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Rafael Alves Rezende A Corrida dos Ratos Brasil em guerra CAPÍTULO 5 Fevereiro 2016

A Corrida dos Ratos · cobertos com aquele lenço e a atmosfera era de ódio alimentado e retroalimentado pela doutrinação revolucionária; acho que aquele nosso

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Rafael Alves Rezende

A Corrida dos Ratos

Brasil em guerra

CAPÍTULO 5

Fevereiro

2016

V

Nas bocas (do inferno)

Fechei os olhos com força por alguns segundos que me pareceram

perdidos na eternidade e eu sentia minhas energias irem embora e

voltarem no ritmo da minha pulsação, mas o tempo tinha se

relativizado de modo tão repentino, que minha pulsação ia e vinha

muito lentamente. Meus olhos sentiram um formigamento e em minha

escuridão salpicaram milhares de pequenas luzes, que se tornaram

formas em movimento aleatório; eu sentia o coração sugar e cuspir o

sangue através de seus canais e o sangue fluir até a ponta dos dedos

com muita força e determinação, mas eu sentia isso lentamente e

sentia uma energia se acumular em meus dedos das mãos; eu não

ouvia nada e foi como se meu corpo tivesse se descolado de minha

consciência, uma espécie de interferência ou falha em meu “sistema

operacional” e pela primeira vez eu percebi meu corpo apenas como

um avatar da minha consciência.

Abri os olhos e tinha uma Desert Eagle ponto cinquenta em cada mão

e uma caveira gigante e monstruosa tatuada no antebraço direito e um

demônio muito detalhado e realista tatuado no antebraço esquerdo; eu

olhei infinitamente para as armas, elas eram lindas, prateadas,

brilhantes e aquilo me fascinou, eu parecia entorpecido de sálvia

divinorum e acordei bruscamente com um grito histérico e estridente

de uma menina de uns quinze anos, mulata, magrela e com uma

belíssima bunda se agarrando ao corpo baleado e inerte de um bandido

com naipe de traficantezinho pé-rapado.

Estávamos num beco sujo da periferia de Vitória e um moleque com o

rosto coberto por um lenço no estilo terrorista árabe, os olhos

esbugalhados de pó e um fuzil na mão, me deu um tapa no ombro e

falou com energia e ousadia “Vamos Zumbi! Ainda falta matar o

filho-da-puta do Maurício”, e eu já sabia o que fazer e como agir e fui

logo atrás do moleque; percebi que eu também tinha o lenço árabe

amarrado no rosto e outros três moleques com os mesmos lenços

amarrados no rosto passaram por mim com fuzis e metralhadoras nas

mãos e pareciam seguir alguém que estava à nossa frente. Acelerei

meu passo dentro daquele beco e tinha uma passagem estreita entre os

barracos que dava numa clareira dentro daquele mar de barracos, e lá

se aglomerou, vindo de todos os buracos e becos da favela, o exército

profetizado por Dom: o exército de oprimidos e injustiçados, agora

armados e revoltados.

Aqueles meninos estavam em êxtase por haverem dominado mais

aquela boca de fumo, talvez a mais importante da região, e berravam

frenéticos com as armas apontadas para o céu; todos os rostos estavam

cobertos com aquele lenço e a atmosfera era de ódio alimentado e

retroalimentado pela doutrinação revolucionária; acho que aquele

nosso pelotão, destacado para aquela missão, tinha uns trinta soldados,

além dos outros que cercavam a favela pelo exterior para evitar fugas

ou a entrada da polícia, e nosso comandante era Marcinho; Marcinho

tinha colocado os mais revoltados como chefes de tropa, pra contagiar

todos os outros com sua revolta e ter sempre aqueles meninos com

sangue nos olhos e prontos pra guerra.

Do meio da multidão saiu Maria e era a única que não estava

mascarada; Maria estava com o cabelo curto e estiloso, batom

vermelho e uma nove milímetros na mão esquerda; vestia uma

camiseta de caveira, um short jeans e tinha os braços rabiscados de

tatuagens, parecia uma gansta girl saída de uma revista de moda. Ela

veio em minha direção e me deu um abraço forte, depois me olhou e

falou “Agora falta pouco, Zumbi! Agora, os universitários que o

sistema tentou adestrar e os pobres que o sistema tentou eliminar,

tomarão o poder! Esse ano o mundo vai ouvir falar de nós! Será um

ano histórico! Breton Woods vai cair, a farsa do sistema econômico

vai explodir, o Banco Mundial vai quebrar! Existe melhor momento

do que esse pra tomarmos o poder?”.

Maria comemorava, mas não estava triunfante, nem tinha expressão

de felicidade; o momento era violento demais pra abrir um sorriso;

emoções muito distintas pareciam percorrer seu ser, mas a inevitável

petrificação da consciência também marcava seu olhar. Marcinho

tinha retirado o lenço e, no meio daquele tumulto festivo, tinha

Maurício ajoelhado diante de si.

Maurício era um bandido respeitado na periferia de Vitória, muito

querido pela bandidagem local porque era poderoso e tinha fama de

bondoso, evitava a crueldade gratuita e respeitava as famílias da

favela, mas que depois de certo tempo no comando do tráfico, parece

ter sofrido um leve surto e passou a se auto intitular “O pai da

matéria”; ele ficava sentado na calçada de sua boca de fumo com um

saco de plástico enorme cheio de dinheiro, separando as notas e

empilhando ao seu redor, como se fosse um muro de dinheiro

separando-o do resto do mundo, tal qual um banqueiro de Wall Street.

Depois de ver seu “muro” construído e sentir-se protegido atrás dele,

sentava-se com as pernas cruzadas em posição de lótus, acendia um

charuto cubano, fechava os olhos e dizia quase em transe “eu sou o pai

da matéria!”, e ali ficava por meia hora, às vezes uma hora, até que

acabasse seu transe. Maurício se tornara uma figura emblemática do

poder do tráfico na região e suas excentricidades causavam fascínio e

até um certo orgulho em sua comunidade, por se tornarem lendárias.

No entanto, a hora de Maurício chegara e agora ele estava ajoelhado

diante de Marcinho, que com uma risada debochada apontou a pistola

para a cabeça de Maurício e perguntou “E agora? Quem é o pai da

matéria? Quem é a porra do pai da matéria, seu filho-da-puta?”;

Marcinho olhou nos olhos de todos os seus comandados, que

esperavam uma atitude apoteótica de seu líder, olhou nos olhos de

Maurício e disse “a partir de agora você será conhecido como Finado

Maurício”, e sem hesitação encostou o cano da arma na testa de

Maurício e deu-lhe um tiro que estourou a cabeça e espalhou cérebro e

sangue por todos os lados.

Seus soldados o olharam com admiração e respeito e, apesar do chão

da favela já estar cheio de corpos dos traficantes do lugar, aquela cena

tinha sido monstruosamente mais sinistra e simbólica, pois era a

eliminação de um bandido lendário da periferia sem qualquer

cerimônia. Marcinho olhou novamente para seus soldados, estava com

o rosto respingado de sangue e cérebro, apontou sua arma na direção

deles com o dedo no gatilho que tremia de excitação e berrou com

determinação “Eu sou o assombrador de assombrações! Eu sou a porra

do pai da matéria!”, e seus soldados berraram em êxtase e deram tiros

para o alto em festa pela conquista da última boca de fumo que ainda

não estava sob o comando do Movimento.

Finado Maurício era agora apenas uma lenda e seu crânio estourado

não permitiria nem que as pessoas o vissem pela última vez no caixão;

seria nostalgicamente lembrado pelos moradores da periferia e

principalmente pela bandidagem como um bandido justo e bom,

independente do conceito de justiça e bondade empregado por seus

admiradores. Tinha uma história longa e intensa no controle do tráfico

daquela comunidade e serviu como referência para muitos garotos que

aspiravam seguir carreira no crime, e agora morria ajoelhado de

maneira humilhante.

Marcinho, naquele momento, já era uma figura emblemática, tinha

desenvolvido uma personalidade muito forte e que se impunha aos

demais; assim como acontecia com Dom, as pessoas pareciam se

submeter naturalmente a Marcinho e desejar suas ordens e isso o fazia

sentir-se ainda mais especial e divino. A cena do assassinato de

Maurício ficaria marcada indelevelmente na memória de seus

soldados, e apesar de toda a violência que já vínhamos cometendo

para tomar as bocas de fumo, aquele ato de crueldade e demonstração

de poder perverteu de vez a lógica do Movimento.

Uma espiritualidade densa e pesada pairava como maresia sobre nós e

eu sentia nitidamente essas energias sutis no ar; eu podia respirá-la.

Minhas narinas, não sei se motivadas por minha psique, sentiam um

cheiro leve e constante de enxofre e minhas papilas gustativas estavam

impregnadas de um gosto de ovo podre. É verdade que com o tempo

eu até me acostumei e passei a conviver bem com essas sensações

nauseantes que insistiam em me acompanhar; mas de vez em quando

essa sensação me incomodava, e quando isso acontecia, eu me

esforçava mentalmente para que aquele incômodo se transformasse

em costume, hábito existencial, e esse esforço ia endurecendo e

entorpecendo meu espírito.

Todas as bocas de fumo de Vila Velha já estavam dominadas pelo

Movimento, e agora dominávamos Vitória; o próximo passo seria

dominar o Brasil... e todos no Movimento já estavam prontos para a

fase final da Revolução.

O próximo passo era o mais ambicioso e o mais propício a dar errado,

pois iríamos propor pactos com os traficantes das maiores cidades do

país e enfrentar as forças armadas; esse passo teria que ser muito bem

planejado e executado, pois queríamos realizá-lo em pouco tempo, e

nossa meta eram seis meses. Em seis meses teríamos que fazer

alianças com bandidos de todos os tipos, cada um querendo o máximo

possível de vantagens para fechar qualquer acordo, na mesma lógica

dos políticos filhos-da-puta; depois de cooptá-los, teríamos que

organizar um exército de bandidos e guerrear com as forças armadas

para tomar o poder e estabelecer a nossa própria lógica. Isso talvez

fosse trabalho para alguns anos e com uma enorme chance de

fracasso, mas Dom acreditava poder cavalgar as energias desatadas

pela indignação do povo, tal qual um cavaleiro do apocalipse, e

produzir a revolução baseado em seu carisma e poder de persuasão.

Depois de quatro anos planejando e executando a Revolução, todos

estávamos muito diferentes; a busca pelo poder nos impôs suas regras.

A busca pelo poder parece ter-nos transformado em caricaturas de nós

mesmos, em personagens mal interpretados de nós mesmos, buscando

satisfazer às necessidades de uma entidade faminta de servidão; o

poder nos exigiu uma entrega, uma servidão, um esvaziamento... e

isso se impôs a todos nós.

Maria resolveu terminar a relação com Dom, uma relação que já não a

estimulava e, àquela altura dos acontecimentos revolucionários, todos

buscávamos estímulos o tempo todo pra não deixar o ímpeto

revolucionário enfraquecer. Além disso, ela era independente demais

pra sustentar uma relação estável com Dom; havia uma energia

profunda entre eles, mas mergulhados em todos os acontecimentos e

transformações pelos quais passamos, o que havia de verdadeiro e

espontâneo entre eles se desfez.

Por mais improvável que pudesse parecer, Maria se juntou com

Marcinho sentindo-se fascinada por sua visceralidade dominadora;

diferente de Dom, que vibrava na frequência de um idealismo

político-existencial, Marcinho exalava visceralidade; suas expressões

faciais pareciam talhadas pela realidade, como alguém que

experimentou o pior que a humanidade tem a oferecer e por isso não

nutre nenhum idealismo em relação a nada. Marcinho não enxergava

nada muito além de seus interesses de ascenção, e nos últimos quatro

anos tinha adquirido certo refinamento intelectual, além de

treinamento militar de elite, o que o tornou uma figura extremamente

influente e relevante para o Movimento.

Marcinho circulava pelo submundo do crime e do deboche; tinha

vocação para a bandidagem e cercou-se de uma corte debochada de

parasitas e poderosos famintos por mais poder. Vendia cocaína para

juízes e desembargadores e começou a cooptá-los para nos

infiltrarmos no sistema judiciário. Promovia orgias regadas a muita

cocaína, álcool e prostitutas e acabou seduzindo os poderosos a apoiá-

lo no acobertamento dos negócios ilícitos do Movimento. Marcinho

adquiriu personalidade e grandeza e acabou se distanciando de Éder e

de Dom em seus planos revolucionários. Em Marcinho havia uma

realeza sombria.

O fator determinante para Maria abandonar de vez sua relação com

Dom, foi ela saber que Marcinho tinha feito um pacto com os orixás

visando à conquista do poder; quando soube da informação, as

entranhas de Maria se revolveram, emoções contraditórias a invadiam

e ela já imaginava a cena do pacto: Marcinho rodeado por velas, ao

som tribal de tambores graves frenéticos martelados pelas mãos

calejadas de homens pobres, duros, suando fartamente e exalando

aquele cheiro primitivo dos corpos ainda não completamente

dominados pelos aromas da civilização, num ambiente enfumaçado

pelo charuto de um pai-de-santo possesso pelo espírito do Preto Velho

ou do Exu Caveira, Marcinho todo pintado, com a cabeça raspada em

sinal de sacrifício, etc. Aquilo tudo a excitou, aquela busca profunda

pelo poder que chegava às raias da espiritualidade era algo que a

instigava intimamente. Ela não sabia dizer, e em suas reflexões

acredito que isso nunca tenha ficado muito claro, mas oferecer o

próprio ser como oferta em troca do poder era algo apenas para os

grandes imperadores romanos, apenas para as mentes extraordinárias e

loucas, e isso definitivamente excitava Maria; sua mente fervilhava de

possibilidades de tomada do poder e seus pés ambicionavam pisar o

solo ‘sagrado’ de Brasília, lugar onde se produz, se autoriza e se

legitima a putaria em todas as esferas da vida.

Nesse contexto, o feminismo crítico e libertário de Maria sucumbiu

diante do fascínio pelo poder a qualquer custo representado por

Marcinho, já que o idealismo de Dom, também muito desgastado pela

revolução, parecia isolá-lo cada vez mais.

Maria era muito bonita e charmosa, principalmente aos olhos de

Marcinho, que a percebia como uma burguesinha quase inalcançável,

de pele bem cuidada e muito cheirosa; sabia usar as palavras, ela sabia

o fascínio que causava nele e por isso se rendeu às suas cantadas

brutas e sem criatividade, na intenção de unir forças com aquele que

parecia melhor se encaixar no perfil de líder de uma revolução

armada.

Na verdade, Maria não sabia até onde Dom poderia chegar, não sabia

das transformações que poderiam ocorrer na personalidade de Dom

para que pudesse chegar ao poder. Na verdade, ninguém sabe até onde

pode chegar numa situação-limite, porque a maioria de nós não está

submetida a esse tipo de realidade; a chegada ao poder é uma

possibilidade que se realiza para poucos e esses poucos é que

experimentam as profundas mudanças ocorridas em sua interioridade.

Apesar de Maria acreditar no potencial revolucionário de Dom e em

suas qualidades como líder, ela acreditava que no momento da tomada

do poder seria necessário mais crueldade e sangue frio do que Dom

poderia ter. Marcinho era a figura mais indicada para realizar a

tomada do poder. Em Dom havia resquícios de bondade e idealismo,

planos fantasiosos para nosso país, mas um verdadeiro líder político

deveria ser realista e não idealista, deveria matar ao invés de refletir

sobre o significado da vida, era o que pensava Maria nos últimos

tempos.

Depois que nós dividimos as funções da organização com outros

membros, Dom passou a se dedicar a outras coisas e se tornou um

pouco recluso; dedicava-se a uma pequena plantação de skunk nos

fundos de sua casa, que ele transformou num laboratório de cultivo, e

lá gastava horas; estava sempre de casaco de moletom com capuz na

cabeça, apesar do calor infernal que fazia em Vila Velha, uma calça

larga e um tênis sempre desamarrado, além de um charuto de skunk na

mão, apagado ou aceso, mas sempre entre os dedos. Estudava quase

obcessivamente sobre as estruturas do sistema econômico

internacional e passou a acreditar que, quando chegássemos ao poder

(hipótese que Dom já dava como certa), também conseguiríamos

derrubar o sistema econômico global, que ele chamava de “Assalto

Global Institucionalizado”, em conjunto com Rússia e China, que,

segundo Dom, já se articulavam pra expor a fraude econômica

produzida pelos grandes bancos. Trouxe Paulinha pra morar com ele,

uma prostituta que conheceu no Lady Laura, puteiro famoso de Vila

Velha, e que largou a prostituição logo que se mudou pra casa de

Dom, não por exigência dele, mas porque sentiu que poderia ser a

primeira-dama do tráfico. Paulinha era inteligente e carinhosa e soube

suprir as necessidades de estímulo de Dom, além de respeitá-lo em

seus momentos de reclusão.

Rashid, nosso químico, começou a receber uma porcentagem da venda

do crack que ele produzia e logo se mudou do nosso principado,

alugou um belo apartamento de frente pra Praia da Costa e lá

organizava suas reuniões privadas, com drogas sintéticas, prostitutas

de luxo e música eletrônica underground; evitava qualquer

comprometimento com nossa revolução e queria apenas produzir a

droga, receber a grana e viver do jeito dele.

Já no meu caso, não acredito que as transformações acontecidas

dentro de mim mereçam uma descrição aqui e agora, até mesmo

porque meus pedaços estão espalhados por todo o meu relato. Além

disso, minhas transformações não foram determinantes para afetar os

rumos do Movimento; um pouco diferente do que aconteceu com

Dom e Marcinho.

************************************

Com o poder e a relevância que Marcinho foi adquirindo dentro do

Movimento, foi-se tornando exageradamente egocêntrico, se

entregando a um narcisismo impulsivo, bem típico de quem era

apenas um traficante vendedor de dola de maconha e papelote de

cocaína no varejo, o dinheiro que lhe restava era uma miséria que o

ajudava apenas a sobreviver num bairro sórdido e sem perspectivas.

Agora, no entanto, Marcinho desfrutava de uma prosperidade que

havia sonhado durante toda a sua vida: tinha um carro novo, uma casa

reformada pra morar, dinheiro suficiente pra bancar suas fantasias e

ainda sobrava.

Essa mudança econômica e de status mexeu profundamente com a

cabeça de Marcinho, mostrou-lhe possibilidades jamais antes

imaginadas e que agora ele queria compulsivamente realizar; até

mesmo o pequeno respeito que tinha pelos valores religiosos de sua

mãe católica, desapareceu diante de seu poder egocêntrico emergente,

e uma cena presenciada por dois membros do Movimento foi bastante

ilustrativa desse seu surto egóico: Marcinho alugou uma suíte

gigantesca num motel caro de Vitória, contratou umas prostitutas de

luxo, chamou dois amigos do Movimento e três agentes da lei: um

juiz, um desembargador e um delegado civil; levou muita vodca,

cocaína e maconha e começaram a orgia.

Marcinho, assim como seus colegas representantes da lei, tratava as

prostitutas como mercadorias sem valor, sem considerar qualquer

vontade ou escolha de nenhuma delas; puxavam-nas pelo braço,

pegavam-nas brutalmente pelos cabelos, jogavam-nas na cama, na

banheira e até no chão para submetê-las, humilhá-las, sodomizá-las.

Quando uma delas, que parecia uma princesa nórdica, com belos seios

e uma pele macia e bem cuidada, reclamou do tratamento que estava

recebendo, Marcinho logo disparou, “Você está sendo paga pra fazer o

que eu quiser! Enquanto eu te pagar, você me pertence! Agora fica de

quatro que vou meter nesse cuzinho de menina bem-nascida”.

A excitação de Marcinho e seus colegas da lei vinha muito mais da

relação de dominação que estabeleciam com aquelas mulheres, do que

do sexo em si, e por isso buscaram tanto o lugar de autoridade. No

lugar de autoridade, que tanto lutaram pra chegar nos dificílimos e

concorridíssimos concursos públicos, sentiam que trepavam com o

povo com a mesma intensidade e desrespeito que tinham com as

prostitutas, tratando-as como objetos de seu uso e nada mais, e isso

lhes dava uma sensação enorme de prazer.

Marcinho não era autoridade e não tinha a legitimidade social de seus

colegas importantes, mas o fato de estar promovendo aquela orgia e

bancando tudo para todos, além de ser um dos líderes do Movimento,

fazia com que se sentisse também uma autoridade, não do mesmo

nível de seus colegas, pois ele sentia que sua autoridade não era

legítima, não era reconhecida pelo povo, mas não importava; para

suprir esse falta de legitimidade da qual Marcinho se ressentia, ele

bancava grandes festas e orgias e as regava com muitos entorpecentes.

Nessa orgia específica, ele estava tão alterado de cocaína e vodca, que

sodomizava a prostituta nórdica com tanta força e intensidade que ela

berrou de dor, depois de várias vezes pedir que ele tivesse mais

cuidado: “Meu Deus!!”, foi o grito que ela deu ao se desvencilhar de

Marcinho e sentar nua na cama.

Marcinho olhou para a prostituta com uma raiva inumana, bestial,

agarrou-a pelo pescoço com uma das mãos e, “Deus é o caralho!!

Deus é o caralho!!”, gritou, fazendo chover saliva em todo o rosto dela

e segurando seu pescoço ainda por alguns instantes. Largou-a quase

sem respiração em cima da cama, e nisso toda a orgia parou pra ver o

que acontecia. “Não fale em Deus na minha frente! Se Deus fosse

bom, eu não teria nascido pobre, fodido, sem pai e nem teria morado

no esgoto a vida toda!”, todos nus, alguns ainda excitados, assistiam à

discussão que começara a se tornar intensa entre Marcinho e a

prostituta.

“Você acha que se Deus fosse bom ele deixaria as pessoas sofrerem

tanto e tão intensamente? Você acha que se Deus fosse bom ele

deixaria três filhos-da-puta estuprarem uma pobre menina, na frente

do namorado, durante seis horas seguidas e ainda metendo a porrada

no namorado corno? Escuta aqui puta, Deus é mal igual a nós e nos

fez à sua imagem e semelhança! Por que Deus permitiria isso

acontecer se não fosse pra assistir de camarote? Até mesmo eu, que

sou bruto e atormentado não consigo suportar algo tão criminoso e

absurdo! Como pode Deus, que ‘tem todo o poder’ e que é a ‘bondade

absoluta’, permitir essa porra? Deus é filho-da-puta igual a nós!”, e

olhava para a prostituta com ironia, depois de descarregar o que havia

dentro de si.

A prostituta, indignada e apavorada com o desrespeito de Marcinho,

tanto em relação a ela quanto em relação a Deus, soltou suas palavras

tentando alvejá-lo, “não diga isso, você não sabe o que diz, seu

estúpido! Você acha que se Deus fosse bom, o mundo teria que ser

uma Disneylândia? Não seja idiota!.. o mundo está uma merda por

causa de gente como você, que não assume a responsabilidade pelos

seus atos! Você e os outros estúpidos desse mundo fazem o mal e

culpam Deus por não interferir em sua liberdade? Se Deus interferisse,

então sua liberdade seria uma piada, uma mentira! Você é livre pra

fazer o que quiser e também pra conviver com as consequências do

que fez! Se você transforma a vida das pessoas numa tragédia, é na

tragédia então que encontraremos Deus, porque nem sua maldade nem

a maldade de cada ser humano pode separá-lo do amor de Deus!”

Marcinho deu um berro gutural, como se um ser maior e mais forte

tivesse se apossado dele e disparou sua metralhadora, “Você é uma

puta e me diz isso? ‘O evangelho segundo a putaria’, hahaha! Quer

dizer então que cada trepada que você dá com cada desgraçado que

lhe paga é uma manifestação do amor de Deus? Então eu quero que o

universo inteiro se exploda, desde que eu possa continuar trepando!

Ha ha ha! E tem mais, eu vou alugar uma van e estuprar todas as

mulheres que encontrar pelo caminho. Eu desafio Deus a me impedir

de cometer tal crime! Eu O desafio! Se Ele é o bem absoluto, Ele tem

o dever de me impedir! Já estou avisando que vou fazer e que vou

fazer por pura maldade e satisfação de meus desejos, ou seja, um

crime sem perdão! Eu quero apenas destruir o que é belo, o que é

agradável, aquilo que é criação divina, e se Deus não me impedir, eu

serei Deus! Eu sou a lei! Eu sou a porra da lei!”.

E todos olhavam Marcinho com uma espécie de admiração bizarra,

pela força espiritual-energética de seu discurso, calando toda e

qualquer possibilidade de manifestação humana naquele sórdido

quarto de motel, inclusive as sexuais, depois da última brochada do

último guerreiro que ainda esperava pela continuação da orgia. Mas a

puta, mesmo intimidada, ainda soltou umas poucas palavras, “Você é

um escroto! Não sabe porra nenhuma da graça de Deus e fica

vomitando suas frustrações e seus demônios em cima de mim!”, e a

puta começou a vestir a roupa com ansiedade porque estava

atormentada com as palavras de Marcinho; sua irreverência a indignou

e ela queria sair daquele quarto maldito.

Marcinho a puxou pelo braço e “vem pra cá meu bem, não consegue

ouvir umas verdades?”, ela o repeliu e disse “isso não é a verdade!

Você não sabe de porra nenhuma da Verdade!”, e continuou se

vestindo, e ele falou, “então me diga qual é a verdade! Me diga você:

qual é a Verdade? Atenção todos os habitantes do planeta: uma puta

nos revelará ‘A Verdade’!”, e o tom de ironia de Marcinho era tão

odioso, tão desprezível, que a puta parou de se vestir; estava de

calcinha e sapato de salto, seus grandes seios pareciam encarar

Marcinho com ódio assim como seu olhar, ela respirou fundo, seus

olhos encheram de lágrimas e falou em tom de profecia lamuriosa,

“Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias;

e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes,

e Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que

não são, para aniquilar as que são! Porque a loucura de Deus é mais

sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os

homens”.

Marcinho arregalou os olhos, riu freneticamente de deboche até se

cansar, enquanto todos o olhavam, tendo reações diversas ao seu

surto, e ele continuou a disparar contra a puta e contra a existência:

“Se a liberdade de optar por seu Deus tiver algum significado, a

liberdade de recusá-lo deve existir igualmente. Eu o recuso e assumo

as consequências dessa escolha! O Deus que eu conheço é mau como

eu”, e a puta, “então escolheu sua própria desgraça! Vá e viva sua

liberdade, porque só cometendo o mal e experimentando a desgraça é

que irás compreender a profundidade de sua liberdade”.

A puta, que já tinha se vestido completamente, saiu andando em

direção à porta da suíte sem cobrar o dinheiro do programa a

Marcinho, que correu e pegou um chumaço de dinheiro em sua calça

jeans e o jogou com força nas costas da prostituta, que parou. Ela

olhou para trás, contemplou o dinheiro no chão já meio espalhado pelo

impacto, enquanto Marcinho se aproximou ficando a meia distância;

“E aí puta, não vai pegar o dinheiro?”, e a prostituta sabia que tinha

direito àquele dinheiro, ou pelo menos parte dele, pois trabalhou duro

quase a noite toda aguentando aqueles idiotas e suas infantilidades,

além de suportar pacientemente a necessidade que eles sentiam de

estabelecer o tempo todo relações de poder, esfregando dinheiro na

cara delas, esfregando o pau na cara delas por minutos intermináveis.

Aquele sofrimento todo tinha que render pelo menos algum dinheiro,

e ela pensava que aqueles filhos-da-puta tinham que arrancar o

dinheiro do bolso pra recompensá-la. Apenas o justo! Mas ela estava

tão enojada de Marcinho e seus amigos, que não queria aquele

dinheiro. Sua vontade era dizer ‘enfia no cu!’, mas aquele belo

chumaço de grana bem diante de seus pés era tentador. ‘Dinheiro não

tem dono nem personalidade. Dinheiro é neutro. Depois de cair no

chão, o dinheiro não tem dono, então não é mais desses filhos-da-

puta’, pensou ela num átimo de segundo tentando justificar para si

mesma sua vontade desesperada de pegar o dinheiro.

Todos a olhavam e esperavam sua reação, uma plateia nua e estática,

chocados com a cena e esperando seu desenrolar. Marcinho provocou

ainda mais a prostituta, “Não vai pegar o dinheiro, puta? Você não faz

qualquer coisa por ele? Quem não faz qualquer coisa por ele?

Hahahahaha”, e riu freneticamente enquanto a prostituta permaneceu

parada, sem movimento nenhum. “No seu caso”, continuou Marcinho,

“você trabalhou e deve receber o que merece! Não é amor ao dinheiro,

é apenas justiça com o trabalhador! Você não é uma prestadora de

serviços? Então não há nada de errado em aceitá-lo”, e o tom de

Marcinho já era quase educado, compreensivo, chegava a ser

persuasivo de tão doce que foi se tornando nas últimas palavras.

A prostituta não suportou a tentação e abaixou-se para juntar o

chumaço de dinheiro espalhado no chão da suíte; Marcinho observava

a cena com ansiedade, esperava ela concluir a ação para reagir, e

quando ela colocou o dinheiro na bolsa, ele deu um grito,

“Ráááááááááá, eu sabia!”, e começou a cantar em tom de música

infantil, “Puta, puta, todo ser humano é uma puta! Puta, puta, todo ser

humano é uma puta!”, e passou a chutar a bunda da prostituta até que

ela saísse da suíte.

Desde então, esse tipo de atitude passou a ser rotina na vida de

Marcinho, que não cabia dentro de si de tão surtado e deslumbrado

que ficou com o poder, mas seus dois amigos, que também estavam na

orgia, o conheciam desde a infância e não conheciam esse traço de sua

personalidade; Marcinho gostava de tirar onda e desde a infância

inventava sempre algumas mentiras para dar veracidade às suas

estórias, mas tratar a prostituta daquela maneira, e depois quase todos

os humanos da mesma maneira, foi algo que os chocou; além da

heresia religiosa que Marcinho tinha cometido, pois apesar de seus

amigos serem bandidos e não temerem as autoridades humanas, que

estavam prestes a derrubar, eram religiosos e temiam a Deus, e aquele

desrespeito os abalou muito. Passaram a acreditar que Deus se voltaria

contra o Movimento e castigaria a todos pelas blasfêmias de

Marcinho, proporcionando-nos a derrota diante da tentativa de tomada

do poder. Em suas mentes, Deus era vingativo e se abalava com os

xingamentos humanos, e por isso nos relegaria ao fracasso e até à

morte.

Começaram a espalhar essa notícia, de que Marcinho havia incitado a

ira de Deus, e que agora o Movimento seria derrotado, e isso acabou

abalando certos setores do Movimento, pois nosso exército era todo

feito de pessoas simples, humildes e que acreditavam piamente na

castigo divino, e justamente no momento mais crítico de nossos

planos, em que precisávamos não só dos braços de nossos liderados,

mas de todo o seu ser, sua fé, sua confiança e sua determinação.

Para resolver o problema, Marcinho chamou Éder para juntos

matarem os dois sujeitos criadores da confusão, sem aprovação de

ninguém do Movimento, mas Marcinho já estava tão cheio de si e tão

confiante em sua ascensão ao cargo de líder, que já tomava decisões

sérias sem perguntar nada a ninguém. Éder, a princípio, recusou-se a

ajuda-lo e disse que jamais mataria amigos de infância. Marcinho o

pressionou e, “Porra, você vai amarelar justamente na hora que o

Movimento mais precisa de você? Esses caras são só carvão que

vamos jogar no fogo pra aumentar a fé das pessoas! Como você sabe,

meu brother, alguns sacrifícios precisam ser feitos para chegarmos ao

nosso objetivo...”, e Marcinho tinha o poder de infundir sua percepção

em quase qualquer pessoa, conversar com ele era como participar de

um ritual macabro e suas palavras estavam além da persuasão racional

a que todos estamos acostumados.

Éder, que para chegar até ali e matar muitas pessoas como tinha feito

na tomada das bocas, tinha se viciado profundamente em cocaína, que

era o que lhe dava coragem de fazer o que sua consciência

recriminava; é claro que a cocaína, por si só, não o levava a fazer

nada, mas Éder, já resolvido a matar em sua consciência, utilizava um

estimulante que o auxiliasse a realizar seus intentos. Poderia ter usado

café e açúcar, as drogas estimulantes que levaram os europeus a cruzar

os oceanos ,colonizar muitos territórios e escravizar muitas vidas

apenas pra sentirem o maldito líquido preto descer quente e açucarado

em suas gargantas e estimular suas mentes malignas a lutarem por

mais poder e mais opressão; mas no nosso contexto pós-moderno, café

era bebida de trabalhador escravo e estimulava o burro de carga a

apenas cumprir as ordens, além de lhe causar úlceras.

O fato é que suas escolhas prévias, somadas ao uso constante de

cocaína, tinham distorcido alguns traços de sua personalidade e Éder,

apesar de preservar certas sutilezas intelectuais que o tornavam mais

refinado que a maioria, agora já era muito mais cruel do que quando

da criação do Movimento.

“Eles nem são mais nossos amigos”, continuou Marcinho, “são ratos,

como qualquer um de nós, buscando devorar algumas migalhas que

caem da mesa dos ricos; nesse mundo ninguém é amigo de ninguém,

todo mundo nasce sozinho, vive sozinho e morre sozinho. Mesmo

com um monte de gente ao seu redor, você está sempre sozinho... cada

um só se relaciona com o outro pra satisfazer suas próprias vontades”.

Éder ainda tinha um resquício de consciência que lhe sobrara e ao qual

ele tentava se agarrar desesperadamente, tentando dar um sentido

menos bruto à sua existência. Ainda não estava pronto para ir tão

longe quanto Marcinho, que jamais se apegou a qualquer princípio ou

valor. Éder deu as costas a Marcinho e saiu andando, negando a

proposta sangrenta que ele acabara de lhe fazer; “Quando voltar, volte

com sua arma e sem sua viadagem”, disse Marcinho por fim, e Éder

saiu carregando a energia pesada de suas palavras.

Chegando em casa, Éder encontrou parte de sua família reunida na

sala de casa, uma atmosfera sombria, quase de luto pairava sobre

aquele ambiente e quando olhou para sua avó, seu olhar transparecia

um julgamento cristão pseudopiedoso, como sempre acontecia nas

reuniões convocadas por sua avó, reuniões de massacre moral-

religioso, onde ela podia desaguar todo o amargor de seus quarenta

anos de escravidão espiritual dentro daquela prisão que era sua igreja

evangélica neopentecostal.

Éder olhou no fundo da sala e percebeu a presença dos dois ex-

membros do Movimento que haviam espalhado a notícia de que Deus

abandonara o Movimento, e agora, apenas alguns dias após estarem na

orgia com Marcinho, já tinham voltado para suas igrejas e naquele

momento participavam de sua inquisição. Éder viu que a reunião tinha

o objetivo de persuadi-lo a sair do Movimento, e apesar de todos ali

terem aproveitado durante alguns anos as benesses que Éder lhes

oferecia através do Movimento, e com isso terem adquirido carro,

casa, além de um bairro que parecia um principado, agora que não

precisavam mais dos favores do Movimento, resolveram confrontar

Éder e suas escolhas.

Sua avó o olhou como o sumo sacerdote Caifás deve ter olhado para

Jesus e disparou, “Éder, meu filho, queres partilhar o inferno com

Satanás? A palavra de Deus é severa, e diz que ‘os que se assentam na

roda dos escarnecedores, serão destruídos’! Meu filho, saia dessa

escravidão do demônio na sua vida, abandone de uma vez essa vida

degradante de bandidagem e crime, de orgias e blasfêmias...”, sua avó

estava apenas começando seu discurso, um discurso que havia

começado em tom de piedade, mas que já estava se transformando

num julgamento impiedoso, com direito a muitas citações bíblicas fora

de contexto e com o objetivo de gerar culpa no réu, mas Éder, alterado

da cocaína que havia acabado de cheirar antes de entrar em casa,

colocou sua voz a serviço de seu ímpeto alterado e soltou toda a raiva

acumulada durante anos pela opressão religiosa e disparou,

“Escravidão? Eu sou o escravo aqui? A senhora se considera livre, vó?

A senhora se considera desapegada? Livre e desapegado é quem lava

os pés dos marginais e dos fodidos, sem show e sem circo. Seu pastor

é o representante de Cristo? Aquele cabaço de terno e gravata, que só

sabe berrar e conduzir aquele bando de ovelhas na força do grito?

Então eu o desafio a lavar meus pés! Eu desafio aquele ‘homem de

deus’ a fazer como seu ‘mestre’! Isso ele não faz, mas deixar que

gente burra como você beije suas mãos, isso ele deixa! Eu é que não

beijo aquelas mãos sujas de corrupção...”.

Éder estava alterado, mas ainda mantinha-se dentro de certos limites,

não tinha surtado, e sua mãe interveio indignada e ofendida, “que

blasfêmia imperdoável meu filho! Que pecado mortal!”, berrou

desesperada para Éder enquanto sua tia segurava a avó que começara a

se sentir mal, sentir pontadas no peito e visão escura.

As pessoas, incluindo os dois ex-membros do Movimento, começaram

a se mexer para ajudar a avó de Éder, tentaram pegá-la no colo e dar-

lhe um copo d’água, mas Éder continuou sua investida, e a pulsão

indomável que agora o possuía não teria pena nem da própria avó,

“Pra esse carnaval que vocês montaram aqui, eu vim fantasiado de

realidade! E digo mais: a mensagem de Jesus é muito bonita, muito

legal, mas Cristo só pode ser um mito, porque sua mensagem é

impraticável! Nesses dois mil anos de história depois de Cristo, não

existiu quase ninguém parecido com ele, e olha que o mundo está

abarrotado de cristãos; a verdade mais óbvia, mas que ninguém quer

assumir é que, tirando meia dúzia de indivíduos que entenderam e

vivenciaram a mensagem, tendo a cara de Cristo, o resto ficou mais

feio que o diabo! Olho pra sua cara e vejo o diabo, dona Antônia!

Você é cruel, você oprime os pecadores... o que há de estranho no

crime? O que há de estranho no pecado? Jesus não foi chamado de

amigo dos pecadores? Somos todos criminosos, somos todos

pecadores vagabundos! Já ouviu falar da graça divina? Fala velha! Vai

ficar com essa cara de assustada ou vai falar?”, e sua avó quase não

respirava de terror e também porque seu coração começava a falhar.

Aquela mulher velha, dura e impiedosa, sentia a energia pesada e a

vibração densa que fluía de Éder, sentia uma familiaridade com aquela

energia, sabia que aquilo a havia acompanhado durante toda a vida, só

não tinha sentido ainda aquela energia direcionada contra ela. “Cadê o

seu amor?”, continuou Éder, “Não é disso que Jesus falava? Não é

disso, porra? Não é disso, caralho? Pra que ficar a vida toda com o

cabresto da religião, se o único mandamento que Jesus deixou nem

você e nem ninguém daquela porra de religião que você frequenta há

décadas conseguiu cumprir? Caralho, caralho!”, e sua avó começou a

estrebuchar e a ter convulsões fortes e as pessoas de sua casa já

gritavam de desespero e iam sair atrás de ajuda, de uma ambulância,

mas Éder tirou a arma da cintura e deu um tiro no teto, assustando a

todos, e disse: “Ninguém sai daqui, porra! Ninguém sai daqui,

caralho! Se ela tiver que morrer porque ouviu a verdade, que morra!”

e se dirigiu à sua avó falando alto e com firmeza e apontando o dedo

na cara contorcida da velha “não foi seu Deus quem te deu a vida?

Então peça a Ele que a poupe! Não vou deixar nenhum médico

interferir no seu diálogo com o divino!”.

Estavam todos desesperados com a situação, mas ninguém ousava sair

da sala; Éder empunhava sua arma enquanto sua avó convulsionava

com os olhos esbugalhados, os dedos torcidos e a boca torta babando;

sua agonia era quase palpável e impregnava o ambiente tornando o ar

pesado; sua mãe se agarrava às suas pernas com histeria, mas o ímpeto

de suas pupilas excessivamente dilatadas fizeram-no permanecer

firme em sua cruel determinação. Não sentia piedade de sua avó,

queria apenas tratá-la como ela tratava a todos com quem se

relacionava, com um legalismo sem piedade.

Enquanto sua avó se despedia de nosso mundo, Éder a olhava nos

olhos, já sem reparar o desespero ao redor, olhava apenas dentro de

seus olhos e percebia que a alma de sua avó se encaminhava para um

lugar de agonia; ele esfregou os olhos e passou a mão no rosto

tentando identificar se essa percepção era verdadeira ou se era fruto da

interação de sua mente com a cocaína, mas os olhos de sua avó, que

pareciam mirar outra dimensão, expressavam desespero, o desespero

de quem se vê presa na teia de maldade que teceu ao longo da vida e

que agora a arrastava inevitavelmente para as trevas, pelo simples fato

de ser o único caminho existencial conhecido e percorrido por ela.

Éder sentia sua avó ser sugada pelo inferno que ela mesma criara, e

por alguns instantes se sentiu atraído por aquelas densas trevas; sentia

a familiaridade daquela energia, sabia que ele também estava criando

seu próprio inferno e começava a ser sugado por ele.

Todos assistiram aterrorizados ao falecimento bizarro de dona Antônia

e à frieza de Éder, sem nada ousarem fazer contra sua ordem e a

ameaça de sua arma. Depois de constatada a morte, Éder ainda falou

“seja feita a vontade de Deus!”, em tom de solenidade irônica, porém

muito sério e olhando nos olhos de todos; apontou a arma para a

cabeça de um dos ex-membros do Movimento e ordenou aos dois

“Vamos sair daqui”, desvencilhou-se de sua mãe, e saiu atrás de seus

ex-amigos. Chegando lá fora, antes mesmo de chegar ao portão deu

um tiro na nuca de cada um e sentiu o sangue de ambos espirrar em

seu rosto, viu ambos os corpos desabarem inertes na sua frente e

encheu-se duma energia ainda mais avassaladora. Aqueles três

assassinatos que acabara de cometer pareciam ter-lhe dado acesso aos

portões dimensionais do inferno, ou dado acesso ao inferno para

penetrar sua existência interior, e toda aquela densidade espiritual

pesava-lhe nos ombros.

Ele olhou para a rua e algumas pessoas espiavam pelas janelas e

portas semiabertas de suas casas, afinal tinham ouvido dois disparos

de arma num bairro em que isso já estava extinto há pelo menos

quatro anos; há quatro anos a polícia não oprimia os moradores do

bairro, há quatro anos não se ouvia tiroteio, antes tão comuns e

rotineiros.

Éder abriu o portão e saiu para a rua, andou alguns metros e viu

Marcinho andando em sua direção; ele tinha ouvido os tiros e saiu pra

ver o que era e logo percebeu que Éder havia feito algo. Quando se

aproximaram, Éder foi logo dizendo “enviei mais cedo para o inferno

aqueles que já tinham lugar garantido”, Marcinho abriu um sorriso

maligno e abraçou Éder com força; olhou para ele e disse “Somos

irmãos, como sempre foi” e o olhar de Éder era grave e distante, sentia

o peso existencial do que acabara de fazer; Marcinho o sacudiu pelo

braço e disse “vamos sumir com esses corpos e vamos sair daqui por

uns dias”, mas Éder não tinha reação e começou a suar

abundantemente; passou a mão na testa, levantou seus olhos

vermelhos em direção a Marcinho, “e agora, o que mais me resta

experimentar? Em que buraco me falta entrar?”.

A rua já começava a encher de gente pra ver os dois corpos enquanto

Marcinho tentava convencer Éder a esconder os corpos e sumir junto

com ele; ele tirou sua arma da cintura e deu três tiros para o alto e as

pessoas se dispersaram imediatamente, sem chegarem a identificar

quem eram os mortos.

Marcinho correu até seu carro, que estava na rua de trás, colocou-o em

frente à casa de Éder; a família de Éder já tinha saído da casa para

chamar uma ambulância e estavam horrorizados com os corpos na

beira do portão. Marcinho chegou armado apavorando quem estivesse

em sua frente, mandou que todos saíssem e todos desapareceram dali;

ele pegou os dois corpos, colocou-os no porta-malas, puxou Éder pelo

braço e saíram dali.

Entrando no carro, Marcinho acelerou pra fora da cidade e Éder

começou a desabafar com Marcinho, “É tudo como correr atrás do

vento... estamos todos correndo atrás do vento! Eu fico pensando no

Eike Batista que queria ser o homem mais rico do mundo, ou no Edir

Macedo querendo ser o mais poderoso... penso em todos esses filhos-

da-puta que tem seu umbigo como centro do universo e me pergunto:

e depois? O que mais eles podem querer? Qual é o limite da ganância?

E se ela não tiver limites? Onde poderemos chegar? Mano, onde foi

que nós chegamos? Que porra de inferno é esse que vivemos?”

Marcinho: “Mano, nós não criamos o inferno, nós apenas o habitamos;

mas isso teve suas vantagens: nós não temos medo de morrer, pois já

estamos mortos! Esses filhos-da-puta é que têm medo de morrer, nós

não. Nós somos homens-bomba e a favela tem cem mil homens-

bomba… Já somos uma outra espécie, somos híbridos, diferentes dos

cidadãos ‘normais’; a morte pra eles é um drama cristão numa cama,

no ataque do coração, no câncer que mata devagar… A morte pra nós

sempre foi o presunto diário desovado numa vala… O povo não clama

por Justiça? Pois é, chegamos! Somos nós! Somos os justiceiros do

pó! Somos o sinal dos novos tempos, os cavaleiros do apocalipse!

Éramos pobres e invisíveis, a mídia e o governo nunca nos olhou...

pobre só aparecia nos desabamentos ou nos incêndios criminosos nos

nossos barracos, ou nas estatísticas da guerra às drogas; favela só

servia pra comprar droga e matar pobre... E agora, mano, agora

estamos ricos com a multinacional do pó, e esses filhos-da-puta estão

morrendo de medo… agora o inferno subirá à Terra e os demônios

dominarão os homens! Sempre fomos brutos, e agora somos brutos e

inteligentes! Estudamos junto com os soldados, lembra? Maria nos fez

ler Maquiavel e Hobbes, lemos até Shakespeare, lembra?

‘Cavalheiros, a vida é muito curta... Se nós vivemos, vivamos para

pisar a cabeça dos reis!’, lembra Éder?”, e Marcinho se lembrava com

certa nostalgia dos momentos que descrevia, “mano, somos estranhas

anomalias do desenvolvimento torto desse país... Não tem mais

vítimas, nem simples bandidos, ou infelizes, ou explorados, há uma

outra coisa crescendo aqui na periferia, cultivada na lama, se

educando no analfabetismo, se diplomando nos becos e nas cadeias,

como um demônio escondido e sendo alimentado... Nós somos a

geração mutante!”.

Éder estava de cabeça baixa e sua consciência parecia esmagá-lo;

olhou para Marcinho e, mesmo depois desse discurso encorajador,

disse “Nós adoecemos junto com essa sociedade podre... nós ouvimos

falar do amor e tentamos viver como se nada soubéssemos. É

impossível conhecer a verdade eterna e não ser atormentado...”.

Marcinho, um pouco impaciente, puxou Éder pela mandíbula e fê-lo

olhar em seus olhos e “Mano, vamos foder essa porra toda, vamos

arrombar todas as portas, extrapolar todos os limites, arrancar todos os

freios dos nossos desejos e excitar nossas vontades! Vamos meter

fogo na porra toda! Seremos os imperadores do Brasil! Esqueça Cristo

e a porra toda do amor e vamos dominar esse puteiro e matar os

cafetões, hahaha!”, e Éder, ainda abatido e olhando para o chão,

balbuciou, “Mas deve haver outra solução... a guerra não pode ser a

única solução...”. Marcinho, irritado com a passividade de Éder, deu-

lhe um ultimato: “Porra Éder, caralho, vai tomar no cu! Você acaba de

matar duas pessoas e já está comprometido com isso tudo até o

pescoço e agora vai ficar sentimental? Agora vai ficar espiritual? Não

tem solução! Estamos todos no centro do Insolúvel! Mas nós vivemos

do Insolúvel, vivemos mergulhados na merda! Perca as esperanças,

estamos todos no inferno, porra!”, e Marcinho acelerou o carro, ligou

o som alto e não deu chance pra que as reflexões de Éder fluíssem pra

fora de si.