do Cavalo, p. 139
8.2- Casa do Sr. Pedro e vizinhana, p. 140
8.3- Ruas Mem de S e Lemos Cunha em Icara, p. 141
8.4 Rua Joaquim Tvora em Icara, p. 142
8.5- Comunidade do Morro do Cavalo, p. 143
8.6- Reportagens do Centro de Memrias Fluminense, p. 146
8.7- Plano Diretor de Niteri, p. 148
APRESENTAO
Ainda na graduao em Cincias econmicas, a to mencionada racionalidade
humana em suas teorias despertava-me certa curiosidade. Afinal, se analisarmos a
racionalidade pela tica econmica, algumas decises sobre o consumo, observadas no dia a
dia, no parecem to racionais assim. Uma observao realmente eficaz deve possuir alguma
dose de relativizao. Como nos ensina Boas (2010), referindo-se aos chamados grupos
primitivos, mas com extenso a sociedades modernas, no se pode afirmar que um mesmo
fenmeno possua a mesma causa em locais diferentes. O mais apropriado seria um estudo
detalhado de costumes em sua relao com a cultura total da tribo que os pratica, em conexo
com uma investigao de sua distribuio geogrfica entre tribos vizinhas (BOAS, 2010,p.
33). Ou seja, no podemos extrair o fenmeno de seu contexto para que ele seja
adequadamente compreendido. Nesse sentido, entender decises de consumo requer
relativizar tambm a noo de racionalidade dentro do grupo estudado.
A discusso sobre racionalidade que permeia esta dissertao de mestrado, agora em
Antropologia, est inserida no debate acerca dos conceitos de necessidade e valor. Tais
conceitos sero discutidos no mbito da produo habitacional urbana no contexto capitalista.
Embora a habitao constitua uma necessidade bsica, de abrigo para o ser humano, sua
produo segue a mesma lgica capitalista de qualquer outra mercadoria. Moradias de
diferentes formas, acabamentos e estilos so produzidos para diferentes pblicos, delineando
status e demarcando territrios na cidade. Isso quer dizer que quando consumidas, definem
estilos de vida. Alm disso, ainda que a casa seja um bem de consumo, ela tambm se
configura como investimento, ou seja, esperada a obteno de lucro com sua venda. Decorre
desse fato que o preo, expresso em dinheiro, possa sofrer alteraes devido a aes
especulativas no mercado imobilirio. Por isso, a relao entre valor e preo, por vezes,
percebida pelas pessoas em geral como no equivalente. A determinao do preo de uma
mercadoria conforma critrios objetivos e subjetivos, que dizem respeito a valores polticos,
sociais, culturais, econmicos e at mesmo afetivos. Como observa Simmel1 (1978 apud
APPADURAI, 2010, p. 15), o valor jamais uma propriedade inerente aos objetos, mas um
julgamento que os sujeitos fazem sobre ele.
Orientando-me por essa premissa, segui para a pesquisa de campo, iniciada em
dezembro de 2011, no bairro de Icara, onde morava na poca, situado no municpio de
1 SIMMEL, G. Fashion. The philosophy of Money. London: Routledge, 1978, p. 63.
Niteri. O Municpio faz parte da chamada regio metropolitana2 do Estado do Rio de
Janeiro. O bairro conhecido por abrigar uma populao de alto poder aquisitivo. No entanto,
encontramos no seu interior uma favela denominada Morro do Cavalo. O primeiro aspecto
que chamou minha ateno foi o duplo significado do nome Morro do Cavalo. Alm de
designar um acidente geogrfico, ou seja, uma elevao natural do terreno com altura de
200 bm aproximadamente, nos limites entre os bairros de Icara, So Francisco e Vital Brazil,
tambm designa a favela encontrada no local. Porm, no nomeia cotidianamente outra rea
habitada no Morro, onde encontramos casas de alto padro construtivo. Quando esses imveis
residenciais so ofertados nas imobilirias, sua localizao descrita como Estrada Fres ou
So Francisco, ainda que eles estejam situados no Morro do Cavalo. Diante desse fato, no
mnimo curioso, fui motivada a incluir o Morro do Cavalo na pesquisa.
Afinal, se a localizao um critrio de valor, dentre outros, para a construo do
preo da moradia, e sabido que a proximidade da favela reduz esse valor, o que dizer sobre
os discursos que permeiam a formao dos preos na Estrada Fres? O que dizer, ento, sobre
a escolha de morar em uma favela de Icara? Alm disso, podemos indagar sobre a construo
do valor no interior da favela, e este um ponto destacado nesta dissertao. Mesmo que as
casas no sejam negociadas atravs de imobilirias legalmente constitudas, existe interesse
de compra, venda e aluguel em tais reas e regras para que essas relaes de troca se
estabeleam. Atravs da anlise do mercado imobilirio do Morro do Cavalo e do Bairro de
Icara podemos observar aspectos que orientam a construo do valor econmico inserido no
contexto das relaes de troca capitalista.
Em diferentes momentos do trabalho de campo foram realizadas entrevistas
informais, conversas, por vezes gravadas, com moradores do bairro de Icara e do Morro do
Cavalo, homens e mulheres chefes de famlia, e tambm corretores imobilirios. Houve
ainda a ajuda dos funcionrios do Programa Mdico de Famlia da Prefeitura de Niteri e da
Associao das Damas de Caridade So Vicente de Paulo, instituio filantrpica, que, alm
de prestar auxlio ao Morro do Cavalo atravs de projetos sociais, mantm uma creche
comunitria no morro. Foram analisadas peas publicitrias, anncios de jornais e revistas de
grande circulao bem como notcias de pequenos jornais de bairro. Todo dispndio de
2 Art. 1 Fica instituda a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, composta pelos Municpios do Rio de Janeiro,
Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itabora, Japeri, Mag, Maric, Mesquita, Nilpolis, Niteri, Nova
Iguau, Paracambi, Queimados, So Gonalo, So Joo de Meriti, Seropdica, Tangu e Itagua, com vistas
organizao, ao planejamento e a execuo de funes pblicas e servios de interesse metropolitano ou comum.
(NR) Nova redao dada pela Lei Complementar n 133/2009.
Disponvel em http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/0/eb26342129c7ae9203256571007be153?OpenDocument
Acesso em10/02/2013 12:37
energia fsica e mental orientados para execuo dessa pesquisa visaram contribuir, ainda que
modestamente, para reflexo acerca da construo do valor sob o ponto de vista da
antropologia do consumo.
INTRODUO
Pode parecer, primeira vista, que morar em uma favela nada tenha a ver com a
escolha. Para o senso comum, morar em uma favela no passa de uma imposio econmica.
Porm, alguns estudos sobre o mercado imobilirio em favelas mostram a complexidade do
tema, abordando as lgicas de tal escolha. Uma pesquisa bastante abrangente publicada sobre
esse assunto, coordenada pelo economista Pedro Abramo (2009), demonstra que, pelo mesmo
preo, o indivduo pode optar entre morar ou no na favela. O preo das moradias, em
algumas favelas brasileiras est em crescente alta. Mesmo sem escritura da casa, ele pode ser
superior ao preo de um imvel fora da favela, com escritura. Outra pesquisadora brasileira, a
antroploga Mariana Cavalcanti (2010), refora essa ideia atravs do conceito de mercados
imobilirios limiares, ao mostrar que o preo do imvel em uma favela pode ser equivalente
ao de um imvel situado nas suas proximidades.
Os resultados dessas pesquisas sugerem que para alm de uma restrio
oramentria, as escolhas funcionam a partir de lgicas que dizem respeito aos atributos
sociais e culturais que envolvem a moradia. Mesmo que haja uma restrio de ordem
econmica, existe tambm um leque de opes dentro de uma mesma faixa de renda. Na
escolha individual, portanto, entram em jogo aspectos sociais, culturais, polticos, histricos e
at mesmo morais.
A pesquisa no buscou separar tais aspectos, j que eles esto imbricados; buscou-se
to somente lanar luz sobre eles, optando por alguns recortes, atravs da reflexo sobre
alguns conceitos pertinentes ao assunto, evidenciando como o valor construdo socialmente
atravs das relaes de mercado. Consciente de que no existe uma nica resposta para
qualquer que seja a pergunta, sei que o inverso tambm verdadeiro. Ou seja, podemos partir
de pressupostos diferentes e chegar a respostas semelhantes. Cabe, ento, definir alguns
pressupostos para que a pesquisa se torne vivel. Como orienta Evans Pritchard (1978, p. 300;
302),no se pode estudar nada sem uma teoria. E acrescenta, para que a observao
emprica tenha validade, preciso que ela seja guiada e inspirada por alguma viso geral
sobre a natureza dos fenmenos estudados. Guiada por esse princpio, este trabalho ser
apresentado duas partes. A primeira tratar de alguns pressupostos necessrios execuo da
pesquisa de campo e a segunda parte tratar da apresentao dos dados empricos, suas
anlises e possveis comparaes entre os mercados imobilirios do Morro do Cavalo e
Icara . Aqui, na introduo, irei expor meu objeto, o locus da pesquisa de campo e minhas
hipteses.
O campo: bairro de Icara
No incio da pesquisa de campo, dezembro 2011, era uma recm-moradora do bairro.
No foi nada fcil conseguir alugar um apartamento em Icara. Percorri vrias imobilirias e a
resposta era sempre a mesma, No temos imvel para alugar em Icara! O jornal do
Municpio de Niteri, O Fluminense, alertava: a espera para conseguir imvel pode chegar a
trs meses. Negociao pode diminuir o valor do aluguel. Metro quadrado no bairro est
custando at R$ 8 mil (UCHA, 2012a). Em comparao com a mdia nacional do preo do
metro quadrado, que no mesmo perodo era de R$ 6.799,00, (ZAP IMVEIS, 2012) morar no
bairro estava caro. fcil perceber que o preo um fator segregador do espao urbano, mas
no to fcil identificar porque algum escolheu um bairro em detrimento de outro,
utilizando, aparentemente, os mesmos critrios de preferncia. E, se o preo est to alto,
porque a demanda pelo bairro to grande a ponto de faltar imveis para alugar?
Afunilando ainda mais esse pensamento, poderamos perguntar o porqu de escolher
uma rua e no outra, dentro do mesmo bairro. A vizinhana, por vezes, tambm um critrio
de escolha. Logicamente, os corretores de imveis tm muito a dizer sobre o assunto, mas
durante minhas conversas com esses profissionais ficava a impresso que possuam um
discurso pronto, que de tanto repeti-lo tornava-se uma verdade inquestionvel. No lhes
importava se me apresentasse como provvel compradora, inquilina, ou pesquisadora. A
diferena estava na forma de tratamento dispensado a mim. Como inquilina nem merecia
ateno. Bastava retirar as chaves do imvel na recepo e deixar um documento de
identidade. A visita era feita sem acompanhamento de um corretor. Como pesquisadora,
merecia menos ateno ainda. A grande merecedora de ateno era a compradora. A razo,
mencionada por corretores, era o ganho da comisso por imvel vendido, alm das metas
mensais que queriam atingir.
O discurso dos corretores sobre os atributos que faziam do bairro, o eleito, diz
respeito a sua utilidade prtica. Ele se concretiza na enumerao de pontos positivos. O bairro
possui timas escolas, saneamento bsico, rea de lazer e recreao (praia, Campo de So
Bento, praas), hospitais, restaurantes, teatros, ampla rede de servios de sade, rede de
transportes, rede de comrcio, bancos, coleta de lixo, segurana pblica, prximo ao centro
do Rio de Janeiro, onde muitos trabalham, tambm prximo a uma Universidade Federal, e
acima de tudo, para usufruir de todos esses benefcios no necessrio utilizao de veculo
automotor. Com uma rpida caminhada resolvemos todos os nossos problemas, tudo
perto, afirmam os corretores. Pareceu-me que o tamanho da moradia, a forma etc. tinham
menor importncia. Outro ponto, que por vezes, emerge nas conversas, est relacionado ao
tema especulao. Vrios corretores mencionam que comprar um imvel no bairro
considerado um timo investimento, pois sua tendncia de valorizao inabalvel. Neste
caso percebe-se que a compra de um imvel no se presta apenas como bem de consumo
(moradia), ela representa um investimento em si, visando ganhos atravs do aluguel, ou do
lucro, gerado pela venda em momento posterior.
Mesmo quando comprado visando moradia, o imvel representa uma reserva de
valor para o seu proprietrio. A habitao uma mercadoria especial, que tem sua produo
e distribuio complexas (MARICATO, 1997, p. 46). uma mercadoria cara. Sua compra
requer esforos e sacrifcios, principalmente quando um financiamento necessrio. No
como comprar um vestido ou sapato. O comprador precisa ter certeza que no ir perder
dinheiro fazendo um mau negcio. A certeza de uma valorizao advm, dentre outras coisas,
da perspectiva de investimento pblico feito no bairro. Quando ruas e avenidas so abertas ou
melhoradas, por exemplo, o preo dos imveis no local tende a sofrer alguma valorizao.
Sabemos, no entanto, que decises relativas a tais melhorias ocorrem na esfera poltica e so,
por vezes, contaminadas pelos interesses econmicos de construtoras. Em muitas ocasies,
esperamos que os governos sejam anticorporaes, dirigidos por motivaes distintas
daquelas que buscam apenas o lucro, corrigindo falhas de mercados e reconhecendo valor
onde o setor privado no enxerga, como observa Raj Patel (2010) em seu livro O valor de
nada, e intervindo quando os benefcios sociais so maiores que os individuais. Uma das
razes pelas quais o setor de habitao no Brasil palco de constantes conflitos, diz respeito
ao choque entre benefcios sociais e individuais e seu produto o conhecido dficit
habitacional. Ainda que a moradia seja um direito constitucional e um ponto chave para o
desenvolvimento sustentvel do pas, ela alvo do capitalismo, em sua busca por lucro.
A busca pelo lucro, como j mencionei, no privilgio das construtoras e
incorporadoras; pessoas fsicas tambm tentam alcan-lo. Por trs dessa busca, no entanto,
escondem-se outros objetivos. A busca por status social um deles. Ela se mostra atravs da
apropriao de elementos simblicos institudos socialmente. O bairro conforma tais
elementos na medida em que sua identidade construda a partir de informaes objetivas e
tambm subjetivas. Frequentemente cria-se em torno de um bairro bem localizado certa aura
de magia e encantamento que compe o imaginrio popular.
Podemos verificar que vem de longe o fascnio pelas regies litorneas do Estado do
Rio de Janeiro. Atravs do relato apaixonado de um imigrante portugus, no seu livro Niteri
e minha vida, constatamos o encantamento provocado pelas praias da cidade, incluindo a
praia de Icara.
(...) passando pelas praias das Flexas e Icara e do Saco de So Francisco. (...)
Apenas o rumor das ondas do mar e o trintar dos pssaros cortavam a solido do
lugar.(...) tendo o mar, a brisa que dele soprava e a mata por companheiros, eu me
transportava nas asas do meu pensamento de adolescente, ao meu lar distante
(LIMA, 1974, p. 14).
Uma vista agradvel o desejo recorrente quando se trata de moradia. Na cidade do
Rio de Janeiro, conhecida mundialmente por suas belezas naturais, morar perto delas um
privilgio e sinal de status. De acordo com os corretores de imveis, em manchete divulgada
pelo jornal O Globo, A primeira pergunta do carioca : tem vista? (TAVARES, 2012, p. 3)
A noo de beleza natural (florestas, parques e praias) como integrante do valor da moradia
tambm compartilhada por moradores e pretendentes a moradores de Niteri. Assim, morar
em Icara obter uma fatia dessa beleza. Ou talvez mais, j que possvel avistar do bairro, a
cidade do Rio de Janeiro e seus pontos tursticos mais conhecidos: Po de Acar e Cristo
Redentor. Os moradores da cidade do Rio de Janeiro costumam afirmar que o mais bonito de
Niteri vista do Rio. A proximidade geogrfica entre os municpios fez de Niteri, uma
opo de moradia muito atraente. Alguns especialistas do mercado imobilirio chegam a
afirmar que:
A escassez de terrenos na badalada zona sul do Rio de Janeiro tem feito com que
algumas construtoras escolham Niteri para tentar criar uma verso local do Leblon,
o bairro mais caro do Rio. Em Icara, na zona sul da cidade, o preo do metro
quadrado subiu 50% nos ltimos dois anos (NAPOLITANO; MEYER; STEFANO,
2012, p. 71).
Esse bairro, alm das construtoras, atraiu lojas renomadas e acessveis a pessoas com
grande poder aquisitivo, que se estabeleceram principalmente na antiga rua comercial,
Moreira Csar. Ela abriga ainda, alm das lojas de rua, galerias que fazem, por enquanto,
as vezes de shoppings, equipadas com cafeterias e bistrs. Isso porque, O Clube Central, que
existia na rua, foi demolido em 2012, e est sendo construdo um shopping em seu lugar. Ao
longo dos ltimos cinco anos outras ruas manifestaram vocao para o comrcio de luxo. A
Rua Tavares de Macedo um exemplo; nela encontramos lojas de alto padro. Seguindo a
linha do comrcio popular, destaca-se a Rua Gavio Peixoto, que tambm concentra grande
quantidade de agncias bancrias e possui a funo de via de circulao para nibus. Pode-se
dizer que outra rua importante do bairro a Lopes Trovo. Ela comea na praia e cruza as
ruas Moreira Csar, Tavares de Macedo e Gavio Peixoto. Mesmo caracterizado como bairro
residencial, Icara possui ampla rede de servios e comrcio. Existem no bairro vrios
edifcios comerciais que abrigam consultrios mdicos.
Encontramos tambm, em Icara, duas escolas particulares consideradas
tradicionais: So Vicente de Paulo, colgio de freiras e La Salle Abel, colgio de padres.
Embora existam vrias outras escolas, essas contribuem mais fortemente para a construo da
identidade do bairro, assim como o antigo Clube Regatas, localizado na praia de Icara. O
prdio do Cinema Icara, atualmente em reforma, depois de comprado pela Universidade
Federal Fluminense - UFF, o prdio da Reitoria da Universidade Federal Fluminense, antigo
Cassino, e o Complexo Esportivo Caio Martins.
As principais vias de acesso ao bairro so a Av. Roberto Silveira, que corta seu
interior e a Praia de Icara margeada pela Av. Jorn. Alberto Francisco Torres. Essas duas
avenidas, juntamente com a Av. Ary Parreiras so as maiores do bairro, em largura e
extenso. O bairro possui outras ruas com grandes extenses, mas so consideravelmente
estreitas. Existem duas grandes reas de lazer no bairro: o Campo de So Bento, com rvores,
jardim, chafariz, brinquedos para crianas, feira de artesanato no final de semana, aparelhos
de exerccio para terceira idade e ginstica gratuita, patrocinada pela prefeitura, todas as
tardes, e a praia, com extenso de 2 Km, tambm utilizada para prtica esportiva. Icara, alm
disso, possui dois teatros em funcionamento e um fechado para reforma.
Na fronteira dos bairros Icara e Santa Rosa, podemos encontrar uma tradicional
quitanda, resqucio de uma poca passada que d ao bairro ares de cidade pequena,
embora possua todo equipamento urbano de uma cidade grande. Quem mora no bairro, diz
que este um atributo adorado, mas posto em risco, segundo os moradores mais antigos. A
culpa atribuda especulao imobiliria, que inflou o bairro e trouxe alguns problemas,
pelos moradores.
O boom imobilirio que est acontecendo hoje (2013) no bairro de Icara (e no
Brasil) j ocorreu em outros momentos, sendo fruto do desempenho econmico positivo do
pas e reflexo direto de polticas pblicas e habitacionais adotadas pelo Governo. Cabe citar a
construo da Ponte Costa e Silva conhecida como Ponte Rio -Niteri. Ela foi apontada como
fator desencadeador do boom imobilirio ocorrido na poca em 1974 e retratada por jornal
local. Invadida por milhares de pessoas da baixada fluminense e do subrbio do Rio na
poca da fuso3, Icara foi palco de uma insana especulao imobiliria h 20 anos atrs; o
bairro se copacabanizou e hoje prdios com 20 andares no so raros.(...) (FOLHA DE
NITERI, 1997, p. 8-9). Assim como Copacabana era o bairro preferido pelo carioca, Icara o
era pelos moradores de Niteri. O bairro o mais populoso do Municpio. Podemos visualizar
na tabela abaixo a srie histrica de sua ocupao.
Tabela 1 evoluo histrica da populao de Niteri e do bairro de Icara
POPULAO
Srie
Histrica
1970 % 1980 % 1991 % 2000 % 2010 %
Niteri 324.246 100 397.123 100 436.155 100 459.451 100 487.562 100
Icara 39.949 12,32 61.843 15,57 62.494 14,33 75.127 15,40 78.715 16,14
Fonte IBGE censo demogrfico 1979-1980-1991-2000-2010
Em 1991, segundo o Censo do IBGE, 92,91% dos domiclios do bairro eram
apartamentos e somente 5,43% eram casas. O restante era composto por ocupaes irregulares
e favelas. Com o passar do tempo era visvel, de acordo com relatos dos moradores, que o
espao do bairro foi ficando saturado. As construtoras sabiam que as pessoas queriam morar
em Icara, mas no havia mais espao fsico para novos empreendimentos. Ainda mais, dentro
dos padres atuais de conforto e lazer, ou seja, era necessria uma rea de grandes dimenses.
Assim, as construtoras acabaram migrando para o bairro vizinho, Santa Rosa, e escolheram
uma parte, considerada pelos corretores de imveis como a melhor. Construes
comearam a ser erguidas no lugar de casas muito antigas do bairro, surgindo ento uma
regio chamada Jardim Icara: era o bairro de Santa Rosa com alma de Icara. Todas as
propagandas e classificados de imveis passaram a utilizar o nome Jardim Icara para
designar os endereos da regio. No intuito de constatar o nascimento do novo bairro, me
dirigi secretaria de urbanismo da prefeitura. L descobri a inexistncia de um bairro com
esse nome. Jardim Icara no um bairro, ainda; uma regio, uma fronteira dos bairros
Icara e Santa Rosa. Sob o ttulo, roubaram meu bairro! um blog descreve esse processo de
um jeito bem particular.
(...) Santa Rosa pra mim era sinnimo de lugar quieto e bonito, cheio de casas e
arborizado, bem diferente de onde eu morava que era cheio de prdios. Mas os
tempos so outros. A invaso imobiliria chegou com tudo e com ela a destruio de
3 A cidade do Rio, depois que cedeu seu posto de Distrito Federal a Braslia, passou a constituir o Estado da
Guanabara. A cidade de Niteri na ocasio era a capital do Estado do Rio de Janeiro. Junto com a ligao das
cidades de Niteri e Rio de Janeiro atravs da ponte Costa e Silva ocorreu a fuso dos Estados da Guanabara e
Rio de Janeiro, ficando a cidade do Rio de Janeiro como a capital do Estado do Rio de Janeiro.
casas de 1940/50, conjunto de casas, casas geminadas, pequenos prdios e vilas. No
satisfeitos em destruir tudo e mudar a cara do bairro, os donos das imobilirias
renomearam o bairro como se renomeia um arquivo no computador, e o bairro de
Santa Rosa virou Jardim Icara, numa aluso continuidade ao bairro vizinho Icara,
valorizado comercialmente e que cheio de prdios. (...) Com a mudana veio
logicamente a mudana de preo dos apartamentos, aluguis e a glamourizao do
bairro. Os jornais entrarem nessa onda; e renomear tambm no me espanta j que os jornais aqui da cidade, trs no mximo, devem ter recebido dinheiro a rodo em
propaganda anunciando os novos empreendimentos em suas pginas, da a animao
em renomear o bairro tambm sem nenhum questionamento. O que me espanta
mesmo a prefeitura tambm ter entrado nesta ;onda;. No que eu no ache que a prefeitura est lucrando com a proliferao de prdios, sei que est j que onde se
pagava um IPTU vo se pagar sessenta, mas achei meio sem noo e sem senso
histrico deixarem mudar o nome de um bairro desta forma, sem consulta e sem
aviso aos moradores. Os antigos continuam morando em Santa Rosa, os novos
moram no Jardim Icara. E ningum se decide em relao a isso. Acaba que no final
das contas no se sabe mais o que e o que no Santa Rosa. No se sabe onde
comea e onde termina porque se voc ligar pra qualquer padaria, eles vo dizer que
esto no Jd. Icara e ningum diz que est em Santa Rosa. mais bonito, devem
achar, mais esttico. menos roa, menos provinciano, tudo o que Niteri quer
ser. Santa rosa no mapa do prefeito deve ser um bairro de trs ruas se muito. E sem
nenhuma identidade mais. Antes casas de 1950, hoje prdios onde s mudam so as
cores. Antes prdios de 4 a 6 andares, hoje de 12 no mnimo. E Niteri no vai
sossegar enquanto no for um pequeno Rio de Janeiro. Pena. A graa era que no
fosse mesmo igual ao Rio, mesmo com a proximidade. Mas no o que pensa o
prefeito e os novos moradores que vm, em sua maioria do Rio de Janeiro fugindo
da violncia. (OVERBLOG, 2008)
Outra estratgia para ganhar espao em Icara foi seguir rumo ao buraco negro do
bairro, a ltima Rua da Praia de Icara, Joaquim Tvora, onde atualmente podemos
vislumbrar quatro novos empreendimentos (um j concludo e os outros trs ainda em
construo) e o limite com o bairro de Santa Rosa. A Rua Joaquim Tvora curta, arborizada,
tranquila, oferece ligao com o final da famosa rua comercial Moreira Csar e termina no
tnel que liga os bairros Icara e So Francisco. Aparentemente um timo lugar para morar,
se no fosse pela favela do Morro do Cavalo, na opinio de morador antigo do bairro. A
rua, pelo que pude observar, possui seis acessos favela. Parece ser esse o motivo, de ter sido
pouco desejada pelas construtoras. Em 1998, o jornal O Globo, mencionou esse fato, dizendo
que a Rua Joaquim Tvora era um dos poucos lugares do bairro que ainda comportavam
grandes construes. Na ocasio, Rogrio Maciel, presidente da Associao dos Dirigentes do
Mercado Imobilirio (ADEMI), afirmou que o nico obstculo para a expanso e valorizao
imobiliria da Joaquim Tvora tinha sido derrubado, ou seja, a resistncia que as pessoas
mantinham pela proximidade da Rua com o Morro do Cavalo. Na opinio do presidente da
ADEMI, As pessoas perceberam que se trata de uma rua como qualquer outra do bairro.
Hoje, os imveis da Joaquim Tvora so valorizados pela proximidade com a praia de Icara e
o comrcio (GLOBO, 1998, p. 19.). importante dizer que na poca estava sendo lanado
na rua um novo empreendimento, o Edifcio York Palace. Interesses parte, nesse momento,
ficou claro a existncia de um movimento de propaganda positiva para a rua. Porm, at hoje,
existem dissidentes desse movimento. A rua ganhou destaque quando um prdio abandonado,
ainda em fase de construo, foi invadido em 2001.
A equipe de reportagem do O Globo esteve em agosto do ano de 2004 no local e
verificou que na poca os ocupantes invasores tinham abastecimento regular de energia
eltrica, mas usavam gato de gua. Organizados, tinham at associao, batizada de
Condomnio Amigos da Paz, que cobrava R$ 30,00 de taxa de condomnio. Os prdios foram
apelidados pela vizinhana de Carandiru. O diretor da empresa guas de Niteri, mesmo no
concordando com a ocupao instalou o medidor de gua alegando que deveria conter o furto
de gua. A conta, no entanto, nunca foi paga e j acumula dvida de sete mil e quinhentos
reais (GLOBO, 2004, p.4). Em 2005 o prdio foi desocupado e uma nova construtora retomou
e concluiu o projeto. O condomnio, composto por 2 prdios, fica bem em frente favela do
Morro do Cavalo.
Moradores antigos ainda mantm uma opinio negativa sobre a rua. A proximidade
da favela, no entanto, desperta sentimentos contraditrios. A Rua Joaquim Tvora comea
esquerda, no final da praia de Icara, seguindo a numerao crescente de sua avenida.
direita, encontra-se a Estrada Fres, que segue morro acima, s margens da Baa de
Guanabara. A Estrada Fres, que est localizada no Morro do Cavalo, conta com acesso
favela e possui manses de alto padro construtivo. Nada sugere que a proximidade com a
favela seja uma aspecto que influa negativamente no preo dos imveis ali situados.
De acordo com o plano diretor de Niteri o Morro pertence aos bairros Icara, Vital
Brazil e So Francisco. Por essa diviso a Rua Joaquim Tvora situa-se em Icara e a Estrada
Fres em So Francisco. Ser que vista da Baa a grande vedete do preo? E o tamanho
dessas casas? E l na favela, qual a lgica de valorizao e formao de preos das moradias?
Qual a lgica de ocupao do Morro do Cavalo? Quem so as pessoas que querem morar l?
Foi nesse momento que decidi incluir o Morro do Cavalo no campo da pesquisa. Comparar
um mercado com regras legalizadas para compra, venda, locao e avaliao de imveis com
outro guiado por regras intuitivas, poderia descortinar interessantes critrios de valor
subjetivos e objetivos.
A incluso do Morro do Cavalo no campo
A busca por moradia em reas urbanas embora represente, na teoria, o acesso aos
padres de vida materiais e no materiais que definem um estilo de vida urbano, na
prtica, esse acesso aos bens urbanos possui gradaes. E exatamente nesse ponto emerge a
contribuio requerida ao antroplogo. Um dos problemas para o investigador,
especialmente para o antroplogo, buscar definir que padres so esses, como so definidos
e quais os smbolos que indicam esta participao maior ou menor (VELHO, 2002, p. 21).
Com o objetivo definido e o campo alargado, como fazer a entrada no Morro do
Cavalo?
Por uma dessas coincidncias da vida, descobri que o porteiro do prdio onde eu
morava residia no morro. No incio, ele no estimulou minha ida at l. Dizia que todos
perceberiam que eu no era moradora do morro. Imaginariam que eu queria comprar drogas.
E, alm de tudo, eu nunca deveria subir o morro em um domingo, dia em que o morro fica
cheio de gente toa, bebendo. O tempo passou e em fevereiro de 2012 o porteiro me
apresentou ao Dudu do Cavalo. Simptico e falante, ele j tinha sido candidato a vereador,
mas no conseguiu se eleger. Culpa dos moradores, segundo ele, que no so unidos e nem
pensam no bem da comunidade. No votaram nele e, portanto, perderam a chance de ter um
representante da comunidade na cmara. Atualmente, ele o presidente da Associao dos
Moradores e Amigos do Morro do Cavalo - AMAMC, eleito em junho de 2012.
A primeira vez que fui ao Morro do Cavalo, em fevereiro de 1012, subi pelo acesso
no final da Rua Lemos Cunha, em Icara. A subida localiza na lateral do Tnel Icara - So
Francisco. No incio da Ladeira pude ver uma fila de motos que prestavam o servio de
Mototaxi. O preo da corrida era de dois Reais, mas subi a p, debaixo de um sol
escaldante. Vi todo tipo de casa, entre pequenas, mdias e grandes; vrias tinham reboco e
eram pintadas, outras no, mas aguardava para ver o campo de futebol, to comentado pelo
porteiro. Ele era um ponto de referncia para a localizao da casa do Dudu, do GPAE4, do
comrcio local, da Associao dos Moradores e da Creche Comunitria So Vicente de Paulo,
todos situados na Alameda Paris, inclusive o campo de futebol. Mais tarde descobri que quase
todos os moradores residem na Alameda Paris, que cruza todo o morro.
As primeiras casas foram construdas de frente para a Alameda Paris. Conforme as
famlias iam crescendo, novas casas eram construdas no quintal dos fundos. Embora as
casas fossem de fundos, suas entradas eram laterais; ento, formaram-se ruas (bem estreitas)
perpendiculares a avenida principal. Essas vielas no tm nomes, nem asfaltamento, por
isso, a maior parte dos endereos no Morro do Cavalo se reporta asfaltada Alameda Paris.
Famlias inteiras moram no morro, e na maioria das vezes os casamentos acontecem
entre os prprios moradores. Descobri que a maioria dos moradores possui algum grau de
4 GPAE Grupamento de Polcia em reas Especiais criado antes da UPP (unidade de policia pacificadora) da
cidade do Rio de Janeiro
parentesco, como ocorre em muitas cidades interioranas. O Censo 2010 contabilizou 2.032
moradores no Morro do Cavalo com mdia de 3.3 moradores por domiclio. Existe
controvrsia nesse resultado, como veremos mais adiante.
Os nmeros das casas foram colocados por ocasio da chegada de energia eltrica no
Morro. Seu Albertino, nascido no morro, lembra como era difcil andar por ele, na noite
escura, antes da energia eltrica, quando era tudo barro, no tinha asfalto, no tinha nada,
s vezes, a gente tropeava, a gente j estava no tato. A gente j sabia mais ou menos onde
tinha pedra, buraco...5 (SANTOS, 2007, p. 11) Hoje, os moradores possuem acesso rede
eltrica, abastecimento de gua, telefone, internet e coleta de lixo, embora a prestao desses
servios no seja satisfatria.
O Morro foi dividido pela prefeitura, atravs do plano diretor da cidade, em rea de
interesse social e ambiental, excluindo, claro, a rea j ocupada pelos Casares. Os
objetivos dessa classificao so a preservao de mata nativa e a proteo dos moradores, de
baixa renda, de uma possvel especulao imobiliria, que pode incentivar a expulso dessa
populao do local. Essa iniciativa seria nobre se no fosse a constante alterao das regras
do jogo em favor dos interesses do capital imobilirio. O poder pblico usa o discurso da
proteo ao meio ambiente, apenas quando visa interdio do uso e ocupao do solo pela
populao de baixa renda. O exemplo disso foi a construo do condomnio de luxo Chcaras
da Fres, na rea de preservao ambiental do Morro do Cavalo. Esse um dos exemplos
dos casos polmicos, em que as leis so usadas a favor do lucro. Polmica ainda maior se
instaura quando em uma conversa com moradora de Icara, ouo: esses favelados no tem
direito de morar em frente praia, referindo-se populao da favela do Morro do Cavalo.
Eu pago um IPTU altssimo e no moro. Eles no pagam nada e moram em frente praia!
Entre conflitos, negociaes , metamorfoses sociais, espaciais e culturais, moradores e
imobilirias vo construindo e reconstruindo o bairro a todo momento, enquanto novas
dinmicas sociais vo se formando.
O bairro de Icara e seu Morro, o Cavalo, so parte um do outro, e se afetam
mutuamente. Por isso, a necessidade de incluir o Morro do Cavalo no meu campo de
pesquisa e testar trs hipteses. A primeira refere-se construo do preo. Ela abarca
critrios de valor subjetivos, como a busca por um determinado estilo de vida, alcance de um
novo status social, proximidade de familiares e vizinhana. A segunda mostra que o discurso
5 Relato extrado do livro Naquele Tempo: causos e histrias contadas pela gente do Morro do Cavalo. Escrito
atravs de uma parceria entre o Programa mdico de famlia e a Associao dos Moradores e Amigos do Morro
do Cavalo.
sobre o valor da moradia conflitante no que diz respeito ao preo (valor de troca) e ao bem
estar social/individual (valor de uso). Eles so colocados em lados opostos, ou seja, quando o
objetivo o lucro, o preo justificado atravs do valor de mercado e quando o objetivo da
moradia a satisfao de uma necessidade bsica do indivduo e uma organizao espacial
sustentvel, o discurso recai sobre o valor de uso. A nomeao da moradia como pertencente a
uma rea de interesse social, tenta excluir o valor econmico (de troca) que inerente ao bem
moradia. A existncia de um mercado informal sinaliza que a despeito de ser uma
necessidade bsica ela tambm investimento e reserva de valor. O mercado, ento, se
constitui revelia do ESTADO e cria-se a tenso entre valor de uso e valor de troca. A
moradia uma mercadoria institucionalizada, e, como tal, possui valor de uso e valor de troca
simultaneamente. A terceira hiptese refere-se valorizao dos imveis situados no entorno
de favelas resultante de um movimento em curso a favor da percepo positiva da favela,
ocasionando a alterao das suas fronteiras simblicas.
26
Parte I- A sociedade Moderna: o capitalismo e a centralidade da categoria econmico
A sociedade de mercado no transforma simplesmente as coisas em mercadorias ela cria a prpria cultura e as prprias ideias sobre a natureza humana e a ordem
social. (PATEL, 2010,p. 30)
A era moderna testemunhou a emergncia de um novo modo de considerar os
fenmenos humanos e a delimitao de um domnio separado que evocamos correntemente
pelas palavras economia, econmico. Esse pensamento, dentre outros, guiou Louis Dumont
(2000, p. 47) em sua obra Homo Aequalis, na qual buscou resgatar a histria das ideias,
precisamente daquelas que serviram de escopo para a ascenso da economia como uma
categoria autnoma e principal agente organizador da sociedade, promotor do
desenvolvimento e bem estar social.
A economia, a esfera da vida social em que se d a produo, a distribuio e o
consumo de bens, adquiriu um grau de autonomia na sociedade ocidental moderna no
encontrada em nenhuma outra sociedade. Dumont (2000) argumenta que Adam Smith (1996)
ao publicar seu livro Riqueza das Naes, marco da constituio da cincia econmica, lanou
as bases para que a economia passasse a ser vista como um sistema autnomo, autoregulvel e
que, portanto, funcionaria em direo ao bem estar social e ao desenvolvimento econmico
independentemente da ao poltica. Para Adam Smith, as leis do mercado tratariam de
deixar a economia em equilbrio rumo ao progresso. Travava-se, portanto, de identificar leis
de mercado como leis naturais. No entanto, conforme argumenta Dumont (2000), a Lei da
Natureza, tanto moral quanto fsica, fruto de uma ordem poltica e teolgica e por isso a
autonomia dada ao sistema econmico fictcia. O sistema econmico no pode estar isento
de juzo de valor; ele s pode ser concebido como autnomo normativamente. Na prtica, ele
no independente da ao humana; e estabelecer diretrizes para o comportamento humano,
racional nos termos econmicos, estabelecer princpios reguladores de sua conduta, ou seja
normas morais ditadas culturalmente. Segundo Durkheim (2006), para os economistas
ortodoxos, a economia produz naturalmente suas consequncias morais; basta que ela seja
livre. Porm, nem sempre progresso industrial e moral coincidem. A ideia por trs do livre
mercado, de acordo com Durkheim (2006), a viso de que os laos sociais so apenas uma
relao superficial determinada por interesses mtuos. como se a nao fosse uma imensa
corporao na qual os indivduos recebem na proporo do que oferecem e permanecem nela
enquanto forem adequadamente remunerados. Ora, se a sociedade fosse apenas um
aglomerado de indivduos simplesmente egostas, como explicar a vida em sociedade, o que
27
une as pessoas? Para Durkheim, a moral tem essa funo prtica: tornar possvel a sociedade,
e salvaguardar os interesses coletivos. As ideias morais frequentemente afetam os eventos
econmicos, porm no modelo de economia como sistema autnomo, o comportamento moral
posto de fora, ou, como prefere Dumont, dado a priori. Seria como afirmar que o
indivduo um ser moral por natureza. Sendo assim, possvel seguir adiante e propor uma
ao humana guiada pelo desejo de obter os melhores resultados a partir da utilizao tima
de seus recursos, o que convergir com o melhor para a sociedade, o desenvolvimento
econmico.
A concepo de autonomia do sistema econmico serviu como base para a
formulao do materialismo histrico proposto por Marx6 (1976 apud MULLER, 2006). Para
ele, o funcionamento de qualquer sociedade definido pelas relaes de produo. A diviso
social do trabalho, formada a partir da interao humana com a natureza na busca pela
satisfao das necessidades humanas, ir produzir distines de classe e consequentemente
guiar a organizao social e poltica da sociedade em questo. Entretanto, Marshall Sahlins
(2003) observa que o materialismo histrico um conhecimento produzido pela sociedade
burguesa acerca de si mesma, utilizando suas prprias categorias de entendimento, tomando a
produo apenas como um processo de satisfao das prprias necessidades, no sentido strito
do termo. No entanto, embora existam os imperativos biolgicos que lancem os indivduos
ao, cada sociedade busca meios de sobrevivncia de maneira especfica. Ele assinala que,
mesmo que o ser humano necessite de abrigo ele o far de uma forma particular, dado que
cada forma lhe imprime um significado.
(...)como uma cabana de campons ou o castelo de um nobre. Essa determinao de
valores de uso, um tipo especfico de construo habitacional como um tipo
especfico de lar, representa um processo contnuo de vida social na qual os homens
reciprocamente definem os objetos em termos de si mesmos e definem-se em termos
dos objetos.(SAHLINS, 2003, p. 188)
Por trs do processo de produo material, a razo prtica, nos termos de Sahlins,
possvel encontrar uma inteno cultural que modela a relaes sociais, dotando os objetos de
um valor simblico no necessariamente ligado somente s suas propriedades fsicas. Polanyi7
(1980 apud Mulher, 2006) reconhece que a sociedade seja naturalmente condicionada por
fatores econmicos, porm, para ele verdade tambm que a economia est submersa em
relaes sociais. O prprio Marx, atravs do conceito de fetichismo da mercadoria, reconhece
6 MARX, Karl. Le Capital: critque de lconomie Politique.Paris: Editions Sociales, 1976.
7 POLANYI, Karl. A Grande Transformao: Origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
28
que na sociedade capitalista a generalizao da produo mercantil fez com que as trocas
passassem a ser vistas como uma relao entre coisas e no entre pessoas. A quantidade de
trabalho contida nas mercadorias, aquilo que para Marx realmente gera valor e est presente
em todas as mercadorias, est oculta nas relaes de troca na sociedade capitalista. As
relaes de troca na sociedade capitalista esto inscritas em um sistema de interesses de
compra e venda atravs da categoria mercado. Podemos identificar o mercado, de acordo com
a proposta de Muller (2006), como uma instituio social e um modelo cultural. Instituio
social por sua formao ter se dado no interior da sociedade como meio de estabelecimento de
um sistema de trocas, dada a necessidade de sociabilidade e obteno de recursos. O
capitalismo, sugere Polanyi, necessita de instituies sociais como o mercado. O mercado por
sua vez para funcionar precisa da sociedade. A sociedade, contudo, precisa permitir que
coisas possam ser compradas e vendidas, ou seja, transformadas em mercadoria. O conceito
de mercadoria que melhor atente dos objetivos deste trabalho proposto por Arjun Apaddurai
(2010, p. 26): mercadoria qualquer coisa destinada troca.
Embora os mercados existam desde tempos remotos, a forma mercadoria dos objetos
no fixa no tempo e espao. Nem sempre trabalho e terras foram mercadorias. A grande
transformao de Polanyi8 (1980 apud PATEL 2010) descreve como terra e trabalho
transformaram-se em mercadorias. Essa grande transformao, nada pacfica, deu-se atravs
do processo de cercamento dos campos, expulsando muitos camponeses para as cidades onde
passaram a vender sua fora de trabalho. As mudanas sociais foram de grandes propores e
imps novas regras sociais reguladoras da terra e do trabalho. O mercado alcanou o estatuto
de regulador das relaes sociais, evidenciado por Muller (2006). Para esta autora,
atualmente, existe o predomnio da ideia de mercado como nico modelo de relaes capaz de
garantir o crescimento econmico e desenvolvimento social.
No mundo moderno, o mercado tornou-se o articulador em praticamente todas as
esferas da vida social, no apenas por sua eficcia material, mas tambm por sua eficcia
simblica, ou seja, porque, na sociedade capitalista contempornea, a economia tornou-se o
locus privilegiado da produo simblica e de sua transmisso (SALHINS9, 1979 apud
MULLER, 2006, p. 15). possvel falar em mercado da moda, mercado de trabalho, mercado
cultural, mercado de casamento, mercado imobilirio etc. Certamente, seu sentido
compartilhado por todos e, alm disso, conceitos cunhados na esfera econmica como lucro,
investimento etc. foram dominados pela populao e utilizados em outras esferas sociais.
8 POLANYI, Karl. A Grande Transformao: Origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
9 SAHLINS, Marshall. Cultura e razo prtica. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
29
Eventualmente, ouvimos a expresso vou investir nesse namoro, na qual subentende-se que
o lucro esperado o casamento. As relaes sociais em geral podem ser observadas sob o
prisma das relaes de troca, onde os interesses dos agentes se confrontam e ambos esperam
obter ganhos satisfatrios. Podemos entender o mercado, portanto, na sociedade capitalista,
como um modelo cultural de relaes sociais. No entanto, embora o capitalismo tenha a
tendncia mercantilizao das coisas, preciso o consentimento social para tal.
A economia e a sociedade, como tentou mostrar Polanyi, fazem parte do mesmo
conjunto, assim como mercado e sociedade so dois lados da mesma moeda. A lgica do livre
mercado sempre necessita de uma base social, e por isso que Polanyi no separa a nossa
maneira de viver em governo e livre mercado para ele trata-se apenas da sociedade de
mercado (POLANYI10, 1980 apud PATEL, 2010, p. 25). Polanyi, inspirou a abordagem
social dos fenmenos econmicos em muitos autores, chegando como fizeram alguns, a
abordar a economia considerando-a um sistema de representaes (DUMONT, 1982) ou
ainda, um sistema cultural passvel de uma anlise simblica (SAHLINS, 1979) (MULLER,
2006, p. 14). A unio dessas duas formas de enxergar o capitalismo nos leva a considerar a
proposta de Patel (2010), na qual o mundo moderno v a si prprio atravs dos olhos do
mercado. Fato que faz ser praticamente impossvel administr-lo sem precific-lo e deix-lo a
cargo do livre mercado.
A centralidade da economia foi se solidificando medida que a industrializao e a
produo de bens materiais foi se intensificando. O parmetro para o desenvolvimento social
frequentemente o desenvolvimento econmico. O consumo tornou-se o termmetro social
do desenvolvimento adotado por institutos de pesquisa; possvel determinar nveis de
pobreza a partir do nmero de eletrodomsticos em casa.
Em trabalho apresentado Escola de Ps graduao em economia da Fundao
Getlio Vargas (FERREIRA, 2004), sobre as condies habitacionais da Regio
Metropolitana do Rio de Janeiro, foi mostrado que, embora a regio tenha um grande nmero
de pessoas vivendo em reas de favela, o dobro da mdia das demais regies ( e quase trs
vezes a mdia brasileira), o percentual de pobres 40% menor. A proposta do trabalho foi
verificar ndices de pobreza, levando-se em considerao alm da densidade habitacional por
domiclio e acesso gua canalizada, energia eltrica e coleta de lixo, o consumo de bens
durveis, sendo a soma desses fatores determinante para o conhecimento de condies de
10
POLANYI, Karl. A Grande Transformao: Origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
30
moradia. Segundo Ferreira (2004) no possvel determinar nveis de pobreza de uma regio
apenas levando-se em considerao o contingente populacional das favelas.
O consumo de bens durveis pode ser um indicador de pobreza. Entretanto nas
favelas da regio metropolitana, o ndice de domiclios com televiso e geladeira, por
exemplo, o mesmo que fora delas. Inclusive, segundo Ferreira, h existncia de mais
pessoas sem banheiro em casa que pessoas sem televiso ou geladeira. O consumo de bens
durveis est distribudo nos domiclios da regio metropolitana entre 95% com geladeira,
96% com televiso, 93,4% rdio e 35% mquina de lavar, garantindo a sada da situao de
pobreza, a despeito das condies fsicas da casa, educao e sade. Este trabalho, dentre
outros, mostra como o consumo de bens de consumo durveis, para a sociedade capitalista,
serve como parmetro para a ascenso social e medida de qualidade de vida. Entretanto, a
pobreza a despeito do consumo de bens durveis, uma realidade tambm fora das favelas,
inclusive de cidades inteiras como mostra o comentrio do mdico do posto de sade do
Morro do Cavalo, Dr. Mrcio, ao comparar sua cidade de origem com a comunidade:
No interior de Minas Gerais, todo mundo isso aqui, ento no tem esse negcio, eu
fui criado nesse contexto, tem diviso de classes, mas todo mundo convive no
mesmo espao, todo mundo frequenta tudo. Eu vim de um lugar onde a carncia
grande, Vale do Jequitinhonha e Vale do Rio doce. Eu cresci vendo esses contrastes.
(informao verbal)11
Na regio metropolitana do Rio, os moradores das favelas possivelmente ganharam
voz medida que se tornaram consumidores. A sociedade de mercado enxerga o indivduo
enquanto consumidor em potencial. Da o crescimento da importncia social da nova
classe mdia. O conceito de nova classe mdia, no entanto, alvo de crticas. Ele
acusado de representar apenas uma faixa de renda, extrada de seu contexto cultural. O
assunto foi abordado no jornal O Fluminense:
No final do ms passado, a Secretaria de Assuntos Estratgicos (SAE) da
Presidncia da Repblica definiu que a nova classe mdia integrada pelos
indivduos que vivem em famlias com renda per capita (somando-se a renda
familiar e dividindo-a pelo nmero de pessoas que compe a famlia) entre R$ 291 e
R$ 1019. Pela definio, 54% da populao brasileira estariam enquadradas na
classe mdia. ( CLASSE mdia gera polmica, O Fluminense, 2012, p. 11)
11
Entrevista concedida por Dr. Mrcio, mdico do Programa Mdico de Famlia no Morro do Cavalo, [jan.
2013]. Entrevistador Karla Pinho da Fonseca Leite. Niteri, 2013.
31
A polmica surgiu, segundo o jornal, em razo do baixo valor estimado para a faixa
de renda da classe mdia, dado que o Brasil sexta economia mundial, levando-se em conta
seu PIB12
. Nos EUA, a populao dentro dessa faixa de renda proposta considerada pobre.
Soma-se a esse fato, outro: a SAE considerou como suprfluos, itens como plano de sade,
cursos superiores, consulta e tratamentos mdicos, hospitalizao e servios de cirurgia,
enquanto foram considerados essenciais roupas, remdios, aluguel, transporte urbano,
alimentao, gua, esgoto, eletrodomsticos entre outros, ou seja, desconsiderou o consumo
de bens e servios que identificam a classe mdia ao longo da histria; aquela composta por
pessoas com nvel superior, profissionais liberais que tem acesso a educao particular para os
filhos, plano de sade etc. Ao longo da reportagem citado o argumento da sociloga Cladia
Scir, no qual ela afirma estar ocorrendo uma financeirizao da pobreza e no a efetiva
ascenso de uma nova classe mdia. A questo da sustentabilidade da ascenso de uma nova
classe mdia posta em xeque quando se trata do acesso aos bens culturais e educao de
qualidade que ainda possuem acesso difcil nessa na faixa de renda estimada para a classe
mdia. O consumo sozinho, segundo Claudia, no pode ser parmetro. A representao da
classe mdia deve, portanto, levar em considerao outros critrios que no digam respeito
somente ao nvel de renda. Ao mesmo tempo podemos dizer que o consumo em parte define
grupos de indivduos. Quando identificamos a classe mdia pelo consumo da educao
privada ou consumo cultural (teatro, cinema, apresentaes de bal), estamos identificando
um grupo atravs do seu consumo que compe e/ou sinaliza um estilo de vida.
A nova classe mdia representada, segundo o colunista Artur Xexo, pela
preferncia por msicas de ax, pagode e sertanejo universitrio, em sua coluna na Revista O
Globo. Nela ele comenta que os novos consumidores so muito bem vindos, mas que a velha
classe mdia est perdendo espao pela emergncia da nova classe mdia.
No gosto de ax. Nem de pagode. Nem mesmo de sertanejo universitrio. Por isso,
no custa perguntar: d para tocar outra coisa? (...) Ensinaram-me a fechar o ms
sem contas a pagar. Agora, o governo me alicia. Crdito!Crdito! Crdito! E eu no
quero comprar uma TV de plasma, nem um segundo telefone celular, nem quero
passar frias em Porto Seguro. Na verdade estou pensando em vender meu micro-
ondas e a minha secretria eletrnica. Tornei-me um estranho no ninho. Sou da
velha classe mdia. (...) onde foi parar a televiso da velha classe mdia? Sempre fui
noveleiro, nunca tive vergonha disso. Assisti s novelas de Ivany Ribeiro em verso
original. Mas no aguento mais tramas ambientadas na comunidade, sambo na
trilha sonora, mocinha cozinheira e gal jogador de futebol. Eu quero de volta minha
novela de Gilberto Braga! (XEXO, 2012, p. 66)
12
PIB Produto Interno Bruto
32
O consumo em certa medida identifica seus consumidores. E, por isso, a
argumentao sobre o consumo exposta neste trabalho emerge tanto da ideia proposta por
Sahlins (1979) na identificao do capitalismo como uma ordem cultural que se realiza no
plano dos bens materiais, dado que a materialidade do capitalismo , afinal, uma forma de
simbolizar, quanto da identificao do capitalismo como um sistema de representaes
proposto por Dumont (1996) atravs da ideologia moderna: o individualismo. A sociedade
moderna para Dumont operou uma revoluo nos valores engendrados ao longo dos sculos
no Ocidente Cristo. A mais significativa mudana se refere representao do indivduo
como um valor na sociedade moderna. Em seu argumento Dumont distingue os dois sentidos
pelos quais a expresso indivduo utilizada. Um deles refere-se ao sentido geral da
representao do ser enquanto espcie humana, o sujeito da ao, o agente humano particular.
O segundo diz respeito ao ser moral, independente, autnomo e assim no social tal como se
encontra na ideologia moderna, o indivduo na sociedade moderna o substrato de palavras
como liberdade e igualdade. Para salvaguardar a supremacia do individual sobre o
coletivo preciso garantir a igualdade de todos e a liberdade de escolha do indivduo sob a
alegao de que sua natureza moral ir gui-lo na busca pelo bem social. Os princpios da
ideologia moderna e sua relao com a categoria econmico nortearam Dumont em sua
busca para o entendimento da cultura moderna ocidental.
A ideologia pode ser entendida como representaes coletivas, termo cunhado por
Durkheim (2009) para identificar crenas, ideias, valores, smbolos e perspectivas formadoras
dos modos de pensamento e sentimento que so gerais numa sociedade ou grupo particular e
que so compatilhadas como uma propriedade coletiva. Para compreender o mundo preciso
usar conceitos que permitem captar e organizar as experincias percebidas pelos sentidos.
Representaes coletivas so os conceitos socialmente compartilhados pelos quais os
indivduos interagem entre si e com a natureza. Dessa maneira possvel dizer que a realidade
socialmente construda. As representaes coletivas se tornam visveis medida que tomam
uma forma material em livros, revistas, jornais, msicas. Essas formas documentais
funcionam como canais sociais que podem influenciar o comportamento dos indivduos.
33
Captulo 1 - Comportamento e escolha: os limites da racionalidade econmica
Quando a razo evocada como essncia de certas escolhas, principalmente aquelas
de cunho econmico, alguns fragmentos so deixados pelo caminho. Isso ocorre porque,
embora a razo possa parecer em um primeiro momento uma categoria puramente objetiva,
verificamos que na vida prtica as relaes sociais que requerem um maior grau de
racionalidade (relaes econmicas), esto, tambm, envoltas por questes morais, polticas,
sentimentais e ideolgicas que interferem no processo de escolha e suscitam diferentes
gradaes de sociabilidade.
Uma relao de troca econmica no se esgota no simples ato de compra e venda. O
mercado, seja ele uma lgica de troca ou um espao fsico, propicia relaes de sociabilidade.
fcil perceber esse aspecto quando verificamos relaes de lealdade, confiana e
credibilidade em relao a uma determinada marca de produtos, a um estabelecimento
comercial ou a um profissional especfico, seja uma manicure, um cabeleireiro, um
aougueiro ou um corretor de imveis, entre outros. Portanto, as escolhas do que comprar,
onde comprar, como comprar e com quem comprar, principalmente quando falamos em
decises individuais, esto envoltas por um carter tanto objetivo quanto subjetivo. Dessa
forma, podemos dizer que uma atitude racional no necessariamente aquela desprovida de
sentimentos, emoes e juzos de valor, mas sim aquela que possui uma lgica que leva em
considerao outros benefcios, no apenas aqueles ligados puramente a maximizao de
ganhos materiais.
A compra pode ser entendida como um processo. No mercado imobilirio, a
mercadoria vendida cara e de difcil acesso. Para uma grande parcela da populao a compra
de uma casa s possvel mediante a um financiamento bancrio (emprstimo) cujo
pagamento feito por um longo perodo (longo prazo), muitas vezes por um perodo de trinta
ou trinta e cinco anos. Isso quer dizer que a busca por um imvel precisa ser demorada e
exige que o comprador de alguma forma estabelea com o corretor de imveis uma relao de
confiana. Em contrapartida, o corretor para obter sucesso no seu ofcio precisa adotar seu
cliente, lhe dar ateno, conhec-lo bem, identificar suas necessidades para melhor atend-lo.
Depois de algumas, ou muitas opes oferecidas ao cliente no decorrer dos meses possvel
encontrar o imvel desejado, ou no. A compra de um imvel residencial realmente um
processo, por vezes, demorado, o que gera um envolvimento entre as pessoas envolvidas.
Quando um imvel comprado novo, ou ainda na planta, a relao entre a
construtora e o comprador perdura at o trmino da garantia do imvel, que geralmente de
34
cinco anos contados a partir do final da construo e entrega das chaves. Alm disso, um
aspecto importante que deve ser observado no processo de escolha o contexto da tomada de
deciso, tanto em relao ao momento de vida do comprador e ainda sua posio
socioeconmica, assim como ao prprio cenrio socioeconmico do pas. Quanto ao momento
de vida do comprador, alguns fatores concorrem para a racionalizao da escolha, como o
papel da ponderao sobre o tempo e o esforo associados escolha, as emoes, a interao
social e ainda o impacto dos fatores externos como as propagandas de imveis. Seguindo essa
direo, possvel vislumbrar critrios que direcionam uma escolha.
Os critrios, que so inmeros, esto inscritos em ns, acumulados pela convivncia
social e imerso cultural. No entanto, critrios culturais incorporados por ns tambm esto
sujeitos a interpretaes individuais. Dessa maneira, pertinente inferir que a anlise do
processo de escolha deve levar em considerao um vasto conjunto de variveis, dentre eles, o
contexto, as ferramentas cognitivas de avaliao pertencentes cultura nativa e a distino
entre decises individuais e coletivas. Alis, conforme Weber13
(1950 apud THIRY-
CHERQUES, 2009, p. 900) argumenta, uma coisa nunca irracional por ela mesma, mas
somente quando considerada a partir de um determinado ponto de vista. A compreenso do
conceito de escolha racional, dessa forma, pode ir alm da viso fundante da cincia
econmica na qual o ser humano um agente maximizador, e uma escolha racional seria
aquela em que o indivduo utiliza os recursos que possui com vistas a alcanar o melhor
resultado. O melhor resultado, no entanto, relativo e no tem haver somente com ganhos
materiais.
De acordo com Hermano Roberto Thiry-Cherques em seu artigo, Max Weber: o
processo de racionalizao e o desencantamento do trabalho nas organizaes
contemporneas, a modernidade para Weber representou uma reordenao racional da cultura
e da sociedade exposta em sua obra, Economia e sociedade. Nela ele distingue a racionalidade
formal, substantiva, meio finalstica e a racionalidade quanto aos valores. Para ele a
racionalidade formal aquela relativa prtica e ao clculo presentes em procedimentos
(prticos) burocrticos nos sistemas jurdicos e econmicos, onde so requeridas regras,
hierarquias, especializao e treinamento. A racionalidade substantiva por sua vez est
relacionada ao contedo desses sistemas operacionais, ou seja, sua lgica estabelecida
pelos objetivos e no pelos processos. Seria pertinente dizer que a substancia da economia a
interao do ser humano com a natureza a fim de obter os recursos necessrios a sua
13
WEBER, Max. The protestant ethic and the spirit of capitalism. Nova York: Charles Scribners Sons, 1950.
35
sobrevivncia. E a formalizao desse objetivo consiste em eleger procedimentos para a sua
obteno.
No entanto, tais procedimentos no so os mesmos em todas as culturas assim
como a racionalidade usada para tal. Isso quer dizer que falar sobre uma racionalizao (geral
e universal) da produo implicaria afirmar que em todo e qualquer lugar (no tempo e espao)
seria utilizado o mesmo processo racional de produo: atingir a maior produo possvel
levando-se em conta a capacidade produtiva, ou seja, a alocao tima dos recursos escassos.
Pensando nisso, Weber introduz uma segunda distino, as racionalidades meio finalstica e
valorativa. Elas derivam da ideia de que cada ao corresponde a um tipo e se refere a um
grau maior ou menor de racionalidade. A ao racional aquela que est relacionada tanto aos
fins que se pretende alcanar quanto aos meios para alcan-los.
De modo que um comportamento racional no precisa, necessariamente, obedecer a
uma lgica finalstica. Pode ser um valor-racional sempre que seus fins ou meios sejam religiosos, morais ou ticos e no diretamente ligados lgica formal,
cincia ou eficincia econmica. (WEBER14
, 2000 apud THIRY-CHERQUES,
2009, p. 899)
De acordo com Thiry-Cherques, o valor para Weber a concepo de algo legtimo
que se torna motivo para uma ao. Sabemos, no entanto, que a eleio de um valor um
processo de luta do qual muitas vezes nem tomamos conscincia. A conduo de uma vida
consciente, entretanto, em ltima instncia afirmar alguns valores em detrimento de outros.
Os valores no so demonstrveis por mtodos da cincia: s podem ser objeto da
compreenso. (...) no h valores que possam ser ditos superiores a outros: a hierarquia dos
valores cultural, no sentido contemporneo do termo (THIRY-CHERQUES, 2009, p. 900).
Desse modo, possvel entender que os fins e os meios so direcionados, em alguns
momentos, pela racionalidade valorativa. Isso significa que em certas escolhas o racional no
tem a ver simplesmente com a maximizao. Ao examinar certas escolhas de consumo
possvel verificar a coexistncia de vrias racionalidades que eventualmente buscam a
maximizao, mas que tambm buscam integrao social, realizao pessoal, recompensas
materiais, status, poder etc. A compreenso das condies e razes da emergncia dos valores
sociais engendrados nessa busca necessria para o entendimento da formao do preo de
um bem. A complexidade das aes humanas torna praticamente impossvel a determinao
14
WEBER, Max. Economia e sociedade. Traduo de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Braslia:
Universidade de Braslia, 2000.
36
de uma racionalidade pura e universal. O sistema de escolhas e preferncias no obedece a
uma lgica absoluta nem quanto aos valores nem aos fins.
Desde que haja conscincia na ao, podemos cham-la de racional. A
racionalizao o processo que confere significado diferenciao de linhas de ao
(THIRY-CHERQUES, 2009, p. 901). A ao social na esfera econmica tambm , antes de
tudo, uma relao social, e como tal, influenciada por valores culturais. Portanto, pode ser
pensada para alm de uma pura objetivao da maximizao de recursos como demonstra o
artigo Racionalidade e escolha do professor e economista, Orlando Gomes (2007).
Na cincia econmica, atualmente, segundo o artigo, duas importantes linhas de
pensamento tm sido desenvolvidas. Uma diz respeito deciso individual, a outra a interao
social. Na primeira linha est cada vez mais presente a ideia de que as emoes contam,e,
alm disso, o contexto temporal e o esforo necessrio deciso tambm contam. Na
segunda, a problemtica da escolha racional considera o impacto de fatores externos, como a
publicidade.
No que diz respeito deciso individual, estudos recentes partem da premissa que a
vida um misto de razo e emoo, o que torna relevante em muitos processos de deciso,
inclusive econmicos, a considerao de sentimentos como a inveja, o medo, o prazer, entre
outros. Quando confrontamos cognio e emoo distingui-se de certa maneira deciso de
curto e longo prazo, ou seja, no processo de escolha quando optamos por benefcios imediatos
os sentimentos, de certa forma, prevalecem. J quando a escolha pensada no longo prazo,
a cognio se sobrepe e colide com frequncia com uma avaliao intertemporal de todos os
prs e contras envolvidos na deciso. Alm disso, as novas teorias admitem a existncia de
falhas cognitivas. Mesmo que uma ao seja pautada em um comportamento racional
extremo, podem ocorrem falhas de percepo, partindo-se do pressuposto de que as
decises so tomadas face s experincias de vida.
O raciocnio humano encontra-se preparado para responder essencialmente a
questes que so de alguma forma familiares os processos mentais associam sempre um novo problema a uma situao j conhecida, mas o novo problema pode
exigir um tipo de resposta completamente diferente. O reconhecimento de que
existem certos limites capacidade cognitiva importante para entender que,
mesmo sob o pressuposto de comportamento racional, no h resultados absolutos e
inequvocos que sejam gerados por decises humanas. Ao acrescentar os limites da
capacidade de raciocnio importante perceber que, frequentemente, as decises
esto dependentes do contexto; um mesmo processo de deciso, enquadrado de
forma diferente, traduz-se com regularidade em diferentes escolhas. (GOMES, 2007,
p.56)
37
Caso uma pessoa seja constrangida a tomar uma deciso em curto espao de tempo,
ela no poder considerar um nmero muito grande de alternativas, nesse caso a melhor
soluo possvel poder ser afetada pelo pouco tempo para tomar a deciso. Por exemplo,
quando uma pessoa busca um apartamento para comprar e possui um prazo limitado para tal,
em funo de sua sada imediata do imvel no qual est morando, a sua deciso ser afetada
por esse fator. Ser crucial simplificar seu raciocnio. Da mesma forma quando uma famlia
est h muito tempo procurando um imvel para comprar, seu cansao e/ou desnimo afetaro
sua escolha. Mesmo que tais fatores no sejam percebidos conscientemente eles interferem na
tomada de deciso.
As falhas cognitivas dizem respeito familiaridade de uma situao. Ela nos induz
a agir por intuio, ou seja, de forma no consciente, mas mecnica. Mesmo sendo eficiente
em um ambiente de trabalho, uma ao mecnica, por exemplo, no suscita questionamentos
sobre melhores modos de fazer. Uma deciso intuitiva , por definio, uma deciso que no
deixa lugar dvida (GOMES, 2007, p. 60). Nesse sentido, ela permite reduzir custos de
ponderao de problemas, mas, ao restringir a dvida, restringe tambm a possibilidade de
encontrar novas solues, eventualmente preferveis soluo intuitiva. Dessa maneira,
retornamos a Weber (2000). Agir por hbito no agir de maneira racional. A racionalidade
implica uma ao consciente. Agir de maneira consciente fazer um levantamento de
informaes e traar estratgias para uma ao eficiente e eficaz.
A deciso de comprar um imvel, por exemplo, requer um mnimo de informaes
sobre ele. Porm, a forma pela qual essa comunicao contextualizada afeta a percepo e
contribui tambm para que seja gerada uma viso acerca de necessidades e preferncias. As
informaes transmitidas por corretores imobilirios, incorporadoras e construtoras (atravs
de folders, folhetos e propagandas) afetam sobremaneira as percepes individuais. Da
mesma forma, informaes de familiares, vizinhos, amigos, notcias de jornais, revistas e
internet influenciam na tomada de deciso.
Por exemplo, quando nos dizem que h probabilidade de 99% de fazermos uma
viagem tranquila, reagimos de forma diferente a quando se afirma que h uma
probabilidade de 1% de termos um acidente. O modo como se contextualizam os
fatos tende a afetar as decises. (GOMES, 2007, p. 60)
Percebemos por esse exemplo que a deciso, mesmo individual, no independente
da existncia social. Avanando nessa linha de pensamento seria possvel observar que uma
norma social instituda medida que sua existncia fruto de uma acumulao de
38
experincias sociais. Essa interpretao prope que a interao social um fator a ser
considerado na categoria racionalidade. A escolha no reflete apenas a utilidade individual,
mas a relao com terceiros; noes como poder, prestgio, sociabilidade, estatuto, tica etc.
(GOMES, 2007, p. 61). De acordo com Orlando Gomes a teoria da escolha discreta abarca a
noo de que o comportamento em sociedade pode influenciar os processos de deciso.
Mesmo que a deciso individual seja guiada pela sociedade, ela no deixa de ser
racional. Os autores mais populares, segundo Gomes so McFadden (1973), Manski e
MacFadden (1981) e Anderson (1993). Um campo de anlise dessa teoria o mercado
financeiro, de onde se origina a teoria do comportamento de rebanho, onde as aes
individuais vo se reproduzindo a partir de um comportamento original. No caso do
mercado imobilirio, tal comportamento se verifica em processos especulativos. O
comportamento de empresrios urbanos, aqueles que arcam com os riscos da atividade
imobiliria ao investirem em novas construes, guiam as decises das famlias quanto
escolha do local de compra de seus imveis, gerando uma conveno urbana. Como bem
diz Abramo, a conveno urbana o mecanismo de coordenao que atua de forma tcita e
implcita, sendo, portanto frgil e podendo ser revertida a qualquer momento (ABRAMO15,
2011 apud ABRAMO 2007, p. 175).
A vida em sociedade influencia, ainda que indiretamente, as escolhas individuais.
Durante a vida, o indivduo passa por um processo de socializao no qual, simultaneamente,
acontece a interiorizao da exterioridade e a exteriorizao da interioridade. (BOURDIEU,
1983) Levando-se em conta as condies materiais de existncia e o meio social, so
produzidas Bourdieu acrescenta ainda que
disposies que so princpios geradores e estruturadores das prticas e das
representaes que podem ser objetivamente reguladas e regulares sem ser o produto da obedincia a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a
inteno consciente dos fins e o domnio expresso das operaes necessrias para
atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ao organizadora de
um regente.( BOURDIEU, 1983, p. 61)
Tais disposies fazem do indivduo uma pessoa social, ou seja, o seu papel social
determinar suas distncia e posio sociais dentro de uma certa estrutura social. Isso no
quer dizer que no seja possvel o desprendimento de certas condutas esperadas, no entanto,
15
ABRAMO, Pedro. PAIXO, Luiz Andrs; PONTES, Eduardo. O mercado imobilirio como revelador das
preferncias pelos atributos espaciais: uma anlise do impacto da criminalidade urbana no preo de apartamento
em Belo Horizonte. Separata de: Revista Economia Contempornea, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 171-197, jan.-
abr. 2011.
39
ela requer certo grau de conscientizao devido incorporao da estrutura social atravs do
seu habitus. Ainda que o individualismo seja o alicerce da sociedade moderna, as decises
individuais so influenciadas pela estrutura social vigente, mas ao mesmo tempo ela
apreendia individualmente, ou seja o poder de deciso individual e sujeito a diferentes
interpretaes, e, portanto, a reproduo social no se d de maneira perfeita.
Se o individualismo pressupe a liberdade de escolha do indivduo, ao invs de uma
atitude egosta e maximizadora, o indivduo pode optar por agir de forma no individualista e
pensar no bem social como forma de alcanar seu bem estar pessoal. Como argumenta
Gilberto Velho, na sociedade moderna ocidental, os indivduos escolhem ou podem escolher.
Esse o alicerce do individualismo moderno. No entanto, encontramos dimenses e
instncias desindividualizadoras, observadas no comprometimento a certas instituies
sociais (VELHO, 2008, p. 25). possvel encontrar dentro da sociedade capitalista
comportamentos solidrios tais como projetos sociais, fruto de iniciativas individuais ou da
unio de grupos de indivduos representados por cooperativas, associaes, instituies de
caridade. Na comunidade do Cavalo, o comportamento desviante (ao que no objetiva o
lucro) est representado na comunidade pela Associao das Damas de Caridade So Vicente
de Paulo. Muitas negociaes de compra e venda no morro foram realizadas por intermdio
dessa Associao. A falecida diretora, Dona Suely, comprou vrias casas para pessoas
carentes no morro, assim como ajudou na construo de muitas delas.
No mercado imobilirio do Morro do Cavalo possvel observar que muitas
transaes so feitas entre amigos, conhecidos ou vizinhos, o que , para todos, um fator
positivo, pois torna vivel a compra de uma moradia, inclusive com parcelamento. O fato das
moradias no morro no pertencerem ao circuito do mercado imobilirio legalizado, torna
impossvel ao comprador ou ao vendedor recorrer justia no caso de se sentirem
prejudicados, principalmente em relao ao pagamento parcelado que ocorre contando com a
boa ndole do comprador, avaliada atravs dos laos de amizade, recomendao de parentes,
comportamento na comunidade, entre outros. Alm disso, nem sempre a compra de uma
moradia ou o investimento em benfeitorias referem-se somente a perspectiva de ganhos
futuros (lucro). Sandra, moradora do Morro do Cavalo, diz saber que o dinheiro que est
investindo em sua casa, dificilmente ser resgatado com a venda de seu imvel. A localidade
na qual mora, sofre com constante falta de gua. Segundo ela, j ficou um ms sem gua.
Embora more no morro h trinta e cinco anos, sua casa foi comprada recentemente; at ento,
ela morava na casa da me.
40
Permanecer em um lugar familiar um importante critrio de escolha, mesmo
sabendo que o local escolhido um lugar desvalorizado, como a localidade conhecida como
Divinia16
. A proximidade de familiares e amigos permite que a vida individual se torne mais
fcil, como no caso de Kely, moradora que, nascida no Morro do Cavalo h dezoito anos,
prefere continuar morando no morro. L ela pode contar a ajuda da sua me. J Cristina, a
me de Kely pode contar com a ajuda do primo, pedreiro, com a reforma da casa. Viver
prximo aos familiares traz conformo e segurana e uma rede de sociabilidade importante
para vida cotidiana, embora o morro ainda no seja um lugar valorizado dentro do mercado
imobilirio legalmente constitudo. O bem estar gerado pela proximidade de amigos e
familiares pode ser aumentado mediante o uso do dinheiro para melhoria nas condies gerais
da moradia e do acesso a servios bsicos de infraestrutura.
Se o bem-estar pode ser traduzido como felicidade, poderamos nos perguntar se
dinheiro traz felicidade. Em certo ponto sim, diz a investigao sobre dinheiro e felicidade,
realizada pelo economista Richard Easterlin, mencionada no livro O valor de nada, escrito
pelo economista indiano Raj Patel (2010). De acordo com a pesquisa, as pessoas com nveis
de renda maiores se declaram mais felizes do que pessoas com nveis de renda menores. No
entanto, em pases onde o nvel de renda suficiente para garantir boas condies de moradia,
alimentao, gua e energia eltrica, aumentos sucessivos na renda no