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V
Nas bocas (do inferno)
Fechei os olhos com força por alguns segundos que me pareceram
perdidos na eternidade e eu sentia minhas energias irem embora e
voltarem no ritmo da minha pulsação, mas o tempo tinha se
relativizado de modo tão repentino, que minha pulsação ia e vinha
muito lentamente. Meus olhos sentiram um formigamento e em minha
escuridão salpicaram milhares de pequenas luzes, que se tornaram
formas em movimento aleatório; eu sentia o coração sugar e cuspir o
sangue através de seus canais e o sangue fluir até a ponta dos dedos
com muita força e determinação, mas eu sentia isso lentamente e
sentia uma energia se acumular em meus dedos das mãos; eu não
ouvia nada e foi como se meu corpo tivesse se descolado de minha
consciência, uma espécie de interferência ou falha em meu “sistema
operacional” e pela primeira vez eu percebi meu corpo apenas como
um avatar da minha consciência.
Abri os olhos e tinha uma Desert Eagle ponto cinquenta em cada mão
e uma caveira gigante e monstruosa tatuada no antebraço direito e um
demônio muito detalhado e realista tatuado no antebraço esquerdo; eu
olhei infinitamente para as armas, elas eram lindas, prateadas,
brilhantes e aquilo me fascinou, eu parecia entorpecido de sálvia
divinorum e acordei bruscamente com um grito histérico e estridente
de uma menina de uns quinze anos, mulata, magrela e com uma
belíssima bunda se agarrando ao corpo baleado e inerte de um bandido
com naipe de traficantezinho pé-rapado.
Estávamos num beco sujo da periferia de Vitória e um moleque com o
rosto coberto por um lenço no estilo terrorista árabe, os olhos
esbugalhados de pó e um fuzil na mão, me deu um tapa no ombro e
falou com energia e ousadia “Vamos Zumbi! Ainda falta matar o
filho-da-puta do Maurício”, e eu já sabia o que fazer e como agir e fui
logo atrás do moleque; percebi que eu também tinha o lenço árabe
amarrado no rosto e outros três moleques com os mesmos lenços
amarrados no rosto passaram por mim com fuzis e metralhadoras nas
mãos e pareciam seguir alguém que estava à nossa frente. Acelerei
meu passo dentro daquele beco e tinha uma passagem estreita entre os
barracos que dava numa clareira dentro daquele mar de barracos, e lá
se aglomerou, vindo de todos os buracos e becos da favela, o exército
profetizado por Dom: o exército de oprimidos e injustiçados, agora
armados e revoltados.
Aqueles meninos estavam em êxtase por haverem dominado mais
aquela boca de fumo, talvez a mais importante da região, e berravam
frenéticos com as armas apontadas para o céu; todos os rostos estavam
cobertos com aquele lenço e a atmosfera era de ódio alimentado e
retroalimentado pela doutrinação revolucionária; acho que aquele
nosso pelotão, destacado para aquela missão, tinha uns trinta soldados,
além dos outros que cercavam a favela pelo exterior para evitar fugas
ou a entrada da polícia, e nosso comandante era Marcinho; Marcinho
tinha colocado os mais revoltados como chefes de tropa, pra contagiar
todos os outros com sua revolta e ter sempre aqueles meninos com
sangue nos olhos e prontos pra guerra.
Do meio da multidão saiu Maria e era a única que não estava
mascarada; Maria estava com o cabelo curto e estiloso, batom
vermelho e uma nove milímetros na mão esquerda; vestia uma
camiseta de caveira, um short jeans e tinha os braços rabiscados de
tatuagens, parecia uma gansta girl saída de uma revista de moda. Ela
veio em minha direção e me deu um abraço forte, depois me olhou e
falou “Agora falta pouco, Zumbi! Agora, os universitários que o
sistema tentou adestrar e os pobres que o sistema tentou eliminar,
tomarão o poder! Esse ano o mundo vai ouvir falar de nós! Será um
ano histórico! Breton Woods vai cair, a farsa do sistema econômico
vai explodir, o Banco Mundial vai quebrar! Existe melhor momento
do que esse pra tomarmos o poder?”.
Maria comemorava, mas não estava triunfante, nem tinha expressão
de felicidade; o momento era violento demais pra abrir um sorriso;
emoções muito distintas pareciam percorrer seu ser, mas a inevitável
petrificação da consciência também marcava seu olhar. Marcinho
tinha retirado o lenço e, no meio daquele tumulto festivo, tinha
Maurício ajoelhado diante de si.
Maurício era um bandido respeitado na periferia de Vitória, muito
querido pela bandidagem local porque era poderoso e tinha fama de
bondoso, evitava a crueldade gratuita e respeitava as famílias da
favela, mas que depois de certo tempo no comando do tráfico, parece
ter sofrido um leve surto e passou a se auto intitular “O pai da
matéria”; ele ficava sentado na calçada de sua boca de fumo com um
saco de plástico enorme cheio de dinheiro, separando as notas e
empilhando ao seu redor, como se fosse um muro de dinheiro
separando-o do resto do mundo, tal qual um banqueiro de Wall Street.
Depois de ver seu “muro” construído e sentir-se protegido atrás dele,
sentava-se com as pernas cruzadas em posição de lótus, acendia um
charuto cubano, fechava os olhos e dizia quase em transe “eu sou o pai
da matéria!”, e ali ficava por meia hora, às vezes uma hora, até que
acabasse seu transe. Maurício se tornara uma figura emblemática do
poder do tráfico na região e suas excentricidades causavam fascínio e
até um certo orgulho em sua comunidade, por se tornarem lendárias.
No entanto, a hora de Maurício chegara e agora ele estava ajoelhado
diante de Marcinho, que com uma risada debochada apontou a pistola
para a cabeça de Maurício e perguntou “E agora? Quem é o pai da
matéria? Quem é a porra do pai da matéria, seu filho-da-puta?”;
Marcinho olhou nos olhos de todos os seus comandados, que
esperavam uma atitude apoteótica de seu líder, olhou nos olhos de
Maurício e disse “a partir de agora você será conhecido como Finado
Maurício”, e sem hesitação encostou o cano da arma na testa de
Maurício e deu-lhe um tiro que estourou a cabeça e espalhou cérebro e
sangue por todos os lados.
Seus soldados o olharam com admiração e respeito e, apesar do chão
da favela já estar cheio de corpos dos traficantes do lugar, aquela cena
tinha sido monstruosamente mais sinistra e simbólica, pois era a
eliminação de um bandido lendário da periferia sem qualquer
cerimônia. Marcinho olhou novamente para seus soldados, estava com
o rosto respingado de sangue e cérebro, apontou sua arma na direção
deles com o dedo no gatilho que tremia de excitação e berrou com
determinação “Eu sou o assombrador de assombrações! Eu sou a porra
do pai da matéria!”, e seus soldados berraram em êxtase e deram tiros
para o alto em festa pela conquista da última boca de fumo que ainda
não estava sob o comando do Movimento.
Finado Maurício era agora apenas uma lenda e seu crânio estourado
não permitiria nem que as pessoas o vissem pela última vez no caixão;
seria nostalgicamente lembrado pelos moradores da periferia e
principalmente pela bandidagem como um bandido justo e bom,
independente do conceito de justiça e bondade empregado por seus
admiradores. Tinha uma história longa e intensa no controle do tráfico
daquela comunidade e serviu como referência para muitos garotos que
aspiravam seguir carreira no crime, e agora morria ajoelhado de
maneira humilhante.
Marcinho, naquele momento, já era uma figura emblemática, tinha
desenvolvido uma personalidade muito forte e que se impunha aos
demais; assim como acontecia com Dom, as pessoas pareciam se
submeter naturalmente a Marcinho e desejar suas ordens e isso o fazia
sentir-se ainda mais especial e divino. A cena do assassinato de
Maurício ficaria marcada indelevelmente na memória de seus
soldados, e apesar de toda a violência que já vínhamos cometendo
para tomar as bocas de fumo, aquele ato de crueldade e demonstração
de poder perverteu de vez a lógica do Movimento.
Uma espiritualidade densa e pesada pairava como maresia sobre nós e
eu sentia nitidamente essas energias sutis no ar; eu podia respirá-la.
Minhas narinas, não sei se motivadas por minha psique, sentiam um
cheiro leve e constante de enxofre e minhas papilas gustativas estavam
impregnadas de um gosto de ovo podre. É verdade que com o tempo
eu até me acostumei e passei a conviver bem com essas sensações
nauseantes que insistiam em me acompanhar; mas de vez em quando
essa sensação me incomodava, e quando isso acontecia, eu me
esforçava mentalmente para que aquele incômodo se transformasse
em costume, hábito existencial, e esse esforço ia endurecendo e
entorpecendo meu espírito.
Todas as bocas de fumo de Vila Velha já estavam dominadas pelo
Movimento, e agora dominávamos Vitória; o próximo passo seria
dominar o Brasil... e todos no Movimento já estavam prontos para a
fase final da Revolução.
O próximo passo era o mais ambicioso e o mais propício a dar errado,
pois iríamos propor pactos com os traficantes das maiores cidades do
país e enfrentar as forças armadas; esse passo teria que ser muito bem
planejado e executado, pois queríamos realizá-lo em pouco tempo, e
nossa meta eram seis meses. Em seis meses teríamos que fazer
alianças com bandidos de todos os tipos, cada um querendo o máximo
possível de vantagens para fechar qualquer acordo, na mesma lógica
dos políticos filhos-da-puta; depois de cooptá-los, teríamos que
organizar um exército de bandidos e guerrear com as forças armadas
para tomar o poder e estabelecer a nossa própria lógica. Isso talvez
fosse trabalho para alguns anos e com uma enorme chance de
fracasso, mas Dom acreditava poder cavalgar as energias desatadas
pela indignação do povo, tal qual um cavaleiro do apocalipse, e
produzir a revolução baseado em seu carisma e poder de persuasão.
Depois de quatro anos planejando e executando a Revolução, todos
estávamos muito diferentes; a busca pelo poder nos impôs suas regras.
A busca pelo poder parece ter-nos transformado em caricaturas de nós
mesmos, em personagens mal interpretados de nós mesmos, buscando
satisfazer às necessidades de uma entidade faminta de servidão; o
poder nos exigiu uma entrega, uma servidão, um esvaziamento... e
isso se impôs a todos nós.
Maria resolveu terminar a relação com Dom, uma relação que já não a
estimulava e, àquela altura dos acontecimentos revolucionários, todos
buscávamos estímulos o tempo todo pra não deixar o ímpeto
revolucionário enfraquecer. Além disso, ela era independente demais
pra sustentar uma relação estável com Dom; havia uma energia
profunda entre eles, mas mergulhados em todos os acontecimentos e
transformações pelos quais passamos, o que havia de verdadeiro e
espontâneo entre eles se desfez.
Por mais improvável que pudesse parecer, Maria se juntou com
Marcinho sentindo-se fascinada por sua visceralidade dominadora;
diferente de Dom, que vibrava na frequência de um idealismo
político-existencial, Marcinho exalava visceralidade; suas expressões
faciais pareciam talhadas pela realidade, como alguém que
experimentou o pior que a humanidade tem a oferecer e por isso não
nutre nenhum idealismo em relação a nada. Marcinho não enxergava
nada muito além de seus interesses de ascenção, e nos últimos quatro
anos tinha adquirido certo refinamento intelectual, além de
treinamento militar de elite, o que o tornou uma figura extremamente
influente e relevante para o Movimento.
Marcinho circulava pelo submundo do crime e do deboche; tinha
vocação para a bandidagem e cercou-se de uma corte debochada de
parasitas e poderosos famintos por mais poder. Vendia cocaína para
juízes e desembargadores e começou a cooptá-los para nos
infiltrarmos no sistema judiciário. Promovia orgias regadas a muita
cocaína, álcool e prostitutas e acabou seduzindo os poderosos a apoiá-
lo no acobertamento dos negócios ilícitos do Movimento. Marcinho
adquiriu personalidade e grandeza e acabou se distanciando de Éder e
de Dom em seus planos revolucionários. Em Marcinho havia uma
realeza sombria.
O fator determinante para Maria abandonar de vez sua relação com
Dom, foi ela saber que Marcinho tinha feito um pacto com os orixás
visando à conquista do poder; quando soube da informação, as
entranhas de Maria se revolveram, emoções contraditórias a invadiam
e ela já imaginava a cena do pacto: Marcinho rodeado por velas, ao
som tribal de tambores graves frenéticos martelados pelas mãos
calejadas de homens pobres, duros, suando fartamente e exalando
aquele cheiro primitivo dos corpos ainda não completamente
dominados pelos aromas da civilização, num ambiente enfumaçado
pelo charuto de um pai-de-santo possesso pelo espírito do Preto Velho
ou do Exu Caveira, Marcinho todo pintado, com a cabeça raspada em
sinal de sacrifício, etc. Aquilo tudo a excitou, aquela busca profunda
pelo poder que chegava às raias da espiritualidade era algo que a
instigava intimamente. Ela não sabia dizer, e em suas reflexões
acredito que isso nunca tenha ficado muito claro, mas oferecer o
próprio ser como oferta em troca do poder era algo apenas para os
grandes imperadores romanos, apenas para as mentes extraordinárias e
loucas, e isso definitivamente excitava Maria; sua mente fervilhava de
possibilidades de tomada do poder e seus pés ambicionavam pisar o
solo ‘sagrado’ de Brasília, lugar onde se produz, se autoriza e se
legitima a putaria em todas as esferas da vida.
Nesse contexto, o feminismo crítico e libertário de Maria sucumbiu
diante do fascínio pelo poder a qualquer custo representado por
Marcinho, já que o idealismo de Dom, também muito desgastado pela
revolução, parecia isolá-lo cada vez mais.
Maria era muito bonita e charmosa, principalmente aos olhos de
Marcinho, que a percebia como uma burguesinha quase inalcançável,
de pele bem cuidada e muito cheirosa; sabia usar as palavras, ela sabia
o fascínio que causava nele e por isso se rendeu às suas cantadas
brutas e sem criatividade, na intenção de unir forças com aquele que
parecia melhor se encaixar no perfil de líder de uma revolução
armada.
Na verdade, Maria não sabia até onde Dom poderia chegar, não sabia
das transformações que poderiam ocorrer na personalidade de Dom
para que pudesse chegar ao poder. Na verdade, ninguém sabe até onde
pode chegar numa situação-limite, porque a maioria de nós não está
submetida a esse tipo de realidade; a chegada ao poder é uma
possibilidade que se realiza para poucos e esses poucos é que
experimentam as profundas mudanças ocorridas em sua interioridade.
Apesar de Maria acreditar no potencial revolucionário de Dom e em
suas qualidades como líder, ela acreditava que no momento da tomada
do poder seria necessário mais crueldade e sangue frio do que Dom
poderia ter. Marcinho era a figura mais indicada para realizar a
tomada do poder. Em Dom havia resquícios de bondade e idealismo,
planos fantasiosos para nosso país, mas um verdadeiro líder político
deveria ser realista e não idealista, deveria matar ao invés de refletir
sobre o significado da vida, era o que pensava Maria nos últimos
tempos.
Depois que nós dividimos as funções da organização com outros
membros, Dom passou a se dedicar a outras coisas e se tornou um
pouco recluso; dedicava-se a uma pequena plantação de skunk nos
fundos de sua casa, que ele transformou num laboratório de cultivo, e
lá gastava horas; estava sempre de casaco de moletom com capuz na
cabeça, apesar do calor infernal que fazia em Vila Velha, uma calça
larga e um tênis sempre desamarrado, além de um charuto de skunk na
mão, apagado ou aceso, mas sempre entre os dedos. Estudava quase
obcessivamente sobre as estruturas do sistema econômico
internacional e passou a acreditar que, quando chegássemos ao poder
(hipótese que Dom já dava como certa), também conseguiríamos
derrubar o sistema econômico global, que ele chamava de “Assalto
Global Institucionalizado”, em conjunto com Rússia e China, que,
segundo Dom, já se articulavam pra expor a fraude econômica
produzida pelos grandes bancos. Trouxe Paulinha pra morar com ele,
uma prostituta que conheceu no Lady Laura, puteiro famoso de Vila
Velha, e que largou a prostituição logo que se mudou pra casa de
Dom, não por exigência dele, mas porque sentiu que poderia ser a
primeira-dama do tráfico. Paulinha era inteligente e carinhosa e soube
suprir as necessidades de estímulo de Dom, além de respeitá-lo em
seus momentos de reclusão.
Rashid, nosso químico, começou a receber uma porcentagem da venda
do crack que ele produzia e logo se mudou do nosso principado,
alugou um belo apartamento de frente pra Praia da Costa e lá
organizava suas reuniões privadas, com drogas sintéticas, prostitutas
de luxo e música eletrônica underground; evitava qualquer
comprometimento com nossa revolução e queria apenas produzir a
droga, receber a grana e viver do jeito dele.
Já no meu caso, não acredito que as transformações acontecidas
dentro de mim mereçam uma descrição aqui e agora, até mesmo
porque meus pedaços estão espalhados por todo o meu relato. Além
disso, minhas transformações não foram determinantes para afetar os
rumos do Movimento; um pouco diferente do que aconteceu com
Dom e Marcinho.
************************************
Com o poder e a relevância que Marcinho foi adquirindo dentro do
Movimento, foi-se tornando exageradamente egocêntrico, se
entregando a um narcisismo impulsivo, bem típico de quem era
apenas um traficante vendedor de dola de maconha e papelote de
cocaína no varejo, o dinheiro que lhe restava era uma miséria que o
ajudava apenas a sobreviver num bairro sórdido e sem perspectivas.
Agora, no entanto, Marcinho desfrutava de uma prosperidade que
havia sonhado durante toda a sua vida: tinha um carro novo, uma casa
reformada pra morar, dinheiro suficiente pra bancar suas fantasias e
ainda sobrava.
Essa mudança econômica e de status mexeu profundamente com a
cabeça de Marcinho, mostrou-lhe possibilidades jamais antes
imaginadas e que agora ele queria compulsivamente realizar; até
mesmo o pequeno respeito que tinha pelos valores religiosos de sua
mãe católica, desapareceu diante de seu poder egocêntrico emergente,
e uma cena presenciada por dois membros do Movimento foi bastante
ilustrativa desse seu surto egóico: Marcinho alugou uma suíte
gigantesca num motel caro de Vitória, contratou umas prostitutas de
luxo, chamou dois amigos do Movimento e três agentes da lei: um
juiz, um desembargador e um delegado civil; levou muita vodca,
cocaína e maconha e começaram a orgia.
Marcinho, assim como seus colegas representantes da lei, tratava as
prostitutas como mercadorias sem valor, sem considerar qualquer
vontade ou escolha de nenhuma delas; puxavam-nas pelo braço,
pegavam-nas brutalmente pelos cabelos, jogavam-nas na cama, na
banheira e até no chão para submetê-las, humilhá-las, sodomizá-las.
Quando uma delas, que parecia uma princesa nórdica, com belos seios
e uma pele macia e bem cuidada, reclamou do tratamento que estava
recebendo, Marcinho logo disparou, “Você está sendo paga pra fazer o
que eu quiser! Enquanto eu te pagar, você me pertence! Agora fica de
quatro que vou meter nesse cuzinho de menina bem-nascida”.
A excitação de Marcinho e seus colegas da lei vinha muito mais da
relação de dominação que estabeleciam com aquelas mulheres, do que
do sexo em si, e por isso buscaram tanto o lugar de autoridade. No
lugar de autoridade, que tanto lutaram pra chegar nos dificílimos e
concorridíssimos concursos públicos, sentiam que trepavam com o
povo com a mesma intensidade e desrespeito que tinham com as
prostitutas, tratando-as como objetos de seu uso e nada mais, e isso
lhes dava uma sensação enorme de prazer.
Marcinho não era autoridade e não tinha a legitimidade social de seus
colegas importantes, mas o fato de estar promovendo aquela orgia e
bancando tudo para todos, além de ser um dos líderes do Movimento,
fazia com que se sentisse também uma autoridade, não do mesmo
nível de seus colegas, pois ele sentia que sua autoridade não era
legítima, não era reconhecida pelo povo, mas não importava; para
suprir esse falta de legitimidade da qual Marcinho se ressentia, ele
bancava grandes festas e orgias e as regava com muitos entorpecentes.
Nessa orgia específica, ele estava tão alterado de cocaína e vodca, que
sodomizava a prostituta nórdica com tanta força e intensidade que ela
berrou de dor, depois de várias vezes pedir que ele tivesse mais
cuidado: “Meu Deus!!”, foi o grito que ela deu ao se desvencilhar de
Marcinho e sentar nua na cama.
Marcinho olhou para a prostituta com uma raiva inumana, bestial,
agarrou-a pelo pescoço com uma das mãos e, “Deus é o caralho!!
Deus é o caralho!!”, gritou, fazendo chover saliva em todo o rosto dela
e segurando seu pescoço ainda por alguns instantes. Largou-a quase
sem respiração em cima da cama, e nisso toda a orgia parou pra ver o
que acontecia. “Não fale em Deus na minha frente! Se Deus fosse
bom, eu não teria nascido pobre, fodido, sem pai e nem teria morado
no esgoto a vida toda!”, todos nus, alguns ainda excitados, assistiam à
discussão que começara a se tornar intensa entre Marcinho e a
prostituta.
“Você acha que se Deus fosse bom ele deixaria as pessoas sofrerem
tanto e tão intensamente? Você acha que se Deus fosse bom ele
deixaria três filhos-da-puta estuprarem uma pobre menina, na frente
do namorado, durante seis horas seguidas e ainda metendo a porrada
no namorado corno? Escuta aqui puta, Deus é mal igual a nós e nos
fez à sua imagem e semelhança! Por que Deus permitiria isso
acontecer se não fosse pra assistir de camarote? Até mesmo eu, que
sou bruto e atormentado não consigo suportar algo tão criminoso e
absurdo! Como pode Deus, que ‘tem todo o poder’ e que é a ‘bondade
absoluta’, permitir essa porra? Deus é filho-da-puta igual a nós!”, e
olhava para a prostituta com ironia, depois de descarregar o que havia
dentro de si.
A prostituta, indignada e apavorada com o desrespeito de Marcinho,
tanto em relação a ela quanto em relação a Deus, soltou suas palavras
tentando alvejá-lo, “não diga isso, você não sabe o que diz, seu
estúpido! Você acha que se Deus fosse bom, o mundo teria que ser
uma Disneylândia? Não seja idiota!.. o mundo está uma merda por
causa de gente como você, que não assume a responsabilidade pelos
seus atos! Você e os outros estúpidos desse mundo fazem o mal e
culpam Deus por não interferir em sua liberdade? Se Deus interferisse,
então sua liberdade seria uma piada, uma mentira! Você é livre pra
fazer o que quiser e também pra conviver com as consequências do
que fez! Se você transforma a vida das pessoas numa tragédia, é na
tragédia então que encontraremos Deus, porque nem sua maldade nem
a maldade de cada ser humano pode separá-lo do amor de Deus!”
Marcinho deu um berro gutural, como se um ser maior e mais forte
tivesse se apossado dele e disparou sua metralhadora, “Você é uma
puta e me diz isso? ‘O evangelho segundo a putaria’, hahaha! Quer
dizer então que cada trepada que você dá com cada desgraçado que
lhe paga é uma manifestação do amor de Deus? Então eu quero que o
universo inteiro se exploda, desde que eu possa continuar trepando!
Ha ha ha! E tem mais, eu vou alugar uma van e estuprar todas as
mulheres que encontrar pelo caminho. Eu desafio Deus a me impedir
de cometer tal crime! Eu O desafio! Se Ele é o bem absoluto, Ele tem
o dever de me impedir! Já estou avisando que vou fazer e que vou
fazer por pura maldade e satisfação de meus desejos, ou seja, um
crime sem perdão! Eu quero apenas destruir o que é belo, o que é
agradável, aquilo que é criação divina, e se Deus não me impedir, eu
serei Deus! Eu sou a lei! Eu sou a porra da lei!”.
E todos olhavam Marcinho com uma espécie de admiração bizarra,
pela força espiritual-energética de seu discurso, calando toda e
qualquer possibilidade de manifestação humana naquele sórdido
quarto de motel, inclusive as sexuais, depois da última brochada do
último guerreiro que ainda esperava pela continuação da orgia. Mas a
puta, mesmo intimidada, ainda soltou umas poucas palavras, “Você é
um escroto! Não sabe porra nenhuma da graça de Deus e fica
vomitando suas frustrações e seus demônios em cima de mim!”, e a
puta começou a vestir a roupa com ansiedade porque estava
atormentada com as palavras de Marcinho; sua irreverência a indignou
e ela queria sair daquele quarto maldito.
Marcinho a puxou pelo braço e “vem pra cá meu bem, não consegue
ouvir umas verdades?”, ela o repeliu e disse “isso não é a verdade!
Você não sabe de porra nenhuma da Verdade!”, e continuou se
vestindo, e ele falou, “então me diga qual é a verdade! Me diga você:
qual é a Verdade? Atenção todos os habitantes do planeta: uma puta
nos revelará ‘A Verdade’!”, e o tom de ironia de Marcinho era tão
odioso, tão desprezível, que a puta parou de se vestir; estava de
calcinha e sapato de salto, seus grandes seios pareciam encarar
Marcinho com ódio assim como seu olhar, ela respirou fundo, seus
olhos encheram de lágrimas e falou em tom de profecia lamuriosa,
“Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias;
e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes,
e Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que
não são, para aniquilar as que são! Porque a loucura de Deus é mais
sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os
homens”.
Marcinho arregalou os olhos, riu freneticamente de deboche até se
cansar, enquanto todos o olhavam, tendo reações diversas ao seu
surto, e ele continuou a disparar contra a puta e contra a existência:
“Se a liberdade de optar por seu Deus tiver algum significado, a
liberdade de recusá-lo deve existir igualmente. Eu o recuso e assumo
as consequências dessa escolha! O Deus que eu conheço é mau como
eu”, e a puta, “então escolheu sua própria desgraça! Vá e viva sua
liberdade, porque só cometendo o mal e experimentando a desgraça é
que irás compreender a profundidade de sua liberdade”.
A puta, que já tinha se vestido completamente, saiu andando em
direção à porta da suíte sem cobrar o dinheiro do programa a
Marcinho, que correu e pegou um chumaço de dinheiro em sua calça
jeans e o jogou com força nas costas da prostituta, que parou. Ela
olhou para trás, contemplou o dinheiro no chão já meio espalhado pelo
impacto, enquanto Marcinho se aproximou ficando a meia distância;
“E aí puta, não vai pegar o dinheiro?”, e a prostituta sabia que tinha
direito àquele dinheiro, ou pelo menos parte dele, pois trabalhou duro
quase a noite toda aguentando aqueles idiotas e suas infantilidades,
além de suportar pacientemente a necessidade que eles sentiam de
estabelecer o tempo todo relações de poder, esfregando dinheiro na
cara delas, esfregando o pau na cara delas por minutos intermináveis.
Aquele sofrimento todo tinha que render pelo menos algum dinheiro,
e ela pensava que aqueles filhos-da-puta tinham que arrancar o
dinheiro do bolso pra recompensá-la. Apenas o justo! Mas ela estava
tão enojada de Marcinho e seus amigos, que não queria aquele
dinheiro. Sua vontade era dizer ‘enfia no cu!’, mas aquele belo
chumaço de grana bem diante de seus pés era tentador. ‘Dinheiro não
tem dono nem personalidade. Dinheiro é neutro. Depois de cair no
chão, o dinheiro não tem dono, então não é mais desses filhos-da-
puta’, pensou ela num átimo de segundo tentando justificar para si
mesma sua vontade desesperada de pegar o dinheiro.
Todos a olhavam e esperavam sua reação, uma plateia nua e estática,
chocados com a cena e esperando seu desenrolar. Marcinho provocou
ainda mais a prostituta, “Não vai pegar o dinheiro, puta? Você não faz
qualquer coisa por ele? Quem não faz qualquer coisa por ele?
Hahahahaha”, e riu freneticamente enquanto a prostituta permaneceu
parada, sem movimento nenhum. “No seu caso”, continuou Marcinho,
“você trabalhou e deve receber o que merece! Não é amor ao dinheiro,
é apenas justiça com o trabalhador! Você não é uma prestadora de
serviços? Então não há nada de errado em aceitá-lo”, e o tom de
Marcinho já era quase educado, compreensivo, chegava a ser
persuasivo de tão doce que foi se tornando nas últimas palavras.
A prostituta não suportou a tentação e abaixou-se para juntar o
chumaço de dinheiro espalhado no chão da suíte; Marcinho observava
a cena com ansiedade, esperava ela concluir a ação para reagir, e
quando ela colocou o dinheiro na bolsa, ele deu um grito,
“Ráááááááááá, eu sabia!”, e começou a cantar em tom de música
infantil, “Puta, puta, todo ser humano é uma puta! Puta, puta, todo ser
humano é uma puta!”, e passou a chutar a bunda da prostituta até que
ela saísse da suíte.
Desde então, esse tipo de atitude passou a ser rotina na vida de
Marcinho, que não cabia dentro de si de tão surtado e deslumbrado
que ficou com o poder, mas seus dois amigos, que também estavam na
orgia, o conheciam desde a infância e não conheciam esse traço de sua
personalidade; Marcinho gostava de tirar onda e desde a infância
inventava sempre algumas mentiras para dar veracidade às suas
estórias, mas tratar a prostituta daquela maneira, e depois quase todos
os humanos da mesma maneira, foi algo que os chocou; além da
heresia religiosa que Marcinho tinha cometido, pois apesar de seus
amigos serem bandidos e não temerem as autoridades humanas, que
estavam prestes a derrubar, eram religiosos e temiam a Deus, e aquele
desrespeito os abalou muito. Passaram a acreditar que Deus se voltaria
contra o Movimento e castigaria a todos pelas blasfêmias de
Marcinho, proporcionando-nos a derrota diante da tentativa de tomada
do poder. Em suas mentes, Deus era vingativo e se abalava com os
xingamentos humanos, e por isso nos relegaria ao fracasso e até à
morte.
Começaram a espalhar essa notícia, de que Marcinho havia incitado a
ira de Deus, e que agora o Movimento seria derrotado, e isso acabou
abalando certos setores do Movimento, pois nosso exército era todo
feito de pessoas simples, humildes e que acreditavam piamente na
castigo divino, e justamente no momento mais crítico de nossos
planos, em que precisávamos não só dos braços de nossos liderados,
mas de todo o seu ser, sua fé, sua confiança e sua determinação.
Para resolver o problema, Marcinho chamou Éder para juntos
matarem os dois sujeitos criadores da confusão, sem aprovação de
ninguém do Movimento, mas Marcinho já estava tão cheio de si e tão
confiante em sua ascensão ao cargo de líder, que já tomava decisões
sérias sem perguntar nada a ninguém. Éder, a princípio, recusou-se a
ajuda-lo e disse que jamais mataria amigos de infância. Marcinho o
pressionou e, “Porra, você vai amarelar justamente na hora que o
Movimento mais precisa de você? Esses caras são só carvão que
vamos jogar no fogo pra aumentar a fé das pessoas! Como você sabe,
meu brother, alguns sacrifícios precisam ser feitos para chegarmos ao
nosso objetivo...”, e Marcinho tinha o poder de infundir sua percepção
em quase qualquer pessoa, conversar com ele era como participar de
um ritual macabro e suas palavras estavam além da persuasão racional
a que todos estamos acostumados.
Éder, que para chegar até ali e matar muitas pessoas como tinha feito
na tomada das bocas, tinha se viciado profundamente em cocaína, que
era o que lhe dava coragem de fazer o que sua consciência
recriminava; é claro que a cocaína, por si só, não o levava a fazer
nada, mas Éder, já resolvido a matar em sua consciência, utilizava um
estimulante que o auxiliasse a realizar seus intentos. Poderia ter usado
café e açúcar, as drogas estimulantes que levaram os europeus a cruzar
os oceanos ,colonizar muitos territórios e escravizar muitas vidas
apenas pra sentirem o maldito líquido preto descer quente e açucarado
em suas gargantas e estimular suas mentes malignas a lutarem por
mais poder e mais opressão; mas no nosso contexto pós-moderno, café
era bebida de trabalhador escravo e estimulava o burro de carga a
apenas cumprir as ordens, além de lhe causar úlceras.
O fato é que suas escolhas prévias, somadas ao uso constante de
cocaína, tinham distorcido alguns traços de sua personalidade e Éder,
apesar de preservar certas sutilezas intelectuais que o tornavam mais
refinado que a maioria, agora já era muito mais cruel do que quando
da criação do Movimento.
“Eles nem são mais nossos amigos”, continuou Marcinho, “são ratos,
como qualquer um de nós, buscando devorar algumas migalhas que
caem da mesa dos ricos; nesse mundo ninguém é amigo de ninguém,
todo mundo nasce sozinho, vive sozinho e morre sozinho. Mesmo
com um monte de gente ao seu redor, você está sempre sozinho... cada
um só se relaciona com o outro pra satisfazer suas próprias vontades”.
Éder ainda tinha um resquício de consciência que lhe sobrara e ao qual
ele tentava se agarrar desesperadamente, tentando dar um sentido
menos bruto à sua existência. Ainda não estava pronto para ir tão
longe quanto Marcinho, que jamais se apegou a qualquer princípio ou
valor. Éder deu as costas a Marcinho e saiu andando, negando a
proposta sangrenta que ele acabara de lhe fazer; “Quando voltar, volte
com sua arma e sem sua viadagem”, disse Marcinho por fim, e Éder
saiu carregando a energia pesada de suas palavras.
Chegando em casa, Éder encontrou parte de sua família reunida na
sala de casa, uma atmosfera sombria, quase de luto pairava sobre
aquele ambiente e quando olhou para sua avó, seu olhar transparecia
um julgamento cristão pseudopiedoso, como sempre acontecia nas
reuniões convocadas por sua avó, reuniões de massacre moral-
religioso, onde ela podia desaguar todo o amargor de seus quarenta
anos de escravidão espiritual dentro daquela prisão que era sua igreja
evangélica neopentecostal.
Éder olhou no fundo da sala e percebeu a presença dos dois ex-
membros do Movimento que haviam espalhado a notícia de que Deus
abandonara o Movimento, e agora, apenas alguns dias após estarem na
orgia com Marcinho, já tinham voltado para suas igrejas e naquele
momento participavam de sua inquisição. Éder viu que a reunião tinha
o objetivo de persuadi-lo a sair do Movimento, e apesar de todos ali
terem aproveitado durante alguns anos as benesses que Éder lhes
oferecia através do Movimento, e com isso terem adquirido carro,
casa, além de um bairro que parecia um principado, agora que não
precisavam mais dos favores do Movimento, resolveram confrontar
Éder e suas escolhas.
Sua avó o olhou como o sumo sacerdote Caifás deve ter olhado para
Jesus e disparou, “Éder, meu filho, queres partilhar o inferno com
Satanás? A palavra de Deus é severa, e diz que ‘os que se assentam na
roda dos escarnecedores, serão destruídos’! Meu filho, saia dessa
escravidão do demônio na sua vida, abandone de uma vez essa vida
degradante de bandidagem e crime, de orgias e blasfêmias...”, sua avó
estava apenas começando seu discurso, um discurso que havia
começado em tom de piedade, mas que já estava se transformando
num julgamento impiedoso, com direito a muitas citações bíblicas fora
de contexto e com o objetivo de gerar culpa no réu, mas Éder, alterado
da cocaína que havia acabado de cheirar antes de entrar em casa,
colocou sua voz a serviço de seu ímpeto alterado e soltou toda a raiva
acumulada durante anos pela opressão religiosa e disparou,
“Escravidão? Eu sou o escravo aqui? A senhora se considera livre, vó?
A senhora se considera desapegada? Livre e desapegado é quem lava
os pés dos marginais e dos fodidos, sem show e sem circo. Seu pastor
é o representante de Cristo? Aquele cabaço de terno e gravata, que só
sabe berrar e conduzir aquele bando de ovelhas na força do grito?
Então eu o desafio a lavar meus pés! Eu desafio aquele ‘homem de
deus’ a fazer como seu ‘mestre’! Isso ele não faz, mas deixar que
gente burra como você beije suas mãos, isso ele deixa! Eu é que não
beijo aquelas mãos sujas de corrupção...”.
Éder estava alterado, mas ainda mantinha-se dentro de certos limites,
não tinha surtado, e sua mãe interveio indignada e ofendida, “que
blasfêmia imperdoável meu filho! Que pecado mortal!”, berrou
desesperada para Éder enquanto sua tia segurava a avó que começara a
se sentir mal, sentir pontadas no peito e visão escura.
As pessoas, incluindo os dois ex-membros do Movimento, começaram
a se mexer para ajudar a avó de Éder, tentaram pegá-la no colo e dar-
lhe um copo d’água, mas Éder continuou sua investida, e a pulsão
indomável que agora o possuía não teria pena nem da própria avó,
“Pra esse carnaval que vocês montaram aqui, eu vim fantasiado de
realidade! E digo mais: a mensagem de Jesus é muito bonita, muito
legal, mas Cristo só pode ser um mito, porque sua mensagem é
impraticável! Nesses dois mil anos de história depois de Cristo, não
existiu quase ninguém parecido com ele, e olha que o mundo está
abarrotado de cristãos; a verdade mais óbvia, mas que ninguém quer
assumir é que, tirando meia dúzia de indivíduos que entenderam e
vivenciaram a mensagem, tendo a cara de Cristo, o resto ficou mais
feio que o diabo! Olho pra sua cara e vejo o diabo, dona Antônia!
Você é cruel, você oprime os pecadores... o que há de estranho no
crime? O que há de estranho no pecado? Jesus não foi chamado de
amigo dos pecadores? Somos todos criminosos, somos todos
pecadores vagabundos! Já ouviu falar da graça divina? Fala velha! Vai
ficar com essa cara de assustada ou vai falar?”, e sua avó quase não
respirava de terror e também porque seu coração começava a falhar.
Aquela mulher velha, dura e impiedosa, sentia a energia pesada e a
vibração densa que fluía de Éder, sentia uma familiaridade com aquela
energia, sabia que aquilo a havia acompanhado durante toda a vida, só
não tinha sentido ainda aquela energia direcionada contra ela. “Cadê o
seu amor?”, continuou Éder, “Não é disso que Jesus falava? Não é
disso, porra? Não é disso, caralho? Pra que ficar a vida toda com o
cabresto da religião, se o único mandamento que Jesus deixou nem
você e nem ninguém daquela porra de religião que você frequenta há
décadas conseguiu cumprir? Caralho, caralho!”, e sua avó começou a
estrebuchar e a ter convulsões fortes e as pessoas de sua casa já
gritavam de desespero e iam sair atrás de ajuda, de uma ambulância,
mas Éder tirou a arma da cintura e deu um tiro no teto, assustando a
todos, e disse: “Ninguém sai daqui, porra! Ninguém sai daqui,
caralho! Se ela tiver que morrer porque ouviu a verdade, que morra!”
e se dirigiu à sua avó falando alto e com firmeza e apontando o dedo
na cara contorcida da velha “não foi seu Deus quem te deu a vida?
Então peça a Ele que a poupe! Não vou deixar nenhum médico
interferir no seu diálogo com o divino!”.
Estavam todos desesperados com a situação, mas ninguém ousava sair
da sala; Éder empunhava sua arma enquanto sua avó convulsionava
com os olhos esbugalhados, os dedos torcidos e a boca torta babando;
sua agonia era quase palpável e impregnava o ambiente tornando o ar
pesado; sua mãe se agarrava às suas pernas com histeria, mas o ímpeto
de suas pupilas excessivamente dilatadas fizeram-no permanecer
firme em sua cruel determinação. Não sentia piedade de sua avó,
queria apenas tratá-la como ela tratava a todos com quem se
relacionava, com um legalismo sem piedade.
Enquanto sua avó se despedia de nosso mundo, Éder a olhava nos
olhos, já sem reparar o desespero ao redor, olhava apenas dentro de
seus olhos e percebia que a alma de sua avó se encaminhava para um
lugar de agonia; ele esfregou os olhos e passou a mão no rosto
tentando identificar se essa percepção era verdadeira ou se era fruto da
interação de sua mente com a cocaína, mas os olhos de sua avó, que
pareciam mirar outra dimensão, expressavam desespero, o desespero
de quem se vê presa na teia de maldade que teceu ao longo da vida e
que agora a arrastava inevitavelmente para as trevas, pelo simples fato
de ser o único caminho existencial conhecido e percorrido por ela.
Éder sentia sua avó ser sugada pelo inferno que ela mesma criara, e
por alguns instantes se sentiu atraído por aquelas densas trevas; sentia
a familiaridade daquela energia, sabia que ele também estava criando
seu próprio inferno e começava a ser sugado por ele.
Todos assistiram aterrorizados ao falecimento bizarro de dona Antônia
e à frieza de Éder, sem nada ousarem fazer contra sua ordem e a
ameaça de sua arma. Depois de constatada a morte, Éder ainda falou
“seja feita a vontade de Deus!”, em tom de solenidade irônica, porém
muito sério e olhando nos olhos de todos; apontou a arma para a
cabeça de um dos ex-membros do Movimento e ordenou aos dois
“Vamos sair daqui”, desvencilhou-se de sua mãe, e saiu atrás de seus
ex-amigos. Chegando lá fora, antes mesmo de chegar ao portão deu
um tiro na nuca de cada um e sentiu o sangue de ambos espirrar em
seu rosto, viu ambos os corpos desabarem inertes na sua frente e
encheu-se duma energia ainda mais avassaladora. Aqueles três
assassinatos que acabara de cometer pareciam ter-lhe dado acesso aos
portões dimensionais do inferno, ou dado acesso ao inferno para
penetrar sua existência interior, e toda aquela densidade espiritual
pesava-lhe nos ombros.
Ele olhou para a rua e algumas pessoas espiavam pelas janelas e
portas semiabertas de suas casas, afinal tinham ouvido dois disparos
de arma num bairro em que isso já estava extinto há pelo menos
quatro anos; há quatro anos a polícia não oprimia os moradores do
bairro, há quatro anos não se ouvia tiroteio, antes tão comuns e
rotineiros.
Éder abriu o portão e saiu para a rua, andou alguns metros e viu
Marcinho andando em sua direção; ele tinha ouvido os tiros e saiu pra
ver o que era e logo percebeu que Éder havia feito algo. Quando se
aproximaram, Éder foi logo dizendo “enviei mais cedo para o inferno
aqueles que já tinham lugar garantido”, Marcinho abriu um sorriso
maligno e abraçou Éder com força; olhou para ele e disse “Somos
irmãos, como sempre foi” e o olhar de Éder era grave e distante, sentia
o peso existencial do que acabara de fazer; Marcinho o sacudiu pelo
braço e disse “vamos sumir com esses corpos e vamos sair daqui por
uns dias”, mas Éder não tinha reação e começou a suar
abundantemente; passou a mão na testa, levantou seus olhos
vermelhos em direção a Marcinho, “e agora, o que mais me resta
experimentar? Em que buraco me falta entrar?”.
A rua já começava a encher de gente pra ver os dois corpos enquanto
Marcinho tentava convencer Éder a esconder os corpos e sumir junto
com ele; ele tirou sua arma da cintura e deu três tiros para o alto e as
pessoas se dispersaram imediatamente, sem chegarem a identificar
quem eram os mortos.
Marcinho correu até seu carro, que estava na rua de trás, colocou-o em
frente à casa de Éder; a família de Éder já tinha saído da casa para
chamar uma ambulância e estavam horrorizados com os corpos na
beira do portão. Marcinho chegou armado apavorando quem estivesse
em sua frente, mandou que todos saíssem e todos desapareceram dali;
ele pegou os dois corpos, colocou-os no porta-malas, puxou Éder pelo
braço e saíram dali.
Entrando no carro, Marcinho acelerou pra fora da cidade e Éder
começou a desabafar com Marcinho, “É tudo como correr atrás do
vento... estamos todos correndo atrás do vento! Eu fico pensando no
Eike Batista que queria ser o homem mais rico do mundo, ou no Edir
Macedo querendo ser o mais poderoso... penso em todos esses filhos-
da-puta que tem seu umbigo como centro do universo e me pergunto:
e depois? O que mais eles podem querer? Qual é o limite da ganância?
E se ela não tiver limites? Onde poderemos chegar? Mano, onde foi
que nós chegamos? Que porra de inferno é esse que vivemos?”
Marcinho: “Mano, nós não criamos o inferno, nós apenas o habitamos;
mas isso teve suas vantagens: nós não temos medo de morrer, pois já
estamos mortos! Esses filhos-da-puta é que têm medo de morrer, nós
não. Nós somos homens-bomba e a favela tem cem mil homens-
bomba… Já somos uma outra espécie, somos híbridos, diferentes dos
cidadãos ‘normais’; a morte pra eles é um drama cristão numa cama,
no ataque do coração, no câncer que mata devagar… A morte pra nós
sempre foi o presunto diário desovado numa vala… O povo não clama
por Justiça? Pois é, chegamos! Somos nós! Somos os justiceiros do
pó! Somos o sinal dos novos tempos, os cavaleiros do apocalipse!
Éramos pobres e invisíveis, a mídia e o governo nunca nos olhou...
pobre só aparecia nos desabamentos ou nos incêndios criminosos nos
nossos barracos, ou nas estatísticas da guerra às drogas; favela só
servia pra comprar droga e matar pobre... E agora, mano, agora
estamos ricos com a multinacional do pó, e esses filhos-da-puta estão
morrendo de medo… agora o inferno subirá à Terra e os demônios
dominarão os homens! Sempre fomos brutos, e agora somos brutos e
inteligentes! Estudamos junto com os soldados, lembra? Maria nos fez
ler Maquiavel e Hobbes, lemos até Shakespeare, lembra?
‘Cavalheiros, a vida é muito curta... Se nós vivemos, vivamos para
pisar a cabeça dos reis!’, lembra Éder?”, e Marcinho se lembrava com
certa nostalgia dos momentos que descrevia, “mano, somos estranhas
anomalias do desenvolvimento torto desse país... Não tem mais
vítimas, nem simples bandidos, ou infelizes, ou explorados, há uma
outra coisa crescendo aqui na periferia, cultivada na lama, se
educando no analfabetismo, se diplomando nos becos e nas cadeias,
como um demônio escondido e sendo alimentado... Nós somos a
geração mutante!”.
Éder estava de cabeça baixa e sua consciência parecia esmagá-lo;
olhou para Marcinho e, mesmo depois desse discurso encorajador,
disse “Nós adoecemos junto com essa sociedade podre... nós ouvimos
falar do amor e tentamos viver como se nada soubéssemos. É
impossível conhecer a verdade eterna e não ser atormentado...”.
Marcinho, um pouco impaciente, puxou Éder pela mandíbula e fê-lo
olhar em seus olhos e “Mano, vamos foder essa porra toda, vamos
arrombar todas as portas, extrapolar todos os limites, arrancar todos os
freios dos nossos desejos e excitar nossas vontades! Vamos meter
fogo na porra toda! Seremos os imperadores do Brasil! Esqueça Cristo
e a porra toda do amor e vamos dominar esse puteiro e matar os
cafetões, hahaha!”, e Éder, ainda abatido e olhando para o chão,
balbuciou, “Mas deve haver outra solução... a guerra não pode ser a
única solução...”. Marcinho, irritado com a passividade de Éder, deu-
lhe um ultimato: “Porra Éder, caralho, vai tomar no cu! Você acaba de
matar duas pessoas e já está comprometido com isso tudo até o
pescoço e agora vai ficar sentimental? Agora vai ficar espiritual? Não
tem solução! Estamos todos no centro do Insolúvel! Mas nós vivemos
do Insolúvel, vivemos mergulhados na merda! Perca as esperanças,
estamos todos no inferno, porra!”, e Marcinho acelerou o carro, ligou
o som alto e não deu chance pra que as reflexões de Éder fluíssem pra
fora de si.