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Estudios Latinoamericanos 6, p. II (1980), pp.343-361 A descoberta da América Latina como terra de missão e continente-problema pela opinião católica belga (1895 - 1970). Eddy Stols Dentro da enorme massa de informações e imagens sobre a América Latina que se veícularam na Europa se destacam a partir da última década do século XIX um interesse crescente e uma preocupação especial de grupos católicos belgas pelo continente latino-americano, Estas imagens latinoamericanas dos católicos belgas refletem sem dúvida parcialmente a evolução da opinião geral a esse respeito mas merecem tanto mais um estudo na medida em que tem influído e interferido sobretudo nos últimos vinte anos nos outros países da Europa Occidental e até na própria América Latina. Pode-se hoje falar de todo um grupo de latino-americanistas, fascinados e preocupados pela América Latina, de origem e formação católica belga, mesmo que se incluam neste figuras bastante contraditórias como J. Comblin e R. Vekemans. Antes de 1890 a opinião católica belga participava apenas na imagem geral bastante difusa de um continente exótico com suas peculiaridades de sangue latino exaltado tal qual a difundiram ocasionalmente os numerosos naturalistas, viajantes e diplomatas belgas em dezenas de livros, artigos e relatórios consulares 1 . Se bem que a tentativa de colonização belga na Guatemala na década de 1840 foi acompanhada de perto pelo cardeal de Malines e pelos 1 Para uma bibliografia ver, embora incompleta, J. Dequenne, Amérique Latine, Essai de bibliographie des ouvrages belges publiés sur l'Amérique Latine, 1875-1962, in «Bibliographica Belgica», 88, Bruxelas, 1965. Faltam sobretudo os numerosos artigos de revistas. Ver ainda o Recueil Consulaire, de 1850 a 1914.

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Estudios Latinoamericanos 6, p. II (1980), pp.343-361

A descoberta da América Latina como terra de missão e

continente-problema pela opinião católica belga (1895 -

1970).

Eddy Stols

Dentro da enorme massa de informações e imagens sobre a América Latina que se veícularam na Europa se destacam a partir da última década do século XIX um interesse crescente e uma preocupação especial de grupos católicos belgas pelo continente latino-americano, Estas imagens latinoamericanas dos católicos belgas refletem sem dúvida parcialmente a evolução da opinião geral a esse respeito mas merecem tanto mais um estudo na medida em que tem influído e interferido sobretudo nos últimos vinte anos nos outros países da Europa Occidental e até na própria América Latina. Pode-se hoje falar de todo um grupo de latino-americanistas, fascinados e preocupados pela América Latina, de origem e formação católica belga, mesmo que se incluam neste figuras bastante contraditórias como J. Comblin e R. Vekemans.

Antes de 1890 a opinião católica belga participava apenas na imagem geral bastante difusa de um continente exótico com suas peculiaridades de sangue latino exaltado tal qual a difundiram ocasionalmente os numerosos naturalistas, viajantes e diplomatas belgas em dezenas de livros, artigos e relatórios consulares1. Se bem que a tentativa de colonização belga na Guatemala na década de 1840 foi acompanhada de perto pelo cardeal de Malines e pelos

1 Para uma bibliografia ver, embora incompleta, J. Dequenne, Amérique Latine, Essai de bibliographie

des ouvrages belges publiés sur l'Amérique Latine, 1875-1962, in «Bibliographica Belgica», 88, Bruxelas, 1965. Faltam sobretudo os numerosos artigos de revistas. Ver ainda o Recueil Consulaire, de 1850 a 1914.

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jesuítas belgas – que aliás procuraram utilizá-la como trampolim para recuperar posições perdidas naquêle país – os católicos belgas dirigiram seus primeiros interesses e esfôrços missionários antes para a América do Norte, a Ásia e já para a África a partir de 18752. Certamente a idéia do império latino de Maximiliano no México, a questão religiosa brasileira em torno de dom Vital e o caso do presidente equatoriano Garcia Moreno suscitaram certa simpatia sobretudo em relação com o conflito interno com os liberais3. Alguns eclesiásticos decidiram a título individual servir a igreja latino-americana tal como Costenoble no Chili de 1848 a 1862 ou acompanhar emigrantes tal como Vanesse para o Brasil ou Marichal para a Argentina4. Todavia de modo geral os católicos belgas, a sua hierarquia, as ordens religiosas, o partido católico não se davam conta da progressiva decristianização da América Latina, apesar que poderiam ter constatado a maior parte dos numerosos estudantes latino-americanos na Bélgica então preferirem antes as universidades laicistas de Bruxelas, Gand e Liege do que a católica de Louvain5. Uma exceção sem maiores consequências formavam os padres jesuïtas de Gand que editavam uma pequena revista «L'Etudiant Catholique», na qual alertavam sobre os avanços do liberalismo ateu na América Latina e procuravam influenciar alguns estudantes latinoamericanos6. Sem eco, também, ficaram a participação e a intervenção de Monsenhor Macedo y Maia, bispo da Bahia, e do padre Ignacio Montes de Oca no México na Assembléia Geral dos

2 Ver a respeito do Guatemala, J. Fabri, Les Belges au Guatemala (1840-1845), Bruxelas, 1955 e sobre o padre Walle, os Précis Historiques, parsim de 1843 a 1882. 3 B. Stols, Les étudiants brésillens en Belgique (1817-1914), in «Revista de História», C, 1974, p. 653-692; Idem, Latijns-Amerikaanse studenten aun de Rijksuniversiteit te Gent (1854-1914), in Uit het

Verleden van de R. U. G., I,1976; A. Van Dorpe, Garcia Moreno, voorzitter van Ecuador, een

slachtoffer der vrijmetselarij, Oostakker, 1907 e 1940. 4 A. Deboutte, Leven van Charles-Lauis Costenoble, Apostolisch Missionaris in Chili, Eerste pastoor

van Jonkershove, Louvain, 1973; B. Stols, Colonisation et intérêets belges en Argentlne (1830-1914), in «Wirtschaftskrafte und Wirtschaftswege» Festschrift für Hermann Kellenbenz, Nürnberg, 1978, IV. 5 E. Stols, Les étudiants brésiliens en Belgique..., o. c.; ver também a participação de um estudante peruano ao movimento revolucionário em J. Bartier, Etudiants et mouvement révolutionnaire au temps

de la premiere internationale. in Mélanges offerts à G. Jacquemyns, Bruxelas, 1968, p. 35-60. 6 B. Stols, Latijns-Amerikaanse studenten..., o.c.

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Católicos em Malines em 18647. Constatamos que não existia ainda uma América Latina encarada como um problema.

Foi o papa Leão XIII que despertou os católicos belgas para uma outra visão da América Latina, apresentada como ameaçada pelos protestantes anglosaxônicos e pela maçonaria. Esta repentina tomada de consciencia do perigo coincide plenamente com, o arranque do surto expansionista dos meios econômicos belgas em direção a América Latina8. Em pouco tempo, a partir de 1893, beneditinos oriundos da congregação de Beuron e das abadias de Maredsous e Saint-André-lez-Bruges – esta última especialmente fundada para suscitar vocações para o Brasil – tomaram sob a liderança e o ímpeto de Monsenhor Gerard van Caloen conta das antigas abadias brasileiras de Olinda, Babia, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraíba e de suas dependências de Campos, Santos e Sorocaba e formaram naves núcleos no Ceará em Quixadá e no Rio Branco na Amazônia9. Logo, seguiram, em 1896, os premonstratenses, os conegos brancos, das abadias belgas de Averbode e do Park perto de Louvain respectivamente para Pirapora em São Paulo, Jaguaráo no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais para Congonhas e posteriormente para a diocese de Montes Claros10. Já no século XX missionários do Sagrado Coração foram, desde 1911, trabalhar na diocese de Pouso Alegre e em algumas cidades do interior de São Paulo, seguidos posteriormente por padres josefitas, enquanto irmãos de la Salle se estabeleceram em Porto Alegre. Alguns dominicanos exerceram seu apostolado na Ilha de Trinidad, no Equador e também no Chile, onde aliás franciscanos belgas povoaram conventos antigos11. Das pequenas ilhas antilhanas, Dominica e Antigua, onde obravam desde

7 Assemblée Générale des Catholiques en Belgique, Deuxième Session à Malines, Bruxelas, 1865, I, p. 392-394 e II p. 567. 8 E. Stols, Colonisation..., o.c.; Idem, L'expansion belge en Amérique Latine vers 1900, in Bulletin de

l'Académie Royale des Sciences d'Outre-Mer, no prelo. 9 M. E. Scherer, Ein grosser Benediktiner, Abt Miehael Kruse von Sao Paulo, (1866-1929), Munique, 1963: E. Neut, La restauration du monachisme au Brésil, Lophem-lez-Bruges, 1927; G. van Caloen, Lettres intimes à sa famille, Bruges, 1933; G. Lefebvre, Un grand moine et apôtre du XXe siècle,

Lophem-lez-Bruges, 1933. 10 E. de Moreau e J. Masson, Les missionnaires belges de 1804 jusqu'a nosjours, Bruxelas, 1924, p. 87-97; Les Missions Belges, in La Belgique, Institutions, Industrie, Commerce, Bruxelas, 1905, p. 819-830. 11 A. M. Bogaerts, Bouwstoffen voor de Geschiedenis der Dominikanen in de Nederlanden, Bruxelas, 1965. p. 157-158.

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1858, os redentoristas passaram em 1929 para Haiti. Alguns padres seculares, cujo levantamento está longe de ser completo, seguiram para o Brasil ou a Argentina em relação com a emigração ou foram ocupar postes de ensino como Charles Sentroul na Faculdade de Filosofia de São Bento em São Paulo12.

Mais impressionante ainda foi o esforço das congregações femininas, que sem dúvida contavam com um pessoal ainda mais pletórico por aquela época. Nada menos que seis congregações se estabeleceram no Brasil entre 1896 e 1914: as irmãs vicentinas de Gijseghem primeiro no Recife e em seguida em São Paulo, as damas da instrução cristã de Dooresele no Recife, as irmãs do Sagrado Coração de Maria de Berlaar em Minas Gerais, as cônegas de Santo Agostinho de Jupille e as damas de Saint-André de Ramegnies-Chin ambas em São Paulo e ainda as irmãs do Sagrado Coração de Jette no Rio de Janeiro. Vale, aliás, assinalar que prosperaram mais facilmente que seus congêneres masculinos e se abrasileiraram com maior êxito. Mencionamos ainda o estabelecimento das irmãs da Providence de Champion no Equador, das franciscanas de Gand na Argentina e das filhas de Maria de paridaens de Louvain no Haiti.

Não só eclesiásticos mas tambén leigos, católicos militantes, partiram em visita a América Latina, seguindo um pouco a moda dos políticos ou militantes do laicismo francês que naquela época visitaram em grande número este continente como Georges Clémenceau, Anatole France ou Paul Doumer13. Certamente se destaca aquí a viagem de Emiel Vliebergh prócer da incipiente democracia cristã ruralista – era ligado ao Boerenbond, as Ligas Camponesas – e professor da Universidade de Louvain. Participou no Rio de Janeiro no Congresso Católico de 1908, e teve contatos similares em Montevidéu e em Buenos Aires14. Henry Carton de Wiart da ala renovadora do partido

12 L. van Acker, Mgr. Sentroul en de filosofie, in Ad Harenas, Bruges, 1960, p. 237-243. 13 Ver por exemplo G, Clémenceau, Notes de voyage dans l'Amérique du Sud, Paris, 1911. 14 E. Vliebergh, Correspondance du Brésil, in «Revue Norbertine», sept. 1908; Idem, Voyage dans l'

Amérique Latine,, in «Revue sociale catholique», junho 1909, p. 3-28; Idem, Godsdienstige toestanden

in Brazilië, in Dietsche Warande en Belfort, 1909; Idem, L'agriculture au Brésil, en Uruguay et en

Argentine, in «Revue générale agronomique», doc. 1911 e jan. 1912; Idem, Conferencias feitas no Rio

de Janeiro, Juiz de Fora e S. Paulo em 1908, Rio de Janeiro, «Jornal de Comercio», 1910; Idem, Segundo Congresso Catholico Brasileiro, Discurso: Tendencias dos pavos de raça latina e dos de raça

germanica na pesquiza da solução da questão social, p. 134-149.

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católico fez igualmente uma viagem para o Brasil como também seu parente Edmond Carton de Wiart, secretário do rei Leopoldo II15. Outros como Edmond Leplae, agrônomo de Louvain, ou Jean de Brouwer, advogado e industrial de Bruges, foram a título duplo de viagem de informação e de negócios16. A viagem de informação estava se tornando um hábito cada vez mais frequente no meio dos professores universitários não só em Louvain como também nas universidades não-católicas como aquela do jurista e historiador – Charles de Lannoy17. Em geral, estes não se mostravam tão prolíficos na difusão de suas impressões como os membros das ordens religiosas.

Estes publicaram com profusão cartas, relatórios e notícias em revistas e livros, sobretudo senão quase que exclusivamente sobre o Brasil. Os beneditinos abriram primeiro uma crônica brasileira no seus «Nouvelles Bénédictines» a partir de 1895 até 1898 mas lançaram em seguida em 1899 um «Bulletin des Oeuvres Bénédictines au Brésil», posteriormente aumentado com uma secção sobre o Congo e intitulado «Bulletin des Oeuvres Bénédictines au Brésil et au Congo», e depois da primeira guerra mondial transformado em «Bulletin des Missions» com doravante pouquíssimas informações sobre o Brasil. Os premonstratenses do Park publicaram primeiro várias noticias e cronicas brasileiras na sua «Bibliothèque Norbertine, Revue de l'Ordre de Prémontré», também a partir de 1899. Ao contrário dos beneditinos, que se dirigiam sobretudo, pelo menos a julgar pelos contribuintes e doadores, a um público de pequena nobreza e alta burguesía francófones, os cônegos brancos encontravam seus simpatizantes mais na classe média e nos pequenos proprietários rurais de expressão flamenga e editaram portanto a partir de fins de 1901 «'t Park's Maandschrift», um boletim em língua flamenga, aliás, um dos primeiros do gênero, com um noticiário variado mas principalmente orientado sobre o Brasil. Vários premonstratenses aproveitando a capacidade editorial da sua ordem

15 H. Carton de Wiart, Mes vacances au Brésil, Bruges-Paris, 1928; E. Carton de Wiart, Le Brésil

d'aujourd'hui, Notes de voyage, in «La Revue Générale», julho-agosto 1901, 41p. 16 E. Leplae, Transport par animaux de bât, in «L'Expansion Belge», IV, 1911, p. 533-539. 17 Ch. de Lannoy, L'enseignement dans la république Argentine, l'Uruguay et le Brésil, Bruxelas, Paris e Gand, 1913.

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apresentarain folhetos e livros sobre suas experiências brasileiras: Dans le sertão de Minas e Les Prémontrés belges et les missions

étrangères de M. Gaspar (Louvain, 1910 e 1905), Trois mois dans

l'Etat du Parana au Brésil e Une conférence sur le Brésil, L' avenir

d'un grand pays de H. J. Peffer (Louvain, 1908 e 1911) e Drie jaar in

Brazilië de R. Schoenaers (Averbode, 1904, 2 tomos). Foram, igualmente, bastante ativos com conferências ilustradas com diapositivos. Alías, ambas revistas missionárias utilizavam já naquela época com abundância os novos recursos fotográficos, inovavam assim na matéria e constituem hoje um fundo bastante rico para um futuro repertório fotográfico do Brasil.

Desta maneira o Brasil não vinha mais senda apresentado sob o ãngulo da visita diplomática, da excursão turística ou da curta permanência nas grandes cidades com apenas um passeio pela floresta tropical e por uma fazenda modêlo como era o caso nas publicações anteriores de d'Ursel, de Lalaing, de Robiano, Van Beneden, de Sélys-Longchamps, Verhaeren, Corbisier e outros. Agora, as publicações se baseavam sobre uma permanência prolongada e tratavam cada vez mais da vida no interior e no campo. Claro que não podiam dispensar tópicos clássicos como a omnipresença das serpentes ou a apatia dos brasileiros. Mas os beneditinos falavam dos fazendeiros e caboclos encontrados e observados perto das suas dependências e novas fundações no interior de Pernambuco, em Brotas e no Rio Pardo na Bahia, em Campos e Sorocaba e no Rio Branco. Aparece até um eco sobre a atuação do Conselheiro e gens fanáticos. Os premonstratenses, ao lado de informações sobre o Rio Grande do Sul e o Paraná, apresentavam sobretudo este Brasil profundo do sertão mineiro perto do Rio São Francisco. Quase o Brasil inteiro se desenrolava assim no panorama dos missionários belgas. Os índios pacificados ou recentemente aproximados ocupavam um lugar de destaque. As riquezas econômicas recebiam igualmente grande ênfase já que os missionários tentavam justificar e ligar sua ação pelos interesses econômicos belgas. A prospecção mais zelosa era certamente aquela do conego H. J. Peffer18.

18 H. J. Peffer, Aux capitalistes et industriels belges, comment résoudre la question du fer au Brésil ? Une solution. Louvain, 1908. Ver também nos so L'expansion belge..., o.c.

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Predominavam por certo as notícias e apreciações sobre a vida religiosa e o caráter destes brasileiros do interior. Unânimes salientavam sua hospitalidade e bondade, simplicidade e frugalidade. Na verdade, com um retrato tão favorável poder-se-ia interrogar porque ainda precisavam de missionários estrangeiros não fossem uma certa superficialidade de sua fé, suas superstições e gostos pela magia, a falta de padres brasileiros e de sacramentos, as uniões livres e os perigos de espiritismo, do protestantismo e da maçonaria. Sobretudo esta última tornou-se rapidamente o alvo preferido e o bode expiatório dos padres belgas, tanto mais que atrás do conflito ideológico desvendavam-se um nacionalismo um pouco xenófobo e uma luta pela liderança social e pela força econômica. Além disso os belgas se mostraram interessados em aliciar os católicos brasileiros num partido político no modêlo belga ou alemão. Mas estes fatores não-religiosos não se enunciavam claramente. Os premonstratenses tiveram problemas sérios em Congonhas e em Jaguarão por recusar sacramentos ou serviços religiosos aos maçons notórios e por ataques mútuos na imprensa. Em conseqência, tiveram que abandonar seu colégio em Jaguarão. Já o título do jornal que editavam em Montes Claros, «A Verdade», deixa entender que enxergavam abusivamente o Brasil sob o prisma impróprio das lutas e oposições ideológicas belgas. De maior envergadura foram os confiitos dos beneditinos, primeiro no Rio de Janeiro, onde tiveram que receber escolta armada para permanecer na abadia de São Bento tomada dos ocupantes brasileiros em 1903, e depois no Rio Branco em 1910 onde foram maltratados pelos capangas do chefe político de Boa Vista. Este coronel Bento Brazil, embora maçom, tinha primeiro acompanhado e protegido os beneditinos na sua instalação, mas foi em seguida apresentado como usurpador dos bens eclesiásticos e explorador dos índios19. Os incidentes estouraram quando um monge recusou seu filho como padrinho num batismo alegando que era também maçom. Estas escaramuças não levaram os padres a desligar-se das elites e

19 Ver sobre estes acontecimentos a revista e o arquivo dos beneditinos em Saint-André-lez-Bruges e para o contexto os estudos de M. E. Scherer, Abt Geraldo van Caloen und die Beneditktinermission am

Rio Branco (Amazonas) von 1908-1918, in «Erbe und Auftrage» XL, 1964, p. 128-143; F. Knobloch, Geschichte der Missionen unter den Indianerstämmen des Rio Negro-Tals, in «Zeitschrift für Missionswissenschaft und Religionswissenschaft», LVI, 1972, p. 81-97, 172-185 e 283-304.

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tomar o partido do povo, aliás ainda inexistente, mas antes a procurar o apoio das elite s católicas e até fomentar a constituição de um partido católico, tampouco com êxito. Contudo não obnubilavam a imagem geral de um «futuroso país», que continuaram a apresentar. Entretanto por este enfoque o Brasil ingressava um pouco mais no quadro dos países pagãos ou no poder dos demônios. O Brasil começou assim a sofrer de todas as simplificações constatadas para os outros continentes missionários por J. Pirotte no seu admirável Périodiques missionnaires belges d'expression française. Reflets de

cinquante années d' évolution d'une mentalité, 1889-1940 (Louvain, 1973). Esta involução é muito bem simbolizada pela inclusão de brasileirinhos – pequenos flamengos fantasiados de brasileiros – no cortejo de negrinhos e chinesinhos organizado por ocasião de um congresso missiológico em Eeklo em 1926. Perdeu-se, as si m, uma chance de aprofundamento dos conhecimentos brasileiros e de tomada de consciência dos problemas reais.

As outras congregações no Brasil e em outros países latino-americanos não se empenharam tanto na difusão de impressões e notícias, tanto mais que não dispunham de facilidades graficas comparáveis a aquêlas dos beneditinos e premonstratenses. Assinalamos, entretanto, alguns folhetos ou livros, embora já mais tardios como Brazilié, het

land der toekomst (Misionários do Sagrado Coração, Borgerhout-Antuérpia, 1944), Sous le ciel d' Haíti (par une Fille de Marie, Louvain, Xaveriana, 1929), Haïti, parel der Antillen de H. Ophey (Malines, 1937), La république d'Haïti de J. Verschueren (Wetteren e Paris, 1944, 3 tomos) e In den Westindiscehn archipel de A. Boni (Bruges, 1944). Traduziram-se também outras obras missionárias sobre a América Latina de autoria estrangeira como Onder de

Roodhuiden e Door Brazilië's Wildernissen do dominicano francês H. Tapié (Courtrai, 1933, traduzidos por F. Meulepas) ou Onder de

Japanners in Brazilië do jesuita italiano G. del Toro (Louvain, Xaveriana, 1934), que confirmam este deslize para o quadro do mundo missionário. Paralelamente pode-se ronda mencionar o interesse pela hisjória das primeiras missões na América ronda que seja em nivel de literatura piedosa e de vulgarização. Assim Zumarraga, O.F.M., Eerste bisschop, aartsbisschop van Mexico of

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eenige bladzijden uit de geschiedenis van Nieuw-Spanje e Vijftig

jaren bij de Indianen of levensschets van broeder Pieter de Mura van

Gent de B. Verelst (Roulers, 1907 e Bruxelas, 1909) e várias publicações na série «Altiora» da abadia de Averbode completaram a integração do presente missionário da América Latina no seu passado histórico20.

Neste período de 1890 à primeira guerra mundial os católicos apesar deste surto repentino estavam ainda longe de exercer o predominio ou o monopólio na informação sobre a América Latina. Profissionais da engenharia ou da agronomia, que exerceram na América Latina, comunicavam suas experiências em revistas especializadas de circulação limitada como «L'Ingénieur Agricole» da Escola de Agronomia de Gembloux, que informan sobretudo sobre a vida nas fazendas brasileiras, argentinas ou peruanas, ou «Bulletin de la Société Royale Belge de Géographie» e sua congênere o «Bulletin de la Société Royale de Géographie d'Anvers» e ainda publicações de cunho expansionista como «Bulletin de la Société Belge d'Etudes Coloniales» ou «L'Expansion Belge». O acento se colocava quase que sempre sobre as grandes oportunidades que oferecia a América Latina.

Nisto concordavam com toda uma literatura propagandística editada a cargo dos paises latino-americanos. Vale destacar em primeiro lugar os esforços do Brasil para melhorar sua imagem na Bélgica pelas numerosas edições da Comissão de Expansão Econômica na Europa com escritórios em Bruxelas e em Antuérpia, pela participação nas Exposições de Bruxelas e de Antuérpia e pelo trabalho do embaixador Oliveira Lima nos meios intelectuais, dando conferências, promovendo cursos de português na Universidade de Liège, prefaciando livros. Um destes constituiu valiosa antologia da literatura brasileira em tradução francesa pelo jornalista Victor Orban21. Outro propagandista ativo da América Latina foi o

20 Mencionamos ainda A. Wuyts, De apostel van West-Indië, H. Franciscus Solano, Tielt, 1926; P. de Ceuleneer, Pedro de Gante (Pierre de Mura), Anvers, 1931; G. Meessen, Pierre de Gand, L'épopée

franciscaine au Mexique, 1523-1572, Louvain, Xaveriana, 1932; A. Boni, Pieter van Gent,

Missiedrama in vier bedrijven, Bruges, 1952. 21 V. Orban, Littérature brésilienne, Paris, Porto e Rio de Janeiro, s.d.; Idem, Poésie brésilienne, Paris, 1922. A título de comparação ver também E. Chardonne, Poètes mexicains, Bruxelas, 1908.

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representante da Bolívia Joaquim de Lemoine22. Outro panegirista deste pais era William van Brabant23. Existia assim todo um grupo de jornalistas e publicistas belgas ou latino-americanos preocupados em melhorar seu crédito na Europa ou a dar resposta a gens oponentes exilados. Circulavam assim entre a colonia latino-americana periódicos como «La Revue Américaine, Organe des pays hispano-américains» por volta de 1901, enaltecendo a figura do ditador venezolano Cipriano Castro, ou «El Correo Latino-Americano» que servia por volta de 1896 os presumidos intereses da Colômbia. De menos forte coloração político-partidária eram «O Reporter Brasileiro» e «Le Chili lndustriel», que apareceram nos anos 1910-1912. Mas este tipo de publicações é menos interessante pela difusão e eficiência que alcançaram e sim como testemunha da crescente preocupação dos latino-americanos pela sua imagem no exterior.

As posições ganhas pelos missionários belgas na América Latina e em outras partes do mundo colonial tinham outrossim chegado a inquietar os meios do livre pensamento belga. Num congresso em Bruxelas, em 1900 salientaram a necessidade de repostar com sua pregação racionalista. Pensavam, sem dúvida, em primeiro lugar no Congo onde os Belgas se instalavam cada vez mais, porém a América Latina tampouco ficou fora de seu enfoque. Eugène Hins que outrora tinha sido preceptor numa fazenda em Pernambuco e tinha editado suas impressões no Un an au Brésil, ocupava então uma posição de secretário de uma organização racionalista e procurou intensificar as relações com gens correligionários na América Latina24. As informações a respeito continuam entretanto bastante sigilosas. Um definido caráter de missão racionalista revestia a ida de Georges Rouma para a Bolívia, em 1905, para reorganizar o ensino normal daquêle país a pedido do govêrno liberal de Ismaêl Montes. Rouma era discípulo do pedagogo Alexis Sluys, então uma figura de proa do racionalismo belga, e teve sérias dificuldades com a hierarquia católica de Sucre. Nos seus escritos êle se mostrava entretanto sempre muito circunspeto e discreto e visava

22 J. de Lemoine, La Bolivie actuelle, Bruxelas, 1909. 23 W. van Brabant, La Bolivie, Paris, 1908. 24 E. Hins, La libre pensée internationale en 1910, Bruxelas, 1911; p. 11-12, 74-75, 125-127, 144, e146-150.

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um tom de imparcialidade científica. Isto se evidencia no seu Les

Indiens Quitchouas el Aymaras des Hauts Plateaux de la Bolivie,

Résultats de la Mission anthropologique organisée en 1911... (Bruxelas, 1913)25. Após uma curta estadia em Cuba como consultor pedagógico, Rouma voltou para Bélgica e tornou-se durante muitos anos o especialista oficioso da América Latina, chefiando missões econômicas, dirigindo a «Maison de l'Amérique Latine» em Bruxelas e escrevendo várias obras sobre todos os paises latino-americanos de caráter essencialmente informativo26.

Neste ponto lhe era completamente oposto Isidore Poiry, também imbuído da nova pedagogia racionalista e que dirigiu em Lima de 1904 a 1911 a Escola Normal. De regresso na Bélgica êle ajudou a fundar em 1921 «Le Monde Espagnol et Hispano-Américain, Illustré mensuel pour développer l'entente intégrale entre la Belgique et les Pays Hispano-Américains», que entretanto não teve vida longa. Foi uma segunda permanência no Peru em 1944 que decidiu Poiry a escrever não mais tanto sobre problemas pedagógicos como sim sobre suas experiências e sua visão do Peru. Em 1946, saiu publicado seu Les pays ibéro-américains e em 1948 seguiu Voyage et Séjour au

Pérou, en 1944-45-46, suivi de I. La Loi des Peuples et II. L’évolution rationnelle des Pays 1ndoaméricains. Amargurado pela pouca consideração que recebeu desta vez do governo peruano, saiu da sua reserva de ex-consul do Peru em Bruxelas para lançar umas verdades cruas em forma de invectivas sobre o excesso de luxo em Miraflores, a baixa moralidade e a depravação da burguesia, a jactância e a influência excessiva dos militares, as escolas convertidas em anticamaras das casernas, a submissão da mulher, o imperialismo norteamericano, a imposição das corvéias aos índios, a insalubridade dos casebres. O alvo principal de suas diatribes foi

25 De Rouma ainda sobre o mesmo tema: La civilisation des Incas et leur communisme autocratique,

Notes et commentaires, Bruxelas, 1924 e Quitchouas et Aymaras; étude des populations autochtones

des Andes boliviennes. Bruxelas, 1933. Comparável pelo interesse indigenista é A. Courboin. Chez les

Indiens, Notes et souvenirs d'un séjour dans l'Amazonie. in «Bulletin de la Société Royale de Géographie d'Anvers», XXV, 1901, p. 83-128. 26 G. Rouma, De Buenos Aires à Sacre, in La vie intellectuelle, 1912, 34 p.; Idem, Terres d'avenir,

Bruxelas, 1928; Idem, Les Républiques latines du Nouveau Monde, Bruxelas, 1948; Idem, Les

ressources économiques de l'Amérique latine, Bruxelas e Paris, s.d.; Idem, L'Amérique latine, L'essor

sous la République et la liberté, Bruxelas, 1948.

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entretanto o clero e mais especialmente o clero estrangeiro, que ele via transformando o Peru num vasto convento. Na sua visão do Peru pode-se descobrir quase toda a problemática avançada alguns anos antes pelo indigenismo e aprismo de Mariategui e Haya de la Torre, embora Poiry fôsse demasiadamente consciente da força e originalidade de seu racionalismo pedagógico para admitir qualquer influéncia de outros. Ele se comportava, se possível, de maneira ainda mais peremptória e auto-suficiente que os missionários católicos. Assim seu anticlericalismo obsessivo, seu antisemitismo e alguns lugares-comuns sobre o caráter latino-americano diminuem certamente o valor e a originalidade de seus livros, que aliás tiveram repercussão reduzida uma vez que Poiry se tinha tornado uma figura bastante isolada dentro do racionalismo belga e editou a custas de autor.

Outro professor belga no Peru, August Borms, posteriormente duas vezes condenado à morte como colaborador durante as guerras e finalmente executado, escreveu no jornal da prisão de Louvain pequenas crônicas que seus simpatizantes políticos editaram como livro: Vier jaar in 't land der Incas (Borgerhout-Antuérpia:, 1931). Ele fez um sério esforço para descobrir e mostrar o Peru do interior com seus peões, «chunchos», chinos, com sua pobreza, sujeira e doenças. Ele destacou o tratamento dos índios como verdadeiros escravos e, na sua visão dos Incas submetidos, apontou um paralelismo, bastante discutível, com o povo flamengo. Sua clarividência e seu realismo corajoso não o impediram de compartilhar algumas trivialidades frequentes na época sobre a exagerada ceremoniosidade, a tendência de protelação, a pouca fé, a exibição dos latino-americanos.

Contra esta pretensa psicología dos povos, marcada pelas teorias racistas vigentes, reagiu Lucien Marchal em Ceux du Sud (Bruxelas, 1934). Este autor tinha trabalhado alguns anos em Buenos Aires e dirigiu depois uma fazenda em Minas Gerais. Na base de suas experiências e leituras êle criticou autores latino-americanos como Bunge, Ingenieros, Garcia Calderón e o francês Gustave Le Bon, que espalhavam a imagem bastante negativa do homem latino-americano. Na sua opinião, antes de mais nada o meio geográfico e a

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independência recente e bem menos os fatores raciais poderiam explicar o atraso da América Latina frente aos Estados Unidos ou a Europa. Alías êle insistiu nos progressos récentes, na capacidade de inovação e de criação dos brasileiros. Marchal escreveu ainda vários romances como Le mage du sertão (Bruxelas, 1952), inspirado no episódio de Canudos e no romance de Euclydes da Cunha, La chute

du Grand Chimu sobre o Perú dos Incas, La 33e Révolution sobre a Venezuela e mais umas novelas policiais com cenário brasileiro como Le crime d'à Beira-Mar. Comparável pela sua adesão ao otimismo brasileiro foi o depoimento de um homem de negócios, consul da Bélgica em São Paulo, Henry Van Deursen, que publicou sob o pseudômino Henri Van Kempen Crépuscule (São Paulo, 1944).

Um fundo racista, pelo contrário, se encontra no livro de Henry van der Meerschen L'Amérique du Sud blanche, Terre de Paix et de Liberté

(Bruxelas, 1948 e 1950, 2 tomos), que claramente opõe e privilegia uma América Latina branca constituída pelo Brasil meridional, Uruguay, Argentina e Chile frente as Américas indígenas e africanas. Apesar desta dicotomia forçada o livro tem, assim mesmo, o mérito de tentar um estudo sistemático aprofundado e global incluindo tópicos como o ensino, a imprensa, as artes, os esportes, a culinária. Neste sentido êle ultrapassou a tradicional literatura de viagem sem entretanto iniciar um americanismo mais científico.

Entrementes a literatura de viagens continuou em voga com a já citada obra de Henry Carian de Wiart, com Sur la crête des Andes en

automobile, 12 000 km à travers l'Amérique du Sud de Buenos-Ayres

à Caracas de Hubert Carton de Wiart (Paris, 1937), com Où dorment

les Atlantes; paysages brésiliens de Ch. Bernard (Anvers, 1921), com as obras do «globetrotter» profissional Jules Leclercq27. Ela marcou certamente uns pontos com as reportagens de Lous Pierard, jornalista e deputado socialista. Nos seus Films brésiliens (Bruxelas, 1920) êle relatou suas viagens e seus encontros no Brasil por ocasião da visita do rei Alberto, que despertou, então, no público belga novo interesse para o Brasil. Pierard apreciava a arte barroca de Minas Gerais, as modinhas da música popular e os desafios e insistia na

27 J. Leclercq, Voyage au Mexique, de New York à Vera Cruz en suivant les routes de terre, Paris, 1885; Idem, L'étoile du Sud, Bruxelas, 1920; Idem, De Rio de Janeiro à Mycènes, Paris, 1927.

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necessidade de ler autores como Machado de Assis ou Graça Aranha. Na sua ótica o Brasil devia mais ousar mostrar os ranchos dos negros de que a Avenida Central. Parece que nas suas páginas já se anuncia o Brasil da Semana de Arte Moderna. Ele continuou esta aproximação e descoberta da América Latina sob o ponto de vista intelectual e artístico com Rimouski-Puebla (Bruxelas, 1931) e Terre

des Indiens (Argentine, Mexique, Pérou, Bolivie) com prefácio de Paul Rivet (Bruxelas e Paris, 1938). Esta última obra foi escrita por ocasião de sua participação num congresso em Buenos Aires em 1937 do «Institut international de coopération intellectuelle» onde êle se encontrou com Alfonso Reyes e cujas palavras êle citou «Nous avons atteint notre majorité». Neste sentido também êle reconheceu a contribuição indígena na arte latino-americana e revelou a obra de Diego Rivera. Provávelmente, começou aí uma influência da arte mural mexicana sobre alguns pintores belgas como Roger Somville ou Octave Landuyt. De fato os meios artísticos começavam a descobrir o continente como fonte de inspiração. Um jovem literato flamengo, Karel Jonckheere utilizou um subsídio governamental para visitar Cuba e México por volta de 1936, mas seus relatos não passam de conversas de botequim, Cargo e Tierra caliente

(Antuérpia, 1941 e 1953). Outro literato, francófono, o surrealista Henri Michaux procuran no Equador inspiração um pouco como André Breton a tinha procurado na Martinique28.

Frente a esses ensaios, que pelo menos tinham o mérito de pensar, ou as descobertas talvez ingênuas de um Borms ou um Pierard ou as tentativas de síntese de Rouma ou van der Meerschen, a literatura católica dedicada à América Latina neste periodo entre as duas guerras enveredou quase que exclusivamente para a questão mexicana. O motivo de sta súbita preocupação pelo México não foi qualquer envolvimento missionário belga naquêle país mas o sentimento de solidariedade entre dais movimentas de ação católica que na década de 1920 conheceram em ambos países um desenvolvimento rápido e um verdadeiro acesso de militantismo, a ACJB e a ACJM. Os estudos na Bélgica do padre jesuíta Pro e sua participação em reuniões da J.O.C. (a Juventude Operária Católica)

28 H. Michaux, Ecuador, Journal de voyage, Paris, 1929 e 1968.

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talvez tenham constituído um laço a mais quando ficou sabido que êle foi fuzilado. Havia também uns poucos estudantes e refugiados mexicanos em Louvain como Margarita Farfan, irmã de outro fuzilado José Garcia Farfan29. Contatos em Roma ou visitas na Bélgica de prelados mexicanos exilado s também podem ter influído. A participação de frades flamengos na primeira cristianização do Mexico e o intéresse belga pelo império latino de Maximiliano justificaram como antecedentes históricos para alguns esta intromissão duvidosa na vida política interna de um país estrangeiro. Mesmo assim a repentina paixão mexicana dos católicos belgas por um país que até lá mal conheciam continuará senda um tanto quanto misteriosa até que o acesso aos documentos dos envolvidos for facilitado.

Dois próceres da ACJB, Monsenhor Louis Picard e Giovanni Hoyois se engajaram bastante a favor dos rebeldes mexicanos. Organizan-se em Louvain uma «Union internationale pour la défense de la liberté religieuse» principalmente orientada sobre os acontecimentos mexicanos. Uma antologia dos martírios sorridos pelos cristeros foi apresentada sob o título sensacional de Jusqu' au sang ... La tragédie

mexicaine (Louvain e Paris, 1928). Andres Barquin den com Giovanni Hoyois uma espécie de sequência ao que foi visívelmente em certos meios católicos um best-seller com La tragédie mexicaine,

Sous l'ombre d'Obregon (Louvain e Paris, 1929), no qual saiu publicado o famoso discurso de Louvain do bispo de Huejutla, Monsenhor Manríquez y Zárate. Monsenhor Picard ilustrou seu manifesto Le Christ-Roi (Louvain e Paris, 1929) com o caso dos cristeros e recidivou com Nouvelles fureurs de la persécution

(Louvain, 1933). Em flamengo veio o livro de P. Ghyssaert Bloedig

Mexico (Bruges, 1928). Este último relata no seu diario vários episódios de Sua participação nesta campanha como sua apresentação de uma peça teatral Viva Christo Rey ou Sua pregação pro-cristera numa escala neutra do estado, que merecen alias severas críticas do jornal liberal «La Dernière Heure»30. A encíclica papal de

29 A. Rius Facius, Mejico Cristero, Historia de la ACJM, 1925-1931, México, 1966, p. 409 e 411; «Annuaire de l'Université Catholique de Louvain», 1924-1930; J. A. Meyer, Le catholicisme social au

Mexique jusqu'en 1913, in «Revue Historique», CCLX, 1978, p. 143-159. 30 P. E. Ghyssaert, Een godsdompelaar. Tielt, 1969, p. 179, 182, 192 e 215.

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Pio XI No es muy sobre a situação religiosa no México foi também publicada em Louvain em 1937 com outra edição em Bruxelas pela J.O.C. Surpreendente é a insistência no tema cristero durante dez anos31.

Na reapreciação do movimento cristero por Jean Meyer apareceram as motivações sociais de revolta popular, mas estas não parecem ter recebido qualquer atenção da parte dos pro-cristeros belgas32. Estes não deram quase que nenhuma publicidade as reivindicações sociais das guerrilhas cristeras e se concentraram exclusivamente sobre as perseguições religiosas sobretudo nas cidades. Chegaram a identificar completamente a revolução mexicana com o bolchevismo e a pregar uma verdadeira cruzada. Nada entretanto difundiram sobre os motivos democráticos da revolução mexicana e suas primeiras realizações em matéria de política social, agrária ou cultural. Toda esta campanha merece certamente um estudo mais aprofundado pelo seu desdobramento e pelas suas conexões em outros países da Europa e pelo seu prolongamento na própria Bélgica.

Na verdade esta febre mexicana da ação católica belga ia revelar-se uma terra fértil para o fascismo belga, o rexismo dirigido por Léon Degrelle. Este, ainda como estudante escreveu sobre o assunto na revista estudiantil «L'Avant-Garde» e se reconhece seu estilo na publicação já citada La tragédie mexicaine ... Pretende ter ido ao México, com subsídios do jornal «Le Vingtième Siècle», onde se teria encontrado com lideres anti-governamentais, e editou um livro sob o título Mes aventures au Mexique (Paris, Louvain e Milão, s.d.), traduzido em alemão como Meine Abenteuer in Mexiko (Augsburgo, 1937)33. O livro não contém na verdade muitas informações interessantes e pelo conteúdo não pode averiguar-se se o autor realmente esteve no México. No fundo é do pior estilo exótico-folclórico e apresenta um México caricatural. Sob pretexto de estudar

31 M. Kenny, La crise mexicaine, ses causes, ses conséquences, Liège, 1928; A. Dragon, Pour le Christ-

Roi, Le Père Pro, de la Compagnie de Jésus, exécuté au Mexique le 23 novembre 1927, Louvain, 1929; J. Clautriaux, Sang mexicain, Le martyre du P. Pro, Louvain, s.d.; B. van Meurs, Miguel Pro, S. J., een

martelaar voor Christus Koning, Alken, 1933; A. Dragon, Inhet roode Mexico, De eerste Martelares uit

de rangen der katholieke actiije: Maria de la Luz, Courtral, 1938. 32 J. A. Meyer, La Christiade, L'Eglise, l’Etat et le Peuple dans la Révolution Mexicaine (1926-1929), Paris, 1975. 33 W. Dannau, Zo sprak Léon Degrelle, Wemmel, 1973, I, p. 275-300.

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o povo mexicano de recto êle solía frases como: «Il fait très pittoresque: les Indiens drapés dans leurs “uarapes” multicolores ont des airs de pharaons en weekend, les Indiennes trottent dans la poussière, chargées comme des petits mulets» e lugares-comuns sobre sua crueldade, corrupção e preguiça como «[...] le train s'arrête pour que le machiniste puisse saluer son arrière-cousin et la soeur de lait de la belle-mère de son coiffeur». Da situação político-religiosa êle não revela nada senão o tópico sempre repetido na imprensa da época: «ces ligues téléphoniques avec des grappes de catholiques se balançant à dix mètres de hauteur». Não insistiriamos fiesta prosa, atràs da qual se esconde talvez apenas uma deboche mais do exibicionista patológico que Degrelle era, não fosse sua influência através da revista em quadrinhos «Tintin». O desenhista Remy Georges, alias Hergé consacrou tres livros a temas latino-americanos: L'oreille cassée, Le temple du soleil e Tintin et les picaras (Tournai, Casterman, 1937, 1949 e 1976), com ampla repercussão no mundo inteiro através varias traduções. Nestes, como ainda recentemente nas caricaturas do jornal «De Standaard» do desenhista «Alidor», proliferam todos os chavões tradicionais sobre os mexicanos em particular e os latino-americanos em geral. Temos certamente um estudo a fazer sobre a semiótica e o impacto de tais quadrinhos muitas vezes de um humorismo bastante infantil, duvidoso e de certa maneira pernicioso34.

Entre esta agitação pro-cristera, que só foi abafada pela segunda guerra mundial, e o grande interesse pela América Latina, que envolve a partir de meados da decadade 1950 a opinião católica belga, aparecem no mesmo tempo uma evidente oposição e contradição e de outro lado uma certa continuidade. De fato finitos daquêles, que desempenhariam um papel de vanguarda fiesta nava descoberta católica da América Latina, conheceram na sua adolescência este ambiente exaltado dos anos 1920 e 1930. Continuam senda impulsionados pelo espírito da ação católica e marcados pela arregimentação ideológica devida a guerra fria no plano internacional

34 Ver por exemplo de F. Dineure Will, Tif et Tondu en Amérique Centrale, in Spirou, 1950-51, de W. Vandensteen, Het zoemende ei, Suske en Wiske, Antuérpia, 1977, de J. Nys, De belevenissen van

Jommeke, Het geheim van Macu Ancapa, De strijd de Inca-schat e De verborgen tempel, Gand e Bruxelas s.d.

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e a «guerra escolar» no plano nacional. Acontecimentos e episódios como o conflito de Peron com a Igreja na Argentina, o govêrno de Jacob Arbenz na Guatemala, as resistências encontradas pela J.O.C. na sua implantação na América Latina, os primeiros contatos de ativistas democrata-cristãos como A. Vanistendael ou A. De Schryver com seus correligionários latino-americanos alimentaram o reflexo de medo e reforçaram o espectro de um continente ameaçado pelo ateismo e pelo comunismo35. Isto pode ser verificado num artigo de um dos protagonistas desta redescoberta, François Houtart em Une paroisse missionnaire de Buenos-Aires ou ainda nos primeirost rabalhos de Michel Schooyans36.

Outro aspecto desta continuidade é a participação de leigos ao lado de padres junto com o predomínio do clero secular sobre o clero regular, que antes da primeira guerra mundial havia mantido a iniciativa. Os bispos belgas fundaram em 1953 o «Collegium pro América Latina» em Louvain sob a proteção da Universidade desta cidade, onde queriam preparar sacerdotes e seminaristas para remediar a pobreza vocacional das igrejas latino-americanas37. Em poucos anos centenas de padres belgas e estrangeiros receberam aí um preparo para ir desempenhar suas funções nas paróquias e obras de assistência na América Latina, mas também muitos leigos voluntários passaram pelos estágios do colégio. Aliás, estes esforços repercutiriam nos meios das congregações regulares e o centro de estudos missionários «Pro Mundi Vita», organizado em 1961 pelo franciscano holandês Versteeg e orientado em boa parte para a América Latina, foi transferido em 1964 de Tilburg para Bruxelas.

Há agora entretanto uma série de marcantes diferenças com a febre mexicana do período de entre as duas guerras. Os integrantes desta nova descoberta latino-americana tiveram quase todos uma solida formação universitária de estudos sociológicos, políticos e filosóficos, que não tinha ficado alheia as renovações operadas nestas

35 Sobre a imagen da Argentina Peronista ver B. Mazur, Belgisch-Argentijnse betrekkingen onder

Peron, 1946-1955, Louvain, 1978, datilografado, memória. 36 F. Houtart, Une paroisse missionnaire de Buenos-Aires, in «Lumen Vitae», X, 1955, p. 344-356; M. Schooyans, Les catholiques brésiliens face au comrnunisme, in «Economie et Humanisme», 1962, p. 35-50; Idem, O comunismo e o futuro da igreja no Brasil, São Paulo, 1963. 37 W. Promper, Priesternot in Lateinamerika, Louvain, 1965.

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ciências em meios nao-católicos. Além do mais tiveram uma experiência viva de vários anos de um ou mais países da América Latina, que tinha faltado completamente aos pro-cristeros. F. Houtart organizou e dirigiu de 1958 a 1961 dentro da FERES, com sede em Bogota, uma equipe de pesquisadores leigos e eclesiásticos, belgas e estrangeiros, sobre as mudanças sociais, politicas e religiosas da América Latina. Neste contexto ou paralelamente apareceram dezenas de estudos e artigos38. A problemática, o tom e o acento mudaram rápidamente do perigo da decristianização e do comunismo para a descoberta do subdesenvolvimento. Esta alteração profunda de enfoque se explica em parte pelos gens métodos e resultados científicos mas também por uma série de acontecimentos na vida política internacional e latino-americana. A Bélgica passou por volta de 1960 a viver a decolonização do Congo de maneira não tão indiferente como poderia aparecer à primeira vista. O impacto da revolução cubana foi considerável na Bélgica como nos países vizinhos39. O golpe militar no Brasil pelo contrário logo suscitou reservas e temores. De outro lado, a presença de latino-americanos mais radicais na Universidade de Louvain, como por exemplo Camilo Torres, não deixou de influenciar os mais moderados40. Alguns jovens belgas parecem ter tido contatos com as guerrilhas e outros foram expulsos por atividades subversivas41.

A repercussão foi importante sobre a imagem da América Latina junto ao público católico e belga em geral, que assim descobriu, atras do exotismo, da exaltação política e das revoluções de opereta, as várias faces do subdesenvolvimento. A tomada de consciência foi tanto mais rápida que os meios de divulgação se tinham entrementes

38 Sem dar aqui uma bibliografia exaustiva mencionamos F. Houtart, Notes de voyage en Amérique

latine, Bruxelas, 1959; Idem e E. Pin, L'Eglise à l'heure de l'Amérique latine, Tournai, 1965; e os nomes de Albert Sireau, Frédéric Debuyst, Rudolf Reszohazy, Jacques Dorselaer, Joseph Comblin e Michel Schooyans. 39 Axel Buyse, aluno nosso, prepara um trabalho sobre a imagem da revolução cubana na Bélgica. 40 F. Houtart, A. Prades e G. Gutterrez, Camilo Torres R. en tant que prêtre, sociologue et colombien,

Louvain, 1966; F. Houtart e A. Vanistendael, Presencia y memoria de Camilo Torres, Montevideo, «Vispera», 1967, 1, p. 56-76. 41 Ver C. Detrez, Pour la libération du Brésil en collaboration avec Carlos Marighela, Paris, 1970; Idem, Les mouvements révolutionnaires en Amérique Latine, Bruxelas, 1972. O tema desta colaboração e simpatia é também tratada em forma literária, ver C. Detrez, L'herbe à brûler, Paris, 1978 e W. Ruyslinck, De heksenkring, Bruxelas, 1972.

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amplificado e diversificado. A televisão belga em programas para o grande público como «Neuf millions» consagrou reportagens a problemas latino-americanos. Em nível acadêmico a nova revista «Justice dans le monde», lançada pela Universidade de Louvain, tratava em cada número aspectos da realidade latino-americana. Com maior circulação nos meios intelectuais, revistas como «La Revue Nouvelle», «Streven» ou «Kultuurleven» dedicavam cada vez mais atenção ou até números especiais a América Latina e esta informação tinha tanto mais importância que a imprensa cotidiana belga não dispunha de informantes e correspondentes próprios. Tradicionais revistas missionárias como «Pro Apostolis», dirigido pelos jesuítas e destinado sobretudo a juventude colegial se adaptaram e reorientaram sua linha42. Os beneditinos de Saint-André-lez-Bruges focalizavam sua revista «Rythmes du Monde» sobre temas latino-americanos como a reforma agrária43. Outros ordens e organizações missionárias colaboraram para poder oferecer com «Wereldwijd» uma revista mais atualizada e sensível as dificuldades socio-econômicas do terceiro mundo. O «Collegium pro América Latina» editou a partir de 1956 um boletim que apesar de seu estilo untuoso contém uma mina de depoimentos e experiências vividas44. Localmente surgiram grupos de simpatizantes que difundiram entre os contribuintes uma imagem bem mais realista, tal como a «Guatemateca» em Roulers. Campanhas de âmbito nacional para angariar fundos para as missões e para apoiar projetos de assistência, como «Partage de carême» e «Opération 11.11.11», salientavam a cada ano mais a miséria material e as injustiças sociais do continente latino-americano. Várias organizações, como «Internationale Bouworde»e «Iteco», formaram voluntários para trabalhar alguns anos nos projetos, que por suas cartas ou quando da sua volta não deixaram de espalhar suas impressoes. A América Latina acabou, assim, perdendo sua auréola exótica e seu pitoresco e ingressando no quadro do terceiro mundo.

42 Ver por exemplo no número 315 de 1959 o artigo de W. van Marsenille sobre Tierra y libertad. 43 Ver os números 3 e 4 de 1963, XI sobre a igreja no Brasil ou o número especial de 1964 sobre a reforma agrária. 44 «Aux amis de l'Amérique Latine, Bulletin trimestriel d'information du Collège de l'Amérique Latine à Louvain».

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Sob muitos aspectos esta evolução da imagem da América Latina foi bastante positiva. Existem agora na Bélgica uma compreensão e uma aproximação muito mais realista deste continente, que deveriam condicionar cada vez mais as relações mútuas. Subsistem, entretanto, perigos de deformação na medida em que a problemática socio-econômica leva às vezes a um miserabilismo excessivo – alguns fazem uma espécie de turismo da miséria – e a um paternalismo ingênuo. Perde-se de vista muitas vezes os próprios valores e as riquezas culturais da América Latina e dá-se ainda insuficientes oportunidades ao latino-americano para apresentar-se a si mesmo. Deste último ponto de vista a crescente tradução de romances latino-americanos para o francês e o neerlandês constitui certamente um passo na boa direção. De outro lado a evidente politização e o engajamento ideológico desta aproximação à América Latina apartam muitos daquêles que pelas facilidades de turismo aéreo procuram, cada vez mais numerosos, o fascínio da América Latina e devem contentar-se com o superficialismo dos folhetos turísticos. Parece existir um público para uma abordagem de síntese entre a realidade socio-econômica e o encantamento cultural da América Latina.