A Experiência Da Música e as Escutas Contemporâneas

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Cognição Musical

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  • 1IMAGINRIO

    A experincia da msica e as escutas contemporneas

    Rodrigo Fonseca e Rodrigues/Faculdade Metropolitana de BH

    E.mail: [email protected]

    Resumo:

    Este artigo prope uma reflexo sobre a dimenso da

    experincia da escuta contempornea, buscando examinar os

    seus estatutos a partir dos escopos que a mdia, a tecnologia

    e a cultura operam mutuamente na construo perceptiva da

    nossa experincia snica e vice-versa. Presidem ento a esta

    anlise tanto a ateno acerca da dimenso cultural como

    sobre a perceptual da experincia esttica no campo sonoro.

    Os principais tpicos de abordagem consistem na observao de

    pontos de partida perceptuais nos quais o ouvinte

    hipoteticamente se apia para realizar sua experincia

    habitual com a msica e, a seguir, considerar o pensamento de

    autores como John Cage, Pierre Schaeffer, Steve Reich, Brian

    Eno e Slvio Ferraz acerca das modalidades de escuta

    contempornea.

    Abstract:

    The purpose of this article is a reflection about the

    contemporary listening and its dimensions of experience,

    attempting to examinate their status starting from the points

    of views that media, technology and culture impose to the

  • 2perceptual construction of our sonic experience and vice

    versa. Leading this analysis are the atenction over both the

    cultural and the perceptual dimensions of the aesthetic

    experience into the sound field. The main topics of aproach

    launch to show the perceptuals starting points wich the

    listener stand for reach their habitual experience with the

    music and then regard the ideas of authors like John Cage,

    Pierre Schaeffer, Steve Reich, Brian Eno and Slvio Ferraz

    according to the contemporary listening modalities.

    Palavras-chave: mediao tecnologia cultura msica

    contempornea experincia esttica

    Nesses vinte e cinco sculos, de Plato a John Cage, as

    reflexes acerca das instncias do belo e da arte musical

    transitaram entre mltiplos horizontes de investigao,

    marcados tambm pela submisso s diversas escolas de

    pensamento: da "msica das esferas" arte da sensualidade e

    da indisciplina, do culto ao hedonismo ao rigor do juzo

    crtico, da imanncia transcendncia, do fetiche utopia,

    das rgidas estruturas sistmicas s probabilidades

    informacionais. Transitaram pelas esferas do trgico e do

    pattico, do apolneo e do dionisaco, do ethos e da

    metafsica, pela pesquisa sistematizada do seu

    desenvolvimento gramatical e pela ateno, esta mais recente,

  • 3sobre as dimenses do seu reconhecimento e das suas

    modalidades de recepo.

    A reflexo que este artigo prope a de atualizar a

    discusso a respeito da experincia contempornea da msica,

    em suas diversas modalidades alternativas de inveno e

    escuta. Para um melhor acompanhamento do seu desenho,

    importante apontar as principais balizas que o orientam, como

    a compreenso das nossas potencialidades da percepo sonora

    e dos condicionamentos e conotaes culturais relacionados na

    escuta. Tal abordagem visa a demonstrar como a anlise da

    apreenso musical contempornea merece ser repensada, para se

    entender a experincia sonora como parte do descortinar de

    novas dimenses comunicativas que ampliam as nossas

    prerrogativas de escuta.

    Sabemos o quanto a gravao, a reproduo e a difuso

    meditica da msica expandiram as oportunidades para a sua

    fruio, mas tambm as dessacralizaram como formas de

    contemplao tradicionais. Tambm passamos a experienciar uma

    audio desritualizada, desprendida dos espaos de

    confinamento fruitivo, pagando com a disperso da conscincia

    diante da massiva afluncia sonora. Podemos ouvir, como e

    quando quisermos, uma mesma pea musical, milhares de vezes e

  • 4tambm acionamos ou interrompemos, com um simples zapping,

    qualquer execuo sonora, bem como podemos fazer outras

    tarefas cotidianas enquanto escutamos msica: durante as

    leituras, enquanto trabalhamos no computador ou navegamos na

    rede, nos momentos de introspeco, no carro, em avies, nas

    salas de espera, elevadores, estaes e supermercados, na

    rua, enquanto dormimos, na hora do sexo, do banho, do

    passeio, da ginstica, em festas, coquetis, cerimnias

    cvicas ou religiosas, boates, festivais, shows, concertos,

    bares, etc. A inflao dos signos sonoros e da exposio

    excessiva a que somos impingidos, em quaisquer ambientes e

    situaes sociais, contribuiu para dissolver o culto e a

    demanda ritualizada de concentrao da experincia

    tradicional, com o preo da depreciao de seu antigo impacto

    "aurtico" sobre a percepo.

    Em tais contextos, parece haver elementos decisrios

    especficos recorrentes nas formas contemporneas de pensar,

    realizar, compartilhar e ouvir msica, num tecido plural de

    relaes que se influenciam mutuamente. Os princpios de tal

    experincia sonora advm de: 1)condies mediatizadas nos

    circuitos de bens de consumo musicais; 2)recursos

    tecnolgicos que propulsionam novos meios de se gerar a

    matria sonora e forjarem da novos materiais expressivos;

  • 53)diferentes potencialidades de escuta estimuladas pelas

    novas formas de acesso musical; 4)posturas estticas que, ao

    possibilitar alternativas para a experincia sonora, fazem

    emergir um novo tipo de ouvinte mais atento a tais

    procedimentos poticos; 5)uma escuta que fomenta a potica

    dos artistas envolvidos com as prticas criativas renovadas.

    Em meio a tantas expectativas difusas nas quais

    mergulham os ouvintes contemporneos, consideramos,

    doravante, os estatutos de conotao cultural que

    condicionaram a escuta a uma atividade repertoriada, bem como

    as alternativas para ultrapass-la, apontadas por John Cage.

    Mais frente, abordamos as propostas de uma escuta concreta,

    no-abstrata, por Pierre Schaeffer, defensor da escuta

    "acusmtica" para se descondicionarem os sons das suas

    conotaes simblicas. Passamos a apresentar, em seguida, as

    prerrogativas da escuta minimalista de Steve Reich para

    estimular a percepo sobre as nuanas materiais do som,

    seguidas pelo pensamento de Brian Eno a respeito das

    modalidades da escuta propulsionadas pela ambient music e

    apresentamos as alternativas para uma escuta textural e

    heterognea, advogada por Slvio Ferraz. Antes, porm,

    importante salientar alguns aspectos culturais que modelam a

  • 6atividade e as expectativas relacionadas com a experincia

    perceptual da msica ocidental.

    A importncia que atribumos a atitudes e reflexes

    desconstrutoras enunciadas pelo poeta dos sons que foi John

    Cage, a partir de seus textos e da sua primeira pea

    eletroacstica (Imaginary Landscapes), criada em 1939,

    resulta do fato de ele pressentir, assim como outros jovens

    artistas, as obscuridades ontolgicas em que se viciara a

    cultura artstica da chamada civilizao ocidental. H, na

    seguinte afirmao de Cage, mais do que um dos muitos chistes

    bem-humorados do polmico compositor americano:

    "Eu aprendi que os intervalos possuem significados, que eles no so propriamente

    sons, mas implicam suas progresses um som no realmente apresentado aos

    ouvidos, mas mente. Toda questo aqui muito intelectual: fazer pensar em sons

    que no esto propriamente presentes nos ouvidos. A separao entre ouvido e mente

    estragou os sons. preciso liberar os sons das idias abstratas sobre eles.1

    Na concepo de Cage, tudo atacado, desconstrudo, dos

    edifcios ideolgicos armadura sagrada da sintaxe. Ele

    reivindicava o fim das premissas culturais do concerto

    clssico como um culto ritualstico da experincia esttica e

    defendeu, com toda a ironia e bom humor, maior liberdade

  • 7escuta, para que saibamos no apenas ouvir a elite dos sons

    musicais, mas tambm apreciar os rudos dirios:

    Uma das coisas que sabemos hoje em dia que algo que

    acontece pode ser experienciado por meio da tcnica

    eletrnica como outra coisa. Por exemplo, a gente

    entrando e saindo de elevadores e os elevadores andando

    de um andar para outro: essa informao pode ativar

    circuitos que levam aos nossos ouvidos uma concatenao

    de sons. Talvez voc no concordasse que o que ouviu era

    msica. Mas, nesse caso, outra transformao teria

    ocorrido: o que voc ouviu levou a sua mente a repetir

    definies de arte e msica que se encontram em

    dicionrios obsoletos. 2

    Cage convocava as pessoas para que ultrapassassem as

    molduras culturais para algo mais alm do uso obediente

    sintaxe musical. Finalmente, o artista sugere que preciso

    urgentemente descondicionar-se da expectativa auditiva

    habitual, e estar atento no apenas fraseologia musical

    (hierarquia que pressupe sempre algo acabado), mas a toda e

    qualquer atividade dos sons.

  • 8Pierre Schaeffer, quando exps a problemtica das

    impurezas simblicas que permeiam a escuta da msica

    habitual, sugeriu um tipo de escuta acusmtica, proposta

    anteriormente por seu colega Franois Bayle. Nesta modalidade

    da escuta, um som ouvido sem que se revele a fonte que o

    produziu, ou seja, sem qualquer relao do som com o que

    visvel, tctil ou mensurvel. A experincia da escuta

    acusmtica mostra que grande parte daquilo que acreditamos

    estar ouvindo na verdade resultante da experincia visual

    associada audio, uma escuta quase automtica na qual a

    cadeia de signos disparada pelo objeto sonoro transforma-se

    em mensagens complexas. Por esta razo, Schaeffer prope uma

    escuta que se atenha unicamente sonoridade mesma.

    Tal escuta material do som que visa a bloquear o

    conceito e a representao foi expandida pelos compositores

    minimalistas nos anos sessenta e setenta, perodo que

    redimensionou, para muitos, os pressupostos da escuta

    musical. No minimalismo, a escuta no predeterminada com

    relao a um conceito fixo, mas sim deixada capacidade das

    faculdades perceptivas do ouvinte de descobrir nuanas do som

    em si, de localizar pequenos detalhes timbrsticos que se

    desprendem do continuum sonoro. A escuta chamada a perceber

    as resultantes espectrais, os sons residuais, os batimentos

  • 9harmnicos, as melodias e ritmos parasitas, a repetio nua

    da matria e a tatilidade do tempo pulsante. A msica minimal

    permite e d tempo ao ouvinte de penetrar no objeto, a fim de

    descobrir a diferenciao gradual por acrscimos e subtraes

    sutis de elementos.

    Ao expor o ouvinte a jogos reiterativos de duraes

    extremamente longas aos quais ele no est acostumado, o

    minimalismo ignora a presso do tempo e redefine a escuta,

    agora acionada na intensidade perceptiva de cada momento. Na

    escuta minimal, tanto o conceito quanto a memria parecem

    ineficazes em representar todos os seus aspectos e os seus

    movimentos texturais. Nesta modalidade da escuta, como afirma

    o autor Slvio Ferraz, a memria no chamada a atuar, pois

    no se trata de relacionar um elemento a outro, mas sim de

    descobrir e deixar-se levar pela diversidade material que

    gerada pela reiterao de padres sonoros, no abarcvel pela

    representao. 3

    O minimalismo contm elementos estticos que o ouvinte

    no notaria, acostumado a esperar pelas mudanas e pelo drama

    musical. Mas, apesar do material ser aparentemente limitado,

    o montante de atividade acionada impulsiona o ouvinte para

    uma situao perceptiva complexa. O princpio da reiterao

  • 10

    do material sonoro desobriga a memria de vasculhar no

    passado prximo, procura dos elementos formais de

    construo de um sentido musical. No processo da escuta

    minimal somos motivados a ativar as micropercepes presentes

    numa escuta intensiva. Focaliza-se a matria sonora, nas

    alternativas formais de sua exposio, nas suas diferentes

    paradas e comeos, uma vez que a reiterao e o fluxo so

    dirigidos a um foco constante, na escuta das fases que

    emergem, de modos diferentes, a cada ciclo.

    Uma outra possibilidade de experincia sonora

    anteriormente concebida pelas poticas de Erik Satie e John

    Cage aperfeioada por Brian Eno na sua ambient music. De

    fato, Eno comeara a perceber que a partir dos contextos

    espao-temporais da escuta cotidiana, a centenria tecnologia

    voltada para a produo e reproduo musical permitia

    continuamente a criao de novos ambientes e hbitos de

    escuta. Perscrutou o quanto podia uma nova modalidade de se

    fazer e apreender msica, relacionando-se com ela como se

    estivesse compartilhando o espao com uma espcie de aquarela

    acstica ou de escultura snica.

    Parece que Eno comeou a perceber as transformaes que

    ocorriam nos hbitos auditivos da poca, no apenas no plano

  • 11

    tecnolgico dos aparelhos e espaos domsticos de escuta

    (como no surgimento do toca-fitas, rdios e toca-discos

    portteis), mas tambm nas lojas de discos que proliferavam e

    ainda pela penetrao da msica popular norte-americana,

    desde os anos cinqenta, no mercado da Inglaterra. O sentido

    de estranheza que essa nova msica propiciava vinha

    justamente de uma descontextualizao cultural da sua escuta.

    Perpassava pelos princpios poticos de Brian Eno o

    intento de colorir a atmosfera, rodear o ouvinte, criar um

    senso de espacialidade e profundidade que permitisse tambm

    ao ouvinte "mover-se" por entre espaos snicos alternativos.

    A composio ambient de Eno, alm da construo de atmosferas

    criteriosas, permite ser ouvida em diferentes espaos da vida

    cotidiana, com diferentes expectativas, tal como antes

    comearam a imaginar Satie, Varse e Cage. O princpio da

    ambient music visava, em princpio, a redimensionar o espao

    e o modo da escuta mediatizada, a fim de permitir ao ouvinte

    acoplar a sonoridade como um suplemento ao meio ambiente

    ntimo da escuta privada.

    Para esse non-musician assumido, ouvir msica algo

    como capturar parte de um processo infinito. Por isso ele

    concebe a presena dos eventos acsticos como algo que

  • 12

    simplesmente flui, um infinito continuum no qual ns entramos

    ou o abandonamos. O estatuto da compreenso auditiva sofre

    uma mutao, ou seja, outro. E diverso tambm o alcance

    da escuta na modulao livre da percepo, entre nuanas,

    planos e texturas, espectros snicos e extratos acsticos

    permeveis.

    A ambient music tambm no exige aquela forma perceptiva

    proposta pela teoria da Gestalt, feita de relaes entre

    frente e fundo. O ouvinte pode focalizar muitas coisas,

    alcanando muito mais do que a representao e a idia

    musical. Ele pode perceber a msica sob uma variedade de

    perspectivas que revela diferentes estratgias de escuta. O

    ambient , de outro ponto de vista, um meio diferente de

    explorar, em sua experincia, os aspectos verticais na

    composio do som, os seus espectros harmnicos, a sua

    qualidade timbrstica. Enquanto que na msica tradicional o

    timbre acessrio, na ambient music a sua dimenso

    estrutural. As informaes sonoras, tal como se d no

    minimalismo, no requerem a aptido da memria treinada e

    conotada pela cultura da msica tradicional na tarefa de

    enfeixar e apartar lampejos do passado e amarr-los numa

    suposta estrutura mais profunda.

  • 13

    Novas alternativas para uma escuta contempornea

    condizente com as formas de composio engendradas nas

    ltimas dcadas foram coerentemente aventadas por Slvio

    Ferraz. Atravs do vocabulrio conceitual criado por Gilles

    Deleuze, ele d especificidade ao pensamento deleuziano ao

    aplicar detidamente o seu funcionamento no plano musical,

    quando discute particularmente o conceito de ritornelo. 4

    Na concepo de Slvio Ferraz, h trs categorias

    aventadas atravs das quais a escuta pode configurar-se: a

    gestual, a figural e a textural. O gesto atribui aos sons uma

    rede complexa de significados; a figura atua como a escuta

    das relaes e funes, fornecendo pontos de referncia para

    a memria; e a textura diz respeito s nuanas sonoras

    inabarcveis pela memria e pela representao.

    A primeira alternativa a escuta que privilegia o

    gesto, na qual os sons no so elementos em si, mas sim a sua

    traduo, a representao sonora de elementos extramusicais e

    afetivos. Ela ocorre quando a experincia perceptiva se

    limita a regras determinadas a priori. A segunda categoria da

    escuta preestabelece um quadro de smbolos atribudos a cada

    textura sonora, o aspecto simblico da msica como funo

    estrutural, sejam esses smbolos semnticos ou sintticos. A

  • 14

    terceira, informal e no-estrutural, despida de um ponto

    fixo ou permanente e concebida como uma mnada indivisvel,

    porm heterognea, que se articula nos espaos potenciais do

    retorno do diferente, em suas potencialidades rizomticas.

    Msico e pesquisador, Slvio Ferraz demonstra, com muita

    pertinncia, as dimenses possveis da escuta contempornea e

    advoga em causa de uma escuta mltipla a qual rompe com a

    estabilidade e o seu confinamento nas formas abstratas e a

    qual no se limita apenas a um s plano de escuta. Ferraz

    apresenta as formas possveis de sensibilidade perceptiva na

    experincia da msica contempornea, ao propor que, para a

    realizao de uma escuta correspondente aos modos renovados

    de composio, preciso uma multiplicidade de escutas que

    aproxime efetivamente as poticas da experincia esttica.

    A "escuta textural", para Ferraz, no se refere

    escuta restrita ao material ou qualidade do material, mas

    ao devir expressivo do material, demarcando o territrio que

    a escuta demarca com o seu ritornelo. Tal textura definida

    no pela diferena de grau, mas pela diferena de natureza:

    ao deslocar um elemento, ao subtrair algo da textura, ela no

    se torna uma variao do modelo original, mas simplesmente

    muda de natureza, transforma-se noutra textura. 5 Nesse tipo

  • 15

    de escuta das nuanas, o que conta no a qualidade sonora

    em si, um atributo preestabelecido, mas do devir expressivo

    dessa qualidade ao voltar para a escuta sobre a prpria

    percepo que realiza o enunciado snico. preciso antes

    atentar para a escuta da nuana sonora, das texturas e suas

    potencialidades, no se retendo na mera apresentao de um

    mero colorido orquestral.

    Tal escuta ultra-sensvel das nuanas do espectro sonoro

    nutre-se de suas dobras imperceptveis, inabarcveis, dos

    espaos surdos e internos do som. Na heterogeneidade que

    compe a autopoiesis da escuta textural, instvel e mltipla,

    o ouvinte passeia por entre os seus espaos e as suas dobras

    irrepetveis. A instabilidade da textura est diretamente

    relacionada com a existncia de uma escuta de nuanas, das

    dobras das texturas no alcanveis pela abstrao. Enreda-se

    uma espcie de rede complexa em que qualquer ponto de

    qualquer territrio toca qualquer ponto de qualquer outro

    territrio, como num rizoma.

    Na escuta textural constituem-se os plats, as

    estratificaes de planos de escuta contemporneos, que se

    deixam entrecruzar e se permeiam o tempo todo. Trata-se de

    uma escuta nmade, que passa incessantemente do detalhe

  • 16

    forma geral. ( i ) O ouvinte vagueia livremente entre escutas

    texturais, figurais e gestuais, passando por territrios que

    so o desdobramento infinitesimal de outros territrios, numa

    intensa atividade de ligar e desligar elementos ou partculas

    sonoras. Acorrem, nessa modalidade auditiva, a ressonncia,

    os graus de conectividade, os pontos instveis de referncia,

    a trama inidentificvel de pontos de origem, as linhas de

    fuga e as mltiplas possibilidades de conexes. 6

    Para Ferraz, mesmo que a multiplicidade de modos

    composicionais do sculo XX no garanta uma multiplicidade de

    escutas correspondentes, possvel encontrar, atravs da

    compossibilidade dos modos de escuta heterogneos, infinitas

    linhas escapatrias at mesmo em meio aos enunciados sonoros

    j capturados pelo hbito.

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    1976 - Jan Steele e John Cage (produtor: Eno): Voices and

    Instruments - Obscure

    Michael Nyman (produtor:Brian Eno): Decay Music -

    Obscure

    1977 - Brian Eno, Mebius e Roedelius: Cluster and Eno - Sky

    1978 - Brian Eno: Music for Films - Polydor/EG

    Vangelis: Beaubourg - Windham Hill Records

    Brian Eno: Music for Airports I - Polydor / EG Records

    1979 - Brian Eno, Mebius e Roedelius: After the Heat - Sky

    1980 Brian Eno e David Byrne: My Life in the Bush of Ghosts

    EG Records

    Harold Budd e Brian Eno: Ambient #2: The Plateaux of

    Mirror .EG Records

    Laraaji (produzido por Eno): Ambient #3: Day of

    Radiance. EG Records

    Vol. 2 - EG Records

    1982 - Brian Eno: On Land 4 - Polydor/EG

    1983 - Brian Eno, Daniel Lanois e Roger Eno: Apollo

    Atmospheres & Soundtracks

    Virgin/ EG Records

    Brian Eno (produzido por Eno e Daniel Lanois): Music

    for Films, Vol. II. EG

    Records

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    1985 - Brian Eno: Thuesday Afternoon EG Records

    Brian Eno e Roger Eno: Voices - EG Records

    Cluster (Moebius/Roedelius) e Brian Eno: Old Land -

    Relativity

    1991 - The Orb: The Orbs Adventures Beyond the Ultraworld -

    Island Records

    1993 - Julio Viera, Fernando Lpez Lezcano, Jorge Rapp,

    Guillermo Pozzati, Gustavo

    Chab, Miguel Angel Calzn, Carlos Cerana: Msica

    Electroacstica en la

    Argentina (Perspectivas 1) - Tarka

    1997 - Reich Remixes: Coldcut, Howie B, Andrea Parker,

    Tranquilit Bass, Mantronik

    Maximum Drum Formul, Nobukazu Takemura, D* Notes, DJ

    Spooky, Ken Ishii

    Nonesuch Records

    Aphex Twin: Come To Daddy - Warp Records

    1999 - Roedelius (Surumu Hirasawa, Kenji Konishi, Alquimia,

    David Bickley, Alex

    Patterson): Global Trotters Project Vol. 1 Drive -

    Ryko

    2000 - William rbit: Pieces In A Modern Style Maverick

    Records

    2001 - Autechre: Confield - Warp Records

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    Arquivos virtuais lbuns e faixas acessadas em sites MP3:

    Erik Satie (Piano works, Gymnopdies); John Cage (Imaginary

    Landscape n#1, In a Landscape); Steve Reich (Its Gonna Rain,

    Come Out, Piano phase, Clapping Music, Eight Lines, Phase

    Patterns, Pulses, The Desert Music, Different Trains; Terry

    Riley (Poppy Nogood); Pierre Schaeffer (Etude aux Chemins du

    Fer, Loeuvre Musicale-allegro); Pierre Henry (Marche Du

    Jeune Homme, Le Voyage - Divinit Plaisibles, Messe pour le

    Temps Present, Too Fortiche, Teen Tonic, Eau + Machines,

    Fivre 2); Olivier Messiaen (Oiseaux exotiques, 1955;

    Catalogue des oiseaux, Et Expecto Ressurrectionem mortuorum;

    Lascension, Les Corps Glorieux, Foullis Darcs-en-ciel, Pour

    Lange, Notre Dame de Loubli, Trois Petites Liturgies de la

    Presence Divine, Oraison) Karlhaenz Stockhausen (Gesang der

    Junglinge , G e 1, Helicopters, Helikopter Streichquartett,

    Kontakte Structur 2, Microphonie II, Telemusik, Hymnen); G

    Ligeti (Kammerkonzert, Ramifications, Lux Aeterna,

    Atmosphres)

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    1 CAGE, John. Silence.1957, os.116 e 191 passim

    2 CAGE, John. De Segunda a Um Ano. 1967, p. 33

    3 FERRAZ, Slvio. Msica e Repetio. 1996, p. 58.

    4 O ritornelo, segundo a leitura de Ferraz sobre o pensamento de Deleuze, esse movimento de territorializao realizado por matrias de expresso numdeterminado sistema, num movimento incessante e irreversvel deterritorializao, desterritorializao e reteritorializao.Um exemplo deritornelo, no campo da escuta o da vibrao que se transforma em devir-outro da sensao de vibrao at ao ponto em que o objeto se faa nopensamento como som. O ritornelo da vibrao demarca o territrio do som.A vibrao cria outro territrio ao moldar o ouvido interno e externo eencontra outro territrio no pensamento, na forma de conceitos, perceptos eafectos. Quanto ao ritornelo da escuta musical, msicas diferentes participamna configurao de escutas diferentes e escutas diferentes incidem naconfigurao de novas musicalidades. FERRAZ, Slvio. Msica e Repetio.1996, p. 154

    5 Por textura podemos entender ainda a sensao produzida pelaconfigurao e pelo dinamismo dos elementos presentes num determinadofluxo sonoro. Pode ser vista como o primeiro elemento da percepo musicale, por conseguinte, o ltimo: o resultado da sobreposio de elementos numacomposio. Tal qual a cor e a temperatura, a textura intensiva, no h comosubtrair ou dividir uma textura sem que ela mude de natureza. FERRAZ,Slvio. Msica e Repetio. 1996, p. 166

    6 O ouvinte no apenas ouve um complexo sonoro, mas se torna partcula dotecido sonoro: digamos que o sujeito se transfigura passo a passo com o som,para praticamente percorrer os entremeios desse som. FERRAZ, Slvio.Msica e Repetio. 1996, p. 153

    7 O compositor Xenakis j dizia que a escuta humana no-linear, uma escutahors-temps: a escuta, para ele, se funda na memria, na coexistncia dosfragmentos disparatados que no so contemporneos do ato de percepo.Por isso Xenakis prope abrir espao para uma composio que ponha emjogo justamente a desordem e a no-linearidade da percepo humana.Cf.FERRAZ, Slvio. Msica e Repetio. 1996, p. 69

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