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A EXTINÇÃO DA ESPÉCIE O relógio marca 21h. O vento, úmido por conta da chuva que cessara há algumas horas, é agradável ao meu rosto. Olho pela janela, observo o céu escuro e me pergunto por onde andam as estrelas. Sento-me em meu lugar habitual. Na TV há um desses programas entediantes, tipicamente de domingo. Ao meu redor, algumas pessoas observam a TV, outros continuam enviando mensagens ao celular, incessantemente. Pareço ser a única inquieta. Minha mente está processando alguma coisa. Não consigo decifrar. Há algo de estranho nesse cenário. Ouço um zumbido do lado de fora e, em seguida, algo bater na vidraça. Mas todos continuam... Vidrados. Novamente o zumbido. Preparo-me em posição de caça, como se qualquer barulho vindo de fora me fosse um ameaça. Dessa vez foram apenas zumbidos. No momento em que me distraio em meus indecifráveis pensamentos, aquele mesmo zumbido torna-se cada vez mais próximo e, ao me curvar à esquerda, vejo-o: um inseto desconhecido, enorme, de corpo escuro, asas transparentes, ziguezagueando enquanto faz o seu zumbido constante. Preparo-me, mas em posição de defesa. O inimigo já havia invadido o território ao passar pela pequena brecha da janela. Agora as outras pessoas parecem também notar a presença do tal inseto. Alguns correm, outros continuam em seus lugares, mas é a senhora minha vó, matriarca da casa, quem pega um chinelo e sem qualquer piedade, acerta o invasor. O corpo encontra-se ao chão, esmago. Embora antes estivesse temendo o inseto, agora sinto-me frustrada, talvez até culpada por presenciar a morte de um ser desconhecido e nada fazer. Mas, afinal, o desconhecido não é sempre temido? O problema é que cada um reage da maneira que lhe convém, geralmente sem, antes, refletir. Enquanto me forço a assistir ao tal programa, ouço outro zumbido semelhante, mas sequer tive tempo para armar qualquer posição que fosse. O inimigo deu um rasante e foi em direção ao corpo estatelado ao chão. Provavelmente procurava por seu companheiro ou companheira (não havia como decifrar sexo). Dessa vez, todos

A Extinção Da Espécie

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Crônica sobre a relação do homem ao estranho, com uma crítica bastante visível à sociedade e as atitudes que, por vezes, tomamos frente ao novo e desconhecido.

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Page 1: A Extinção Da Espécie

A EXTINÇÃO DA ESPÉCIE

O relógio marca 21h. O vento, úmido por conta da chuva que cessara há algumas horas, é agradável ao meu rosto. Olho pela janela, observo o céu escuro e me pergunto por onde andam as estrelas. Sento-me em meu lugar habitual. Na TV há um desses programas entediantes, tipicamente de domingo.

Ao meu redor, algumas pessoas observam a TV, outros continuam enviando mensagens ao celular, incessantemente. Pareço ser a única inquieta. Minha mente está processando alguma coisa. Não consigo decifrar. Há algo de estranho nesse cenário.

Ouço um zumbido do lado de fora e, em seguida, algo bater na vidraça. Mas todos continuam... Vidrados. Novamente o zumbido. Preparo-me em posição de caça, como se qualquer barulho vindo de fora me fosse um ameaça. Dessa vez foram apenas zumbidos.

No momento em que me distraio em meus indecifráveis pensamentos, aquele mesmo zumbido torna-se cada vez mais próximo e, ao me curvar à esquerda, vejo-o: um inseto desconhecido, enorme, de corpo escuro, asas transparentes, ziguezagueando enquanto faz o seu zumbido constante. Preparo-me, mas em posição de defesa. O inimigo já havia invadido o território ao passar pela pequena brecha da janela.

Agora as outras pessoas parecem também notar a presença do tal inseto. Alguns correm, outros continuam em seus lugares, mas é a senhora minha vó, matriarca da casa, quem pega um chinelo e sem qualquer piedade, acerta o invasor. O corpo encontra-se ao chão, esmago.

Embora antes estivesse temendo o inseto, agora sinto-me frustrada, talvez até culpada por presenciar a morte de um ser desconhecido e nada fazer. Mas, afinal, o desconhecido não é sempre temido? O problema é que cada um reage da maneira que lhe convém, geralmente sem, antes, refletir.

Enquanto me forço a assistir ao tal programa, ouço outro zumbido semelhante, mas sequer tive tempo para armar qualquer posição que fosse. O inimigo deu um rasante e foi em direção ao corpo estatelado ao chão. Provavelmente procurava por seu companheiro ou companheira (não havia como decifrar sexo). Dessa vez, todos estavam de prontidão e a matriarca novamente não perdoou a presença do inseto, dando-lhe uma única chinelada, não havendo tempo para que eu lhe impedisse.

Dois corpos: um esmagado, o outro intacto, embora sem vida. Dois assassinatos. Um crime de extinção da espécie. Sinto remorso e novamente inquietação. Sou a única. Todos voltam aos seus lugares habituais, como se nada houvesse acontecido.