A Danca Da Solidao

REVISTA CHILENA dE LITERATuRAdiciembre 2014, Nmero 88, 113-126

A dANA dA SOLIdO: A CONdIO NARRATIVA EM SOLIDO CONTINENTAL, dE JOO GILBERTO NOLL

Ivana Ferigolouniversidade do Estado do Mato Grosso

[email protected]

desiluso, desiluso dano eu dana voc na dana da solido.

(Paulinho da Viola)

RESuMEN / RESUMO / ABSTRACT

El escritor brasileo Joo Gilberto Noll viene siendo reconocido tanto en Brasil como en el exterior debido a su particular potica, consolidada a partir de una amplia produccin narrativa que comienza en 1980, con la publicacin del libro de cuentos O cego e a danarina, y que se mantiene muy frtil hasta el presente. En la opinin del estudioso argentino Reinaldo Laddaga (2007), Joo Gilberto Noll es uno de los autores que ha publicado las obras literarias ms singulares producidas en los ltimos aos no solo en Amrica Latina. Esa singularidad presentada por la literatura de Noll ha despertado, al parecer, la atencin de los crticos y engendrado muchos estudios que se encuentran materializados en un volumen significativo de tesis, tesinas, libros, artculos, ensayos, etc. En este amplio repertorio de estudios es posible constatar posicionamientos divergentes sobre la produccin literaria del autor. Muchos confieren valor significativo a su obra, considerando positivo el grado de innovacin que presenta en relacin con expresivos comportamientos manifestados por el gnero novela a lo largo de la modernidad. No faltan, sin embargo, opiniones que aseguran la falta de identificacin de las narrativas del autor con el gnero novela, debido a ciertas particularidades formales y temticas. Considerando la singularidad de la produccin narrativa nolliana y tomando como objeto de anlisis su ltima novela, Solido continental (2012), se busca entender lo que esta singularidad estara expresando, as como averiguar los impactos de esa singularidad sobre el campo literario brasileo.

Palabras clave: literatura brasilea, novela, sujetos, contemporaneidad.

114 revista chilena de literatura N 88, 2014

O escritor brasileiro Joo Gilberto Noll vem sendo conhecido tanto no Brasil como no exterior devido a uma particular potica, que se encontra bem sedimentada em uma volumosa produo narrativa emergente em 1980, com a publicao do livro de contos O cego e a danarina, e que se mantm frtil at o presente. Nos dizeres do crtico argentino Reinaldo Laddaga (2007), Joo Gilberto Noll um dos autores que tem publicado, nos ltimos anos, algumas das produes literrias mais singulares j vistas no s na Amrica Latina. Essa singularidade apresentada pela literatura de Noll tem chamado a ateno da crtica literria e alavancado uma forte tendncia ao estudo de sua obra traduzida em um volume significativo de teses, dissertaes, livros, artigos, ensaios, etc.. Nesse vasto repertrio de estudos crticos, possvel encontrar posicionamentos divergentes sobre a obra do autor. Muitos conferem valor significativo a essa produo literria, considerando positivo o grau de inovao que apresentaria em relao a expressivos comportamentos exibidos pelo gnero romance ao longo da modernidade. Outros tendem a olh-la com desconfiana, argumentando que, devido a particularidades formais e temticas, essas narrativas j no poderiam ser consideradas romances. Levando em conta a singularidade da produo narrativa nolliana e tomando como objeto de anlise o ltimo romance do autor, Solido continental (2012), busca-se compreender o que estaria expressando, no concernente ao homem e vida, esta singularidade narrativa. Alm disso, pretende-se entender o que significa essa singularidade da narrativa de Noll para o campo literrio brasileiro.

Palavras-Chave: literatura brasileira, romance, sujeitos, contemporaneidade.

The Brazilian writer Joo Gilberto Noll is well known both in Brazil and in other countries because of his particular poetry, built into a copious narrative production that emerged in 1980 with the publication of the collection of stories O Cego e a danarina, and which continues to be highly fertile even now. In the opinion of the Argentine scholar Reinaldo Laddaga (2007), Joo Gilberto Noll is one of the writers who has published some of the most innovative narratives seen in recent times, and not only in Latin America. The singularity of Nolls literature has attracted the attention of critics and has spawned many studies that have been published in a significant volume of theses, books, articles, papers, etc. In this extensive body of critical studies there are divergent positions on Nolls literature. Many of them attribute significant value to Nolls literary production considering the degree of innovation that shows to be positive in relation to the more expressive behavior displayed by the novel genre throughout modernity. However, there are many other critics who argue that the lack of identification of Nolls narratives with the novel genre is due to certain formal and thematic peculiarities. Considering the singularity of Nollian narrative production and studying his last novel, Solido Continental (2012), we seek to understand what this singularity could be expressing and examine the impacts of this singularity on the field of Brazilian literature.

Keywords: Brazilian narrative, subject, novel, contemporaneity.

A dana da solido: a condio narrativa em Solido continental, de Joo Gilberto Noll 115

uMA POTICA NOLLIANA

O escritor brasileiro Joo Gilberto Noll, desde os anos 80, quando foi publicada sua primeira obra, o livro de contos O cego e a danarina, passa a chamar a ateno de estudiosos e crticos em virtude da particularidade de sua narrativa, que, desde o princpio, agradava muitos setores da crtica literria, mas, tambm, causava, em outros, o natural estranhamento suscitado por fenmenos ou artefatos artsticos inovadores. Na atualidade, aps ter publicado um nmero bem significativo de narrativas como Hotel Atlntico, O quieto animal da esquina, A cu Aberto, Harmada, Berkeley em Bellagio, Lord, Acenos e Afagos, para citar algumas, o autor goza de importante reconhecimento nacional e internacional a ponto de muitos estudiosos e crticos, como o caso do argentino Reinaldo Laddaga, afirmarem que Joo Gilberto Noll, que naci en Porto Alegre, ha estado publicando algunos de los objetos textuales autnticamente singulares que hayan visto la luz en los aos recientes en Latinoamrica (y no solamente, en rigor, en Latinoamrica) (79).

A singularidade narrativa, nas palavras do crtico argentino, o detalhe diferenciador da produo literria de Noll e, ao que parece, tem despertado a curiosidade de estudiosos originando, nos ltimos anos, um volume significativo de estudos traduzidos em teses, dissertaes, livros, artigos, ensaios, etc. nos elementos constitutivos da narrativa nolliana, como tempo, narrador, personagem, espao, tema, que poderemos visualizar essa singularidade destacada por Laddaga (79).

Avulta e recorrente nas obras de Noll uma temporalidade fragmentada, em que passado, presente e futuro aglutinam-se, sobrepem-se, desconectam-se, desorientando o leitor, que enfrenta a impossibilidade de perceber as ligaes entre os fatos e as aes constitutivas da existncia das personagens e conformadoras do mundo da representao.

Os espaos predominantes em suas obras so, em geral, os que o antroplogo francs Marc Aug (71-105) chamou de no lugares (ruas, rodovirias, aeroportos, cidades, shoppings, hospitais, etc.), ou seja, os cenrios que viabilizam e sustentam os deslocamentos curtos e transnacionais que caracterizam a existncia produzida e reproduzida nesse ambiente contemporneo, denominado por Aug (71-105) de Supermodernidade. Trata-se de espaos esvaziados de sentido, vagos, comuns, recorrentes, carentes do potencial de estranhamento necessrio ao desencadeamento de gestos de aferio, de anlise e de reflexo. Transitando por esses no lugares quase imperceptveis, dada mesmice recorrente e desorientadora que os caracteriza, e inclinados a um


constante deslocamento que oblitera a possibilidade de percepo da prpria existncia como uma continuidade conexa, os personagens das narrativas de Noll, conforme Avelar, passam, em geral:

por experincias desprovidas de qualquer marco temporal, alm da sucesso esquizofrnica, no causal dos fatos, [...] obtm e perdem empregos, so presos ou levados a algum hospital [...], escapam, so atacadas [...], encontram gente que no parece ir a nenhum lugar tampouco, e que invariavelmente desaparece sem deixar rastros (217).

Outro trao a se destacar nas narrativas de Noll o fato de serem narradas em primeira pessoa. Predominam narradores protagonistas que, sugerindo a impossibilidade de conhecer o outro e o mundo e transparecendo um desejo de ser visto ou notado, adotam uma postura ensimesmada, tentando narrar a prpria existncia que somente vem tona em fragmentos desconexos, incapazes de constituir uma totalidade. No contato com essas narrativas, o leitor assaltado por um estranhamento que parece decorrer da sugestiva ausncia de motivos capazes de costurar ou evidenciar as relaes entre as partes que constituiriam a vida das personagens. dessa forma, a produo ou o desvelamento do sentido da existncia, meta central do romance ao longo da modernidade, fica comprometida nas narrativas de Noll.

Os narradores protagonistas, em geral, mostram-se conscientes da ausncia de uma lgica existencial ou csmica profunda ou sobre a impossibilidade do sujeito desvend-la. A conscincia sobre as limitaes do sujeito em relao apreenso de um sentido imanente ao mundo e vida ou sobre a inexistncia do mesmo se evidencia em quase todas as narrativas de Noll, fazendo-se visvel de variadas maneiras, principalmente na presena de indagaes que povoam os relatos, mas ficam suspensas. Os narradores protagonistas as lanam, mas, logo, as deixam de lado, no tratam de respond-las. So questionamentos, muitas vezes, que do origem ao processo narrativo como o caso da obra Berkeley em Bellagio (2002), cujo princpio se constitui pelas seguintes indagaes: Saberia voltar atrs? No se arrependeria ao ter de mendigar de novo em seu pas de origem? (Noll, Berkeley 9). dito relato de Noll no coincidir, porm, com o resultado de uma tentativa de deslindar uma resposta para essas questes, sugerindo que o mote das narrativas nollianas no responder, encontrar ou comunicar significados estabilizados, estados de nimo fijados o estados de cosas sustanciales (Laddaga 84).

Nesse aspecto, os relatos do referido escritor brasileiro estabelecem distncia em relao a um comportamento central manifestado pelo gnero


romance desde sua projeo nos albores da modernidade e conservado posteriormente. Aquele comportamento que, traduzido em formas variadas e at fragmentadas, como , por exemplo, o caso de No caminho de Swann, de Proust, sempre se caracterizou pela busca de sentido ou por tentativas de encontrar as ligaes entre os diversos eventos constitutivos da vida ou de uma dada condio social, csmica ou existencial.

Aparentando, ainda, um descompromisso com o social, as narrativas de Noll acabam rompendo, tambm, com uma tendncia narrativa que predominou durante dois sculos no Brasil: o romance realista e, muitas vezes, de inclinao empenhada que, colocando em evidncia um vasto repertrio de agravantes sociais, pretendia desvelar solues plausveis aos problemas da nao e contribuir, pela via esttica, para o melhoramento do pas e da condio do seu povo. Nesse sentido, conforme sugere Avelar, os romances de Noll se apresentam como uma crtica ao romano, s maquinarias narrativas cosmognico-totalizantes que encontraram seu apogeu na Comdia humana, de Balzac, modelo privilegiado para as vrias sagas realistas, regionalistas ou no que proliferaram na literatura brasileira moderna (216).

O potencial de ruptura que abrigam as narrativas de Noll em relao a modalidades romanescas bem expressivas (tanto a nvel nacional como internacional) se faz notrio, incitando a delimitao de gestos hermenuticos dispostos a esclarecer os motivos que as levam a se distanciar de certos modelos romanescos bem consolidados. Partindo da hiptese de que esse distanciamento decorre de uma inclinao da produo literria de Noll em dar forma tanto a modos de existncia bem contemporneos (que transcendem os limites do nacional) como aos efeitos produzidos por eles sobre os homens e sobre suas relaes com o mundo e com os outros, analisar-se-, a seguir, o ltimo romance de Noll, Solido continental (2012). Pretende-se, ainda, deslindar os possveis efeitos para o gnero romance e para o campo literrio brasileiro, que se originariam dessa suposta tendncia da literatura de Noll pela formalizao de experincias humanas vinculadas aos tempos atuais.

SOLIDO CONTINENTAL: uM EFEITO dA uRGNCIA EXISTENCIAL

Em Solido continental (2012), ltimo romance de Joo Gilberto Noll, se constata a permanncia da tendncia narrativa do autor, de forma que a singularidade de sua potica mencionada por Laddaga (79) fica reforada. O romance pe em cena, por meio de um processo narrativo em primeira pessoa,


fragmentos existenciais do narrador protagonista que sugere chamar-se Joo Bastos, j que, quando lhe exigem sua identificao ele deixa transparecer, no relato, uma dificuldade de memria, titubeando no momento de afirmar seu nome prprio.

Trata-se de um protagonista de nacionalidade brasileira, que j viveu fora do pas, nos Estados unidos, mas que, em algum momento, pois no h especificao temporal, retorna para Porto Alegre, fazendo, no percurso da volta, uma escala no Mxico. Afetado por uma inquietude que dificulta sua fixao em determinados lugares, o narrador protagonista se desloca constantemente (USA, Mxico, Brasil), vivenciando, de forma muito rpida, uma infinidade de fatos que, devido a curta durabilidade, no sobrevivem como memria e, consequentemente, no se mostram propensos a serem revisitados, resgatados ou reaplicados posteriormente. A narrativa, consequentemente, despe-se de relaes causais. Os fatos tm validade isoladamente, no registrando qualquer ligao lgica. A possibilidade de conformao de um sentido a partir das relaes entre os fragmentos ou as cenas que dizem respeito vida do protagonista e que compem a narrativa, fica comprometida.

da estada do protagonista nos uSA, a narrativa privilegia fatos que tiveram lugar em ruas, hotis e em uma escola de idiomas, onde, supostamente, o protagonista trabalhou. No Mxico, permaneceu, ao que parece, pois no h especificao precisa no relato, umas doze horas, devido a uma escala feita pelo avio em decorrncia de problemas mecnicos. durante esse perodo, sem justificativa clara, visita o museu de Trtski, onde encontra uma menina com a qual mantm relaes sexuais. Em Porto Alegre, seu deslocamento constante. Ruas, shoppings, bairros desconhecidos e at bosques de localizao geogrfica imprecisa servem de vias para o frequente deslizar do protagonista.

Transitando por esses no lugares (Aug 71-105) tpicos da sociedade atual denominada pelo autor francs de Supermodernidade que regulam o deslocamento dos seres e promovem contatos rpidos, o narrador protagonista tem amenizada a capacidade de memorizar e refletir. As aes que realiza, consequentemente, despem-se de justificativa. Surgem como corolrio de uma espcie de impulso carente de um planejamento ou de intenes pautadas em lembranas, conhecimentos ou reflexes. A visita feita ao museu de Trotski, durante a escala forada do avio no Mxico, vem tona como uma deciso apoiada em informaes rasas que o protagonista no filtra, nem questiona: Guardei a mala no aeroporto. Pedi ao taxista que me levasse ao Museu de Trotski. [...] Poderia no intervalo entre um voo e outro ter ido visitar outro museu. Vim, pelo que me contaram, ao menos espetacular (Noll, Solido 40-


41). O esfacelamento do sujeito enquanto razo reflexiva vai se evidenciando no relato e parece decorrer da insero do protagonista em um meio marcado pelo trnsito intenso e por uma volumosa circulao de informaes que aceleram o funcionamento de sua mente e de seu ritmo existencial dificultando ou impedindo o desencadeamento de qualquer processo de contemplao, de meditao e de reflexo.

Em seus constantes deslocamentos, o protagonista se depara com situaes inusitadas, encontra repentina e rapidamente diversas personagens, que, em funo da brevidade dos contatos, se mostram estranhas, impenetrveis, realizam aes incompreensveis tanto ao protagonista como ao leitor. Essa obscuridade das personagens fica evidente em um fragmento em que o protagonista revela ter sado, sem aparente motivo, com Tom, um suposto aluno de portugus nos uSA, o qual, repentinamente e sem motivo constatvel, tira a roupa:

No meio da lascvia meio submersa eu reiterava a dvida se isso no fazia parte de um plano para ele espionar em mim as virtudes e pecados de um brasileiro mdio. Eles se infiltravam em relaes pessoais com indivduos de outros pases, para levar a seus chefes a quanto andava a alma do mundo. [...] depois de uma aula em que ensinei o mais que perfeito composto, ele me convidou a passear no domingo, iramos at um lago nos arredores de Madison. E fomos (Noll, Solido 29).

A maneira de contar presente no fragmento e predominante na narrativa, altamente econmica. Processos descritivos, qualificativos, so deglutidos pela nfase dada ao. Fatos e detalhes so atropelados e a ordem cronolgica do relato alterada em decorrncia da acelerao mental revelada pelo narrador. O gesto, o convite que desencadeou o suposto passeio de Tom e do protagonista o ltimo dado mencionado no fragmento, sinalizando que a mente do narrador opera apressadamente e inviabiliza tanto a organizao dos fatos de forma linear e ascendente, como a fixao do narrador em detalhes capazes de revelar conexes entre os acontecimentos relatados. O laconismo e a velocidade do relato fazem da existncia protagonista um conjunto de vivencias rpidas e repentinas que impossibilitam tanto o conhecimento dos outros com quem ele estabelece contato, como a compreenso dos fatos em que ele se envolve. Consequentemente, Tom (o outro com quem o narrador passeia) ganha uma feio enigmtica, insondvel, permitindo, unicamente, a suspeita, a dvida (eu reiterava a dvida...).


O que pe em cena a narrativa Solido continental so vivncias e impresses sobre o homem e sobre o mundo atreladas a um modo de vida efmero, tpico de seres em constante deslocamento ou errncia, como o caso do narrador protagonista, que no norte-americano, est em trnsito, e carece, portanto, do tempo necessrio para o estabelecimento de laos duradouros tanto com ambientes como com objetos e pessoas. A consequncia dessas relaes efmeras, traduzidas em um discurso acelerado, conciso, que ofusca os contornos das personagens, tornando-as meras palavras de origem e destino encobertos, uma existncia marcada pela constante dvida, pela suspeita frente ao outro, pela impossibilidade de conhecer, de constituir vnculos duradouros, de sentir confiana, de partilhar e trocar experincias, de estabelecer relaes de cumplicidade. uma existncia propensa a abrigar, portanto, a sensao de vazio, de solido, j que fica negada ao ser a possibilidade de se fundir ao outro ou ao meio, de experimentar a totalidade. E como indica o ttulo, essa solido continental, generalizada, atinge o ser em todas as partes, levando o narrador protagonista a desejar, continuamente, o contato, a companhia, o convvio mais duradouro, a ateno:

[...] o certo que andava louco para enfim me acercar de duas, trs pessoas, ou nem tanto assim, que se interessassem pelo que eu comera no almoo, por exemplo, e uma pelo menos que estivesse disposta comigo, nem digo que trocasse comigo seus fluidos, mas que indagasse como fora meu sono, que confessasse que ouvira meu ronco s ao amanhecer... (Noll, Solido 41).

Ganham visibilidade, em Solido continental, as faltas e as consequncias existenciais atreladas a estilos de vida bem contemporneos, peculiares sociedade globalizada, essa que, segundo Aug (71-105), viabiliza o trnsito, o deslocamento constante, originando ritmos de vida acelerados, que impedem a fixao geogrfica dos seres, podendo inviabilizar a conformao de laos ou sentimentos duradouros. Que consequncias so essas? A solido aguda que experimenta o protagonista dada dificuldade de conhecer o outro; a sensao de vazio decorrente, conforme assinalou Fredric Jameson no clssico Ps-modernismo: a lgica cultural do capitalismo tardio (1997), da impossibilidade de reter o passado e convert-lo em memria reaplicvel no presente.

Essa dificuldade de sedimentao da experincia passada em conhecimento, em memria resgatvel, a qual provoca o esvaziamento do ser, se faz evidente na estrutura de Solido Continental. A obra compe-se de dois grandes


blocos desconexos. O primeiro, que se encerra na pgina 47, concentra as vivncias do narrador protagonista registradas nos uSA e no Mxico. O segundo bloco, compreendido entre a pgina 48 e a final, pe em cena a desconexa existncia do protagonista aps seu retorno a Porto Alegre. Essas duas partes no apresentam ligao. O passado nos uSA e a breve passagem no Mxico no so recuperados pelo protagonista durante sua fase em Porto Alegre. uma nica vez, no que denominados segundo bloco do livro, o narrador protagonista faz aluso a esse perodo de sua vida para afirmar: As minhas viagens pelos Estados unidos e Mxico eram coisas do passado (Noll, Solido continental 69). Na falta de nexo entre essas duas partes da narrativa visualiza-se descontinuidade entre passado e presente registrada pelo narrador protagonista, um corte que torna sua existncia fragmentada, que lhe desorienta, lhe esvazia, forando-lhe a inventar a vida a toda instante, a submeter-se a riscos que lhe permitam sentir alguma coisa, a buscar algo que lhe complete, mesmo ciente da no existncia dessa coisa (Noll, Solido continental 84) ou da impossibilidade de alcan-la: Antes que seja tarde demais eu preciso instalar em mim velocidade [...] No para fugir de nada. Mas para tentar encontrar o que s com urgncia se desvelaria. Como o qu? No sei, no enche o saco!, tartamudeei (Noll, Solido 57).

A irritao do protagonista consigo mesmo acusa sua percepo sobre a inexistncia ou a inacessibilidade desse algo que possa preencher sua vida. Essa conscincia, embora lhe imprima uma constante sensao de vazio, funciona como um estmulo que o leva a agir, a buscar, mesmo sabendo que no encontrar. No gesto de procurar, v-se a resistncia do protagonista a experimentar o nada, mesmo consciente de que no poder venc-lo. Esse vazio, que requer um preenchimento contnuo, decorre da prpria condio errante do protagonista, da rapidez com que se desenvolvem e terminam as relaes entre ele e as demais personagens, da volatilidade dos contatos, da velocidade com que troca de ambiente. A celeridade d o tom sua existncia e oblitera a possibilidade de ele processar suas vivncias, ret-las, refletir sobre elas, entend-las, conhecer o entorno, internalizar referncias, preencher-se a partir das experincias, como atesta o seguinte fragmento em que o protagonista relata sua sada do Mxico, que compreende o deslocamento do Museu de Trotski, visitado no breve perodo em que ele passa no pas, at o aeroporto:

um taxi providencial passava. Chamei. Ele parou. Sentei atrs. No caminho para o aeroporto minha cabea caiu vrias vezes de exausto. Passei no hotel para pegar a valise.


Corria pelo aeroporto atrs do balco da companhia area. Peguei um novo carto de embarque. Entrei no avio com uma profuso de coisas na cabea. Bill, Tom, Mira, o que me sobrara de tudo aquilo? (Noll, Solido 47).

A consequncia dessa acelerao imposta por condies existenciais marcadas pelo trnsito constante o rpido apagamento do passado. uma abundncia de vivencias, de coisas na cabea fadadas liquefao antes de serem sedimentadas. Como ele prprio admite em outros momentos da narrativa, seu ritmo mental se fazia em voragem. de um golpe eu concebia o passado, como se ele estivesse ainda por se fazer. Eu me ressentia por no ter como provocar meu futuro por livre escolha. Entre um e outro eu era reticncias, desse impasse era feito meu presente (Noll, Solido 63). Assim, Mira, a menina com a qual manteve uma rpida e fugaz relao sexual no museu de Trotski, Bill, o ex-amante que procura quando est nos USA, Tom, o ex-soldado americano que conhece na escola de idiomas nos Estados unidos tornam-se meras palavras sujeitas esfumao ou ao apagamento.

Na pergunta sobre o que sobrara desse passado, constata-se a angustia do narrador protagonista frente ao vazio instalado pela impossibilidade de sedimentao mental de vivncias ou experincias sensveis. Essa angustia acusa a falta registrada pelo protagonista e o coloca frente necessidade do urgente preenchimento dessa lacuna mental que no retm o passado, nem ao menos divisa o futuro. A urgncia fora-o a se manter constantemente em movimento, em estado de busca. Busca algo para preencher esse vazio propulsor de solido. [...] procuro a cada canto cata da coisa que me completar nos prximos instantes (Noll, Solido 84). Admite que se enfezava com qualquer coisa que [...] prometesse desmontar [...] a solido (Noll, Solido 60).

com movimento, deslocamento, e no mediante reflexo ou fixao, que o protagonista busca suprir, a cada instante, a sensao contnua de vazio e solido emergentes da impossibilidade de sentir, de recordar, de fixar o passado e convert-lo em experincia. Como o que procura no pode forjar-se pela acelerao, pelo movimento, j que a efemeridade impede a fixao das vivncias, dificulta a possibilidade de sentir ou de estabelecer vnculos duradouros, sua busca contnua e exaustiva reinstala o vazio, colocando-lhe novamente em errncia, reconduzindo-lhe a ruas escuras, a florestas desconhecidas, ao contato repentino com outros seres que nem chegam a tomar forma de to rpido que aparecem e desaparecem. A rapidez com que tudo se estabelece e se dissolve, com que tudo passa pela vida do


narrador protagonista desfigura, esvazia os espaos e as demais personagens reposicionando-lhe em seu estgio de partida: o vazio e a solido.

O que a narrativa coloca em cena a saga errante e intransponvel do homem contemporneo, desse ser, que nos dizeres de Octvio Paz, habita o universo estilhaado, fragmentado, movedio e carente de utopias que toma feio no ocidente do ps-guerra. Trata-se de um ambiente em que o tempo se torna descontnuo. E o mundo, o todo se desfaz em pedaos (Paz 75), provocando a disperso do homem errante em um espao que tambm se dispersa, errante em sua prpria disperso (Paz 75).

Conformando-se de forma acelerada, as aes de busca empreendidas pelo protagonista tornam-se fugazes, repromovendo o seu contato com o nada, com um entorno desfigurado, esvaziado, fantasmagrico, impenetrvel. A coisa capaz de preench-lo nunca encontrada. O que se mantm o corte entre o eu vazio de sentido e o mundo. Evidencia-se, por meio do relato, a impossibilidade da fuso entre o eu e o mundo, definida por Lukcs (25-163) como totalidade e apontada pelo autor como mote central do gnero romance. A narrativa pe em cena, assim, a impossibilidade de manifestao do sujeito em um entorno geogrfico e humano voltil, que impede o exerccio do pensamento, da observao, da memria, da reflexo e do desenvolvimento afetivo duradouro. Indica que, nesse contexto, a disperso errante (Paz 75) a amarga e insupervel condio do ser. Na perda da capacidade de refletir, de se fixar, de sentir, de recordar apresentada pelo protagonista e na sua falida busca de sentido atravs da urgncia, do trnsito, estampa-se o desmantelamento do sujeito. A morte do sujeito enquanto razo reflexiva (marcada, tambm, por densidade afetiva) e a contnua e angustiante sensao de solido despontam, na obra Solido continental, como os efeitos (sobre o homem) ocasionados por um entorno formado por no lugares como o contemporneo que, promovendo e estimulando o deslocamento constante dos seres, se desdobra aos seus olhos de forma superficial, fragmentada, distorcida, levando-lhes a um estado de disperso e de vazio.

com um aspecto surreal, fantasmagrico, que os espaos se projetam sobre o olhar do protagonista como possvel constatar em um fragmento em que ele narra o resultado de uma de suas investidas pela busca de uma companhia que viesse aliviar sua solido. Nessa empreitada, o protagonista, de forma repentina, urgente, impulsiva, convida um marceneiro desconhecido e sua esposa para jantarem juntos. O casal retribui o convite. A casa do marceneiro e de sua mulher fica em um bairro retirado da cidade e os fundos do a uma espcie de bosque. Aps uma fulminante passagem pela casa do


marceneiro, os trs entram em uma floresta. Nesse novo cenrio, contatado de forma rpida e inesperada, tudo, segundo o narrador protagonista, se dissolvia para uma espcie de afastada dimenso: estava a o palacete onde moravam numa riqueza assustadoramente irreal (Noll, Solido 54).

A rapidez que caracteriza os contatos do protagonista com outros e com as diversas partes da cidade, traduzida em um discurso apressado, portador de lapsos temporais, desfigura os espaos, rouba-lhes a densidade e a impresso de realidade. A urgncia de sua busca, decorrente do esvaziamento provocado por um estilo de vida frentico, recoloca o protagonista sempre em contato com esse ambiente estranho e saturado da cidade, o qual no lhe oferece nada. Na fragmentada, desorientada e esvaziada existncia do protagonista, evidenciam-se as consequncias humanas de um modo de vida apressado e forjado em ambientes urbanos que tendem, segundo Santos:

a ser um lugar nenhum, quase um vazio de percepo [...] que, pelo alto grau de saturao, torna impossvel qualquer enraizamento, qualquer identificao. Espao intangvel que produz um estado de suspenso do vnculo entre o indivduo e o que est ao seu redor, que gera a experincia da prpria dissoluo dos limites da individualidade. Espao de formas excessivas e oscilantes que torna recprocas as tendncias de irreconhecer o mundo e de irreconhecer-se (132).

Nas buscas falidas do protagonista de Solido continental se estampa a dramtica e insolvel condio do homem (des)ambientado em um contexto saturado, mvel, urgente, de feio intangvel, como o da atualidade: trata-se de uma condio de errncia que, no conduzindo a nada, encurrala o ser, dando-lhe como ltima e nica alternativa uma procura vazia, circular e intranscendente como a prtica de Ssifo, que tem validade somente enquanto processo. Solido continental materializa, dessa forma, a falta de sada existencial registrada pelo ser submetido a um modo de vida cujos principais efeitos humanos so, segundo Jameson (1997), a mngua da possibilidade de sentir, de recordar, de projetar o futuro, de estabelecer vnculos perenes, de se sentir protegido, de proteger, conhecer e reconher o outro.

O SENTIdO dO NARRAR EM SOLIDO CONTINENTAL

O esfacelamento da capacidade de sentir levado ao extremo em Solido continental (2012). A narrativa materializa angstias humanas, pe em


evidncia a morte do sujeito, a impossibilidade de reconstituio da totalidade do ser, mas no sugere uma sada, no oferece soluo alguma: as buscas do protagonista no o conduzem a superao do vazio, nada se conclui, nenhuma relao se fixa, o passado no supre o presente. O relato fruto de uma conscincia que acusa o nada e revela unicamente o nada. Esse vazio apresenta-se em cada aventura inconclusa do narrador protagonista e sugere a impossibilidade de seu preenchimento diante do esfacelamento do sujeito, da memria e da presena de um mundo que se mostra intangvel.

Se o relato no leva a nada e fruto de uma conscincia que acusa a impossibilidade de alcance dessa coisa capaz de viabilizar a superao da solido, do vazio, cabe perguntar qual o sentido desse gesto de narrar. denunciar o vazio e dribl-lo, ao menos momentaneamente, mediante o jogo, a dana construda a partir das palavras. dana da solido, cujo sentido est no danar, ou seja, nesse narrar que, materializando o apressado e constante ritmo do protagonista pelas fantasmagricas pistas formadas pelos no lugares, evita a queda no vazio. Na busca deslizante e, de antemo falida, do protagonista por companhia, por ateno, ou seja, por sinais humanos que amenizem a sua solido, se visualiza a resistncia do ser frente a um mundo que perdeu a densidade, tende a se esvaziar de sentido e a registrar a mngua do humano. Na atitude de seguir narrando, mesmo sabendo que a criao no poder oferecer sinais de superao, v-se, por sua vez, a resistncia do romance, que chama o leitor a perceber o vazio existencial e o esfacelamento humano.

A narrativa de Noll sugere, portanto, que a vida nos moldes atuais (marcada pela velocidade e (des)ambientada nos no lugares) no preenche o sujeito e nisso expressa um vnculo com uma sensibilidade contempornea que ultrapassa os limites do nacional (Brasil). Ela materializa a angstia do ser, as mazelas decorrentes de um modo de vida que se produz pela lgica apressada e frentica que rege e garante a manuteno da produo e do consumo desenfreados. Traduz, assim, a luta da narrativa para fazer frente ao estabelecido em tempos difceis, em tempos de apagamento do humano, da mngua do sujeito e da rarefao ou morte das grandes utopias.

Essa luta encontra-se materializada em um narrador que procura, como no acontecia em nenhuma outra narrativa do prprio autor Noll, a cura da solido, que reivindica companhia ou a presena do outro. Levar o leitor a visualizar os doloridos efeitos existenciais de uma vida submetida errncia e a volatilidade, tal como se apresenta a vida contempornea, o mote central dessa narrativa. Esse elemento a torna herdeira do grmen crtico e de denncia que alimenta a literatura moderna e que foi bem incorporado pelo romance


desde os albores da modernidade. Mesmo sendo gestado por uma conscincia incapaz de vislumbrar uma sada para o angustiante esvaziamento do sujeito, o romance segue narrando, ao menos para sensibilizar o leitor, para convid-lo a olhar a vida a partir de lentes que exibem as negativas consequncias existenciais de um entorno vendido como o espao da liberdade, da conexo total e planetria. Pr em evidncia os doloridos efeitos de formas de vida bem atuais o grande propsito de Solido continental, uma finalidade que viabiliza a continuidade do narrar, que leva a literatura brasileira a trilhar caminhos diferentes dos percorridos pela forte e tradicional vertente realista que, j no sculo XIX, ocupava um lugar de destaque no campo literrio brasileiro1.

BIBLIOGRAFIA

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Coord. Maurcio Salles Vasconcellos; Hayde Ribeiro Coelho. Belo Horizonte: Autntica, 1999. 131-138.

1 Este artigo corresponde ampliao e redefinio de um texto escrito para ser publicado no Caderno de Cultura do Jornal dirio da Serra, de Tangar da Serra, MT, Br. Seu primeiro esboo foi apresentado, de forma oral, no XIV SILEL, ocorrido em uberlndia - Br em novembro de 2013.

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