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A Face Romântica da Poesia de Guerra Junqueiro
Sânzio de Azevedo
I - INTRODUÇAO
Tendo nascido em 1850, ano das Poesias de Alexandre Hercula no, e vindo a falecer em 1923, data em que deixa de circular a revista Contemporânea, Abílio Manuel Guerra Junqueiro - literariamente Guerra Junqueiro- começaria a versejar sob o influxo do Romantismo agonizante e seria um dos grandes vultos da chamada poesia realista, chegando ainda a compor uma das obras máximas do Simbolismo português.
Embora haja exercido influência em alguns escritores da Renascença Portuguesa, notadamente Teixeira de Pascoais, vindo a impressionar mais tarde o próprio Fernando Pe8soa, Guerra Junqueiro nã.o tomaria conhecimento do Modernismo lusitano.
É inegável que o poeta percorreu, ao longo de sua carreira literária, o Romantismo, o Realismo e o Simbolismo; mas cremos que seria errôneo imaginar que, depois da fase romântica, sobreveio uma outra fase, de puro Realismo, como sucedeu na ficção de Eça de Queirós.
Lendo-se toda a obra poética de Junqueiro, das Duas Pá
ginas dos Catorze Anos (1864) até à Oração à Luz (1904) ou mesmo até às páginas póstumas ou inacabadas (O Caminho
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do Céu e Prometeu Libertado), pode-se ver que houve efetivamente três fases ou etapas, correspondentes aos três movimentos referidos; mas, depois de passada a fase romântica, e de íniciado o período realista, com A Morte de D. João (1874),
e mais tarde no Simbolismo d'Os Simples (1892), vamos encontrar, às vezes subjacentes, outras (e não poucas) claramen· t.e aflorado, aquele mesmo clima romântico que havia presiclido à sua iniciação poética.
Esse fato, que afinal não é extraordinário, longe de ser prejudicial ao julgamento valorativo da obra junqueiriana, vai, muito ao contrário, constituir, a nosso ver, um dos pontos positivos dessa poesia, que um dia o próprio autor pr�·tendeu fosse radicalmente realista.
E mais fácil será a aceitação desse Romantismo algo extemporâneo (já que se alonga por toda a sua carreira de poE: · ta) se tomarmos o conceitc de estilo de época no sentido que lhe deram estudiosos como René Wellek e Austin Warren, para quem a unidade dos movimentos literários não deve ser aceita senão dentro de um critério relativista. A propósito, é interessante observar, com Afrânio Coutinho, que, na novn perlodologia, " . . . em vez da sucessão dos períodos, como blocos estanques, o que ressalta é a imbricação, porquanto os sjstemas de normas que se substituem em dois períodos ja ..
mais começam e acabam em momentos precisos, porém se continuam em certos aspectos, repelindo-se em outros; as novas normas .substituem as antigas progressivamente, im
bricando-se, interpenetrando-se, e se superpondo, criando ":mnas fronteiriças", de transição, nas fímbrias dos períodos. Assim, em vez de unidades temporais, eles são antes uni .. dades tipológicas, a articulação fazendo-se em profundidade ou por camadas". (1)
Claro que o Romantismo que se verá ao longo da poesia de Junqueiro vai ultrapassar os limites dessas "zonas fronteiriças" a que se refere o crítico brasileiro. Mas, se essas zonas vão explicar as notas românticas das suas primeiras produções realistas, a sua persistência em obras bem posteriores terá sua causa provavelmente em dois fatores nada des-
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piciendos: o próprio temperamento do autor e sua forma
ção literária. Vasta é a obra de Junqueiro, e teremos de lutar contra
a tentação das transcrições, que não devem ser demasiadas, mas que são indispensáveis num trabalho como este.
2 - A FASE ROMANTICA
A mais antiga produção de Guerra Junqueiro que se conhece são as Duas Páginas dos Catorze Anos (1864).
Não para mostrar a má qualidade dos versos, mas para
que se observe a atmosfera de puro Romantismo que os enforma, reproduzamos uma estrofe apenas de "A Um Amtgo":
Nasci p'ra ser desditoso, P'ra ser feliz não nasci; Uma esp'rança, um sonho, um gozo Nunca n'alma conheci!
Em Mysticae Nupciae (1866) já se percebe certa evolução do poeta, ao trabalhar o decassílabo:
Do Sol o último raio vai perder-se Entre as sombras da noite pavorosas! Ao longe, no horizonte, nuvens vagas Desdobram-se, encastelam-se! a nortada Rija sibila como selva extensa! Atro arranco reboa pelo espaço!
O hendecassílabo que us a é o iâmbico-anapéstico, o mais u::;ado pelos poetas românticos, notadamente entre nós:
"Varreu-se a procela: que noite saudosa! I O seio mais casto palpita de amor!"
Interessante observar que, mesmo nesse tempo, o dodecassílabo de Junqueiro obedecia às regras de formação do alexandrino clássico: é que, em Portugal, talvez por influência de Castilho, o chamado alexandrino espanhol não teve a
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aceitação que teve no Brasil. Isso, não obstante haver figurado nos cancioneiros galaico-portugueses. Era assim que trabalhava o alexandrino o moço poeta:
A pétala baloiça, e o orvalho cristalino Embala-se e desliza em pranto diamantino! As aves a trinar saúdam novo dia, Nas balças tudo são torrentes d'harmonia! . . .
Pelo menos o alexandrino já nos faz antever a lira do poeta d'A Lágrima, com sua predileção pelas rimas emparelhadas.
As Vozes Sem Eco (1867) não acrescentarão muito ao que já vimos; mas já então surge a poesia de ideal reformista: o poema "À Espanha" abre com uma Dedicatória a Vítor Hugo, em que há versos assim:
Eu canto a liberdade, odeio a hipocrisia, Odeio o serv!lismo, a escravidão fatal; Que chegue a ti meu brado, o brado que te envia Uma alma franca e livre: é livre Portugal!
Ataca a monarquia espanhola como, mais tarde, atacará, furiosamente, a monarquia portuguesa, com D. Luís n'O Crime (1875) ou com D. Carlos na Pátria (1896).
Batismo de Amor, publicado em 1868 e postumamente incluído nas Vibrações Líricas (1925), coletânea não mencionada nas Obras de Guerra Junqueiro (poesia) organizadas e prefaciadas por Amorim de Carvalho, é bem o embrião do primeiro livro importante de Junqueiro, A Morte de D. Jcão, e narra a história de um menino que, lançado aos azares da vida, termina por mergulhar no vício. O verso é decidida·· mente mais seguro, havendo estrofes que já são do mais puro Junqueiro:
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Chegara a essa idade das quimeras, Dos sonhos, dos enlevos os mais ternos; Contava dezanove primaveras, Melhor dizia dezanove invernos.
Mas, não l'e contentando com o Romantismo, atinge às vezes a um Ultra-Romantismo digno das melopé ias de Soares de Passos:
Era a hora sinistra dos horrores, Em que os mortos, quebrando a negra lousa, Da campa surgem ao fragor dos ventos. O mundo dorme e outro mundo acorda: Vão pela treva lívidos fantasmas . . . As sombras falam, solitárias larvas, Aves noturnas pousam nos sepulcros!
Ainda na linha libertária de Hugo, publica Vitória da
França (1870) e À Espanha Livre (1873). No poema "Itália'', que figura no primeiro, lança os primeiros ataques ao Clero. A dicção desses dois livros é evidentemente condoreira, terminando o último com "a falange dos sé culos" avançando, como olímpicos soldados, cavaleiros-fantasmas "a galopar na estrada do infinito".
Depois d'A Morte de D. João, que é sua primeira produção realista, publicará ainda, alé m de outras, o poema Aos
Veteranos da Liberdade (1878), de notas satíricas e rasgos condoreiros, onde a mocidade arranca do passado o Sol da liberdade para depois apresentar as fardas "Primeiro esburacadas pelas balas I E rotas ao depois pela indigência! "
3 - A FASE REALISTA
Imbuído de ideais cientificistas, Junqueiro havia planejacto compor uma trilogia: A Morte de D. João, atacando o tipo romântico do conquistador devasso; A Velhice do Padre
Eterno, verberando o Clero, que considerava corrupto, e por fim o Prometeu Libertado, que seria a vitória do Homem, salvo por Jesus Cristo; a última parte ficou incompleta, sendo publicados apenas dessa trilogia os dois citados poemas. A
Morte de D. João foi editada em 1874.
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Falando precisamente desse poema, escreveu Fidelino de Figueiredo: "Guerra Junqueiro, fundindo o lirismo épico de Vítor Hugo e o satanismo de Baudelaire, pelo arrojo das suas imagens, praticava esta novidade tão mal recebida duma parte do público literário e tão entusiasticamente apoiada por outra, de meter a prosa na poesia. Cães vadios, a prostituição, a nudez gangrenosa, a vala comum, os hospitais, a valeta, tudo que até então, na poesia portuguesa, fora sistematicamente afastado do âmbito dos temas literários, era acolhido no poema de Guerra Junqueiro, que nos seus alexandrinos vibrantes extraía a essas podridões belezas imprevistas. (2)
Justa observação: com efeito, antes do poema de Junqueiro havia certo preconceito com relação a alguns vocábulos, apesar da presença de túmulos e sudários na poesia ultra-romântica; as podridões teriam de esperar pelo Realismo-Naturalismo de Cesário Verde ("E o peixe podre gera os focos de infecção") ou o Decadentismo de Antônio Nobre ("Em uma chaga a supurar gangrena") . . .
O Baildelaire de "La Charogne" está presente, ao lado da eloqüência hugoana, ao longo do poema:
Lancei o meu olhar pelo horizonte escuro, E vi tremeluzir clarões fosforescentes; Talvez um animal já podre, no monturo: Era a cidade imensa, a meretriz das gentes .
Sentado sobre um esquife, diz o personagem, na parte IV do poema:
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Eu abandono, entrego o coração escuro A ferrugem que morde as lúcidas espadas; Crescei dentro de mim, como num velho muro, Desejos sensuais, lepras esverdeadas!
Para, adiante, dizer de seu ideal:
Quero as coisas mais vis, mais baixas, corruptas, O cinismo, a traição, a infâmia, as prostitutas, E não te quero a ti, ó glória, ó virgem pura,
A ti que vais beijar os tristes namorados, Quando, insensíveis
. já, seus corpos verminados
Jazem na podridão da velho noite escura.
Há instantes de grandeza poética, como quando fala ao
ca dáver de um velho operário:
Na mudez formidável da matéria .rá nada te atormenta e te consome: Nunca mais saberás o que é miséria, Nunca majs saberás o que é ter fome.
Mas logo o duro realismo cientificista emerge, diante do corpo de uma mulher sifilítica, já em decomposição:
Dás um banquete aos lírios sensuais; A mimosa raiz das castas flores Bebe o sangue dos podres animais.
A seiva juvenil das ébrias plantas Adora a imunda chaga do leproso E odeia o corpo anêmico das santas; A podridão dum ventre monstruoso Intumesce d'amor as ébrias plantas.
A mesma idéia se repetirá quando D. João, ao falar de suas amantes decaídas, termina por dizer que seus corpos. após serem perfurados pelos bisturis nos hospitais, irão "Perfumar, engordar as lúbricas raízes 1 dos crassos vegetais felizes" do cemitério.
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No final do poema, Impéria, outrora bela cortesã, está
reduzida a uma megera nojenta, hidrópica, leprosa: "Tem chagas na cabeça e pústulas vermelhas: I A sif'lis bestial roeu-lhe as sobrancelhas. "
Ao passo que D. João,
Ele - anda magro, hediondo, exótico, descalço. Tem risos de intrujão; lembra um pataco falso Amarelado e sujo. O seu nariz purpúreo É uma esponja de carne a destilar mercúrio.
E vai vivendo
. . . à beira das estradas, Expondo às multidões as lepras inflamadas E as pe�·nas bestiais, tumidamente obscenas, Da cor do lírio roxo e da cor das gangrenas.
A Velhice do Padre Etemo (1835) se compõe de sátiras ainda mais violentas, muitas vezes descambando para o cômico ou o grotesco, haja vista a "Ladainha Moderna" ou a
"Circular". Mas, a.o tratar dessa obra contundente, já que nos interessa unicament2 seu aspecto literário, cumpre-nos fazer o que Coleridge char:-wu de suspension of disbelief; é que, numa obra de arte, pouco importa nossa descrença no que o autor quer pregar ou impingir. Assim, a transcrição de alguns versof) de ataque ao Clero não vai implicar abso· lut.amente em concordância (ou mesmo em repúdio} a esse
ataque, o que nos parece extraliterário. Embora possamos lembrar o fato de Guerra Junqueiro sempre haver demons·· trado crença em Deus e no Cristianismo, chegando, com re
lação à Igreja católica, a abrandar sua posição, a ponto à.e confessar: "Eu tenho sido, devo declará-lo, muito injusto com a Igreja. 'A Velhice do Padre Eterno' é um livro da mocida· de. Não o escreveria já aos quarenta anos." (3)
Ele achava que o clero era composto ao seu tempo por indivíduos corruptos . "Daí que o seu anticlericalismo deva
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ser compreendido como indignação contra o religioso devasso, não contra o realmente vocacionado. " ( 4)
No soneto "Parasitas", temos a presença do RealismoNaturalismo, no que tange à pintura dos seres aberrantes:
No meio duma feira, uns poucos de palhaços Andavam a mostrar, em cima dum jumento Um aborto infeliz, sem mãos, sem pé s, sem braços, Aborto que lhes dava um grande rendimento.
Os magros histriões, hipócritas, devassos, Exploravam assim a flor do sentimento, E o monstro arregalava os grandes olhos baços, Uns olhos sem calor e sem entendimento.
"A Vala Comum", longo poema de 80 estrofes, repete as abjeções já mencionadas anteriormente: são lençóis de hospital, já rotos e cheios de vermes, crânios de heróis, carcassa s decompostas . . .
Mas o ponto alto do Realismo n'A Velhice do Padre Eter
no, está nos versos descritivos de "A Sesta do Sr. Abade", on� de se pode ver a mestria do artista numa pintura que lembra os romances da escola:
O meio-dia bateu já na torre da Igreja. A aldeia é silenciosa e triste. O Sol flameja. Entre o surdo murmúrio abrasador da luz, Como num grande forno, os grandes montes nus Recozem-se, espirrando as urzes dentre as fragas. Um mendigo, demente e coberto de chagas, Dorme estirado ao sol numa modorra espessa; E o mosqueiro febril nas lepras da cabeça Enterra-lhe zumbindo o cáustico das lanças. Andam só pela rua os porcos e as crianças. Fome, desolação, luto, viuvez, misé ria Na aldeia morta.
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É tipicamente realista a descrição, com o vezo de retra·· tar somente o lado negativo da vida; além do que foi apresentado acima, fala-nos o poeta da terra calcinada cuspindo "o cardo torcido, epilético, ardente", enquanto siivam as cobras, o ar carboniza as árvores; os reb::mhos "são cor:.-:.o mD
pulular de vermes"; grassa a epidemia, e os velhos decadent.es agonizam, ouvindo os lamentos fúnebres dos bois magrm, a mugir abandonados "Junto ao velho esqueleto inútil dos
arados". Chega a ser grotesca a descrição do abade dormindo (c
não era outro o objetivo do poeta):
O cura, espapaçado, esbanclalhado, ronca. Inunda-lhe o suor oleoso a testa bronca, O cachaço taur:no e as papeiras, que vão Desde o queixo ao umbigo, em crassa ondulação.
A boca comilona, erótica, sensual, Traz à lemb;:al'.Ça o fauna obsceno e o canibal. E a dentadura podre, esse armazém de guano,
É qual desmantelado aqueduto romano.
F. raia deliberadamente ao mau-gosto:
As vezes, um fragor rouco de temporal Quer bramir através do Himalaia nasal Do abade, mas achando os dois túneis do monte Entupidos de esterco infecto e de simonte ,
Retrocede e lá vai por outro sorvcdoiro Expluir- com profundo e tremebundo estoiro! . . .
N' A Musa em Férias (1879) havia o poeta incluído um.
soneto em versos decassílabos, intitulado "A. L.", em que, numa dicção que lembra a dos sonetos de Antero de Quental, dizia:
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Não és a flor olímpica e serena Que eu vejo em sonhos na amplidão distante; Não tens as formas ideais de Helena, As formas da beleza triunfante;
e, depois de falar mais ou menos romanticamente em "místiça açucena", e em "artista gentil", finaliza com uma serenidade de arte plástica, lembrando o Parnasianismo, ou ao menos o que se convencionou chamar assim e�11 Portugal:
Faz-me lembrar as vívidas napeias, E as formas vaporosas das sereias Rendilhadas num bronze florentino.
Nas Poesias Dispersas (1920) novamente vamos encontrar notas de Realismo-Naturalismo com descrições nauseantes no poema "Romaria", datado de 1888; a pretexto de mostrar às filhas o mundo, vai o narrador fazendo desfilarem diante de seus olhos quantas misérias povoam a humanidade: �ão pústulas, cancros, podridões, cegos mendigando, rostos carcomidos pelo câncer; um vê os astros "por dois fontículos de pus", e outro é nada menos que "um montão de pústulas obscenas". Deste, que anda à luz do sol que "banha o laranjal e a vinha", diz o poeta: "Move-se esta ambulante ostreira de gangrenas, I Cuja alma é talvez mais pura do quf:' a minha! "
E são aleijados, loucos, enfim, todo um cortejo de desgraças pintado com uma crueza jamais igualada (felizmente, podemos dizer) em nosso idioma, nem mesmo com Augusto dos Anjos . . .
4 - A FASE SIMBOLISTA
Na nota que pôs no final d'Os Simples (1892), Guerra Junqueiro, referindo-se à técnica do poema, afirmava: "A
forma poética encaminha-se à evolução finaL Horizonte imen. so . O pouco que fiz de novo, em tal sentido, não deve nada a ninguém. É meu, pertence-me." (5)
Ninguém poderá negar, porém, o poderoso influxo da arte simbolista nesse livro de 1892, contemporâneo do Só de Antônio Nobre e dois anos mais novo do que os Oaristos de
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Eugênio de Castro, que iniciaram em 1890 o Simbolismo português.
O metro predominante é o hendecassílabo trocaico, verso largamente usado pelos simbolistas; não obstante haver aparecido no Romantismo brasileiro, com Franklin Dória, e reaparecer também aqui, mais tarde, com Vicente de Carva
lho, ao tempo do Parnasianismo, é verso tipicamente simbolista, com seu andamento encantatório, bem de acordo com a fluidez buscada pela corrente.
É verdade que nem todos os poemas vazados nesse metro, em Os Simples, respiram o puro clima do Símbolo, como vere
mos oportunamente; mas, além da musicalidade evanescente
que esse verso derrama por todo o livro, há instantes de autêntico Simbolismo, como "Eiras ao Luar", composto de heptassílabos e hendecassílabos:
Alvor da Lua nas eiras, Nem linhos de fiandeiras, Nem véus de noivas ou freiras, Nem rendas d'ondas do mar! . . .
Sobre espigas d'oiro bailam as ceifeiras, Na aleluia argêntea do clarão do luar! .. .
Bailai sobre as lagrimosas Estrelinhas misteriosas, Cintilações, nebulosas, Frémitos vagos d'empíreos! . ..
Deus golpeia a aurora p'ra dar sangue às rosas, Deus ordenha a Lua p'ra da-r lei.t.e aos lírios! . . .
Lendo só as duas estrofes iniciais podemos ver a Lua, revestida de prestígio simbolista, derramando mistério sobre a paisagem, num clima difuso em que nada se afirma, mas apenas se sugere: nem faltam as conotações litúrgicas (véus de noivas, de freiras, aleluia) , sendo que as estrelas são misteriosas, com frémitos que são vagos. A partir da terceira estrofe, surge uma espécie de refrão, com a repetição de "Oh, bailai" no início de oito versos. E, após falar nas medas, nos
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arados, nos bois, nos passarinhos, nos celeiros cheios, e esmolas para os mendigos, temos novamente o espiritualismo religioso na penúltima estrofe:
Quanta hóstia consagrada, - Pão da última jornada! Dorme na meda encantada Ao luar tão leve e tão lindo! . . .
Oh, bailai em volta dessa mó doirada,
Que bailais à volta de Jesus dormindo! . . .
"O Cavador" é outra composição acentuadamente sim balista, em octossílabos, com refrão de 4 sílabas:
Vem roxa a estrela d'alvorada . . . Vem morta a estrela d'alvorada . . .
- Oh, dor! oh, dor! -Montanhas nuas sob a geada! .. .
Hirtas, de bronze, sob a geada! . . . - Oh, dor! oh, dor! -
Torvo, inclinado sobre a enxada, Rasga as montanhas com a enxada, Fantasma negro, o cavador!
Essa repetição do mesmo vocábulo no final de versos diferentes, essa estrela roxa, essa dor reiterada, o andamento, tudo remete para a escola de Verlaine.
Mais cultivado pelos nefelibatas foi o enassílabo com icto na 4 a. sílaba; nele escreveu Junqueiro "Os Pobrezinhos", com rimas emparelhadas em dísticos:
Pobres de pobres são pobrezinhos, Almas sem lares, aves sem ninhos . ..
Há momentos que lembram aqueles trechos de realismo rebarbativo:
Há-os com f'ridas esburacadas, Roxas de lírios, já gangrenadas.
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Mas aqui podemos dizer que se trata mais de notas de Decadentismo, tendência precursora do Simbolismo.
Todavia, o momento de maior pureza, em matéria de Simbolismo, n'Os Simples, é o "Campo Santo", composto em metros vários :
Ai do relento, ai do relento, sonham cavadores! . .
Sono d'arminho... colchão de terra... lençol de [flores! ...
Caí dormente, Caí exânimes, trementes
Pálidos silêncios do luar dorido! Litanias fJ.uidas do luar dorido! Misereres brancos do luar dorido!
Do luar dorido! . . .
Começa a prenunciar-se a liberdade formal do Simbolismo: o dístico inicial tem 14 sílabas (às vezes atinge 15); na estrofe que se lhe segue, temos versos de 4, de 8, de 11 e de
5 síla.bas . A atmosfera é de sonho, de encantamento, de fluídez, de vaguidade. Há sinestesia nos "pálidos silêncios" e nos "misereres brancos", podendo-se ainda vê-la nas orações do luar. Além do prestígio da Lua, note-se o vocabulário litúrgico, com "litanias", "misereres" e "orações"; adiante, o poeta falará de "extrema-unções", de "ângelus", de "sagrações" e de "exéquias". Apesar de o livro (que é todo um poema) celebrar a gente rústica, e sua simplicidade, é de notar, em alguns passos, a procura do vocábulo peregrino, "litania" em vez de ladainha; "oblívio", em vez de esquecimento. Lembremos a propósito que Eugênio de Castro, ao lançar as bases da corrente em Portugal, preconizava o uso de palavras raras, como gomil em vez de jarro:
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Ai ao relento, ai ao relento sonham pegureiros! ... Cama tão fresca! ... cobertor branco, de j asmineiros.
Caí maviosas, Caí sonâmbulas, piedosas,
Côncavas tristezas do luar magoado! Ressonâncias d'órgão do luar magoado! Extrema-unções profundas do luar magoado! Síncopes, oblívios, quietações chorosas
Do luar magoado! .. .
5- A FACE ROMANTICA
Ainda quando vivia o poeta, escreveu Antônio Sérgio um ensaio a que intitulou "O Caprichismo Romântico na Obra do Sr. Junqueiro", no quai censurava. o que considerava os defeitos de sua obra, ou seja, as incongruências que atribui ao que chama de "histeria romantesca"; diz a certa altura: "A improbidade, o automatismo, a indisciplina da linguagem, os erros na notação das mais triviais realidades (produtos de um subjetivismo incontinente e tumultuoso) agridem a cada passo o senso crítico do leitor honesto." (6 )
Baseia-se o crítico, não sem razão, no fato de Junqueiro pretender, e proclamá-lo, fazer poesia científica. É por isso que Antônio Sérgio, à maneira da velha crítica, esmiúça a obra do poeta, mostrando-lhe os deslizes (leões misturados com condores, mastodontes em pleno século XIX, búfalos com atitudes de carnívoro, cedros com frutos de oiro, etc. ), o que seria realmente irrelevante, se Junqueiro não falasse tão or·· gulhosamente de seus conhecimentos científicos.
Assiste razão ao crítico quando constata a presença do Romantismo em muito verso junqueiriano considerado rea
lista; entretanto, essa face romântica, que percorre toda a obra do poeta, nos parece muito mais benéfica do que prejudicial.
N'A Morte de D. João, considerada sua primeira produ
ção realista, chegaria a ser enfadonha a enumeração dos trechos em que, embora intentando verberar o Romantismo, a
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dicção é notoriamente hugoana . Ninguém verá outra coisa em versos como estes:
Há muito que fazer, muito que destruir. Trabalhai, trabalhai, nas forjas do porvir, Mineiros do futuro, artistas da verdade!
As llipérboles da "Introdução" (de onde extraímos es
S22 verso:::) são claramente condoreiras, fazendo-nos evocar a musa altiloqüente do nosso Castro Alves, como o ''zodíac·J imortal d� consciência humana" formaào por constelações que são Prometeu, Dante, Cristo, Galileu, Washington, Pascal, Newton e Voltaire .
Dir-se-ia que o poeta quis pintar um quadro romântico,
para dep:::>is chocar o leitor com as cenas realistas que já vimos; efetivamente, raia ao pieguismo a cena em que a pobre meretriz tira do manto uma criança, põe-lhe uma cruz nu
seio e deixa-o na rua. Diz o poeta claramente de sua ojeriza à escola de MussE:L,
ao perguntar, no Prefácio à 2a. edição do poe'I!a: "QL�antos adultérios, prostituições, nevroses, tísicas, enfim, quantos escândalos e quantas doenças não têm sido produzidas desde 1830 pela sentimentalidade doentia do romantismo desgr-::nl"lado e piegas?'' (7)
No entanto, não fugiu aos tiques da corrente, e quando, indignado cmn os vícios da cidade-grande (Babilônia), ek se dirige à sua lira, é em versos deste teor:
ó minha pobre lira! hei-de arrancar-te as cordas E, unindo-as nesta mão, vibrá-las e torcê-las Para fazer, ó musa! um látego de estrelas!
Tinha Junqueiro tanta consciência do romantismo d;: seu poema, que nele inseriu um trecho em que adverte: "Os
versos que aí vão, modelo de poesia I Ultrapeninsular, / Encontrei-os, leitor, na velha mercearia I Dum nobre titular."
Para justificar trovas como esta onde, não obstante a enálage do 3.o verso, o sabor é popular:
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Que martírio inda não visto,
Ai! que martírio sem fim, Se eu pudera ser o Cristo E tu a cruz de marfim!
É certo que os momentos de maior derramamento lírico estão precisamente nas falas do Poeta, enquanto personagem do poema; mas quando fala Impéria seu discurso não é menos piegas.
Importante é observarmos a presença de Romantismo no discurso do próprio narrador. Como na estrofe derradei
ra d'A Morte de D. João, onde se entremeiam decassílabos e quebrados de heróico, num clima de rara beleza:
Parou a ventania. As estrelas dormentes, fatigadas,
Cerram à luz do dia As misteriosas pálpebras doiradas . Vai despontar o rosicler da aurora;
O azul sereno e vasto Empalidece e cora, Como se Deus lhe desse
Um grande beijo luminoso e casto. A estrela da manhã Na altura resplandece;
E a cotovia, a sua linda irmã, Vai pelo azul um cântico vibrando, Tão límpido, tão alto, que parece Que é a estrela do Céu que está cantando.
Aqui o poeta esqueceu por instantes seu propósito de fazer poesia científica. No citado Prefácio, havia ele escrito: "Cantem, pois, a madressilva e as rosas, os prados florescentes, as águas, os montes, a Primavera, cantem enfim a natureza, mas interpretando-a pelos resultados da ciência, que a tornam mais bela e mais poética, e não copiando uma série de tropas infantis e de madrigais adocicados, que já nada querem dizer e nada representam." (8)
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Nac!.a há de científico nessas estrelas fatigadas, cerranelo a:; pálpebras dormentes, nem nesse azul que cora, cor>.1..:_, se recebesse um beijo de Deus. E nada há de objetivamente realista na bela sinestesia que fecha o poema.
N'A Musa em Férias (1879), além dos "idílios e sátiras" do subtítulo, incluem-se dois poemas já publicados anteriormente: O Crime (1875), onde se pede perdão para um criminoso, e A Fon2e no Ceará (1877), exortando os portugueses a dar al'XÍlio aos flagelados da grande seca. São obras româ:�ticas, já pela generosidade dos temas, já pelo estilo, marcadamente condoreiro.
É ainda desse livro o famoso "Fiel", a história do cão que, após Yiver com um pintor em dias difíceis, foi por este de�,i)rezado e lançado ao mar quando a fortuna lhe sorriu: lamenta o artista a perda de seu gorro, caído nágua, quando sente baterem à porta:
Recuou cheio dé espanto; era o Fiel, o cão Q..1e voltava arquejante, exânime, encharcado, A tremer e a uivar, no último estertor,
Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado, o gorro do pintor!
Foi imensa a popularidade desse poema, inúmeras vezes declamado ao lado de outras páginas românticas, ao som da Dalila, nas tertúlias familiares do início do século .
Ron�ântico ainda, mas doutro tipo de ro::-nantismo, é o
poema intitulado "Morena", em que há versos assim:
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Não negues, confessa Que tens certa pena Que as mais raparigas Te chamam morena.
Mas olha as violetas Que, sendo umas pretas, O cheiro que têm! Vê lá que seria, Se Deus as fizesse Morenas também!
Após advertir que morenas eram as mais lindas moças de Jerusalém, e que talvez Maria fosse também morena, termina o poeta:
Moreno era Cristo. Vê lá depois disto Se ainda tens pena Que as mais raparigas Te chamem morena!
Escrito em redondilha menor, com esquema rimático popular, esse poema bem merece o epíteto de gracioso. E é romântico, mas de um Romantismo jovial, como aquele de alguns poemas de João de Deus. Deste, disse Fidelino de Figueiredo: " . . . João de Deus, em plena decadência do lirismo amoroso e subjetivo, deu-lhe novos alentos e depurou-o de alguns agentes de dissolução." (9)
Ao que acrescenta Cleonice Berardinelli; "Na verdade, n?,o se compraz João de Deus na contemplação do fúnebre ou do macabro; a tristeza que revela é profunda mas nunca mórbida; daí o clima de equilíbrio saudável em que decorre sua poesia, o qual mais se acentua pela alegria moça e espontânea de muitos de seus poemas." (lO)
É exatamente essa "alegria moça", esse "clima de equilíbrio saudável" que vemos no poema de Junqueiro, com um
à-vontade muito coloquial e simpático, algo que nos traz à memória "O Laço de Fita", de Castro Alves .
Já vimos que, n'A Velhice do Padre Eterno (1885), predomina a sátira realista. Contudo, a face romântica lá está
a colorir de sentimentalismo a abertura do livro, "Aos Simples", do mais puro lirismo romântico:
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Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti. Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares Cruzavam-se voando em torno dos seus lares, Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Tomemos um dos mais consagrados poemas desse livro, "A Caridade e a Justiça", de notoriedade igual à do "Fiel", e largamente declamado em muitos lares tradicionalmente re
ligiosos do Brasil. Vemos Jesus crucificado, na noite do Calvário; aproxima-se Judas . Mas, ante a nobreza do olhar do Nazareno, foge, e encontra um vulto, que lhe diz ser chegada a hora do castigo; "Quem és tu?", pergunta-lhe o traiàor; "O I=i.emorso, um caçador de feras." Iscariote tenta subornar o gigante, que se mostra incorruptível. E, ao romper da alva, Judas prepara o laço para enforcar-se. Ecoa entfi.o a voz d2 Jesus, concedendo-lhe o perdão. Judas, porém, não aceita �•
perdão de Cristo; prefere seguir o que lhe dita a consciência, e enforca-se .
Apenas narramos o episódio sucintamente, mas já ve
mos o romantismo que povoa o poema: o que nos autorizaria a chamar de realista uma página alegórica de lances tã·J dramáticos?
É chocante para muitos a blasfêmia e (não esqueçamos o suspension of disbelief) contida nestes versos:
Vais ver como esse monstro, ó pobre Cristo nu, E maior do que Deus, mais justo do que tu: A tua caridade humanitária e doce, Eu prefiro o dever terrível! E enforcou-se.
O certo é que esse poema, em cujo início há versos de grande beleza ("Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas / Corriam pelo ar como grandes manadas I de búfalos."), se
nos afigura, pela emoção de que se reveste, tão romântico, quanto "A Doida de Albano", de Antônio Xavier Rodrigues Cordeiro. E romântica aquela Lua, "ensangüentada e fria / Triste como um soluço imenso de Maria", lançando a luz me-
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rencória, feita "de brancos ais", como é romântico o Remorso, aquele mesmo que, n'O Crime, com o nome de Consciência, persegue o alferes, e que vem a ser- consoante a obser
vação de Antônio Sérgio no citado ensaio- a mesma Consciência do "Cain", de Vítor Hugo. N"'A Caridaàe e a Justiça", cli7, o Remorso a Judas:
ÉS traidor, assassino, hipócrita, perjuro; A tua alma lançada em cima dum monturo Faria nódoa. É tudo o que há de mais vil, Desde o ventre do sapo à baba do reptil. Sai da existência! dize à sombra que te açoite. Monstro, procura a paz, verme, procura a noite!
Antônio Sérgio (11) q;Jis ver incoerência em Junqueiro, achando que o poeta considerava injusto o perdão de Jesus rara Judas, mas justo o dele, poeta, para o soldado, em O
Crime. Na verdade, Guerra Junqueiro preconiza, tanto para um como para outro, a mesma expiação, ou seja, a de ser entregue à própria consciência.
Quanto a Os Simples (1892), já vimos que se trata de obra :oimbolista. Mas, embora seja verdade que "o individualismo simbolista não vai repetir pura e simplesmente a idêntica propensão romântica", (12) como adverte Massaud 1\IIoi�és, ninguém poderá negar a retomada de vários postulados românticos pelos sacerdotes do Símbolo; nem poderia ser de outra forma, já que a nova corrente se pretende antiobjetiva.
Se pudemos mostrar Romantismo nas obras ditas realistas de Guerra .Junqueiro, menos estranho será que o assinalemos nessa obra cheia de subjetivismo.
Os Simples, que são indubitavelmente o ponto mais alto da poesia junqueiriana e, a nosso ver, uma das mais belas realizações da poesia portuguesa, celebram a pureza da gente simples e primitiva de Portugal; assim, na exaltação da vida rústica, não é de admirar apareçam inúmeros versos de sentimento romântico: São os astros abrindo, como "querubins divinos", os olhitos meigos para ver passar a moleirinha, uma santa velhinha, cujo jumentinho é tão ingênuo e
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puro que o poeta sente vontade de levá-lo à igreja para batizá-lo, observando ainda que "Quando a virgem pura foi para o Egito, / Com certeza ia num burrico assim"; é a boieirinha, "Fresca como os cravos pelo amanhecer", descalça, porém "sem ar mendigo", banhada pela glória do Sol:
O chapéu é palha que inda há um mês deu trigo, A saíta é linho ainda há bem pouco em flor! . . .
É o velho castanheiro, que a muitos dera o berço, o teto, as portas, o arado e o leito, e agora se desfaz em chamas, aquecendo a todos no inverno; é o pastor nonagenário, que morre e vai para o Céu, tanger milhões de astros, "As ovelhas novas de Ti-Zé-Senhor·•: tanto se identificara, desde criança, com a terra, que
Quase me admirava que nas primaveras Desse peito rude não brotassem heras, Margaridas, lírios com abelhas d'ouro!
Encerra-se o livro com o "Regresso ao Lar", composição antológica que, pelo subjetivismo simples, traduzindo forte sentimento, mas sem aprofundar os meandros do subconsciente, muito mais remete para o Romantismo do que para o Simbolismo que povoa outras páginas do livro. É bem ro··
mántico o topos que o enf01ma, o da "Visita à Casa Paterna" (tão bem explorado pelo brasileiro Luís Guimarães, autor também de uma "História de um Cão", inspirada, como o "Fiel" de Junqueiro, num conto de Adolphe Destroyes) .
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Fala o poeta, ao voltar à sua casa:
Ai, há quantos anos que eu parti chorando Deste meu saudoso, carinhoso lar! . . .
Foi há vinte? ... há trinta? ... Nem eu sei já quando!. .. Minha velha ama, que me estás fitando, Canta-me cantigas para me eu lembrar! ...
E, depois de falar de seu coração, desfeito pelas amarguras e pelas mágoas, sempre pedindo à velha ama que cante as velhas cantigas, num saudosismo casimiriano, termina o poeta seu canto com a lembrança da morte, tão cara aos seguidores de Lamartine:
Canta-me cantigas para ver se alcanço Que a minh'alma durma, tenha paz, descanço, Quando a Morte, em breve, ma vier buscar! ...
Leia-se Pátria (1896) e lá se verá a mesma dicção, o mesmo arrebatamento, a mesma generosa indignação romântica com que lançava rimas candentes contra as monarquias nos primeiros versos; leiam-se as Orações (Oração ao Pão --1902, Oração à Luz - 1904) e se sentirá a mesma atmosfera lírica de Os Simples.
Longa seria a enumeração de quantas composições se
tingem de Romantismo; teríamos que nos demorar na leitura d'O Melro (1879), cujo enredo, seja ou não baseado na realidade, é de uma dramaticidade romântica, ou d'A Lágrima (1888), belíssima alegoria sobre a justiça divina. CremGs porém seja bastante o que já foi dito.
6- CONCLUSAO
Guerra Junqueiro produziu muito, e era natural que nem tudo atingisse ao mesmo nível artístico. Por outro lado, a um período de endeusamento de um autor geralmente sucede outro de demolição: no Brasil, Coelho Neto foi durante o Reali�mo considerado por muitos como o maior dos prosadores nacionais, para mais tarde ser, com igual injustiça, relegado ao esquecimento, como se nada de aproveitável houvesse deixado em sua enorme bagagem literária. Foi mais ou menos o que ocorreu - em Portugal e no Brasil - com a poesia de Guerra Junqueiro; quase venerado em fins do século XIX e
começo do século XX, passaria a ser atacado a partir da década de vinte.
Tanto o endeusamento quanto a detração vêm a ser fruto de um mesmo vício: a generalização. Porque escreveu al-
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gumas páginas de superior categoria artística, elevaram-no :•.
Pontífice Máximo da poesia luso-brasileira; porque, posteriormente, se verificou que alguns de seus processos literários eram algo gratuitos, entenderam muitos de lançá-lo ao ostracismo, como se se tratasse de um impostor. Antes, era modR imitá-lo; depois, de bom-tom era desprezá-lo, a ele e a sEa prosa metrificada (como não poucos qualificam toda n
poesia j unq ueiriana) . Não é preciso acrescentar que os ataques que despediu
a t.orto e a direito contribuíram para o silêncio que se fez em torno de seu nome. É que, realmente, a bem poucos é dada a capacidade de fazer 2.'W8le suspension of d?slleliej colerid giano . . .
A nosso ver, a poesia de Guerra Junqueiro não é aquilo que parecia ser, através do deslumbramento de seus admiradores de há setenta e tantos anos; mas também não é absolutamente a antipoesia que muitos hoje acreditar:1 que ela
sej a . Sua fase realista, d e caráter cientificista, quase produ
ziu essa antipoesia. Salvou-o porém a face romântica que abrange toda a sua produção artística, fazendo-o escrever al p.;uns dos mais belos versos de seu tempo .
N O T A S
1 ) Afrânio Coutinho , "Intro ducão à Literatura n o Brasil". 3a. edR;o de Janeiro. São José. 1!ÍG6. n. 2 1 -2 .
2 ) Fidelino de Figueiredo . " História da Literatura Realist-a". 2a . ed .. revista. Lisboa. Clássica. 1 924, p . 1 1 6 .
3 ) Guerra Junqueiro. · 'Presas Dispersas". Porto. Charclron. 192 1 ,
p . 1 3 . 4) Massaud Moisés . "A Literatura Portuguesa Através dos Tex
tos" . 2a . ed . S . Paulo. Cultríx. 1 969. p . 298 . 5) "Obras de Guerra ,Junqueiro". (!)oesia ) Org . e Intr . Amorim
de Carvalho . Porto, Le1lo. 1 972, n . 9 1 7 . 6 ) Antônio Sérgi o . " O Canri c hismo Românti eo n a Obra d o Sr- Jun-
aueiro". In "Ensaios", t . I . 2 ed. Coimbra. Atl ântida, 1!)49, p. 354 . 7 ) "Obras de Guerra Junqueiro", cit., p . 135 . 8) Ibidem, p . 132 . 9l Fi delino de Figueiredo. op . cit . , p . 32 .
10) Cleonice Berardine1le. "João de Deus" . Rio de Janeiro, Agir, 1967, p . 8 .
1 1 ) Antônio Sérgio, op . cit . . p . 432 . 1 2 ) Massaud Moisés . "A Literatura Portuguesa". 6a . ed- , S. Pa.ulo.
Cultrix, 1968. p. 250 .
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