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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019 A DECOMPOSIÇÃO DO TEMPO: as origens da duração no cinema experimental 1 THE DECOMPOSITION OF TIME: the origins of duration in experimental film Hermano Arraes Callou 2 Resumo: Este trabalho pretende discutir a origem da duração como conceito no campo do cinema experimental americano. O artigo defende que a emergência da experiência da duração no cinema advém da importância adquirida do “monomorfismo” na arte, performance e música dos anos 1950 e 1960. A gênese do monomorfismo, por sua vez, deve ser encontrada na crise da composição na arte, a partir da qual os procedimentos de duração podem se revelar como estratégias de crítica do paradigma composicional. Palavras-Chave: Duração. Cinema experimental. Crise da composição. Abstract: This work intends to discuss the origin of duration as a concept in the field of American experimental film. The article argues that the emergence of the experience of cinematic duration stems from the importance of monomorphism in the art, performance and music of the 1950s and 1960s. The genesis of monomorphism, in turn, must be found in the crisis of composition in art, from which the procedures of duration can be revealed as strategies of critique of the compositional paradigm. Keywords: Duration. Experimental Film. Crisis of Composition. 1. Introdução A duração se transformou em uma das categorias decisivas da arte a partir da segunda metade do século XX. O conceito permite definir um conjunto diverso de procedimentos artísticos que se caracterizam por trazer ao primeiro plano a experiência consciente da persistência no tempo. A experiência da duração tem sido reivindicada em uma série de contextos artísticos bastante distintos, encontrando uma presença particular naturalmente naquelas artes que no discurso da estética tradicionalmente eram conhecidas como “artes do tempo”, em contraposição às “artes do espaço”. A questão encontra no cinema, arte do tempo por excelência, um campo decisivo. A ideia de um “cinema da duração” foi esboçada por André Bazin ainda nos anos 1940 (BAZIN, 1991, p. 291), quando o conceito torna-se 1Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Arte e Tecnologias da Imagem do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2018. 2 UFRJ, doutorando, [email protected]. 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php

A DECOMPOSIÇÃO DO TEMPO: as origens da …...O autor definia como estrutural o cinema no qual “o formato [shape] do todo é predeterminado e simplificado”, de modo que seja a

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A DECOMPOSIÇÃO DO TEMPO: as origens da duração nocinema experimental 1

THE DECOMPOSITION OF TIME: the origins of duration inexperimental film

Hermano Arraes Callou 2

Resumo: Este trabalho pretende discutir a origem da duração como conceito no campo docinema experimental americano. O artigo defende que a emergência da experiênciada duração no cinema advém da importância adquirida do “monomorfismo” naarte, performance e música dos anos 1950 e 1960. A gênese do monomorfismo, porsua vez, deve ser encontrada na crise da composição na arte, a partir da qual osprocedimentos de duração podem se revelar como estratégias de crítica doparadigma composicional.

Palavras-Chave: Duração. Cinema experimental. Crise da composição.

Abstract: This work intends to discuss the origin of duration as a concept in the field of Americanexperimental film. The article argues that the emergence of the experience ofcinematic duration stems from the importance of monomorphism in the art,performance and music of the 1950s and 1960s. The genesis of monomorphism, inturn, must be found in the crisis of composition in art, from which the procedures ofduration can be revealed as strategies of critique of the compositional paradigm.

Keywords: Duration. Experimental Film. Crisis of Composition.

1. IntroduçãoA duração se transformou em uma das categorias decisivas da arte a partir da segunda

metade do século XX. O conceito permite definir um conjunto diverso de procedimentos

artísticos que se caracterizam por trazer ao primeiro plano a experiência consciente da

persistência no tempo. A experiência da duração tem sido reivindicada em uma série de

contextos artísticos bastante distintos, encontrando uma presença particular naturalmente

naquelas artes que no discurso da estética tradicionalmente eram conhecidas como “artes do

tempo”, em contraposição às “artes do espaço”. A questão encontra no cinema, arte do tempo

por excelência, um campo decisivo. A ideia de um “cinema da duração” foi esboçada por

André Bazin ainda nos anos 1940 (BAZIN, 1991, p. 291), quando o conceito torna-se

1Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Arte e Tecnologias da Imagem do XXVIIIEncontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14de junho de 2018.2 UFRJ, doutorando, [email protected].

1www.compos.org.br

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importante no discurso crítico do cinema. A nossa investigação pretende se restringir,

contudo, a emergência da questão da duração no campo do cinema realizado por artistas

visuais, fora do sistema de produção e distribuição comercial, que tornou-se historicamente

conhecido como “cinema experimental”. A tradição do cinema de artista desenvolveu a

questão da duração em termos próprios, se aproximando muito mais do contexto da arte, da

performance e da música experimental, que do cinema de narração realizado na mesma

época.

2. Structural Film

A duração se torna uma terminologia decisiva no debate crítico do cinema

experimental a partir da publicação de Structural Film nas páginas da Film Culture em 1969.

O artigo tornou-se conhecido, primeiramente, por ter criado uma das categorias mais

difundidas e mais contestadas no campo experimental do cinema, a saber, o cinema

estrutural. O ensaio pretendia oferecer um quadro interpretativo para uma série de

proposições cinematográficas dos anos 1960 que pareciam manifestar uma nova

sensibilidade. Os primeiros filmes de Michael Snow, Ernie Gehr, Paul Sharits, Tony Conrad,

Joyce Wieland, George Landow e Hollis Frampton pareciam romper com a “poética

romântica” (SITNEY, 2002, p.13) que até então havia influenciado o cinema experimental. O

cinema estrutural abandonava, sobretudo, o que poderíamos chamar de paradigma expressivo

da criação artística, em favor de uma maneira de conceber filmes que poderia ser

caracterizada como sistemática. Os filmes em questão eram concebidos a partir de formatos,

conceitos e/ou processos simplificados e predeterminados, que pareciam se desenrolar

automaticamente, uma vez iniciados. A noção de estrutura era reivindicada no texto do crítico

para caracterizar os contornos formais de cada filme, confundido-se, portanto, com o conceito

de formato, como se argumentou tantas vezes na ampla herança crítica que o ensaio de 1969

recebeu3. O autor definia como estrutural o cinema no qual “o formato [shape] do todo é

predeterminado e simplificado”, de modo que seja a forma total do filme, assim reduzida, o

objeto primário de fruição da obra (SITNEY, 2002, p.348). Em sua história autoritativa do

cinema experimental americano, Visionary Film, Sitney retomaria o conceito de cinema

estrutural, incluindo a duração desta vez em sua própria definição: trata-se do cinema “no

qual a duração e a estrutura determinam o conteúdo, antes de derivar dele” (SITNEY, 2002,

3 Para uma reconstrução abrangente do debate do cinema estrutural, ver ELDER, 2006; DUARTE, 2007.

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p.44). A experiência da duração, contudo, aparecia no ensaio de 1969 em todo caso como

uma característica notável dos filmes estruturais. A constatação não deveria ser

surpreendente, uma vez que a duração é uma função do próprio caráter simplificado e

predeterminado do formato: um filme estrutural se constituiria, assim, de uma única

“estrutura” que persistira no tempo.

Os primeiros filmes de Michael Snow apresentam as características decisivas da

experiência da duração. A “estrutura” de Wavelength (1967) é constituída, como se sabe, por

um único zoom ótico4. Um zoom ótico é uma passagem de uma imagem produzida por uma

lente de distância focal mais curta para uma imagem produzida por uma lente de distância

focal mais longa. A passagem é concebida no filme como um processo virtualmente contínuo.

A passagem é lenta e gradual, atingindo a duração total de 45 minutos. O zoom é um

processo que altera gradualmente ao menos quatro parâmetros do espaço visual apresentado:

o campo de visão, do mais aberto para o mais fechado; as dimensões das figuras, de menor

para maior tamanho; a distância aparente do ponto de vista, de menor para maior

proximidade; a tridimensionalidade ilusória da imagem, de maior para menor sensação de

profundidade. As quatro transformações são aspectos interdependentes de um único e mesmo

processo, a manifestação de uma única “forma unifiliar” (ELDER, 2006, p.129): o próprio

zoom. A despeito de Wavelength apresentar um processo de transformação virtualmente

contínuo da imagem, a impressão deixada pelo filme é a de estase temporal. O filme de Snow

é, como tantos outros filmes estruturais, desconcertantemente “estático” (SITNEY, 2002,

p.27). A sensação de estase é proporcionada pela persistência de uma única “estrutura”

facilmente reconhecível: o formato. A consciência do formato do todo se sustenta no primeiro

plano da nossa percepção durante toda a projeção do filme. A “estrutura” de Wavelength, de

direito, se deixaria capturar inteira em um único ato mental, como se, a despeito de seu devir

na tela, ela se mantivesse una e indivisível, conservada em nossa mente pelas atividades de

rememoração e expectação. A experiência do tempo proporcionada por Wavelenght se

diferencia daquela das formas conhecidas do drama, nas quais o passado apresenta-se como

transcorrido, a passagem do tempo como irreversível e o futuro como contingente. A

experiência do filme de Snow é a de uma duração contínua. Encontramo-nos diante do filme

4 Uma análise exaustiva de Wavelenght teria que levar em conta, naturalmente, certos aspectos do filme quecontrariam a ideia um formato único, onde o mais notável, seria a quebra da linearidade a partir da intervençãode imagens com filtros de cor. A simplificação da análise se justifica pela tendência geral do filme àuniformidade do formato, que nos permite tomar as intervenções, por exemplo, como acréscimos de menorimportância.

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como um observador que circula ao redor uma escultura, sabendo que ela permanece a

mesma, a despeito do momento que você a contempla. A passagem do tempo no filme seria,

assim, correspondente à mudança da posição do observador a respeito da escultura: uma

transformação perceptiva que inaltera a sensação de uma “estrutura” permanente.

A genealogia pela qual Sitney pretendia compreender a emergência do cinema

estrutural se baseava no cinema de Andy Warhol. A primeira obra fílmica de Warhol, de fato,

se caracteriza por uma dimensão conceitual similar, apresentando-se também como o

resultado do desenrolar automatizado de uma proposição unitária e predeterminada. O artista

realizou, como se sabe, uma série de filmes silenciosos entre 1963 e 1964, como Sleep

(1963), Eat (1964), Kiss (1964), Blow Job (1964) e Empire (1964), a partir de procedimentos

que colocavam em primeiro plano a experiência da duração. A despeito dos filmes silenciosos

de Warhol revelarem um corpus de estratégias bastante diverso, o seu cinema se tornaria

conhecido, sobretudo, por um gesto característico: o ato de ligar uma câmera fixa e

abandoná-la imóvel, deixando o rolo de filme se desenrolar impassivelmente por uma longa

duração. A câmera era posicionada, em geral, diante de situações cotidianas que, embora

ocupem o tempo, não são capazes modulá-lo dramaticamente: um homem dormindo, um

outro comendo, casais se beijando, um corte de cabelo, um edifício ao anoitecer. O primeiro

cinema de Warhol parecia recusar identificar na passagem do tempo qualquer diferença de

intensidade pela qual pudesse extrair dele uma forma temporal outra que não a de uma pura

duração prolongada. O cinema estrutural teria absorvido ao conjunto de procedimentos do

chamado cinema de vanguarda a “dádiva temporal” do artista pop (SITNEY, 2002, p.368).

A entrada da duração enquanto problema teórico no campo do cinema experimental se

baseava em uma interpretação particular de noções tomadas de empréstimo do debate da arte.

A noção de formato de Sitney recuperava o conceito que Michael Fried havia proposto em

Art and Objecthood, ensaio publicado dois anos antes na Artforum. No ensaio, Fried defendia

que o formato havia se tornado o principal valor sensível para uma certa geração de artistas

que rompia com os paradigmas da pintura e escultura modernista, que ele caracterizaria como

“literalista”. A noção de Fried pretendia sublinhar o caráter fortemente unitário e simplificado

dos trabalhos tridimensionais de Donald Judd, Tony Smith, Sol Lewitt e Carl Andre, que se

tornariam conhecidos como expoentes da arte minimalista. Em um ensaio célebre, Judd

defendia o que caracterizava a arte de sua geração era a consciência da pintura e escultura

como “formas particulares circunscritas”, “menos neutras” e “mais definidas” (JUDD, 2006,

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p.96). “O principal problema da pintura é”, justamente, “que ela é um plano retangular

chapado contra uma parede” (JUDD, 2006, p.98). O retângulo é “uma forma [shape] em si

mesma” (JUDD, 2006, p.98), que determina em última instância a natureza de tudo aquilo

que pode ser colocado sobre ou dentro dele. O que levou Judd a abandonar a pintura foi a

consciência de que ela em última instância sempre o levaria à prática da composição

relacional, isto é, a construção de um todo formado de partes diferenciadas que se relacionam

entre si sob princípios composicionais. O observador da pintura se perderia, absorvido, na

apreciação das relações internas entre os seus elementos. “Quando você começa a relacionar

partes, em primeiro lugar, você está supondo que tem um todo vago - o retângulo da tela - e

partes definidas”, quando “você deveria ter um todo definido e quem sabe nenhuma parte”

(JUDD, 2006, p.126). A noção de formato pretendia descrever uma arte que dispensava a

segmentação e articulação que caracterizavam historicamente a pintura, em nome de uma

indiferenciação e saturação interna.

O que o observador experimenta, contudo, ao se encontrar com as formas indivisíveis

dos artistas minimalistas era a experiência “de um objeto em uma situação - uma situação

que, virtualmente por definição, inclui o observador” (FRIED, 1998, p.153). A afirmação do

crítico repercutia em particular os escritos de Robert Morris. O artista concebia a experiência

de suas formas unitárias a partir da relação que elas estabeleciam com o corpo situado do

observador. A preferência de Morris por poliedros simples se explica pelo seu desejo de

esgotar internamente seus objetos, de modo a ressaltar a sua relação com o entorno (FIG. 1).

A arte minimalista “toma as relações para fora da obra e faz delas uma função do espaço, da

luz e do campo de visão do observador” (MORRIS apud FRIED, 1998, p.153). A constância

do formato servia como ponto de referência para a variação contingente e interminável da

percepção. O que o artista reivindicava era a experiência sem inicio, nem fim, do corpo do

observador no espaço e tempo físicos. Uma parte considerável dos artistas minimalistas

procuravam objetivar em seus trabalhos, não por acaso, a própria ideia de uma obra

interminável (endless) - a partir, por exemplo, da repetição de módulos idênticos, que

poderiam, de direito, ser multiplicados ad infinitum (FIG.2). A experiência em questão,

portanto, “persiste no tempo, e a apresentação da interminabilidade que, como venho

afirmando, é central para a arte e para a teoria literalista [minimalista] é essencialmente a

apresentação de uma interminável e indefinida duração” (FRIED, 1998, p.166).

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FIG.1 Untitled (1965), Robert Morris

FIG.2 Untitled (1967), Donald Judd

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A duração aparece no artigo de Fried como signo do surgimento de uma sensibilidade

nova, que rompia com os supostos preceitos da arte modernista. As proposições

tridimensionais de artistas como Morris, Judd, Andre, Lewitt e Smith rompiam com a dita

presentidade da pintura e escultura moderna que o crítico apreciava com tanto gosto, em

nome de uma experiência de duração. A presentidade era a sua suposta transcendência ao

tempo. O crítico não queria afirmar ao dizer que a arte moderna se experimentava

instantaneamente que a sua observação não demandasse tempo, mas que a duração da

experiência era acidental e não essencial à obra de arte, “como se, para alguém infinitamente

mais perspicaz, um único instante infinitamente breve fosse suficientemente longo para que

ele tudo visse, para que ele experimentasse o trabalho em toda a sua profundidade e

plenitude” (FRIED, 1998, p.167). O argumento de Fried assumia, assim, uma conotação em

última instância teológica, pela qual se revelava uma escatologia secreta. Em uma carta de

resposta a Fried publicada na Artforum, Robert Smithson invocou a descrição do inferno por

Jonathan Edwards, o teólogo americano referenciado na epígrafe Art and Objecthood. A ideia

de condenação eterna exposta no texto se contrasta com a concepção tradicional da

eternidade, na qual ela é descrita como um instante atemporal, sem duração, onde todos os

tempos coexistem simultaneamente5. O destino dos condenados é, por sua vez, o de

habitarem uma duração interminável: “jamais haverá fim para essa horrível, perfeita miséria,

quando você olhar adiante, você vai ver uma longa eternidade, uma duração ilimitada a sua

frente, que vai engolir seus pensamentos” (EDWARDS apud SMITHSON, 1996, p.66). A

transcendência da arte modernista em relação ao tempo consistia, assim, em uma promessa de

salvação: “Presentidade é graça” (FRIED, 1998, p.169). A “duração ilimitada” minimalista

era, ironizava Smithson, o próprio inferno.

A teoria do cinema estrutural resgatava os termos da discussão de Fried. O uso dos

conceitos era, contudo, impreciso. A experiência da duração de grande parte do cinema

estrutural, no entanto, remete à sensibilidade minimalista descrita por Fried. Uma grande

parte dos filmes estruturais podem ser concebidos como atualizações de um processo em si

mesmo interminável. As extremidades do zoom de Wavelength são antes determinações

exteriores e arbitrárias, do que marcações temporais definidas. O processo revela um grande

meio indiferenciado, sem início, nem fim. A impressão que o filme de Snow nos deixa é a de

que o que vemos poderia muito bem se tratar de um fragmento arbitrário, retirado de um

5 Ver, por exemplo, o texto clássico de Santo Agostinho (2017, Livro XI,).

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zoom temporalmente ilimitado, que se expandiria infinitamente para ambas as direções do

tempo, para o passado e para o futuro, não mais constrangido pelos limites materiais da

câmera, das lentes e do espaço filmado. O grande triunfo de Wavelength foi, é claro, o de

fazer o início e término de um processo em si mesmo infinito coincidir em momentos da

imagem os quais poderíamos extrair as marcações de um drama secreto, incluindo um

clímax. O drama se conclui quando o zoom finalmente ultrapassa as bordas de uma fotografia

pendurada numa parede, entrando na imagem fotográfica. O processo do filme, contudo, não

deixa de mover-se por isso de maneira independente e automatizada, como se fosse em última

instância indiferente à matéria imagética em que ele se incorpora. Michael Snow não teria

escolhido por acaso uma fotografia do mar para concluir o seu filme: uma imagem do

infinito.

A noção de formato compartilhada pelos artistas minimalistas também parece

apropriada para descrever grande parte dos filmes estruturais. O uso do termo sugere a recusa

da composição relacional que preside filmes como Wavelenght, Back and Forth (1969), Film

in Which There Appear Edge Lettering, Sprocket Holes, Dirt Particles, Etc. (1996), The

Flicker (1966) e Serene Velocity (1970). A despeito dos filmes resultarem de um trabalho às

vezes meticuloso de edição, o cinema estrutural em grande medida não opera por montagem,

nem por decupagem, uma vez que dispensa o trabalho de composição propriamente dito. O

formato total do filme é decidido em um único ato, de modo que o trabalho de edição pode

apenas ser compreendido a partir da singularidade desta decisão inicial, que se atualiza de

maneira virtualmente automática. A decisão pelo formato total antecede e determina o

trabalho de edição, como uma forma imposta de fora. A maneira como Sitney trata os termos

“estrutura” e “formato” como noções intercambiáveis revela-se agora profundamente

problemática. A noção de estrutura parece sugerir, justamente, um arranjo segmentado e

articulado de partes em um todo. A grande maioria dos filmes comentados pelo crítico em seu

ensaio de 1969, possuem, ao contrário, um formato unitário, internamente indiferenciado, no

qual não se reconhece partes demarcadas.

3. Monomorfismo

O articulador do grupo Fluxus, George Maciunas, foi o primeiro a reconhecer o

caráter problemático do conceito de cinema estrutural. Em dezembro de 1969, o designer

lituano publicou uma crítica aberta contra o ensaio de Adam Sitney, construída na forma de

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uma tabela. O texto pretendia criticar o artigo em, pelo menos, dois níveis distintos: o

terminológico e o genealógico. Maciunas, primeiramente, pretendia rejeitar o conceito de

“cinema estrutural”, propondo em seu lugar uma terminologia alternativa, onde os filmes

ditos estruturais seriam caracterizados, na verdade, pela sua “estrutura monomórfica”

(MACIUNAS, 2015, p.41). O termo “cinema estrutural” seria “semanticamente incorreto,

pois estrutura não significa e não implica simplicidade” (MACIUNAS, 2015, p.41). Uma

estrutura é “um arranjo de partes de acordo com um modelo, padrão e organização tanto

complexos quanto simples” (MACIUNAS, 2015, p.41). A definição de Sitney se revelaria,

portanto, incongruente, na medida em que o qualificativo de estrutural não implicaria,

necessariamente, o caráter predeterminado e simplificado da forma atribuído aos filmes. A

noção de estrutura era, assim, vasta demais. A principal característica dos filmes seria, na

verdade, o seu caráter marcadamente unitário. Maciunas propunha a noção de monomorfismo

como terminologia substituta. Um trabalho monomórfico possuiria “uma forma simples,

única; exibindo essencialmente um padrão estrutural” (MACIUNAS, 2015, p.41). A noção de

monomorfismo, curiosamente, pressupunha a duração de uma maneira que a ideia de

estrutura não conseguia implicar. A afirmação de que um determinado filme era monomórfico

significava, antes de tudo, que a sua fruição estava baseada no reconhecimento de uma forma

singular que perdura no tempo. A ideia de uma arte do tempo monomórfica revela-se, assim,

imediatamente como uma arte da duração, na medida em que ela trazia ao primeiro plano a

experiência consciente da persistência temporal.

A noção de monomorfismo é uma daquelas categorias que o tempo tratou de apagar

da memória. O conceito elaborado por Maciunas, no entanto, encontra validação em grande

parte da produção dos anos 1950 e 1960. A grande contribuição do articulador do Fluxus é a

de ter oferecido uma outra genealogia para o cinema monomórfico, que o permitia situar

dentro do campo expandido das artes experimentais do pós-guerra, que ficaria conhecido, na

época, como neovanguarda. O artigo de Sitney, por sua vez, afirma Maciunas, parecia ignorar

a existência de proposições monomórficas em outras artes. O articulador do Fluxus nomeia

em particular trabalhos de John Cage e de seus alunos do curso de Composição Experimental,

que ministrou no final dos anos 1950 na New School for Social Research. A defesa de uma

prática artística definida por formas singulares se transforma em um motivo retórico

importante, sobretudo, a partir do discurso de um dos mais ambiciosos alunos de Cage, o

artista e compositor George Brecht. O discípulo teria sido o inventor do procedimento da

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partitura de acontecimento. A forma seria experimentada por grande parte dos alunos e

ouvintes do curso, que incluía vários artistas que, no começo dos anos 1960, se reuniriam em

torno de Maciunas e formariam o grupo Fluxus, como Dick Higgins, Jackson Mac Low, Al

Hansen, Allan Kaprow, Toshi Ichiyanagi e La Monte Young. Como define Hannah Higgins, o

procedimento foi “a mais durável inovação que emergiu da [aula de Cage] (…), uma técnica

de performance que tem sido usada extensivamente por virtualmente todos os artistas do

Fluxus” (HIGGINS, 2002, p.21).

FIG.3 Drip Music (1959), George Brecht

As partituras de acontecimento eram instruções verbais para a realização de uma

performance. As primeiras performances de Brecht eram reminiscentes, no entanto, dos

happenings (Fig.), que naquele momento eram bastante praticados entre o círculo de artistas

ao redor de Cage. Os happenings são profundamente “polimórficos”, como dizia Maciunas

(MILLER, 2002, p.107), uma vez que envolviam a performance concomitante de várias

atividades distintas: o happening se baseava em uma estética da simultaneidade, reminiscente

das práticas modernistas de colagem e montagem, antes que em uma estética da duração. No

final dos anos 1950 e início dos 1960, as partituras de Brecht se tornaram mais concisas e

diretas, ao mesmo tempo que em as instruções passaram a demandar a realização de uma

única ação singular (FIG.3). Em 1963, a partitura de Brecht Drip Music foi performada por

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Maciunas no Festum Fluxorum, em Düsseldorf. Do alto de uma escadaria, Maciunas

derramou delicadamente a água contida em um jarro, que segurava com uma das mãos, de

modo que a água escorresse lentamente, em pequenas gotas, na vasilha depositada logo

abaixo, no chão. Um microfone havia sido colocado na vasilha, de modo que o som era

amplificado e espacializado por toda a sala, envolvendo todos no tintilar da água. O que

caracteriza primeiramente o trabalho é o foco em um único acontecimento singular. A

experiência da duração do acontecimento era a de uma “mudança estática” (BRECHT, 2002,

p.96). A mudança é estática uma vez que demanda uma escuta ateleológica. O som ocupa o

tempo, mas não se move no tempo: “nenhum ir, nenhum vir” (BRECHT, 2002, p.96). Trata-

se de uma variabilidade imóvel: “nenhum progresso, nenhum regresso, (...) pontualidade

completa” (BRECHT, 2002, p.96).

A forma da partitura de acontecimento seria apropriada por La Monte Young em 1960,

que se tornaria uma figura decisiva para a emergência da questão da duração na arte

contemporânea. A trajetória musical de La Monte se define, justamente, pela exploração de

estases harmônicas e sons contínuos desde sua obra inaugural, Trio for Strings, de 1958,

conhecida como a primeira peça musical minimalista. A peça foi a primeira composição na

qual utilizou a sua técnica de sustentação de acordes por longos intervalos de tempo, sendo

formada por tons contínuos, sucedidos por longos silêncios. A participação como ouvinte nas

aulas de Composição Experimental levaria o músico a realizar uma série de partituras verbais

marcantes, intituladas Composition 1960. Em Composition 1960 #7, encontramos uma

instrução para uma performance célebre: o intérprete deveria sustentar um intervalo de quinta

por “um longo tempo”, sem que a partitura determinasse a duração. A peça foi performada

pela primeira vez em 1961 em Nova York, com uma duração de 45 minutos. A estratégia de

La Monte é a “saturação da uniformidade” (FLYNT, 1996, p.68): isolar um acontecimento e

saturar todo o campo perceptivo com sua presença. A peça convida o ouvinte a “entrar no

som” e a “ver como cada som era seu próprio mundo” (YOUNG, 1965, p.74). O som único

transforma-se no tempo e no espaço, em razão da flutuação dos harmônicos. Um único

acontecimento sonoro poderia conter uma grande variabilidade acústica para quem soubesse

escutá-la. O avatar privilegiado por La Monte não era mais o ponto, como havíamos

encontrado no discurso de Brecht, mas a linha (Fig.). A linha “era uma das expressões mais

austeras, mais singulares da unidade” (YOUNG, 2004, p.44). A linha, no entanto, era

interessante porque “ela era contínua” - “um potencial de existência no tempo” (YOUNG,

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2004, p.44). Composition 1960 #7 se revela como uma linha sonora de extensão virtualmente

infinita. Uma linha que sempre começamos a traçar do meio e sempre paramos antes do fim.

A peça de La Monte serviria de inspiração declarada para a possível primeira

proposição duracional na tradição do cinema de artista americano (MAC LOW apud

BOVIER, 2012, p.23). Tree Movie foi uma partitura de acontecimento, escrita em 1961 pelo

compositor e poeta Jackson Mac Low, publicado três anos depois na revista editada por

Brecht Fluxus ccV . A instrução para performance teria inventado um procedimento que viria

a se tornar muito conhecido pelas mãos de outros artistas, especialmente de Warhol: o ato de

posicionar fixamente uma câmera, ligar o aparelho, e abandoná-lo imóvel por um longo

intervalo de tempo. “Selecione uma árvore. Instale e foque a câmera de modo que a árvore

preencha a maior parte da imagem. Ligue a câmera e deixa-a ligada por algumas horas”

(MAC LOW apud BOVIER, 2012, p.23). A proposta não apenas deixa a duração do filme

indeterminada, como define que o trabalho é, por princípio, interminável: “começando em

qualquer ponto do filme, qualquer metragem dele pode ser projetada em uma mostra” (MAC

LOW apud BOVIER, 2012, p.23). O projeto cinematográfico de Mac Low antecipa uma série

de filmes monomórficos que artistas do Fluxus realizariam durante os anos 1960, em que a

experiência da duração aparece como determinante, como Zen for Film (1964), de Nam June

Paike, 9 Minutes (1966), de James Riddle, Eye Blink (1966), de Yoko Ono, 1000 frames

(1966), de Maciunas. A antologia de Filmesfluxus organizada por Maciunas incluiria dois

trabalhos que são originalmente partituras de acontecimento: Entrance to Exit (1965), de

Brecht, e Disappearing Music for Face (1964), de Mieko Shiomi, demonstrando a

ascendência que a forma inventada por Brecht teve na constituição do cinema de duração.

Os primeiros filmes de Warhol derivam em grande medida de preocupações em

comum com os artistas do Fluxus. O artista cultivava bastante interesse nos procedimentos de

duração que estavam sendo propostos em outras artes, especialmente na música. Warhol foi

um dos artistas que esteve presente no concerto de Vexations, produzida por John Cage e

Lewis Lloyd no Pocket Theatre em Nova Yorque, em 1963, logo antes de iniciar a sua

incursão pelo cinema. Vexations é uma peça composta por Erik Satie em 1893 e publicada

postumamente pelo próprio Cage em meados dos anos 1940. O que singulariza o trabalho e

lhe rendeu sua fama foi uma anotação de Satie na lateral da partitura original: “Para tocar

esse tema 840 vezes seguidas, deve-se preparar-se com antecedência, em profundo silêncio,

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em grave imobilidade”6. O sentido da instrução de Satie é um tema controverso na herança

crítica do compositor, que em grande medida tende a duvidar de que o músico francês, de

fato, ambicionava a sua realização literal7. A obra se constitui, ainda assim, como uma

partitura de acontecimento avant-la-lettre. Doze músicos revesaram o piano durante a

apresentação de 1963, que chegou a durar cerca de 18 horas. Warhol conservaria a

performance na memória como uma experiência particularmente excitante8. O artista

mantinha com Cage, na verdade, uma relação de admiração profunda e de longa data9. O

concerto de 1963 forneceu um modelo para o seu primeiro filme de longa duração, Sleep

(1963), como o próprio artista não tardou a reconhecer10.

A noção de monomorfismo, portanto, permite construir uma outra história da

experiência da duração no cinema. A história do procedimento esboçada em Structural Film e

consolidada com a publicação de Visionary Film deixa transparecer o projeto de Sitney de

construção do cinema como campo autônomo. A tentativa de determinar a origem do

procedimento da duração a partir do próprio cinema permitia que o crítico ignorasse que a

duração havia se tornado um conceito transversal às diversas artes. A genealogia esboçada

por Maciunas nos coloca, contudo, em um terreno completamente diferente, ao remeter o

monomorfismo ao circuito das artes experimentais transdisciplinares desenvolvido ao redor

de Cage, onde as noções modernistas de autonomia, separação e autodeterminação dos meios

artísticos estavam sendo colocadas em questão. O monomorfismo aparece, assim, como uma

categoria suficientemente simples para que possa ser aplicada a um conjunto bastante diverso

de trabalhos, aproximando tradições que normalmente costumamos pensar separadamente,

como o minimalismo, o Fluxus, a música experimental, a pop art e o cinema estrutural. A

ideia, contudo, não deixa de ser um pouco desconcertante. O que poderia ter conduzido um

grupo tão grande de artistas, de temperamentos tão distintos, a se interessar por um

6 A citação pode ser consultada em ORLEDGE, 1998.7 O musicólogo especialista na obra de Satie Robert Orledge argumenta que “não há nenhuma evidência de queSatie tinha a intenção de publicar Vexations, e nunca a mencionou em suas cartas que sobreviveram”(ORLEDGE, 1998, 391).8 O jornalista George Plimpton relatou uma conversa com Warhol sobre Vexations, onde o artista pareciaguardar uma lembrança entusiasmada da performance. Na mesma conversa, Warhol teria afirmado, inclusive, ofato duvidoso de que ele teria permanecido as 18 horas do concerto no teatro (STEIN e PLIMPTON, 2006).9 Em uma entrevista para rádio em 1963, Warhol insistiria em sua fascínio pela obra de Cage, de maneira poucousual para as suas entrevistas, em geral muito elusivas e lacônicas (WARHOL, 2004, p.42). Na entrevista comBenjamin Buchloh, o artista declara que conheceu o compositor ainda na adolescência (BUCHLOCH, 2001,p.121). 10 Ver WARHOL, 2004, p.42.

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procedimento aparentemente tão desinteressante como o reduzir uma obra a uma forma

unitária, sem partes diferenciadas? O que tornou a experiência da duração fascinante para

tantos artistas, quando suas propriedades mais notáveis parecem ser a princípio muito pouco

atraentes, como a uniformidade e a interminabilidade?

Crítica da composição

A hipótese que eu gostaria de defender é a de que o monomorfismo constitui uma das

respostas possíveis para um problema que a maioria dos artistas americanos do pós-guerra

precisou confrontar: a crise da composição. A crise se constitui como um dos maiores

motores da arte do século XX, quando a compreensão da arte como prática de composição

perdeu o seu estatuto autoevidente. O monomorfismo pode se revelar como um caso

particular do que Yve-Alain Bois (2007) tem chamado de estratégias de não-composição:

“métodos de suprimir a composição (...) e motivar a prática da arte por meio de algum

princípio de ordenação que não dependeria da decisão subjetiva” (BOIS, 2007). A realização

de trabalhos monomórficos tendem a reduzir a escolha subjetiva a uma única decisão. As

diferentes estratégias de não-composição não apenas respondem à crise cada uma a sua

maneira, como transformam retroativamente os próprios termos da crise. O monomorfismo

parece ser uma resposta para a crise da ideia de que haveriam princípios válidos de

segmentação e articulação de uma determinada matéria. O monomorfismo é uma crítica à

ideia de composição como “relação ordenada e intencionada de partes discretas”

(SINGERMAN, 2003, p.132). A crise é, em última instância, um mal-estar com a própria

atividade de dar forma.

As coordenadas pelas quais o problema se desenvolveu para os artistas dos anos 1950

e 1960 deve ser procurada uma década antes. A despeito da oposição entre modernismo e

neovanguarda que domina a historiografia da arte americana dos anos 1960, a obra de artistas

como Jackson Pollock representaram para a geração posterior um conjunto particularmente

urgente de questões as quais seria preciso prestar contas. A formulação da crise da

composição na pintura foi dada de maneira particularmente aguda por Greenberg no artigo de

1948 A Crise da Pintura de Cavalete. A pintura ocidental, desenvolvida na esteira do

Renascimento, se diferenciaria radicalmente, de acordo com o crítico, de seus contrapartes

orientais, como a miniatura persa e a pintura chinesa, na medida em que subordina “o

decorativo a um efeito dramático” (GREENBERG, 1989, p.154). O drama é, antes de tudo,

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uma forma de coerência, um modo de manter juntos as partes de uma obra.“Em música não

menos que em literatura, a forma faz a si mesma real através da coerência que sustenta a

atenção e envolve a emoção com que um número infinitamente divisível de momentos

precede e sucede uns aos outros. Esta coerência pode ser chamada de coerência dramática ou

climática” (GREENBERG, 1989, p.243). O drama em pintura seria a diferenciação

contrastante da superfície pictórica pela qual se pode extrair a sua coerência sensível. A forma

dramática é uma forma em desequilíbrio, que estabelece uma hierarquia de ênfases e

intensidades na superfície plana do quadro: uma arte da composição.

A história da pintura modernista é, contudo, a história do reconhecimento progressivo

da planaridade do quadro. A tendência de reduzir a profundidade ilusória da pintura não

atacava necessariamente “os princípios tradicionais da composição” (GREENBERG, 1989,

p.155). O aplanamento não ameaça a coerência climática da pintura de cavalete, na medida

em que suas “formas sejam suficientemente diferenciadas em termos de luz e escuridão, e

mantidas em desequilíbrio dramático” (GREENBERG, 1989, p.155). Os impressionistas

ortodoxos, especialmente o Monet tardio, aplicavam a tinta de maneira consistente por toda a

superfície de quadro, tratando cada parte com a mesma pincelada e ênfase manual, de

maneira que a pintura parece ameaçar reduzir-se a “uma superfície relativamente

indiferenciada” (GREENBERG, 1989, p. 154). A pintura impressionista ainda se apresenta,

em grande medida, como um teatro de formas, antes que “um único, indivisível, pedaço de

textura” (GREENBERG, 1989, p.155). A situação, no entanto, chegaria a um limite na

pintura que considerava a mais “avançada” de sua época, que estava levando a tendência de

indiferenciação identificada na obra tardia de Monet às suas últimas consequências. O crítico

denominou a prática de seus contemporâneos de pintura all-over, em uma de suas criações

conceituais mais conhecidas.

A pintura madura de artistas como Mark Tobey, Jackson Pollock, Ralph Rosenborg e

Janet Sobel se apresenta como uma distribuição descentralizada de elementos similares pela

superfície do quadro. As pinceladas, manchas e borrões de tinta repetem a si mesmos sem

variação demarcada de um limite ao outro do retângulo, “dispensando, aparentemente, com

início, meio e fim” (GREENBERG, 1989, p.155). Um observador que parasse diante de uma

pintura de Pollock poderia sentir que os limites do quadro são uma restrição puramente

arbitrária para uma pintura que é, na verdade, interminável, que deveria se expandir em todas

as direções sem poder jamais distingui-las, repetindo a cada grão conquistado de espaço a sua

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“uniformidade alucinatória” (GREENBERG, 1989, p.257). O retângulo seria “uma

interrupção abrupta da atividade”, como escreve Allan Kaprow em um texto célebre, “que

nossa imaginação faz seguir indefinidamente, como se se recusasse a aceitar a artificialidade

de um 'final'” (KAPROW, 2006, p.41). O pintor americano parecia violar os princípios da

composição da pintura de cavalete, tingindo o gênero com “uma fatal ambiguidade”

(GREENBERG, 1989, p. 155). Embora Greenberg reconheça que se trata ainda de uma

pintura em última instância dramática, a pintura all-over se aproxima perigosamente da

plasmosidade da arte decorativa – como a encontrada em “padrões de papéis de parede, que

podem ser repetidos indefinidamente” (GREENBERG, 1989, p. 155). A ansiedade de

Greenberg diante do decorativo pode despertar hoje um meio sorriso jocoso, mas não se deve

duvidar da agudeza de sua observação. Warhol, não por acaso, realizaria menos de duas

décadas depois a primeira de sua série de papéis de parede, Cow Wallpaper (1966), repetindo

um único padrão formal por toda a superfície do papel. Maciunas, por sua vez, organizaria

projeções em loop dos filmes do Fluxus, os denominando de film-wallpapers.

A dança do dripping recusava a composição não apenas por ter liberado o gesto do

corpo da forma intencionada, descoberto o seu próprio automatismo. “Com a tela enorme

estendida no chão, o que tornava difícil para o artista ver o todo ou qualquer seção

prolongada de 'partes', Pollock podia verdadeiramente dizer que estava 'dentro' de sua obra”

(KAPROW, 2006, p.40). A pintura podia dispensar assim, não apenas as relações entre partes

delineadas, mas entre as partes e um todo definido. A obra de Pollock, afirmava Kaprow,

questionava “as considerações a respeito da composição” (KAPROW, 2006, p.40), de uma

maneira que nem a pintura dadaísta se dispunha a realizar, uma vez que, as “relações da

parte-ao-todo ou de parte-a-parte, por mais tensionadas que fossem” consistiam ainda uma

parte significativa da feitura do quadro (KAPROW, 2006, p.40). A crise da composição na

pintura all-over teria, naturalmente, grandes desdobramentos na arte americana. Greenberg

reconheceu duas categorias operantes na pintura all-over que antecipam e possibilitam o

abandono progressivo da composição na arte das décadas seguintes, que encontraremos em

chaves diferentes no Fluxus, no minimalismo, no pop, na música experimental. As categorias

se revelarão pertinentes, sobretudo, para definir o cinema de duração que temos investigado

desde o começo deste texto: a uniformidade, a interminabilidade e uma última, que merece

um comentário mais extenso, – a equivalência.

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A noção de equivalência o crítico resgata dos escritos de Mondrian, onde o termo

servia para caracterizar o tipo particular de relações que o pintor privilegiava na sua obra: as

relações entre termos de igual importância, termos que possuem “o mesmo valor”

(MONDRIAN, 2001, p.432). O princípio de composição de Mondrian era, assumidamente,

“dualista” (MONDRIAN, 2001, p.431), operava pelo contraponto de termos opostos, como a

vertical e a horizontal. A distinção, contudo, não se imprimia na tela de modo a estabelecer

uma hierarquia formal, uma partilha desequilibrada de intensidades, mas procurava se

distribuir harmonicamente na superfície do quadro. A forma de composição de Mondrian

antecede e possibilita a crise do próprio paradigma composicional. As “relações de

equivalência” (MONDRIAN, 2001, p.431) manifestavam para o pintor holandês antes que

um princípio de composição, uma cosmovisão. A contemplação da equivalência de termos

opostos é possível porque a ideia da “unidade é potencial na nossa consciência”, uma vez que

esta é “uma instância particular da consciência universal, que é una” (MONDRIAN, 2001,

p.431). A crença de Mondrian, de fundo neoplatônico e teosófico, provavelmente deveria

causar certo embaraço a um crítico como Greenberg, que gostaria de encontrar no

desenvolvimento da abstração um movimento de autocrítica do campo da arte análogo ao

processo de racionalização moderno das esferas da vida. A concepção de Mondrian, contudo,

parece se insinuar sorrateiramente no seu discurso: o crítico palpita que, a equivalência “em

acentuação e ênfase” (1989, p.156) de toda área da pintura all-over talvez exprimisse uma

concepção monista do ser. O crítico acrescenta – para o bem-estar dos seus leitores – um

nome terreno: um “naturalismo monista” (1989, p.157).

O all-over talvez responda ao sentimento que todas as distinções hierárquicas foram

literalmente esgotadas e invalidadas; que nenhuma área ou ordem da experiência é

intrisecamente superior, em qualquer escala de valores, a nenhuma outra área ou

ordem da experiência. Ele talvez expresse um naturalismo monista para qual não

existem coisas primeiras, nem últimas, e que reconhece como a única distinção final

aquela entre o imediato e o não imediato.

(GREENBERG, 1989, p.157)

A ideia de um naturalismo monista não foi retomada, nem desenvolvida por

Greenberg. A momentosa mudança de sensibilidade que ele sentia na pintura de seu tempo,

no entanto, demandava do crítico uma especulação de ordem cosmológica, mesmo quando,

sabidamente, cultivava pouco apreço por questões de interpretação. A passagem da crise da

composição na pintura para o contexto das artes tradicionalmente consideradas temporais

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pode se mostrar reveladora para compreender a gênese da duração no cinema. Os

compositores de Nova York da mesma geração de Pollock, como John Cage, Morton

Feldman, Earle Brown e Christian Wolf, também se depararam com a crise da forma

dramática, assim como viam na pintura de seu tempo um modelo a seguir. A estase constitui a

característica mais marcante da nova música no que diz respeito a experiência do tempo. A

“consciência contemporânea da forma”, escreve Cage, “era estática, antes que progressiva em

caráter” (CAGE, 1968, p.81). A estase era uma das respostas à crise da música tonal,

entendida como um sistema centralizado e hierárquico, que modula uma progressão temporal

a partir de relações entre termos diferenciados, como antecedente e consequente, causa e

efeito, tensão e repouso. A música da segunda metade do século XX, por vez, ocupava o

tempo, sem mover-se no tempo. O crítico Leonard Meyer, em um artigo originalmente

publicado em 1963, afirmava que, na medida em a música de Cage e seus contemporâneos

“apresentava uma sucessão antes que uma progressão de acontecimentos”, ela era

“essencialmente estática” (1994, p.81). “Não existem pontos de culminação ou foco. Todos

os acontecimentos se equivalem em importância e o tempo, como ordinariamente

concebemos, se dissolve. Há apenas duração” (MEYER, 1994, p.81).

A descoberta de Cage da série de pinturas all-over de Mark Tobey (FIG. 4) seria

evocada, curiosamente, como o acontecimento transformador pela qual o artista teria

percebido, nos termos de Greenberg, que “nenhuma área ou ordem da experiência é

intrisecamente superior, em qualquer escala de valores, a nenhuma área ou ordem da

experiência”. Em uma anedota conhecida, Cage se lembra da saída de uma exposição de

Tobey, quando percebeu, enquanto esperava seu ônibus na Madison Avenue, que não

conseguia perceber a diferença entre a pintura que tinha acabado de o impressionar a calçada

sob seus pés. O prazer era o mesmo. O compositor aprendeu da pintura de Tobey e, depois,

do próprio pintor que “todo lugar para qual você olha é a mesma coisa” (CAGE, 1996, p.54),

“Você não precisa realmente do quadro de Tobey. Mas você precisa dele para dizer isto”

(CAGE, 1996, p.54). A anedota de Cage antecipa a compreensão da experiência do som que

desenvolveria a partir dos anos 1950. A ideia, demonstrada em 4’33’’, de que “não existe algo

como o silêncio” (CAGE, 1973, p.121) rompe não apenas com o dualismo tradicional do som

e do silêncio, como também o da música e do ruído. A performance, como se sabe, convidava

os ouvintes a escutarem os sons ambientes de uma sala de concerto – ruídos que tomávamos

como discretos e desimportantes demais para que prestássemos atenção. A ruptura permite a

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construção de um monismo superior, no qual encontra-se invalidada toda a repartição do

continuum sonoro por uma instância de juízo transcendente. As propostas musicais que

realizaria dos anos 1950 em diante, a partir das ideias de operações do acaso e

indeterminação, apenas estendem a disciplina de abertura que encontramos em sua peça

silenciosa.

FIG. 4 Crystallizations (1944), Mark Tobey

Os monomorfismos dos anos 1960 herdam de uma proposição como 4’33’’a

compreensão da prática de redução como uma atividade propriamente afirmativa. A redução

da composição ao silêncio permite que toda uma outra série de sons sejam escutados,

apagando a distinção entre o vazio e o pleno. A redução deixa de ser uma instância da

negatividade para se torna uma prática de produção de multiplicidade. O mesmo raciocínio

pode ser aplicado aos procedimentos de redução à unidade que definem o cinema

monomórfico. A duração no cinema de Warhol não é a submissão do tempo a uma forma

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unitária, mas a liberação de diferenças informais. O tédio pode advir, naturalmente, do

aplanamento das diferenças de intensidade, um tempo no qual todos os acontecimentos se

equivalem. O primeiro cinema de Warhol mostra-se bastante consciente, contudo, do jogo

pela qual da repetição se extrai a diferença, da mesma forma que sabe que o tédio, quando

suficientemente prolongado, pode aguçar nossa capacidade de se interessar pelo que se põe à

nossa frente. “A mais leve variação se torna um acontecimento”, escreve Henry Geldzahler a

respeito de Sleep, em uma crítica da época, “alguma coisa na qual podemos focar a nossa

atenção” (2002, p.300). A duração nos primeiros filmes de Warhol, ainda, torna transparente a

própria situação da projeção: a miríade de grãos, aranhões e cintilações que se dispersam

acentradamente pela superfície da tela. Quando Warhol diz que “tudo é interessante”

(WARHOL, 2004, p.187), deve-se ter em mente a mesma disposição de esgotar e invalidar

toda repartição do continuum da experiência em regiões demarcadas e hierarquicamente

valoradas.

A monótona intensidade da pintura all-over certamente encantou um artista como

Michael Snow, que antes de se tornar cineasta, não por acaso era pintor. Em uma declaração

bastante conhecida, afirmou ter concebido Wavelenght como um “monumento de tempo”, que

celebrava “a beleza e a tristeza da equivalência” (SNOW, 1994, p.40). Em filmes como

Wavelenght, Back and Forth, e La Region Centrale (1971), o artista procurava “construir uma

espécie de equivalência de todo o campo – de modo que tudo tenha absolutamente igual

importância” (SNOW, 1994, p.90). O procedimento do zoom responde de maneira

particularmente contundente para o problema da distribuição igualitária de relevância no

campo visual, dado que se trata de um processo global, que transforma plasticamente toda a

superfície da tela no mesmo ritmo, sem privilegiar nenhum ponto. A indiferenciação

valorativa do campo temporal é ainda mais distinta, pois que a uniformidade do ritmo, a

continuidade das transformações e autonomia do processo assinala a ausência de divisões

formais, que poderiam segmentar o transcorrer do tempo em momentos demarcados e

estabelecer entre os segmentos diferenças de importância: a duração é um platô de

intensidade. A resolução do problema da equivalência de todo campo não deve ser tomado,

contudo, como um problema puramente plástico. A recusa da composição manifesta uma

crítica a uma concepção dramática do mundo, estruturada pelas repartições entre agente,

ação, lugar e tempo. “O cenário e a ação que tem lugar nele são cosmicamente equivalentes”

(SNOW, 1994, p.40). A diferença entre os acontecimentos humanos e os não humanos que

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tem lugar na imagem se esmaecem em um único campo que se metamorfoseia integralmente

na duração.

O monomorfismo surge para uma parte dos artistas do final dos anos 1950 e início dos

anos 1960, portanto, como uma estratégia de se desfazer da composição. A aposta em uma

estética da singularidade parece derivar, assim, menos de apreço particular pela unidade, do

que pela crítica dos princípios que presidem a prática composicional, como a postulação de

limites formais, a segmentação em partes discretas, o estabelecimento de relações de

interioridade e a marcação de diferenças de valor. A recusa revela os parâmetros mais comuns

da não-composição monomórfica: a continuidade, a uniformidade, a equivalência, a

interminabilidade. A experiência da duração no cinema experimental emerge de um campo de

problemas transversal às artes experimentais dos anos 1950 e 1960, que exprime uma

sensibilidade partilhada, a despeito da grande diferença de propostas, temperamentos e

mídias discutidas. As implicações da duração no cinema, contudo, ainda precisam ser

desenvolvidas: a nossa investigação ainda não começou a realmente responder para onde se

poderia ir, quando se esgotou a composição. Este texto pretendeu, assim, investigar apenas as

origens de uma sensação, de modo a começar a traçar os seus contornos: a experiência de um

tempo que, desconhecendo origens e fins, se retém em uma variabilidade contínua, mas

imóvel.

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