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1
FÁTIMA REGINA NASCIMENTO
A FORMAÇÃO DA COLEÇÃO DE INDÚSTRIA HUMANA NO
MUSEU NACIONAL, SÉCULO XIX.
PPGAS/ MN/ UFRJ
2
A FORMAÇÃO DA COLEÇÃO DE INDÚSTRIA HUMANA NO MUSEU NACIONAL, SÉCULO XIX.
FÁTIMA REGINA NASCIMENTO
Tese de doutorado em Antropologia Social Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Museu Nacional - UFRJ
Orientador
João Pacheco de Oliveira Filho Professor Titular de Etnologia.
Rio de Janeiro
2009
3
A FORMAÇÃO DA COLEÇÃO DE INDÚSTRIA HUMANA NO MUSEU
NACIONAL, SÉCULO XIX.
Fátima Regina Nascimento
Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Como
Parte Dos Requisitos Necessários Á Obtenção Do Grau De Doutor.
Aprovada por:
____________________________________________
Professor João Pacheco de Oliveira Filho - Orientador Professor Doutor
_____________________________________________
Professor Moacir Gracindo Soares Palmeira Professor Doutor
______________________________________________
Professor Antonio Carlos de Souza Lima Professor Doutor
_______________________________________________
Professor Ricardo Gomes Lima Professor Doutor
________________________________________________
Professor Ivan Coelho de Sá Professor Doutor
5
AGRADECIMENTOS
Os primeiros agradecimentos sempre cabem ás instituições
financiadoras, como esse trabalho não contou com apoio financeiro o primeiro
agradecimento fica sendo para minha filha Luiza Nascimento Barbosa que
dividiu o orçamento familiar com as despesas provenientes dos cursos, da
pesquisa e da tese.
Ao meu orientador Professor João Pacheco de Oliveira, por aceitar o
encargo de orientar a tese, pela leitura atenta da mesma e também pelo tempo
dedicado em sala de aula, incluindo o curso em que me aceitou como aluna
regular durante o mestrado na Escola de Belas Artes.
Ao Professor Antonio Carlo de Souza Lima, por estar sempre disposto a
ajudar seja no trabalho acadêmico, seja no trabalho do Setor de Etnologia,
facilitando minha dedicação já tão comprometida à pesquisa e execução da
tese. Pela sua participação valiosa nas duas bancas de qualificação. Bem
como pelas noções de formação de Estado desenvolvidas em seu curso
ministrado em conjunto com a Professora Adriana Vianna a quem também sou
grata.
Ao Professor Moacir Palmeira, pelas aulas onde me senti à vontade
para continuar o difícil empreendimento de mudar minha forma de escrita na
direção de uma escrita etnográfica. Também pela leitura atenta dos trabalhos e
participação nas qualificações com observações sempre pertinentes e
incentivadoras.
Aos Professores Giralda Seiyferth, Lygia Sigaud, Antonadia Borges,
Carlos Fausto, Bruna Franchetto e Otávio Velho. Pela oportunidade de
apreender com eles e pela paciência que tiveram em ler trabalhos bastante
apressados.
Ao professor Marcos Ponciano, pelas aulas de português, revisão do
trabalho e principalmente pela amizade demonstrada em face á doença.
Aos professores e amigos Ricardo Gomes Lima e Ivan Coelho de Sá
pelo apoio de sempre.
6
A professora Claudia Rodrigues chefe de Departamento de
Antropologia, pela consideração e apoio ao longo da execução do trabalho.
Aos companheiros de trabalho do Museu Nacional, começando por
Maria José Veloso da Costa Santos, cujo trabalho na criação do Arquivo Geral
do Museu Nacional foi a base da tese e pelo carinho com que Silvia Moura e os
outros integrantes de sua equipe sempre me trataram ao longo de anos de
pesquisa.
Aos companheiros das duas bibliotecas, do PPGAS e do Museu
Nacional: Alessandra Orrico Câmara, Antonio Carlos Gomes Lima, Carla
Regina de Freitas, Edson Vargas da Silva e Isabel Moreira. Pelo atendimento
eficiente e amigável.
Aos funcionários da secretária do PPGAS pela excelência do serviço.
Aos colegas do SAE principalmente Mara Regina Leite e Guilhermina
Guabiraba Ribeiro, pelo apoio logístico.
Ao colega Wagner Martins pelo apoio de sempre e a escuta das
reclamações intermináveis e ao colega de Setor de Etnologia Antônio Araújo
pelas fotos.
A todos meus ex estagiários e principalmente á Ana Paula Pacheco,
Alice Collucci, pelo apoio na digitalização dos primeiros catálogos; Rafael
Muniz Moura pelas fotos e a Mirthis Luiza da Silva pela colaboração na edição.
Aos diversos funcionários que me prestaram atendimento ao longo dos
anos de pesquisa nas bibliotecas do CCBB, IHGB, MHN, MNBA, ABL, CPII e
dos setores de Obras Raras, Periódicos, Manuscritos, Iconografia e Obras
Gerais da BN.
Aos funcionários dos arquivos do Museu Histórico Nacional e do Colégio
Pedro II e dos Museus D. João VI e Fundação Castro Maia pelo atendimento.
A Silvia Reis Ferreira de Mello, Simone Mesquita e Cristina Botelho
companheiras de luta nessa nada fácil vida de continuar a estudar remando
contra a maré.
Os agradecimentos emocionais costumam ficar por último,ma não em
último lugar, sigo a regra agradecendo sincera e carinhosamente aos meus
familiares: Vinicius, Jane e Léo Nascimento por vários momentos de apoio e
7
principalmente no apoio prestado na doença, fundamental para que
conseguisse realizar a tese.
Meu agradecimento pela amizade de trinta anos de Lucia da Silva
Bastos, sempre presente quando necessário e extensivo a Rafael Bastos
Pedroso, meu afilhado.
E a minha mãe, Honorina Nunes Nascimento a quem eu continuo dando
trabalho, minhas desculpas agradecidas.
8
RESUMO
O presente trabalho procura dar uma visão integrada da formação da
coleção de indústria humana no Museu Nacional no Séc. XIX, estabelecendo
suas implicações na formação da Instituição. Demonstra o estabelecimento
das relações interinstitucionais pelos membros do Museu, facilitado a partir dos
empreendimentos efetuados para a formação da coleção.
Dá destaque aos meios de divulgação que ajudaram na formação e
perpetuação da coleção: as exposições levadas a público na própria instituição
ou fora dela e as publicações onde se divulgavam as coleções e eram
debatidas as idéias formadoras da coleção.
Descreve a importância da iconografia resultante da formação da
coleção e sua contribuição para o entendimento, preservação e divulgação.
Estabelece uma maneira de analisar a coleção de forma integrada ao meio
social onde sua coleta foi efetivada, preservada e divulgada, ampliando as
formas de entendimento e resgatando a conexão entre coleção e pesquisa
existente no Séc. XIX, no Museu Nacional.
9
ABSTRACT
This work proposes an integral view of the process of constitution of the
collection of ‘human industry’ in the Museu Nacional during the 19th Century,
trying to discern its relationship with the general institution building. It describes
the establishment of inter-institutional relationships by the members of the
Museu, enmeshed in the procedures of collection making. It highlights the
outreach instruments that helped in the constitution and maintenance of the
collection: the exhibits that took place in the very institution (or outside it) and
the publishing activity concerning the collections and their conceptual frames. It
describes the importance of the iconography deriving from the collection making
and its contribution for its understanding, maintenance and popularization. It
proposes an analytical approach to the collection, that sees it as embedded in
the social milieu where it came to exist, to survive and to be influent. It helps
thus to understand the connections between collection and research that
prevailed in the Museu Nacional along the 19th Century.
10
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS: MN- Museu Nacional
AGMN- Arquivo Geral do Museu Nacional
SEE- Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional
BMN- Biblioteca do Museu Nacional
PPGAS- Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional
BN- Biblioteca Nacional
MHN- Museu Histórico Nacional
MNB- Museu Nacional de Belas Artes
IHGB- Instituto Histórico Nacional
ABL- Academia Brasileira de Letras
11
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES: Fig.1 Ilustração Botânica de Freire Alemão..................................................p.35 Revista Guanabara, acervo BMN Fotografia: Rafael Muniz Moura Fig. 2 Armas indígenas do Amazonas, Primeira Exposição Nacional,
1861.....................................................................................................p.37 Litografia, acervo BMN Fotografia: Rafael Muniz Moura Fig.3 Cabeça troféu Mundurukú ..................................................................p.76 Litografia, acervo SEE Reprodução digital Fig.4 Sala de Modas e Pintura da Primeira Exposição Nacional, 1861......p.103 Litografia, acervo BMN Fotografia: Rafael Muniz Moura Fig. 5. Armas indígenas do Amazonas, Primeira Exposição Nacional,
1861..................................................................................................p.105 Litografia, acervo BMN Fotografia: Rafael Muniz Moura Fig.6 Troféu da Carnaúba, Primeira Exposição Nacional,
1861...................................................................................................p.106 Litografia, acervo BMN Fotografia: Rafael Muniz Moura Fig.7 Pavilhão Brasileiro na Exposição de Londres, 1862............................p.108 Fotografia litografada, acervo BMN Fotografia: Rafael Muniz Moura Fig.8 Pavilhão Brasileiro na Exposição de Filadélfia, 1876.........................p.111
Fotografia “Centennial Fotografic e Internacional Exibition Philadelfia, 1876”. Acervo BN
Fig.9 Exposição Antropológica,1882 . Museu Nacional...............................p.115 Acervo SEE Foto: Marc Ferrez Fig.10 Exposição Antropológica,1882 . Museu Nacional..............................p.116
Acervo SEE Foto: Marc Ferrez
12
Fig.11 Exposição Antropológica, 1882. Museu Nacional..............................p.117 Acervo BN Foto: Marc Ferrez Fig.12 Crayon e Aquarela de J.B. Debret.....................................................p.208 Acervo Fundação Castro Maia Fotografia do Autor Fig.13 Detalhe do quadro “O Caçador de Escravos”....................................p.209 J.B. Debret s/ data óleo sobre tela. Reprodução digital de foto “Gênios da Pintura” fascículo 1 Fig. 14 Litografia de desenho de J. B. Debret..............................................p.210 Livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil Reprodução digital Fig.15 Crayon e Aquarela de J.B. Debret.....................................................p.211 Acervo Fundação Castro Maia Fotografia do Autor Fig.16 Aquarela Hercule Florence,1829......................................................p.214 Comissão Langsdorff Reprodução digital Fig. 17 Plumária Mundurukú........................................................................p.214 Acervo SEE,1829 Foto do autor Fig.18 Aquarela e Crayon, Adornos Bororo..................................................p.216 Comissão Langsdorff Adrian Taunay Reprodução digital Fig.19 Litografia, Flechas..............................................................................p.219 Comissão Langsdorff Adrian Taunay Reprodução digital Fig.20 Flechas, Litografia..............................................................................p.219 Comissão Científica do Império. Acervo SEE Reprodução digital Fig.21 Muruku- Maraká, Litografia..............................................................p.220 Comissão Científica do Império. Acervo SEE Reprodução digital
13
Fig.22 Litografia, Arcos Connibo..................................................................p.221 Comissão Científica do Império Acervo SEE Reprodução digital Fig. 23 Vaqueiro, Aquarela e Crayon............................................................p.224 José Reis de Carvalho Acervo Museu D. João VI Fotografia do autor Fig. 24 Esboço de cabeça de Índio Xocó, Crayon........................................p.225 José Reis de Carvalho Acervo MHN Fotografia do autor Fig.25 Índia de Aracati, Aquarela................................................................p.226 José Reis de Carvalho Acervo MHN Fotografia do autor Fig. 26 Habitação dos índios de Aracati, Aquarela.......................................p.227 José Reis de Carvalho Acervo MHN Fotografia do autor Fig. 27 Estudo Anatômico de corpo, Sanguínea e Crayon...........................p.231 Pedro Américo,1875 Acervo MNBA Foto: Paulo Castigliani Cedida por Ivan de Sá Fig.28 Indígena do Alto Amazonas, óleo sobre tela.....................................p.232 Décio Villares Acervo MN Fotografia: Simone Mesquita Fig.29 Apiaká Fotografia Marc Ferrez.....................................................................p.234 Acervo MN Fig.30 Xerente............................................................................................p. 237 Fotografia Acervo SEE Fig. 31 Esculturas Xerente, em 1882, Museu Nacional...............................p. 239 Fotografia Marc Ferrez
Acervo BN
14
Fig.32 Escultura Xerente, foto Exposição do Museu Nacional...................p.240 Acervo MN Fotografia Antonio Araújo Foto 33 India Botocudo.................................................................................p.242 Fotografia Marc Ferrez Acervo MN
Foto 34 Escultura Botocudo, foto Exposição do Museu Nacional...............p.244 Acervo MN Fotografia Simone Mesquita
Fig.35 Charge Revista Illustrada no 311, 1882............................................p.246 Acervo BN
15
SUMÁRIO
Agradecimentos...................................................................................................V Resumo............................................................................................................VIII Abstract..............................................................................................................IX Lista de Siglas e Abreviaturas.............................................................................X Índice de Ilustrações...........................................................................................XI Sumário.............................................................................................................XV Introdução..........................................................................................................17 Capitulo 1 Coleção de Indústria Humana do Museu Nacional..........................32 1.1 A coleção do Museu Nacional.....................................................................33 1.2 A Coleção de Indústria Humana..................................................................41 1.3 Os colecionadores.......................................................................................54 1.4 O tombamento.............................................................................................63 1.5 As classificações..........................................................................................70 Capitulo 2 Procedimentos de Divulgação..........................................................81 2. As Exposições...............................................................................................82 2.1 Exposições Museu Nacional, Primórdios.....................................................85 2.2 Exposição Museu Nacional, 1870 ...............................................................90 2.3 Exposições Nacionais e Universais, 1861/1862..........................................97 2.4 Exposição de Filadélfia, 1876....................................................................110 2.5 Exposições Antropológica, 1882................................................................113 2.6 Exposição Universal de Paris, 1889..........................................................119 2.3 Publicações................................................................................................221 Capitulo 3 O Mundo Social..............................................................................146 3.1Relações da Instituição com o Mundo Social.............................................147 3.1.1Instituições de Interlocução ....................................................................157 3.2 Aquisições de coleções e Os Interesses Científicos da Instituição...........164 3.3 Implantação de Um quadro Administrativo................................................169 3.3.1Funcionamento Geral do Museu..............................................................169 3.3.1.1Regulamentos/ Regimentos..................................................................177 3.3.1.2 Salários................................................................................................182 3.3.1.3 Vinculação Institucional do Museu Nacional........................................189 3.3.2 Fases administrativas das coleções de indústria humana......................191 3.3.2.1 Manuel de Araújo Porto Alegre............................................................192 3.3.2.2 Carlos Burlamaqui...............................................................................198 3.3.2.3 Ladislau de Souza Mello Neto.............................................................200
16
Capitulo 4 Construindo uma Imagem.............................................................204 4.1 Iconografia da coleção..............................................................................205 4.2 Uma Coleção Iconográfica........................................................................217 4.3 A Construção uma Imagem ......................................................................228 4.3.1O Índio Símbolo.......................................................................................230 4.3.2 O Índio Objeto de Estudo.......................................................................236 4.3.3 A Imagem Botocudo...............................................................................241 Considerações Finais......................................................................................248 Referências Bibliográficas...............................................................................254 Anexo I Descrição de uma das pranchas da Comissão de 1861....................268 Anexo II Colleção Typica.................................................................................269
17
INTRODUÇÃO
A introdução de um trabalho normalmente é o lugar onde o autor revela
de onde ele está falando e as suas principais preocupações a respeito do tema
a ser tratado. É comum também compor uma pequena e coerente história à
moda do memorial onde os pontos desunidos ao longo de sua trajetória,
ganhem um sentido iluminado pelo trabalho a ser apresentado.
Meu trabalho, ao longo dos últimos trinta anos, foi dirigido às coleções e
ao trabalho em reserva técnica, incluindo períodos de dedicação a Exposições.
No entanto, minha dedicação sempre foi preservar, documentar e tentar dar
entendimento de forma mais ampla ao imenso acervo, de por volta de 41.000
peças, contido hoje nas duas reservas do Setor de Etnologia. A própria
natureza do trabalho é cíclica com as coleções nas quais, por um tempo, tudo
parece muito bem resolvido, e, no entanto, se está apenas diante de um
recomeço, pois já existem problemas surgindo. Um eterno correr atrás de
soluções para resolver o problema básico de fazer durar materialmente
séculos, o que por vezes foi feito para durar um dia.
Documentar de forma que as informações se atualizem sem perderem a
consistência são desafios constantes de que me dou conta constantemente
das falhas cometidas mais do que dos sucessos, como na música Roda Viva
de Chico Buarque eu entendo meu trabalho com coleção como a volta do barco
e o sentido do quanto se deixou de cumprir.
Diante de um trabalho dessa natureza, por tão longo tempo, a
observação é uma das poucas medidas que podem minimizar os erros,
observar atentamente a coleção e as medidas tomadas, em função de sua
preservação, pode salvar a materialidade de um acervo, mais do que ceder a
inovações sem uma reflexão prévia, o mesmo se dando com a documentação
18
do acervo na qual, de certa forma, está inscrita a alma das coleções. Observar
e duvidar das naturalizações e das generalizações, buscar dados consistentes,
para que não se modernize apenas a falta de informação, é um
empreendimento diário no trato com as coleções.
Darei um breve panorama do contexto de trabalho com as coleções. Ao
entrar para o Setor de Etnologia do Museu Nacional, em 1979, como estagiária
de graduação em Museologia, passei a conviver não só com uma coleção
bastante ampla de objetos etnográficos, coletados de várias formas e em várias
épocas, desde a primeira metade do século XIX, como também com os
diversos grupos de pesquisa naquela época alocados no setor. A maioria dos
grupos se dedicava aos estudos denominados de “cultura material”, como os
projetos da professora Berta Ribeiro, tanto o projeto do Alto Rio Negro
transformado em Exposição ainda em 19791 quanto o projeto da cestaria
xinguana que se transformaria no livro Diário do Xingu2. Ambos projetos
resultariam em coleções para o Setor.
Os projetos posteriores da professora Berta Ribeiro se referiam também
à cultura material, focalizando principalmente seu aspecto tecnológico. Dentre
eles, há a Exposição Amazônia Urgente cujo produto final, em forma de
exposição, só se realizou no final da década de 80 e, em forma de livro3, só em
1990, associando os estudos de tecnologia indígena ao emprego ecológico de
matérias primas. Além disso, o projeto do Dicionário do Artesanato Indígena4
resultaria em uma espécie de Bíblia de todos aqueles que lidam com a cultura
material dos indígenas brasileiros. Os projetos da professora Berta Ribeiro,
embora inseridos no contexto do Setor, possuíam diversas formas de
financiamento, Fundação Ford e CNPQ principalmente, que diziam respeito a
financiamentos limitados a um pesquisador.
Os demais projetos do Setor se encontravam, então, abrigados por um
projeto Guarda-Chuva, junto à FINEP, coordenado pela professora Maria
Heloisa Fénelon Costa, que, na época, conduzia sua pesquisa mais direta junto
1 “Os Índios das Águas Pretas”-Museu Nacional/ UFRJ- Junho/ Julho 1980. 2 RIBEIRO, Berta- Diário do Xingu, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979. 3 RIBEIRO, Berta- Amazônia Urgente, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1990. 4 RIBEIRO, Berta- Dicionário do Artesanato Indígena, Itatiaia, Belo Horizonte, 1988.
19
aos Karajá, em colaboração com o arquiteto Hamilton Botelho Malhano.
Ambos publicariam, na Suma Etnológica5, o trabalho sobre habitações
indígenas e, mais tarde, Hamilton publicaria, no Boletim do Museu, um trabalho
sobre habitação indígena Karajá6. Nessa época, a professora Fenélon também
trabalhava na sistematização dos desenhos espontâneos e sua análise, o que
levaria à sua Dissertação, defendida por ocasião de sua Tese de Titulação e,
posteriormente, publicada como “O Mundo dos Mehinako”7.
Poderíamos dizer, em linhas gerais, que a professora Fénelon se
dedicava, de uma forma mais ampla, à etnografia completa dos grupos
estudados, tendo como ênfase as produções estéticas. A professora Berta
Ribeiro, por outro lado, se preocupava mais diretamente com os aspectos
tecnológicos do estudo da cultura material e com suas posteriores imbricações
ecológicas.
A essas duas linhas, que representavam a tradição primeira de pesquisa
do Setor, somavam-se ainda as pesquisas de Ana Margareth Heye em Paraíba
do Sul, voltada para a produção artesanal regional. Essa pesquisa, além da
coleção para o Setor, gerou a Exposição Artesanato em Paraíba do Sul,
realizada no Fórum de Ciência e Cultura, por ocasião da Reunião da A.B.A de
1882.
Deslocando-se das preocupações mais diretas com a cultura material,
existia, no setor, o projeto do professor João Pacheco junto aos Tikuna, que,
nesse momento, também contava em sua equipe com pessoas diretamente
envolvidas com cultura material, como Jussara Gruber. Embora o professor
João Pacheco não tivesse como área de interesse direta de suas pesquisas
cultura material, empreendeu esforços no sentido de formar uma considerável
coleção Tikuna.
5 MALHANO, Hamilton e COSTA, Maria Heloisa Fénelon- A Habitação Indígena Brasileira In: RIBEIRO, Berta (org.)- Suma Etnológica Brasileira Edição Atualizada do HANDBOOK OF SOUTH AMERICAN INDIANS, v. 2- Tecnologia Indígena, Editora Vozes/ Finep Financiadora de Estudos e Projetos, Petrópolis, 1986. 6 MALHANO, Hamilton- A Construção do Espaço de Morar entre os Karajá- Boletim do Museu Nacional/ UFRJ-Antropologia número 55-1986. 7 FÉNELON COSTA, Maria Heloisa .O Mundo Dos Mehinaku- Editora UFRJ- Rio de Janeiro,1988
20
Junto com os projetos de pesquisa, conviviam a reorganização física do
Setor coordenada por Ricardo Gomes Lima e as atividades de conservação
gerenciadas pelo professor Geraldo Pitaguary. Apesar da função exercida no
projeto, ambos possuíam longas experiências de campo: Ricardo Gomes Lima
no Xingu e junto às populações regionais, e o professor Geraldo Pitaguary com
várias viagens para a coleta do acervo, durante seu trabalho como museólogo,
no Museu do Índio - Funai.
A valorização do campo, junto a populações indígenas e regionais, era
evidente. As coleções em reserva eram tratadas, enquanto objeto de análise,
em função de comparação com as obtidas em campo ou em função de estudá-
las previamente ao campo ou ainda para montar dossiês que, levados ao
campo, funcionassem como auxílio no resgate de tradições junto aos grupos,
em uma devolução aos grupos dos trabalhos ali realizados. As coleções novas
eram tratadas como produto concreto exibível desses projetos. As grandes
coleções, denominação dada devido à sua proporção numérica e o grande
número de grupos que abrangiam, chamavam alguma atenção devido ao nome
de seus coletores, como as coleções da Comissão Rondon, ou pelo esmero do
trabalho etnográfico produzido na coleta, como a Coleção Curt Nimuendajú.
Ambas seriam estudadas somente a partir da virada do século XX para a
virada do século XXI pelo professor Antonio Carlos Souza Lima, enquanto
bloco de acervos, devido a suas possibilidades de falarem de projetos ligados
ao indigenismo.
Ao imaginar um trabalho de mestrado, tentei unir tudo isso com minha
formação em Museologia, efetivada em uma fase em que o predomínio teórico
era dado pela História da Arte, em um mestrado na Escola de Belas Artes,
onde o tema era grandiosamente a imagem do índio na segunda metade do
século XIX. Essa imagem era filiada por mim aos movimentos românticos e
positivistas ocorridos no mesmo período do século XIX.
Passados muitos anos desse trabalho, ao qual tenho até hoje um afeto
especial pela paixão com que foi escrito, retornei a refletir sobre as práticas
museológicas do meu cotidiano ao ser convocada na Direção do Museu, então
representada por Luiz Fernando Dias Duarte, para integrar a Comissão de
21
Exposição do Museu Nacional, encarregada de formular, junto com um
escritório técnico, um plano diretor para o museu. Nesse período de intensa
atividade de discussões e acompanhamento de seminários e palestras, fiz
aulas como ouvinte no PPGAS, bem como me esforcei desesperadamente
para entender conceitos de História Natural em discussão.
A partir de então, começou a surgir a idéia do atual trabalho, desvendar
uma das coleções mais clássicas do Museu, a coleção de Etnologia do século
XIX e, ao mesmo tempo menos informada, não a partir dos grandes ideais e
das quebras de paradigmas, mas a partir das práticas cotidianas que levaram à
sua formação, documentação, preservação, apagamento da documentação e
que a puseram, paradoxalmente, no seu lugar de extrema visibilidade, o ponto
de não me lembrar de uma exposição temporária ou permanente em que não
houvesse pelo menos uma peça da coleção do século XIX em destaque,
apesar da sua carência de documentação, por vezes constrangedora.
Ao lidar com a documentação, defrontei-me com o início da coleção de
indústria humana, que, na verdade, viria a ser depurada em Etnologia,
Arqueologia ou Antropologia (a época significando Antropologia Biológica),
mais ou menos a partir de 1870, formando um conjunto de coleção até fim do
século XIX.
Para entender a argumentação sobre a formação da coleção de indústria
humana do Museu Nacional do Rio de Janeiro, ser necessária uma curta
descrição das principais origens dos museus de história natural, tendo a
premissa de que muitas dessas origens nortearam a criação por decreto de um
museu de História Natural no Rio de Janeiro, sendo essas corroboradas com o
texto: “Investigações”, publicado por Ladislau Netto, em 1870, quando o
mesmo começa o texto com as filiações dos museus de História Natural, em
voga no século XIX.
O gabinete de curiosidades é extensamente utilizado nas bibliografias
contemporâneas para designar as origens dos museus. Normalmente é
utilizada uma gravura, retratando o Museu Androvandi, que se destacava nas
atividades científicas e exploradoras, iniciadas na Europa no século XVI. O
museu possuía treze mil itens em 1577, dezoito mil em 1595. As coleções
22
catalogadas e classificadas eram os instrumentos de erudição e consolidação
do conhecimento enciclopédico, eram provenientes dos locais mais diversos,
desde terras recém-conhecidas, como a América, até o mercado de peixe local.
Dessa forma, a busca do conhecimento saía das mãos dos padres e filósofos
para a de estudiosos e amadores imbuídos do novo espírito renascentista8.
Tanto nesses gabinetes, que já podiam ser denominados museus, quanto nos
pequenos armários de preciosidades e exoticidades, denominados de Studiolo,
que surgiram na Idade Média, podemos retirar um dos ingredientes que
compõem o museu de História Natural: a “naturalia “e a “artificialia”9 , duas
faces da mesma moeda.10
Ladislau, no entanto, no século XIX, antes de se iniciar a redescoberta
do gabinete de curiosidades, localiza a origem do Museu de História Natural,
em Zurich, na Alemanha, por Conrado Gesner, “após o qual muitos sábios e
ardentes prosélitos da ciência vieram sucessivamente desvendar aos olhos do
povo arrebatados de vivo entusiasmo, os grandes fenômenos e os
encantadores mistérios dos reinos orgânicos e inorgânicos da terra.”, dando a
filiação de origem do Museu a um ambiente cientificamente distinto do gabinete
de curiosidades, como é hoje vulgarizado.
Ladislau narra também à formação do Jardim do Rei em Paris e a
importância de Buffon na transformação do mesmo em uma instituição na qual
“homens ávidos de instrução e de luzes corriam aos anfiteatros e cursos
públicos para beber nas palavras dos grandes mestres suas novas e sedutoras
teorias, ou para examinar atônitos as curiosidades expostas nas galerias dos
museos”. Ladislau, como um dos que frequentou cursos no Jardim, vai ter o
mesmo como um ideal de instituição científica plena e tornará, como objetivo
máximo de sua carreira, aproximar o Museu Nacional do Rio de Janeiro dessa
Instituição.
O jardim de plantas inaugura a tradição do Jardim botânico, que também
remonta ao século XVI. O Jardim de Plantas de Paris foi criado em 1633. Após
a direção de Buffon, em 1739, transformou-se em um centro de estudos
8 Blom, Philipp. Ter e Manter. São Paulo, Editora Record, 2003 9 Blom , op.cit 10 Blom , op.cit
23
vegetais e animais e passou, em 1793, a ser Museu Nacional de História
Natural, incluindo aí a abertura de cursos. O museu, após a revolução
francesa, tornou-se uma república de professores11 (José Bonifácio de Andrada
e Silva foi aluno dos cursos do Jardim de Plantas)12, em moldes similares, o
Museu de Oxford, que aparece na Encyclopedie de Diderot e D’Alembert como
Museu Universitário, construído para o progresso das ciências, iniciado em
1679, teve suas origens na coleção de John Tradescant. Este era jardineiro do
Duque de Buckinghan, colecionador de plantas, e passou também a colecionar
outros objetos curiosos ou preciosos em suas viagens, em busca de plantas,
criando a coleção que primeiro foi denominada de Arca de Tradescant, sendo
adquirida por Ashmole, doador da coleção à Universidade de Oxford, que
fundou seu museu com o nome de Ashmole Museum.
Os Teatros Anatômicos, elementos igualmente formadores do Museu de
História Natural, eram locais de dissecações públicas, muitas vezes
transformadas em gravuras ou telas, onde corpos humanos eram tratados
como objetos e matéria morta. O teatro Anatômico de Leidem era completado
por um horto botânico, um gabinete de raridades e um museu de mortalidade
criado para o aperfeiçoamento moral de estudantes e burgueses, onde eram
expostos, além de peças anatômicas, esqueletos de criminosos executados
segurando cartazes como: “lembre-se de que vai morrer”. A partir de 1620,
transforma-se em um gabinete de curiosidades complementado, mais tarde,
com a ascensão da Arqueologia, por sarcófagos romanos e múmias egípcias13.
Na pesquisa de antiguidades, inicialmente não se fazia distinção clara
entre as curiosidades naturais e as de origem humana; tanto acadêmicos como
letrados acreditavam que machados líticos eram pedras de raio. Em um mundo
sem a consciência da evolução biológica, a diferenciação da origem humana
de um lítico e de um fóssil não era evidente.14 Willian Candem, em 1572,
fundou a Sociedade de Antiquários, uma associação londrina para a
preservação e o estudo das antiguidades nacionais. A pesquisa antiquária
11 SCHAER,Roland- L’Invention des Musées- Paris, Gallimard,1993. 12 CANDIDO, Antônio- O Romantismo no Brasil .São Paulo: FFLCH/USP, 2002. 13 BLOM, op.cit. 14 TRIGGER,Bruce. História do Pensamento Arqueológico, Sp, Odysseus, 2004.
24
desenvolveu-se posteriormente na Escandinávia, gerando coleções, estudos e
museus.
O museu imperial se originou das coleções imperiais como o
Naturhistoriches Austríaco (Museu de História Natural), projetado em conjunto
com o prédio do Kunsthistorisches (Museu de História da Arte), para conter as
coleções dos Habsburgo. Esses museus parecem dizer que tudo está ali:
cultura e natureza, organizadas e mostradas por especialistas, classificadas e
supervisionadas pelo governo.15 No entanto, não deixam transparecer um certo
ar de miscelânea, característica da apropriação desses objetos pelos europeus
e sua transformação em “curiosidades16. Nesse “museu resumo”, encontram-
se coleções brasileiras, como a peça icônica - o manto Tupinambá -, além da
coleção Natterer17 e de outras de igual importância. Ladislau, em suas
investigações, comenta ser a Áustria tão pródiga nos incentivos que presta à
ciência.
O Museu Real, criado por um Príncipe Regente Português, com o
objetivo de propagar o conhecimento e estudo da ciência natural no reino do
Brasil, em uma ex-cidade colonial, recém promovida à metrópole, tem, como
distinção inicial, o fato de ter sido criado através de um decreto de lei, no qual
fica especificado o fato de a instituição não estar sendo criada para
salvaguardar coleções pretéritas. Aparece, contudo, a recolha de instrumentos,
máquinas e gabinetes, como o gabinete de mineralogia, depositado na
Academia Militar, trazido pelo próprio D. João VI junto com sua equipagem na
transferência da corte de Lisboa para o Rio de Janeiro. O núcleo do Museu fica
por se constituir, para atender a demanda de milhares de objetos dignos de
observação e análise no decreto:
15 BLOM, op. cit. 16 Thomas, Nicholas- Entangled Objects- London, Harvard University Press, 1991. 17 NATTERER, Johann (1787-1843). Zoólogo em expedição à América do Sul entre os anos de 1817/1845
25
“Querendo propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais no Reino do Brasil, que encerra em si milhares de objetos dignos de observação e exame, e que podem ser empregados em beneficio do comércio, da indústria e das Artes que muito desejo favorecer; como grandes mananciais de riqueza: Há por bem que nesta corte se estabeleça um Museu Real para onde passem quanto antes, os instrumentos máquinas e gabinetes que já existem dispersos por outros lugares.” 18
O Museu, no decreto de sua fundação, passa a ser denominado de
Museu Real e, a seguir, viria a ser tratado, em projetos, como um Museu Geral
do Rio de Janeiro19, referindo-se à sua abrangência com relação a instituições
que seriam fundadas em outras províncias. No projeto, uma vez recebidos os
produtos de instituições provinciais no Museu do Rio de Janeiro, os mesmos
deveriam “reduzir-se o quanto antes pelos sistemas, que se tivessem adotado
e arranjar-se distintamente pelas famílias, classes, ordens, gêneros, espécies e
variedades”. A partir desse programa de intenções, concordamos com Lopes20,
quanto ao alerta para o fato de a instituição, a partir de então formada, diferir
radicalmente do que se denomina um entreposto com finalidades de
armazenamento provisório para o envio de material a metrópoles portuguesas,
alertando para o caráter metropolitano do museu recém-criado, baseando-se
no fato de sua criação ocorrer na sede do Reino-Unido Português. Lopes
discorda de Lacerda21 que, nos Fastos do Museu Nacional, aponta a Casa dos
Pássaros como um embrião do Museu Nacional. A versão de Lacerda passa a
fazer parte do senso comum sobre a história da instituição, sem dar conta da
comprovação de uma continuidade em termos de política ou em termos de
manutenção de coleções.
Ladislau Netto, em sua Investigações, também se refere à casa dos
pássaros como um depósito de produtos zoológicos do Brasil, destinados
18 Decreto de fundação do Museu, Arquivo Geral do Museu Nacional. 19SILVA, Maria Beatriz Nizza, Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro 1818-1821-SP, Editora Nacional, 1978. 20LOPES, Maria Margaret - O Brasil Descobre a Pesquisa Científica: Os Museus e as Ciências Naturais no Século XIX, Editora Hucitec, São Paulo, 1977. 21LACERDA,J.B. de. Fastos do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1905.
26
sobretudo, ao aumento das coleções brasileiras do Museu Metropolitano,
marcando a descontinuidade de um projeto para o outro.
Para a população da cidade do Rio de Janeiro, o Museu Real logo passa
a ser denominado “O Museo”, como no anúncio abaixo do Jornal do Comércio:
“Aluga-se um preto, na rua da Aclamação n.10 perto do Museo”. Ou mesmo em
diários como o do Imperador D. Pedro II e o de André Rebouças, no qual a
frase “estive no Museu”, sem acréscimo, torna-se corriqueira. A localização
central do Museu prevista em seu decreto de criação, que cita o amarrado de
casas no Campo de Sant’Ana, mais tarde Campo da Aclamação, onde se
realizavam as festas populares promovidas pela monarquia e onde outras
instituições do Império, como o Senado, tinham sede, fez com que a
popularização do Museu fosse objeto de comentário de viajantes europeus,
acostumados a uma maior elitização em seus próprios museus. “Há alguns anos, um viajante, que acabava de visitar esse estabelecimento mostrou-se admirado pelo grande número de pessoas de classes mais humildes da sociedade, que ali encontrou; os soldados, principalmente, pareciam afluir para ali; todos pareciam tomar um grande interesse por aquela exibição um tanto confusa”.22
A disposição geográfica do Museu na cidade permitia um maior
entrosamento com os centros de decisão. No Senado, eram lidos anualmente
os relatórios do Museu, eram mais tarde discutidas as verbas para publicações
científicas e outros benefícios que atingiriam diretamente o Museu bem como
uma proximidade dos locais onde havia pontos de reunião de intelectuais,
como a livraria Mongie, que funcionou de 1832 a 1853, e mais tarde, em 1853,
como a livraria de Paula Brito, na Praça da Constituição, onde se constituiu a
Sociedade Petalógica, uma espécie de clube inglês no qual se ia tagarelar e
fazer chiste23.
22 DENNIS,Ferdinand. Brasil. BH, Editora Itatiaia, 1980 (1838) p..131. 23 Machado,Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o Romantismo.RJ, EDUERJ, 2001.
27
A partir da importância da localização do Museu no Campo de Sant'Ana,
desde seu decreto de fundação, defini, como limite temporal para a tese, a
transposição do Museu para o palácio da Quinta da Boa Vista, em São
Cristóvão, efetivada em 1892. Uma vez no palácio, a instituição passa a outra
fase, acompanhando a passagem de império monárquico para república.
O Museu Nacional, ao longo das décadas propostas, passa a ser uma
instituição que começa a se povoar não só com coleções, mas com
pesquisadores e torna-se um centro de discussão de idéias, através de seus
componentes e da maneira desses se relacionarem com a sociedade que os
envolve, lembrando a forma descrita por Pomian na criação dos museus:
“Os atuais museus devem o seu nome aos antigos templos das musas. Todavia o mais famoso de entre esses, o Museu de Alexandria, não o era por causa das coleções de objetos; tornou-se famoso graças à sua biblioteca e à equipe de sábios que aí viviam em comunidade”. 24
O Museu foi descrito por Agassiz, como um lugar estático, parado,
empoeirado e empobrecido25. Ao longo da pesquisa, surgem, no entanto,
imagens de uma instituição viva e pulsante na vida social da época, onde
pesquisas eram produzidas e onde se abrigavam novas instituições como a
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. A Sociedade, mesmo já em sede
própria, vai contar, ao longo do século XIX, com pelo menos um membro do
Museu em seu corpo administrativo e o Conservatório de Música.
No Museu, os acervos naturais (animais vivos inclusive) e culturais eram
expostos para a população local ávida de conhecimento a respeito de “sua
nação” e do “mundo”. Parecia a olhos estrangeiros uma mixórdia e pobreza,
por misturar o exotismo nacional (que por si só já comporia uma instituição)
com um acervo “universal” (pobre a olhares europeus). A expectativa de
encontrar espécies variadas da fauna local, estudadas e classificadas para a 24POMIAN, K.- Verberte coleção In: GIL, Fernando (ORG)- Enciclopédia Einaudi.Imprensa Nacional-Casa da Moeda-1984. 25AGASSIS, Louis E AGASSIZ, Elizabeth Cary,-Viagem ao Brasil 1865-1866 São Paulo: Itatiaia EDUSP, 1975. p.51.
28
época, depara-se com a realidade da Instituição. O público visitante, apesar de
incluir pesquisadores estrangeiros, era especificamente local e circulava entre
suas salas e aulas públicas, ansiando por conhecer mais do “mundo” e de suas
origens clássicas, em face de achados arqueológicos universais, por vezes
localizadas de forma fortuita, como por exemplo a Vênus de Milo, encontrada
em 182026. Daí, a exposição de múmias e espécies locais parecerem bizarras.
Pretendemos reconstruir um pouco do sentido dessa confusão no item
exposições.
Na ânsia de se exteriorizar e de abranger, em suas coleções de itens, a
representação do território nacional, a direção do museu luta pela criação do
cargo de naturalista viajante (pesquisadores nacionais que empreendessem
viagens com fins científicos) e promove, em seu prédio e com grande parte de
seus diretores, o encontro de sociedades de caráter científico, como a
Velosiana, aberta ao público científico em geral e a correspondentes. Ali eram
lidas memórias produzidas por seus membros sobre assuntos cientificamente
relevantes para a época em diversas especialidades, como Botânica e
Linguística. O Museu Nacional, por meio de seus membros, mantém diálogo
com instituições, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, primeiro
núcleo de discussão de um pensamento social brasileiro, tendo sempre os
diretores de seção do museu se filiado às comissões científicas do Instituto.
Promoviam, dessa forma, uma rede de relações que, ignoradas, levaria à não
percepção de uma Instituição viva e sua movimentação. Levando em conta
essas relações sociais, tendemos a abandonar o hábito de pensar o Museu
Nacional como um “gabinete de curiosidades“, descrito como o precursor dos
museus de história natural europeus e suas peculiaridades, como a falta de
organização “pré-científica” e passamos a vê-lo como uma instituição lutando
para se modernizar e inserir-se em um universo de instituições congêneres.
26PALLOTINO,Massimo- O Que é Arqueologia , in: História da Arte Italiana, ARGAN,G.C.São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
29
A vida pulsante se efetivava também nas exposições, não só nos
troféus27 de peças etnológicas, expostos como quadros ou dentro das gavetas
dos medalheiros, mas também nas constantes obras para iluminar e arranjar
melhor, na briga com os ministérios, verbas para armários, consertos de
telhado e uma infinidade de minúcias do cotidiano, que demonstram a tentativa
de se construir um funcionamento administrativo para a instituição .
Todos esses detalhes juntos formam a história das coleções do Museu,
que, no caso específico da Etnografia, sobreviveram e ultrapassaram duas
viradas de século, não só como testemunhas das suas culturas de origem, mas
também como testemunho da forma como essas culturas foram tratadas
politicamente na instituição (e mesmo fora de seus muros, através das relações
externas promovidas por seus integrantes). É nesse sentido que acredito ser
válido reconstruir a história dessa coleção e de sua formação, apontando para
a rede de relações sociais que a engendrou e a manteve ao longo dos anos.
Ao pensar em tratar metodologicamente o material, inspirei-me nos
textos de Malinowski, nos quais surge uma inédita síntese teórica amparada na
terminologia nativa. Trazida como inovação persistente até a
contemporaneidade, promoveu a criação de um sistema classificatório
completo marcado por um caráter estético. A circulação de objetos e a visão do
cotidiano permitiram a expansão das categorias com as quais trabalhou. No
trabalho de arquivo que venho realizando, a observação cotidiana é dada a
partir de coisas por vezes tidas como insignificantes: registros de notas,
pagamentos, anúncios das publicações, leitura atenta de artigos, cujos
significados, apesar de parecem escapar do que procuramos, ajudam a
formular as teorias nativas e os sistemas classificatórios da época. Pretendo
identificar essas possibilidades para além da pesquisa de campo em práticas
museológicas, considerando uma das possibilidades abertas pela leitura dos
27“Conseqüentemente a cultura material que foi trazida da áfrica resultou de missões civilizatórias de colonizadores brancos. Historicamente, a cultura material é usualmente considerada como essencialmente relegada para a dignificante categoria de “troféu” ou “ curiosidade” aberta neste período.” COMBES, Annie E.- Reinventing África- Yale University Press, New Haven and London, 1994.
30
textos de Malinowski, principalmente “Coral Gardens”28, texto de elaboração
posterior ao campo, no qual a descrição do objeto empírico compreende, na
tentativa de descrever, as relações tornadas sociais entre o homem e seu
meio. O complexo conjunto de coleções, que formam a coleção de Indústria
Humana do Museu Nacional, pode ser visto como tendo se formado dentro
desse esforço.
Utilizando os objetivos presentes no decreto de criação do Museu e
reafirmados na reforma administrativa de 1876, objetivos esses que
atravessaram o século XIX, passo à divisão da argumentação da seguinte
forma. O primeiro capítulo refere-se à coleção de indústria humana, formada
por os objetos dignos de análise, como eles foram selecionados, adquiridos,
tombados e classificados. Assim como foram sofrendo um processo de
apagamento de informação que resultou em uma coleção vista como
características clássicas de Arte Indígena. A recuperação de parte das
informações perdidas passa a ser analisada, não apenas para conferir uma
documentação confiável ao presente acervo, mas também para entender o
processo que ocasionou a perda parcial das informações. É parcial porque
essas sempre estiveram em forma de pistas no acervo e a documentação se
manteve de forma mais ou menos organizada no Museu.
O segundo capítulo diz respeito à divulgação das ações do Museu, ou
seja, à propagação do conhecimento, através de exposições e publicações.
Nas exposições, mais do que dar visibilidade a um evento específico , o
interesse é mostrar o encadeamento das exposições no Museu e fora dele,
como um conjunto em que práticas expositivas vão sendo atualizadas e a
coleção vai ampliando seus limites. Nas publicações, complementando ou
antecedendo as exposições, as idéias eram não só discutidas, mas também
divulgadas, inclusive para públicos diferenciados. Procuro demonstrar a
associação direta entre ambas e a sua complementaridade.
O terceiro capítulo trata das pessoas que efetivaram o funcionamento da
instituição, bem como daquelas que contribuíram para o aumento das
coleções. Além de dar ênfase para as relações da instituição com o mundo
28MALINOWSKI, B. Coral gardens and the magic. London: George Allem & Uniwin, 1935.
31
social de sua época, ou seja, como contemplar o objetivo de contribuir para o
desenvolvimento do comércio, da indústria e das artes, por meio da pesquisa
científica, as relações sociais em uma época em que poucas pessoas
ocupavam vários cargos eram de fundamental importância para compor um
quadro administrativo de funcionamento mínimo, para garantir objetivos tão
ambiciosos para a época.
O quarto capítulo trata da imagem do indígena brasileiro produzida pelo
Museu, no século XIX, subdividida em duas facetas. Uma delas é a imagem da
coleção incluindo as pranchas nunca divulgadas da Comissão Científica de
1861. A imagem dos objetos etnográficos retratada enquanto espécimes
científicos, aliados ao resultado iconográfico do que seria uma pesquisa
iconográfica de viajantes, o que torna compreensível parte do sucesso/
fracasso das coleções etnográficas. Outra faceta do quarto capítulo é a
imagem do indígena do século XIX, produzida e preservada no Museu através
de uma tela produzida para a Exposição Antropológica que se encontra no Hall
do Museu contemporaneamente e representa um índio próximo do Símbolo
Nacional. Ela é acompanhada de outra imagem, que se preserva na exposição,
a do índio Objeto de Estudo, representada pelas esculturas de indígenas
Xerente, produzidas para mesma exposição.
32
CAPÍTULO 1 A COLEÇÃO DE INDÚSTRIA HUMANA DO MUSEU NACIONAL
Nesse capítulo trato da separação inicial da coleção do Museu Nacional
em coleção de espécies naturais e coleção de objetos da indústria humana. E
os primórdios da formação da mesma, através de seus principais
colecionadores, das práticas administrativas de integração na coleção, ou seja,
o tombamento e as classificações efetuadas a partir dessa coleção. Mostrando
que apesar das perdas de informação, que deram á coleção do XIX, relativa á
Indústria Humana, um aspecto de antiguidade valorizada pelo estético, a
documentação pode conduzir para além dessa sensação indo de encontro a
um documento consistente da produção de vários grupos indígenas e também
da produção do conhecimento no Museu Nacional, durante sua permanência
no Campo de Sant’ Ana (1818- 1892).
33
1.1 A Coleção do Museu Nacional “Uma coleção, isto é, qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantido temporária ou definitivamente fora do circuito de atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para esse fim, e exposto ao olhar do publico.”29
O termo “coleção” poderia ser substituído por “acervo etnográfico”,
termo este que presumi um conjunto de coleções. No entanto, fugiria ao
espírito do colecionismo presente no século XIX e diluiria o sentido presente no
termo “coleção” como algo que foi cuidadosamente coletado por alguém, para
chegar aos nossos olhos.
A utilização do termo coleção no presente trabalho se refere à coleção
de uma Instituição: o Museu Nacional. O uso de coleção como um todo
pertencente à Instituição foi utilizado por Ladislau Netto30 no guia da Exposição
Antropológica de 1882, onde é feita a opção, explicada na introdução co
catálogo, de colocar a abreviatura MN. Ao lado de todas as peças pertencentes
à coleção do Museu, reservando apenas ás coleções emprestadas a colocação
do nome do expositor ou colecionador como, por exemplo: S.M. O Imperador.
A coleção, portanto, era em primeiro lugar institucional, pertencente ao Museu
Nacional. Os doadores (ofertadores para época) coletores e colecionadores
anteriores á integração da coleção ao Museu eram informações secundárias.
Esse fato que em principio parece banal vai contribuir para a perda de
informação descrita no item tombamento e tem implicações sobre um jogo
político administrativo que fundamenta as conclusões do trabalho.
Ao me referir à coleção etnográfica, passo, então, a falar sobre um
conjunto de coleções preparadas para o futuro. Não só através de um
colecionador, que claramente pensa em algo a ser preservado e observado no
29Pomian, K.- Verberte coleção in: Enciclopédia Einaudi,org. Fernando Gil.Imprensa Nacional- Casa da Moeda-1984. 30Guia da Exposição Antropológica de 1882, Rj: Typografia Nacional.
34
futuro31, mas através de pessoas que, em determinado momento, exerceram
funções institucionais. Pessoas essas que tomaram um conjunto de medidas,
tendo por resultado final a aquisição e a preservação dessas coleções, bem
como a divulgação de partes dessa coleção, por meio de exposições e
publicações sobre as mesmas e decisões sobre o modo como elas seriam
divulgadas e documentadas para representarem a instituição futuramente.
A coleção pode ser vista como o elo de ligação entre a vida interna do
Museu diretamente relacionada á pesquisa e ao ensino e a sua vida externa:
exposta ao público em suas salas, ou enviada para outras exposições como
uma representação de suas coleções. Sempre se tendo em vista que para a
época abrangida no presente trabalho, o peso da exposição por si só era
bastante diverso do conhecido no século XX. O próprio Museu passa a ser
aberto á publico em 182132, ou seja, três anos após sua criação, com a
observação da visita se dar “ás quintas-feiras de cada semana desde as dez
horas da manhã até a uma da tarde não sendo dia santo”. Obtém autorização
para abrir aos domingos em 185833. Começa a demonstrar preocupações com
exposições dirigidas ao público, com a apresentação de um conteúdo
específico,em 1861, com a realização da exposição dos produtos da Comissão
do Império efetuada no Ceará. E em 1882, começa a tratar a exposição como
um evento, a partir da Exposição Antropológica.
Concordamos, em parte, com Lopes34, quando menciona o fato de no
começo do XIX as exposições se confundirem com o todo da instituição. No
entanto, discordamos dos efeitos mencionados quanto a ausência de uma
reserva técnica, embora obviamente não existisse uma reserva técnica nos
termos atuais. Existindo, no entanto, para além das exposições a vida nos
laboratórios com analises químicas e respostas a consultas variadas por parte
do governo e de particulares, além da preocupação didática: Caldeira diretor da
instituição de 1823 á 1827 propôs a criação de cursos públicos. A exposição
não dava conta do todo da instituição, mas sim uma idéia do todo das coleções
31Como o dito por Langsdorff em seus diários sobre as coleções de cristais de diamantes: “qualquer museu terá orgulho de expor essa coleção um dia”. pág.173. 32 Decreto 1/7/1825 33 Pasta 6, doc. N.15 de 1 de junho de 1858 34 Lopes, op.cit. pg. 54
35
da Instituição que justamente fazia a ponte entre o interno e o externo da
instituição, mesmo através das narrativas de visitantes não científicos como
Maria Grahan35 podemos ver que as visitas não mencionam a parte interna do
Museu, ou seja, o laboratório no período da visita da mesma já se encarregava
de analises e estudos de classificação de plantas e minerais.
No que diz respeito à vida interna, a coleção funcionava diretamente
como o objeto da pesquisa ou o produto da pesquisa. Freqüentemente nas
áreas relativas ao acervo natural, as coleções funcionavam diretamente como
objeto de pesquisa. Como, por exemplo, o caso da botânica, Ladislau Netto36
menciona plantas representadas pela folhas e órgãos reprodutivos, guardadas
em pastas e caixas apropriadas no hervario e frutos secos assim como os
carnudos (conservados em álcool) expostos em armários. Os estudos
empreendidos pelos diretores da secção que trabalhavam nos laboratórios com
os resultados das herborizações empreendidas por coletores amadores ou pelo
preparador e porteiro treinado do Museu, e cujos resultados publicados
marcam também uma outra forma de preservação do acervo botânico
proveniente das pesquisas:o desenho científico, como vemos no estudo
publicado por Freire Allemão na revista Guanabara37 descrevendo a
Eurphobiacea, ophthalblatos macrophiliallum, Nome vulgar Santa Luzia, e
demonstra o trabalho realizado nos laboratórios do museu, descrição, desenho
e analise das partes como vemos a seguir:
Fig 1 Desenho botânico, Francisco Freire Alemão. Revista Guanabara vol. 1, 1850. 35Grahan, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada no país nos anos de 1821,1822,1823, SP: Companhia Editora Nacional 36Netto, op. Cit p.86 37Revista Guanbara , vol 1 , pg.
36
Já no caso das coleções relativas à indústria humana, era e ainda é
comum a coleção ser vista como o resultado das pesquisas. O material
etnográfico não podia prescindir de observação durante a coleta junto aos
produtores e usuários dos objetos. Diferentemente do material arqueológico
passível de pesquisa e analise direta no laboratório, a pesquisa bibliográfica,
poderia ser utilizada; no entanto uma observação curiosa ou profissional era
fundamental para a descrição de seus usos e de sua composição, caso
contrário o entendimento do próprio objeto ficaria comprometido era portanto
indispensável que a observação ou a pesquisa se dessem no período da
coleta.
Ainda que na época a cultura material fosse usualmente colocada
como a “dignificante” categoria de “thophéu” ou “curiosidade”, a observação
básica no local, junto a coleta era fundamental ao entendimento mínimo. Se o
termo “thophéu” para os museus britânicos se referia literalmente aos despojos
de expedições punitivas, no caso do Museu Nacional o termo abstraia as
batalhas para denominar a composição de um quadro expositivo,mesmo o
caso de grupos que viviam em guerras constantes com o governo imperial
como os Botocudos, as coleções obtidas não são despojos de combate. Mas
coletas entre o grupo e nos aldeamentos.
A publicação de listagem de coleções iniciada nos relatórios e guia da
exposição antropológica se amplia e podemos ver por exemplo o catálogo da
coleção Stradelli38 do Rio Uaupés em 1891. Nesse catálogo aparece um texto
que fala dos usos e costumes dos Índios que habitavam as margens do Rio
Uaupés, descrevendo brevemente informações sobre família, funerais e coleta
de lendas. Como adendo a lista de peças que não se encaixa necessariamente
ao texto. Embora possua uma explicação de utilização detalhada para a época,
e seja o objeto principal da publicação. Segue um dos itens como exemplo:
133- Paneiro de folhas de tucum, para guardar ornamentos de penas,indústria dos Desana-iapócoto ( cub.).
38 Catálogo Coleção Estradelli 1891,Pará : Typographia de Tavares Cardoso
37
As observações de uso, material e denominação do objeto na língua
nativa se destacam, praticamente não há descrição de forma, apenas para
pessoas com contato com acervo etnográfico, que entendem por “paneiro” uma
determinada forma de cesto. A descrição dos objetos a partir de uma
observação prévia ou fruto o que hoje se denomina em antropologia como
“campo” e totalmente diversa daquela realizada no Museu sem o apoio dos
dados de coleta.
Por exemplo, no caso de uma tentativa de estudo posterior do material
já em reserva, com ajuda bibliográfica. O material da Comissão Científica do
Império de 1861 foi desenhado e litografado, para a composição de um livro da
coleção. Apesar das cópias litográficas terem chegado ás mãos de Gonçalves
Dias em Dresdem, o trabalho final nunca foi executado. No entanto, mesmo
após a morte de Gonçalves Dias a produção de um catálogo utilizando esse
material não foi descartada, Ladislau em suas Investigações publicadas em
1870, menciona a confecção de um catálogo da coleção etnográfica que
estaria em andamento. A documentação da coleção possui uma descrição em
francês contida no que se revela uma tentativa posterior de coleta de
informações para a composição de um catálogo aproveitando as pranchas
litografadas:
Fig. 2 Armas indígenas do Amazonas, Primeira Exposição Nacional,1861.Litografia, acervo BMN. Fotografia: Rafael Muniz Moura
38
O texto, reproduzido no anexo 1 se refere à figura 2 e descreve os
diferentes arcos do grupo Connibo, localizado no Rio Ucayale, dando uma
descrição pormenorizada dos materiais de composição e manufatura que
pressupõe um contato com bibliografia que narre uma observação direta do
grupo, no entanto, o destaque do texto é para a descrição da forma e dos
efeitos “decorativos” (normalmente os padrões indígenas estão vinculados á
cosmologia dos grupos) marcando o efeito estético obtido pela regularidade e
delicadeza, comparando formas geométricas com as conhecidas gregas. As
observações de uso não são mencionadas no texto, o texto busca uma
avaliação positiva da “capacidade estética” Connibo, frisando a regularidade e
delicadeza na composição do desenho pelos fios de algodão que recobrem o
arco.
A avaliação estética é uma das características do trabalho com
coleções no gabinete não só no século XIX, mas é importante reconhecer a
longevidade dessa prática. Devo, no entanto, lembrar o fato da prancha fazer
parte da coleção de Gonçalves Dias, que provavelmente priorizou aspectos
estéticos em sua coleta, por ser um entusiasta da demonstração de capacidade
estética dos indígenas, presentes em várias descrições. Embora, também
tenha coletado arcos não decorados, no entanto as pranchas foram feitas
posteriormente por Henrique Fleiuss, já com o acervo da Comissão Cientifica
depositados no Museu Nacional, os desenhos e detalhes da decoração,
embora não tenham sido exagerados, foram destacados.
Gonçalves Dias chega a ver as pranchas prontas, recebidas em
Dresden, e enviadas por Fleiuss e dá sua aprovação para a reprodução como
vemos em carta reproduzida por Raimundo Lopes, no entanto a sua descrição
não chegou até o Brasil, não se sabe se por falta de fôlego, não foi escrita ou
se naufragou junto com seu autor no regresso ao Brasil. A tentativa de
elaboração que temos pode ou não seguir a linha que seria dada por Dias, no
entanto trata-se de um trabalho de gabinete.
Normalmente a produção de um trabalho no gabinete para as coleções
de indústria humana no século XIX tende a uma descrição formal.
Principalmente no caso de peças de grande apelo estético e de pouca
39
documentação de coleta, como as recebidas em caixotes sem especificação,
uma das praticas de estudo da coleção se torna à descrição formal, no caso da
plumária com destaque para o tipo e a identificação ornitológica da
emplumação, juntando aí desde muito cedo as oportunidades proporcionadas
pela proximidade de contato com o conhecimento das diversas áreas da
Historia Natural presentes na Instituição. Como podemos ver em uma
descrição manuscrita da coleção Mundurukú do século XIX, possivelmente pré-
catálogo (reprodução: anexo 2).
“Cinto feito de corda de algodão coberto em forro por penas de mutum, arara, apresentando as cores: preta, encarnada, azul e preta e uma extremidade para o centro e do centro para outra extremidade as mesmas cores em sentido contrário...”
As coleções provenientes de coleta com observação direta são
portadoras de uma diferença bem marcada. Sendo usual encontrar essa
diferença em peças de uso ritual como podemos encontrar em várias listagens
já mencionadas como a comissão do Madeira, coleção Stradelli, guia da
exposição antropológica e no levantamento em anexo como a peça: “61-
acangatar (máa-poaró)”, Uaupés usado nas festas solenes. Tal descrição
embora não marque qual ritual e nem detalhe as condições de uso, diversifica
do uso cotidiano, o que não acontece com a descrição formal da plumária
Mundurukú.
O uso de coleções da Indústria Humana, produto de expedições de
conhecimento ou “desbravamento”, passa a ser o de documento histórico por
vezes associado ao estudo arqueológico e quase sempre ao entendimento das
idéias evolutivas da humanidade em geral, tão cara a época, como podemos
ver no trecho de Tylor39 :
39 Tylor, E.- Prefácio do livro “History of Mankind”, Ratzel, F. - Londom : Macmillan and co.1986
40
“The material arts of war,subsistence, pleasures, the stages of knowlage,morals,religion,may be so brought to view that a copendiu of them, as found among the ruder people,may serve not only as a lesson-book for the learner, but as reference book for the learnead.”
No entanto o potencial das coleções para a pesquisa etnográfica passa
a ser estendido justamente por aqueles que em fins do século XIX, começam a
criticar as idéias evolucionistas e a utilidade das grades comparativas
tecnológicas, produzidas a partir das coleções. O texto de Boas40, elaborado no
inicio do século XX (1902). Ainda com a categoria do século XIX, “indústria”
dos povos, demonstra um comprometimento diverso do evolucionismo
presente em Tylor, apontando para uma categoria nova: cultura, Boas irá se
empenhar em uma guerra contra o evolucionismo e um dos campos de batalha
será o museu, as exposições, a forma da coleta e de como ela é efetuada, no
Museu Nacional onde o evolucionismo vai ser a grande teoria do fim do século
XIX e inicio do século XX, através de um cientificismo vitorioso, podemos dizer
que até o fim do século XIX com base em uma ciência romântica tinha-se a
preocupação,como vemos em Boas, com a valorização e a demonstração da
complexidade das indústrias dos indígenas. Visto na forma da constituição das
coleções. Com a preocupação de demonstração de diferenças e qualidades
muito próximas do trecho de Boas abaixo:
“O trabalho de coleta está sendo levado adiante pelo dr. Bertholet Laufer. O plano geral do seu trabalho tem sido reunir coleções que ilustrem costumes e crenças populares dos chineses, suas práticas de produção e seu modo de vida. Por meio dessas coleções, esperamos revelar a complexidade da cultura chinesa, o alto grau de desenvolvimento técnico alcançado pelo povo, o amor pela arte que impregna toda a sua vida, e os fortes laços sociais que unem o povo. Ao reunir coleções sob esse ponto de vista, desejamos ilustrar as necessidades dos chineses e os produtos de suas indústrias. Estes demonstrarão as possibilidades comerciais e sociais de um relacionamento mais extenso. Também desejamos fazer o público respeitar mais as realizações da Arte chinesa. Nosso objetivo não foi reunir uma coleção de obras de arte chinesa, mas enfatizar as características gerais da Arte chinesa (P.354)”
40 BOAS ,Franz- Apelo por uma grande escola Oriental-in: A Formação da Antropologia Americana- Org.Stocking,RJ: Editora Ufrj, 2004
41
1.2 A Coleção de Indústria Humana
A coleção de Etnologia do Museu Nacional atual possui 21 livros
catálogos, dos quais os cincos primeiros se referem a mais ou menos 10.000
peças, com registro de acervo do que atualmente são as sessões ligadas à
antropologia, ou seja: Arqueologia, Etnologia e Antropologia Biológica. Dentre
essas peças, acreditamos que, pelo menos, umas cinco ou seis mil,
confirmadas por pesquisa através do coletor ou de pistas documentais, fazem
parte da coleção do museu desde o século XIX. Existem, no entanto, peças
como a trombeta Juruna que, apesar de ter numeração posterior; ou seja fora
dos cinco primeiros livros de registro com certeza pertencem as coleções do
séc.XIX, por ter registros complementares, como a peça citada que já estava
desenhada no material da comissão científica do Império (1859 -1861),
registros posteriores de peças antigas à medida que eram “encontradas” são
observados como sendo um procedimento comum, uma vez que a falta de
espaço e o excesso de material, são queixas comuns ao longo dos 189 anos
de existência da instituição. Existem também pistas outras além dos catálogos para a
reconstituição das coleções iniciais: As listagens presentes no Arquivo Geral do
Museu Nacional, o levantamento de 1844 (publicado), relatórios institucionais
dirigidos ao senado e publicados do Museu no século XIX, peças desenhadas
por Debret no Museu Nacional, relações de peças da instituição em exposições
nacionais e internacionais, fotografias e litografias de época e relatos de
imprensa. A coleção original de indústria humana presente na quarta seção ao
longo dos anos foi separada em: arqueologia, etnologia e antropologia física.
Sofreu doações, permutas e perdas.
No entanto, é sua existência enquanto coleção inicial que demonstra o
interesse da época para sua aquisição, manutenção, seus critérios
classificatórios, e principalmente a imposição de uma coleção da “Indústria
42
Humana” em um Museu de História Natural. Fator ainda comum no século XIX,
no entanto a manutenção dessa união no século XX demonstra que o
empreendimento teve bases mais sólidas do que o acaso.
A formação da coleção de indústria humana, da quarta seção do Museu
Nacional, e o quanto essa acompanhou a formação de um pensamento social
brasileiro, desfaz a visão de um acúmulo fortuito de materiais de valor estético,
que perdurou durante boa parte do século XX, durante o qual a coleção do
século XIX sempre teve destaque nas exposições devido a seu valor estético
ser imediatamente reconhecido por um público bastante abrangente. Sua
categoria de “antiguidade” e o encantamento diante da preservação da maioria
dos objetos compostos de materiais orgânicos altamente perecíveis.
Considerada também como um arquivo de comprovação de existência
de grupos etnográficos em determinada região e período, cumprindo, dessa
forma, um papel cartorial para esses grupos, chamo aqui de papel cartorial o
poder da coleção de comprovação de uma realidade passada, uma das
características do tombamento do setor é a sua indicação geográfica o que
serve de comprovação para dizer que tal grupo estava em tal área em tal
momento. Embora, o efeito de comprovação de uma verdade vá muito além do
puramente documental. Quando os grupos vão visitar o museu e ver seus
artefatos, fato que acontece com alguma regularidade, como por exemplo a
visita de um grupo extenso de Guaranis a sua coleção em 2001, tem o efeito
de se comprovar verdades narradas pelos mais antigos: “eu não disse que
fazíamos cerâmica”
Ou de renovar conhecimentos, como o verificado por ocasião da visita
dos Paresi a Reserva técnica, quando os mesmos tocaram as flautas sagradas
depositadas na coleção. Esse papel que com os anos tem sido mais exigido
pode e deve ser complementado pelo o estudo mais aprofundado do
significado dessas coleções na época e pela melhor organização e
disponibilidade de seus dados.
No decreto de fundação, fica determinada a criação de um Museu de
história natural com o compromisso de contribuir para as indústrias e as artes.
O sentido da categoria indústria para o começo do século XIX nada tem em
43
comum com o sentido aplicado ao termo após a generalização da revolução
industrial, a categoria era utilizada como um sinônimo para o produzido pelo
homem, indústria humana era um termo reforçado a partir da divisão entre a
produção humana e a natural. Por exemplo, o que era um fóssil animal e o que
era a ponta de flecha feita pela indústria humana, para a época essa
diferenciação era bastante recente e científica, pois a maioria das pessoas
atribuía as pontas e os machados de pedra a fatores naturais. O termo era
também comumente empregado para designar a indústria dos povos, é comum
em catálogos e textos em geral o termo indústria dos designando a
procedência de objetos.
Uma coleção de estudo em uma instituição de História Natural no século
XIX pressupõe uma necessidade de ordenação em varias escalas a primeira
delas se refere à representada no decreto de criação do Museu pelo incentivo á
indústria e as artes, escapando á categoria de História Natural. E desde o
decreto foram recolhidos ao museu, modelos didáticos de ofícios, quadros,
presentes dados por chefes de governo ao governo real e posteriormente
imperial, coleções de moedas, carapuças de índios e outros objetos que foram
enviados á instituição em seus primórdios como marcam os primeiros
documentos hoje no AGMN, Arquivo Geral do Museu Nacional.
Quanto á história natural Nizza da Silva41 afirma que nada mais claro do
que a importância da História Natural, principalmente da Botânica no início do
século XIX, Poe ser uma das ciências consideradas mais úteis á sociedade. Se
interpretarmos ao pé da letra tal afirmação podemos complementar que nada
mais obscuro do que a miscelânia de objetos não referentes á História Natural
que se acumulou na nova instituição.
Foucault42 em sua arqueologia do saber, iniciada com o corte
epistemológico que conduziria as condições necessárias para o surgimento de
uma História Natural. Define o naturalista como sendo o homem do visível
estruturado e da denominação característica, não da vida. Utilizando-se para
tal conclusão da definição de Linneu do “Historiens Naturalis” aquele que
41 Nizza da Silva- Maria Beatriz, Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro. São Paulo: Editora Nacional: 1978. 42 Focault, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes 2007, p.223
44
distingue pela vista as partes dos corpos naturais, descrevendo-as
convenientemente segundo o número, a figura, a posição e a proporção e os
nomeia. Seguindo essa reflexão pode-se notar o quanto escapa a essa grade
de ordenação de pensamento os objetos que em princípio se encontravam ao
lado da vida, ou seja, aqueles referentes á indústria humana, por terem como
característica serem vistos como um todo. Para se obter compreensão á
respeito dos mesmos é necessário ampliar referenciais e não reduzi-los, o uso
do objeto só é obtido levando-se em conta seu uso referido a uma parte da
sociedade e seus hábitos ou crenças, a explicação das partes, não é suficiente
para esclarecer o material da indústria humana, fazendo com que a pratica
naturalista seja insuficiente.
Caldeira, diretor da Instituição de 1823 a 1827 médico formado por
Edimburgo, instituição bastante progressista á época, e especialista em
química, propõem uma nova divisão para o funcionamento do Museu e a
ordenação da coleção. Essa divisão só seria levada á efeito a partir da reforma
de 184043, a partir de então a divisão do Museu encarregada dos artefatos da
indústria humana seria denominada de quarta seção: de Numismática, artes
liberais, Arqueologia, usos e costumes das nações antigas e modernas.
O entendimento da Coleção de indústria humana pressupõe uma
tentativa de compreensão das categorias envolvidas no próprio titulo da quarta
seção. Antes de classificar como miscelânea típica da época do próprio título
que já a partir de 1870 era designado por Ladislau Netto44 como Arqueologia,
Numismática e etc. No esforço dessa compreensão utilizarei categorias
empregadas no relatório do Museu Nacional de 1838 anteriores portanto, a
oficialização da divisão como um bom objeto de fantasia. MN. doc.N.195 (1844) “Em comprimento da ordem que me foi comunicado... e em aditam os officios de 30 de Abril de 1843 e 8 de julho de 1839 tenho a honra de remeter inventário com o esclarecimento apresentado pelos D.D. das diferentes secções: Coleção de produtos numismáticos compreendendo 161 medalhas antigas; 30 da idade média; 169 modernas e 442 moedas diversas, 1.105 Quadros“.45
43 Lei n.164 de 26 de setembro de 1940 44 Ladislau Nettto, in Investigações ,op. cit 45 Estamos utilizando a versão manuscrita do mesmo que se encontra no AGMN, Doc. 195
45
A partir da listagem surge a categoria de numismática, definida em
categorias de épocas históricas e por conter moedas e medalhas. Por
documento posterior ao relatório46 verifica-se a existência de cópias e originais
entre as moedas e medalhas. A importância das condecorações no século XIX
pode ser ilustrada pelo texto de Barroso, citado abaixo, ao tratar basicamente
das coleções do Museu Histórico, que são em sua origem aquelas que
estavam sob a guarda do Museu Nacional no Séc.XIX, antes da criação em
1922 do Museu Histórico Nacional:
“As condecorações são contemporâneas das mais antigas civilizações, os próprios bárbaros sempre encontraram meios e modos de distinguir com um cocar de plumas, um colar de conchas a aqueles que chefiavam ou haviam se mostrado, mais esforçados e bravos. As condecorações originam-se desses colares simbólicos, não com um sentido exclusivo de recompensa, mas com o de também tornar tangível o merecimento”. 47
À época da formação da coleção, uma sociedade monárquica, a
importância das condecorações era indiscutível, no Almanak do Império48 o
símbolo das condecorações acompanhava os nomes de seus portadores. Fica
inclusive fácil compreender a necessidade de se classificar como insígnias de
mando alguns artefatos indígenas como o “cetro” Mundurukú.
Propositadamente comecei pelas condecorações, que formam uma subdivisão
da numismática junto com as moedas, devido ao próprio inventário tratar
primeiro e de uma forma mais definida as condecorações, sendo as moedas
generalizadas como diversas, sabemos pela documentação de arquivo que o
Museu se empenhava junto ao governo Imperial para obter espécies de Moeda
principalmente aquelas comemorativas.Brevemente mencionados no relatório
estão os quadros, que fazem parte do acervo das artes.
Logo a seguir vemos o destaque dado a partir de uma descriminação
mais depurada dos objetos, daqueles relacionados aos usos e costumes de
(1844), cotejada com a publicada por Ladislau Neto em suas investigações em 1870. 46 AGMN, Doc 57 (1853) 47 Barroso, Gustavo- Introdução á Técnica de Museus. RJ:Imprensa Nacional, 1953 48 Editado por Laemmert a partir de 1840.
46
diversos povos. Marcando inclusive o termo diverso povos no local de várias
civilizações, termo corrente na época, principalmente para uso das civilizações
gregas, romanas e egípcias, como um fator de distinção aposto aos povos do
novo mundo.
“Objetos relativos ás Artes, usos e costumes de Diversos Povos: Antiguidades Egypicias (lista) Antiguidades Gregas e Romanas (lista) Antiguidades Mexicanas 1 cópia em cera da pedra dos edificios 1 cópia em cera do calendário mexicano 1 Idolo mexicano Antiguidades Brasileiras 1 vaso de barro colorido 1 sarcophago de barro”.49
O emprego da categoria Antigüidade, referindo-se ao material
arqueológico proveniente das culturas clássicas50, estende-se ao material
arqueológico mexicano e passa a servir de base para a nomenclatura dos
achados arqueológicos em território brasileiro, fazendo com que uma urna
funerária de cerâmica seja denominada de “sarcophago” e seja classificada
como Antigüidade Brasileira. São dados que demonstram o universo de
referências das pessoas que elaboraram a classificação do material e o desejo
de aproximar o material arqueológico procedente das Américas daqueles
provenientes das culturas clássicas. Desejo esse muitas vezes rechaçado nas
instituições européias que não aceitavam nem mesmo o uso da categoria
antiguidade para os achados mexicanos e peruanos. Chegando mesmo a
haver resistência ao reconhecimento das evidencias arqueológicas como citado
em Trigger51 quanto a resistência de Henry Lewis Morgam em suas afirmações
sobre o exagero na sofisticação dos Astecas e Inca que a seu ver pouco
diferiam dos Iroqueses de New York.
49Continuação relatório 1838. 50A preocupação em colecionar coisas antigas caracterizou o humanismo do Renascimento, sendo, em parte, responsável pelo fato de que a arqueologia fosse tomada, por longo tempo, como divisão da história da arte (da antiguidade clássica). Considerava-se importante exumar restos que, pelo gosto daépoca e pela função estética, pudessem esclarecer algo desse passado, sem perder, no entanto, uma função no presente. 51Trigger, Bruce.g.-“ História do Pensamento Arqueologico,Sãp Paulo: Odysseus, 2004. p.121.
47
Uma observação interessante quanto às antiguidades brasileiras, é a
retirada das mesmas da relação copilada por Ladislau Netto em suas
Investigações. Estranhamento causado justamente por Netto ter sempre
demonstrado um grande interesse por arqueologia, que alguns anos depois se
transformaria em trabalho de campo no Pará, com vistas á coleta para a
Exposição Antropológica de 1882, além de seu incentivo ao trabalho de
Ferreira Penna, fundador do Museu Goeldi e naturalista viajante do Museu
Nacional. Contrastando com a categoria antiguidade estendida para o material
americano, vemos a categoria “África Inculta” separando o continente africano
em dois o Egito, passível de portar antiguidades e a “África inculta”.
“África Inculta: 1 thono de madeira de uma só peça,” 52
Os objetos relativos a usos e costumes das nações modernas á época,
são aqueles a partir da exposição Antropológica de 1882, designados como de
Etnografia. A categoria África inculta marca a diferença da áfrica culta
representada pelas antiguidades Egípcias. Demonstrando claramente a
dificuldade de se lidar com o acervo africano em uma sociedade que
funcionava a partir de um regime escravagista e em uma instituição localizada
em uma cidade com grande contingente de população proveniente da África,
circulando pelas ruas. Dificuldade essa acentuada pela opinião de naturalistas
visitantes como Agassiz53 que se dedicou a explanar como considerava um
prejuízo a formação de uma nação brasileira a presença do negro africano.
Hoje podemos avaliar a importância das peças descritas por meio de
várias pesquisas como a de Costa e Silva54 onde encontramos uma definição
do valor contemporâneo da peça descrita no relatório e de seu conjunto.
52 Continuação relatório de 1839 53 Agassiz, Louis e Elizabeth- Viagem ao Brasil- Belo Horizonte, Ed. Itatiaia;1975( 1865-1866) 54 COSTA E SILVA, Alberto. uma visão brasileira da escultura tradicional africana.
48
“Do acervo do museu da Quinta da Boa Vista constam, entretanto, duas peças de excepcional valor histórico: uma bandeira e um trono daomeanos, que devem datar da passagem do século XVIII para o XIX. A bandeira, feita no tradicional método de aplicar imagens recortadas em tecidos coloridos a um fundo negro ou neutro, mede um por dois metros. Sobre o pano bege coseram-se, além de 71 cabeças negras cortadas, 15 prisioneiros de mãos atadas e, bem no centro, um homem, cercado por dois sabres e uma espada, a sustentar um cesto no qual se vêem mais duas cabeças. Essa bandeira, segundo Pierre Verger, deve ser o mais antigo exemplar que se preserva, em todo o mundo, desse tipo de tela decorativa, e talvez tenha sido um dos presentes que os embaixadores do rei Adandozan (1797-1818) trouxeram para o príncipe regente D. João VI, em 1811. O outro seria o belo trono esculpido num só bloco de madeira. Mais antigo do que ele, no Museu de Abomé, só o do rei Agonglo (1789-1797), pois os anteriores foram destruídos, quando Behanzin, em 1892, mandou pôr fogo nos palácios reais e na cidade, antes de que essa caísse no poder dos franceses.”
No entanto no século XIX, a proximidade com a África e a troca realizada
obrigatoriamente devido ao intenso trafico negreiro e comercial entre o Brasil e a
África, não faz com que a coleção de africana seja numericamente expressiva
como poderia ser e nem que tenha o devido destaque nas exposições do Museu,
como podemos ver na descrição dos objetos em exposição feita por Ladislau
Netto, em 1870, sobre os mesmos objetos descritos por Costa e Silva acima.
“Além desses objetos, em grande parte pouco dignos de curiosidade, existe sobre o armário um artefato que nos prende toda a atenção: é o trono de um chefe poderoso daquelas incultas regiões feito em uma só peça de madeira com muita arte e insano trabalho”. 55
Com a descrição da localização da peça, em cima do armário “entre os
objetos que o museu expõe, alguns há que num semelhante estabelecimento da
Europa, seriam talvez colocados no alto dos armários como não tendo um grau
55 Ladislau, Netto, op.cit. p.255
49
de interesse bem evidente”56; o reforço da categoria inculta, apesar do
reconhecimento da arte e do trabalho adjetivado como insano, verificamos a
distância com relação a um possível incentivo ao aumento ou a visibilidade da
coleção africana, no tratamento dado a descrição da bandeira do Daomé, por
Netto: “Uma verdadeira prova da barbárie em que jazem hoje muitos povos da
África”. No entanto, apesar das caracterizações do acervo africano, Ladislau
Netto estava longe de ser um escravagista ferrenho, pleiteava pagamento e
alforria definitiva para os “Africanos Livres” que trabalhavam no Museu.
Embora mesmo em épocas anteriores viajantes houvessem notado não só
a beleza do trono Africano, como as possibilidades de aumento da coleção
Africana. Como vemos em Grahan ao falar do trono africano e ao mesmo tempo
lamentar ausências na coleção Africana: “Além de todas essas coisas há o trono
de um príncipe africano, de madeira lindamente lavrada. Desejaria que desde que
a situação do Brasil é tão favorável para colecionar trajes africanos, que
houvesse uma sala adequada para essas cousas, tão interessante para a história
do homem”.57
É bom marcar também o fato do uso da categoria África Inculta58 para
diferenciar por oposição a indústria egípcia que passa a ser categorizada como
culta, marca também o caráter universalista do acervo, universalismo esse
diretamente ligado ao sistema colonialista que se pretendia escapar em termos de
América, dando uma conotação clássica aos seus achados e aprimorando o
museu com coleções etnográficas em estudo concomitantemente em vários
centros metropolitanos, como o museu de Berlim e o Museu Britânico. Como
exemplificado pelas coleções do continente australiano:
“Nova Zelandia: 2 cabeças dos indígenas Ilhas Sandwich:1 manto de pennas; 1 colar; 5 clavas Ilhas Alleutas Caleicas”59
56 Denis, Ferdinand- Brasil; Belo Horizonte: Ed.. Itatiaia, 1980.(1838) 57GRAHAN, MARIA. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada no país nos anos de 1821,1822,1823, SP: Companhia Editora Nacional . 58 Aqui pode também se inserir as dificuldades de lidar com um acervo africano no regime escravista. 59Continuação relatório, 1838
50
Dentro de um caráter universalista observa-se mesmo a existência de
uma espécie de kit de peças básicas que constavam na maioria dos museus de
acervo etnográfico e que eram referidas nos trabalhos do século XIX. As
divindades hindus, as cabeças Maori e o equipamento esquimó estavam entre
elas. Os livros com conteúdo etnográfico, como o Völkerkunde 1885/88 de
Ratzel60, apresentam ilustrações de peças etnográficas de diversas coleções
de museus europeus como: Munich Etnographical Museum, Viena
Etnographical Museum, Cristy Collection, entre outros. Essas peças são
denominadas no prefácio assinado por Edward Tylor de “objetos - lições”, em
uma menção aos espécimes de museus e sua utilidade para a pesquisa.
Alguns desses “objetos - lições” são encontrados na coleção do museu no
século XIX, e conservados até o século XXI. Peças como os bastões de mando
africanos ou as armas da Oceania demonstram uma contemporaneidade com
os conjuntos adquiridos em outros museus. E a necessidade de se mostrar em
um relatório para o governo a abrangência do acervo da instituição,
demonstrando a procedência de cinco continentes.
Além da contemporaneidade do acervo tridimensional, podemos
constatar que a biblioteca do Museu Nacional, formada em parte pela aquisição
de livros para a Comissão Científica do Império61, em parte adquirida na França
por Gonçalves Dias, possui os exemplares de diversos autores, como Ratzel
em alemão e espanhol, aquisições ainda do século XIX, o que reforça sua
contemporaneidade com o pensamento de que norteava a formação das
coleções.
Essa bibliografia aponta para uma composição universal, gerando
pressupostos de pesquisa de época em que o evolucionismo se encontra em
pleno vapor e pesquisas, como a “Evolução da Arte Primitiva“ de Balfour,
curador do Pitt Rivers Museum, estavam em voga. Nos levando a conclusões
de que os aspectos estéticos dos objetos eram parte fundamental da pesquisa
e eram utilizados para dar sentido aos seus usos nas sociedades em evolução
60Traduzido para o inglês como History of Makind e para o espanhol e português como raças humanas. 61Comissão Cientifica do Império, estabelecida pelo IHGB com o objetivo de explorar cientificamente o território brasileiro, inicia seus trabalhos com a compra de uma biblioteca e instrumentos em diversos paises na Europa. Em 1859.
51
e medir o grau das mesmas a partir de apuro técnico, em pesquisa
desenvolvidas em gabinetes. Grandes coletas e analises globais de gabinete e
quadros comparativos de coleções eram caros aos estudos evolucionistas. Já
pesquisa a partir de observação direta da produção dos objetos e de sua
ornamentação tendem a inseri-los em um quadro social próprio de cada grupo
ou cultura. Como no principio do século XX, as descrições feitas por
Malinowski62 dos braceletes produzidos nas ilhas Trobian e a sua relação com
as instituições locais.
Uma parte dessa coleção estrangeira remete diretamente ao caráter da
política internacional do governo imperial, como o caso das peças das ilhas
Sandwich. No doc. 30, pasta 1 do AGMN, consta o envio ao museu para “ahi
ser conservado” de um manto e um colar oferecido pelo rei de Tamacahimeche
ao Imperador Pedro I, quando visitou a corte em 15 de março de 1824, época
dos esforços diplomáticos para o reconhecimento da independência do Brasil.
As Ilhas Sandwich que formavam uma das primeiras nações a reconhecer a
independência do Brasil, foram unificadas pela primeira vez em 1810, em um
reino governado por Kamehakameka I, tornando-se, segundo Sahlins63, um dos
períodos com desenvolvimento indígena. O acervo torna-se, portanto,um
precioso testemunho da tentativa de universalização em duas nações que
tentavam romper com um sistema colonial e estabelecer-se em pé de
igualdade com as demais nações reconhecidas como independentes, ainda
que, no caso de Pedro I, observe-se o fato relevante de ele ser um membro da
corte da metrópole portuguesa.
No entanto, houve a perda da referência dessas coleções ao longo do
tempo, já que não foram catalogadas como coleção D. Pedro I e nem mesmo a
data de sua oferta, 1824, constava no registro geral, tendo sido essa referência
resgatada nos documentos do arquivo geral e não do livro de registro das
coleções. Indicando claramente o desprestígio da figura de D. Pedro I, após
sua abdicação em 1831. Apesar de várias doações ao Museu, as coleções
Imperiais do Museu Nacional ficaram conhecidas até o século XIX como
coleções do segundo reinado, tendo sido a partir de fins da década de 90 do 62Malinowski, B. Os Argonautas do Pacifico ocidental. São Paulo: Ed. Abril, 1976. 63Sahlins,M.- Cronologia Do Capitalismo in Cultura na Prática-Editora Ufrj- Rio de Janeiro- 2004
52
século XX e já no século XXI que se estabeleceu a importância da Imperatriz
Leopoldina (primeira esposa de D. Pedro I) para as coleções arqueológicas, a
partir de referências diretas na exposição permanentes do museu64. Em um
artigo para a revista História, Neve·, descreve o desprestigio de D. Pedro I, na
historiografia brasileira. As peças das ilhas Aleutas, doadas por um capitão de
corveta russo, em 1821, tem uma tradição oral institucional de fazerem parte da
coleção de D. Pedro II, e pela data da doação no arquivo geral foi encaminhada
igualmente por D. Pedro I.
Na categoria Brasil aparece o acervo indígena brasileiro, devemos
lembrar a existência de quadros, moedas e medalhas produzidas no Brasil no
levantamento, no entanto, a categoria Brasil se refere exclusivamente ao
acervo indígena:
“Brazil: 2 cabeças dos índios Mundurucus; 220 peças que compreendendo; 3 vestimentas completas, capacetes, carapuças,scetros, armas de caça e guerra, pertencentes ás varias tribos de nosso continente.”65
Os acervos indígenas brasileiros, no relatório aparecem, em sua
maioria, apenas enumerados como: “220 peças”. Eram enviados por vezes em
caixotes sem descriminação, caixotes esses que eram embarcados por
militares em fortes próximos aos indígenas de vários pontos, como o Alto
Amazonas, ou enviados por presidentes de província, como a primeira peça
etnográfica referente a acervo brasileiro a entrar no Museu: Doc. N.40, 1824.
Remete ao Museu uma carapuça tecida pelos índios Naknanuk, aparecidos
pela primeira vez no Rio de Santo Antônio. Remetido pelo Presidente da
Província de Minas Geraes. Apontamos também para a dimensão continental
dada ao Brasil no relatório, ou o continente inteiro é “nosso”, ou o Brasil por si
só é um continente.
O levantamento é complementado pelos comentários de Manuel de
Araújo Porto Alegre, que desaparecerão nas publicações posteriores que o
reproduzem ou se referem ao relatório de 1844 (Lacerda 1905 e Ladislau 64 Empreendida pela Historiadora e Museóloga ,Tereza Baumam, Responsável pelas mesmas. 65 Continuação relatório de 1838
53
Netto) e que aparecerão de outra maneira em comentários de diretores não só
durante o século XIX como no século XX, descrevendo a potencialidade da
coleção e sua falta de espaço.
“A coleção do museu dos indígenas do Brasil de importância tão instrutiva que não se pode desconhecer, e torna-se-a de dia a dia mais preciosa, á proporção que penetre a civilização do nosso país podem conseguir uma coleção tal qual marque com perfeição a natureza (...) e caracteres peculiares de todas as tribos deste continente, o Museu Nacional será o único no mundo com arquivo de documentos originais sobre o estado destes aborígenes desta parte d’América Meridional .Para que esta coleção fique com todo o esplendor de que já foi do mesmo gênero nada mais lhe falta que um local onde possa ter a conveniente exposição.”
A solicitação de melhores condições de espaço e mobiliário para a
exposição é uma constante. Além dela, cabe ressaltar que Porto Alegre
compartilha da mesma esperança que mais tarde embalará Ladislau Neto: a
possibilidade de ter uma coleção que demonstre perfeitamente todos os
indígenas brasileiros, ainda que sendo constituída após três séculos de envio
de acervo para o exterior e do desaparecimento de vários grupos.
O tratamento diferenciado dado ao acervo indígena está presente na
descrição de Ladislau das cabeças Mundurukú: “Cabeças de guerreiros mortos
pelos índios Mundurukú, preparadas por estes para serem trazidas pendentes
ao pescoço como um troféu de guerra”. A barbárie da Bandeira do Daomé se
transforma em uma condecoração Mundurukú de bravura, guardadas as
proporções da comparação.
Através do exercício de compreensão das categorias e conteúdos da
coleção embrionária do Museu, onde é difícil afirmar embora existam pistas,
qual o contexto especifico da coleta dos objetos que formam a coleção.
Passamos as coleções trazidas em um formato que favorece a identificação do
contexto de coleta por terem sido enviadas com documentação mais
especificada, e provenientes de observação local, junto á coleta, nesse formato
começam a aparecer por volta de 1860 aquelas exemplificadas no item
seguinte.
54
1.3 Os Colecionadores
No livro de registro geral vemos uma impressionante falta de dados
quanto aos colecionadores, no que se refere ao material do Século XIX. Livro
básico para a pesquisa do acervo no Século XIX. Apresenta lacunas quanto ao
contexto de coleta, mesmo em caso onde a documentação existe no Arquivo
Geral da Instituição e foram efetuadas pesquisas remontando o acervo.
Como colecionadores encontramos nomes que muitas vezes se referem
às pessoas que ganharam peças e reconduziram ao Museu, e muitas destas
são coleções com titulares de nobreza, Dantas66 em sua dissertação, sobre a
coleção particular de D. Pedro II, menciona o fato da etnografia ser o único
registro de sessão, comparando com as sessões de ciências naturais, onde a
menção á coleção do Imperador ou suas doações são mantidas. Devo
mencionar aqui como já fiz em outra parte do texto, que se tratando de D.
Pedro I, o tratamento não é o mesmo. No caso desse trabalho o interesse é
localizar e recompor os dados justamente das coleções formadas por
colecionadores com objetivo de complementar a observação dos grupos
indígenas com os quais conviveram, ainda que por períodos breves e por
vários motivos, que se referem as razões pelas quais empreenderam as
viagens. Mas como resultado obtiveram coleções com informação mínimas e
ligadas a um material bibliográfico.
Nesse item passo, portanto a descrever coleções referidas a seus
colecionadores, colecionadores esses participantes da coleta das mesmas,
coleções que contextualizadas através de documentação, mudam o quadro
indistinto marcado pelo catálogo geral para as coleções do XIX. Para tal
selecionei três coleções, por possuírem uma lista de acervo e informação bem 66Dantas, Regina- A Casa do Imperador- Do Paço de São Cristóvão ao museu Nacional, Março de 2007, Programa de Pós-graduação em Memória Social- UNIRIO
55
definida para á época, apesar de terem sido passadas para o catálogo geral
com falta de informação etnográfica e documental básica. O que resulta em um
catálogo ou livro de registro Geral das Coleções onde existe apenas uma peça
com o registro da Comissão Científica do Império e menção a Gonçalves Dias,
apenas parte da coleção da Comissão do Madeira mantém uma menção á
Comissão sem data e nenhuma menção ao coletor das peças e a Coleção
José do Couto Magalhães, sem qualquer registro das peças pertencerem á
mesma. Escolhi essas três coleções por ter encontrado material documental,
acoplado de material bibliográfico sobre as mesmas e também pela
expressividade numérica e da representatividade dos grupos indígenas onde
foram coletadas.
Iniciamos com a Coleção coletada pela Comissão do Império de 1861,
mencionando, mais especificamente seu coletor por ter este empreendido
sozinho parte da expedição que resultou em sua coleta, ou seja, a viagem ao
Amazonas. Gonçalves Dias, sócio efetivo do IHGB, intelectual que poderia ser
considerado como um etnólogo, como marca Kury67 ao considerar que “a
abordagem de Gonçalves Dias foi bem diferente do indianismo de gabinete da
primeira geração romântica. A investida estética e intelectual do poeta
maranhense teve suporte antropológico”.
Já Cândido68 o denomina de primeiro talento do romantismo,
acentuando que com Dias parece finalmente configurar-se o indianismo para
além dos programas e intenções conjunto de boa qualidade sobre o índio.
Enfatiza que são os únicos versos realmente belos dessa tendência, não
porque correspondam etnograficamente ao que o índio foi, mas, ao contrário,
porque construíram dele uma imagem arbitrária que permite recolher no
particular da realidade brasileira a força dos sentimentos e das emoções
comum a todos os homens.
Duas visões diferentes para Dias, um autor que procurou eficiência nas
duas áreas em que atuou. Inclusive no período de sua atividade mais intensa 67Kury, Lorelay- A Comissão Cientifica de Exploração. In: Ciência, Civilização e Império nos Trópicos- org. Heizer,A. & Videira,A.A.-RJ: Access-2001,p.46 68CANDIDO, A. O Romantismo no Brasil, Antônio Candido. FFLCH/ USP. SP:UMANITAS.2002
56
como etnógrafo para de produzir poesia, de 1857 a 1861, apesar da polêmica
sobre não ter escrito a história da Comissão (ao final dos trabalhos da
comissão ele se achava em estado de saúde bastante precário), os seus
relatórios sobre a Educação no Solimões demonstram o empenho de um ex-
professor e as observações de alguém preocupado com o modo de vida local:
“Para dizer a um destes que mande seu filho à escola, que não os tire de lá
antes de aptos, é ordenar que redirecionem a norma da vida”. 69
A importância das relações de Gonçalves Dias no Museu passa por
vários momentos, e por duas amizades pessoais: Manoel de Araújo Porto
Alegre, diretor da quarta sessão, relacionada com a indústria humana;
companheiro de toda uma empreitada romântica, sócio que propôs sua entrada
no IHGB, e editor conjunto das revistas Guanabara e Minerva Brasiliense. E
Capanema, diretor da anatomia comparada do Museu e companheiro de
viagem, durante a expedição científica do Império.
A importância de Dias para o Museu pode ser demonstrada a partir de
sua avaliação por Roquette Pinto, em discurso em homenagem ao centenário
de Dias, proferido na Academia Brasileira de letras, 1948; onde que denomina
Dias como: Meu primeiro mestre em etnologia brasileira. E designa a coleção
da Comissão do Império como sendo a copiosa e interessantíssima coleção de
material etnográfico enviado por Gonçalves Dias do Amazonas para a
Exposição Nacional e que também foi, felizmente parar em grande parte no
Museu. “Penso poder afirmar que a não ser Rondon, ninguém enriqueceu mais
as nossas coleções de etnografia do que Gonçalves Dias”.
No entanto, para termos acesso à descrição efetuada pelo próprio
coletor temos que pesquisar no material impresso recentemente por coleta da
Academia Brasileira de letras, onde a descrição do acervo presente no Museu
e a iconografia da coleção passam a ganhar entendimento. Em sua listagem,
embora a mesma tenha sido parcialmente publicada por Raimundo Lopes 70
69MONTELLO,Josué.Gonçalves Dias na Amazônia, Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras. 70Lopes, R.Gonçalves Dias e a Amazônia. Revista do Congresso Pan Americano de História e Geografia, vol.2 Riode Janeiro: IHGB,1932
57
com comentários, os comentários por vezes substituem o texto de Dias,
reproduzidos no livro organizado por Montello71.
“Ornatos indígenas e curiosidades naturais os Mundurucus, principalmente os do Tapajó são os que primam na escolha das plumas, na combinação de cores, na elegância das formas e mesmo na perfeição dos tecidos. Depois deles os Arara. O acangatar de número 63 é o enfeite de um dos chefes dos Araras, Morto em Combate ainda esse ano, nas imediações na ilha de igual nome, no Rio Madeira. Os de número 61 do Rio Negro. Nas armas há grande variedade com insígnia de mando, são belos Murucú- Maracás, as grandes lanças usadas pelos chefes: curiosas pelo cumprimento das hastes, pela perfeição do trabalho e por uma pedra ou esferas que mal se sabe como, forçaram a entrar por uma fenda longa e estrita, que se vê na parte superior da haste n. 1 O cetro de plumas (n. 65) é curioso pela perfeição da obra é mais digna de nota pelas reflexões que sugere: Foram precisos três séculos para que a lança colossal dos velhos e antigos Tuxauas se convertesse em uma haste Simbólica e sem préstimo. O chefe que segundo dizia um deles energicamente a Montaigne, era o que tinha. 85. Santo Intitulado Cristo da Venezuela IHGB 79. dois remos pintados 104- Sairé IHGB Escudo do Uaupés – Objeto raro, e tanto que há muitos na província que lhe ignoram a serventia. Bem tecido resiste á ponta de taquara ou do Curabi; leve, não cansa, e pode-se nanejar com ele uma boa arma de defesa; facilmente portátil não embaraça a carreira.”
A partir da junção de informações e peças, obtemos um fio condutor
que parte da descrição e aponta para o uso das categorias de raridade,
perfeição, apuro estético, diferenciação da produção dos grupos, referencial
teórico, e utilização do acervo coletado, inserindo-os de forma mais adequada
não só em seu grupo originário, mas principalmente no contexto de sua coleta.
Além de identificar parte do acervo como sendo destinada ao IHGB. O
documento encontrado no arquivo, com a lista da coleção, completa o quadro
referencial.
71 Montello,Josué-Gonçalves Dias na Amazônia, Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2000.
58
A listagem (anexo2) também se completa nas observações do diário
efetuado pó Dias durante a viagem, onde Dias, elabora algumas observações
etnográficas sobre os grupos onde coletou acervo. Também existe o relatório
da Exposição do Amazonas, publicado junto com o relatório do Presidente da
Província do Amazonas em 1962, onde o acervo é listado. As comprovações
de coleção são, portanto mais do que evidentes e suficientes. A coleção tem
importância, mais do que pelo fato de ter sido coletada Por Gonçalves Dias,
nome consagrado da literatura brasileira, pelo fato de ser proveniente de um
esforço intelectual para o entendimento dos grupos indígenas existentes na
época de sua coleta.
A coleção do Rio Madeira foi enviada por Antônio Álvares dos Santos
Lima, engenheiro encarregado de fiscalizar as obras da estrada de ferro
Madeira-Mamoré, através da assim chamada Comissão do Madeira no ano de
1872; destinada a inspecionar os trabalhos de construção da estrada de Ferro
Madeira-Marmoré e a medição e demarcação das terras devolutas do Madeiral.
No documento 1, pasta 12, do AGMN, 1872, constam alguns elementos
sobre os objetivos que nortearam a expedição iniciada nesse ano, entre eles,
inspecionar os trabalhos de construção da estrada de Ferro Madeira-Marmoré
e a medição e demarcação das terras devolutas do Madeira. Nesse mesmo
documenta se introduz de forma incisiva a relação da comissão com o Museu
Nacional através de ordem por parte do Ministério , para que o museu forneça
ao engenheiro Antônio Álvares dos Santos Souza, chefe e inspetor da
comissão,instrumentos de coleta específicos “três caixas ,duas prensas e os
objetos necessários para se proceder a arborização, materiais já antes
requisitados para o serviço da comissão”. Podemos notar além do reforço do
pedido, a ausência de pedido de instrução sobre a coleta comum em
composição de comissões de coleta.
Foi uma das primeiras coleções de etnografia que não se colocaria
entre as chamadas coleções casuais, formadas sem a necessária integração
entre os componentes e da coleta de informações observadas que pudessem
contextualizar os objetos. Chegando a um total de artefatos parecido com o da
Comissão do Império 122 objetos. Em suas informações documentais indica-
59
se a quais grupos indígenas pertenciam às peças e são fornecidas referências
sucintas quanto a sua utilização, provenientes de observação local,bem como
existe a tentativa de se compor pequenos conjuntos com o acervo coletado, por
exemplo:
“Índios Maués. Objectos de que usam na �erimônia do paricá Buso para guardar o paricá preparado em pequenas bolas Moedor.”
As notas que se seguem trazem a descrição dos objetos acompanhada
pela anotação de procedência do grupo indígena e de sua quantidade. Um
grupo chamou minha atenção; devido à descrição dos objetos, foi a
possibilidade de parte da coleção designada como curiosidades dos índios do
Amazonas, indústria de Borba (a aldeia de Santo Antônio das Cachoeiras foi
transferida para um lugar mais abaixo do Rio Madeira denominado Trocano,
em 1755, esta missão foi elevada á categoria de vila com o nome de Borba,
que conserva até hoje72) pudesse ser parte do acervo denominado como sendo
dos índios civilizados do Amazonas, categoria atribuída aos índios descidos
que viviam às margens dos rios da Amazônia e denominados como tapuios.
Estes índios são descritos em trabalho de Carlos Moreira Neto tratando da
situação posterior a 1870 das Comunidades tapuias, seu espaço físico e
sociocultural, segundo o autor dispõe-se entre os grupos indígenas tribais e a
sociedade regional, tendo de suportar todo o peso da expansão da
“civilização”, terminando por extinguir-se ou descaracterizar-se como categoria
socialmente reconhecível.
Pesquisando especificamente a indústria dos índios de Borba,
encontramos registros de Alexandre Rodrigues Ferreira datados de
praticamente um século antes. Em 1787 eram recebidos na vila de Borba
índios espanhóis. Logo que se verifica que os mesmos sabem tecer pensa-se
em uma empresa de venda dos produtos destes.73 O caso das louças
72 FERREIRA. A Ferrovia do Diabo, p. 40. 73 FERREIRA. Viagens Filosófica, p. 95.
60
produzidas para o consumo da população “civilizada” e elaboradas por índios
residentes na mesma vila poderia ser o mesmo.
Ao recorrer à coleção e ao Registro Geral de peças do Setor de
Etnologia, elaborado a partir das primeiras décadas do século XX, tive por
objetivo cotejar acervo e descrição contida na documentação da coleção,
localizei inicialmente duas peças (9.635 e 9.597) com denominação em
registro geral de “vaso pintado ou ornamentado do Amazonas, Com. Do
Madeira 1873”, com numeração bastante posterior ao registro dado ao resto da
coleção da Com. Do Madeira,1873. Estas peças eram imediatamente seguidas
no registro de duas outras sem identificação de procedência, em registro geral,
e igualmente incorporado ao acervo, com a denominação de: “Índios
Civilizados do Amazonas” compondo um conjunto estético com os mesmos
motivos decorativos e se enquadravam na lista de Antônio Álvares como sendo
uma panela para cozinha e uma bacia para água e para barbear. Outra peça
com a mesma decoração e descrita como sendo um candeeiro foi encontrada
junto ao mesmo acervo, no livro de registro, e igualmente sem identificação
precisa de procedência.
Quanto às demais 14 peças descritas, a identificação se torna mais
difícil na medida em que existem mais de uma possibilidade para jarro de água
ou bacia, exaurindo minhas possibilidades iniciais de identificação. No entanto
a coleção do Rio Madeira ou da Comissão do Madeira, demonstra claramente
dados importantes da formação da coleção da indústria Humana no Museu,
apesar de sua composição ter sido de responsabilidade de um engenheiro em
missão, o seu resultado e suas observações ajudam na compreensão da
produção indígena do período.
A Coleção José do Couto de Magalhães, ou envida por José do Couto
de Magalhães é invisível no Catálogo geral, embora a sua documentação de
entrada se encontre no AGMN74 referente ao ano de 1876. Couto de
Magalhães Cursou o Seminário de Mariana e a Faculdade de Direito de São
Paulo e foi um dos que denominavam o interior, no século XIX , de “nossos
sertões”, tido por alguns na atualidade como sertanista. Couto de Magalhães
74 Documentação AGMN pasta do ano de 1876.
61
foi uma pessoa de extrema atividade intelectual, política e empresarial. Era um
fervoroso estudante e pesquisador de línguas estrangeiras e indígenas, onde
despendeu boa parte da sua atividade; estudou com afinco astronomia, física e
mecânica, seus instrumentos para experiências científicas, posteriormente
foram doados ao Instituto Politécnico de São Paulo. Fundou o Clube de Caça e
Pesca de São Paulo e organizou a Sociedade Paulista de Imigração.
Colaborou com muitos jornais, com ênfase no Jornal do Comércio e o Diário
Popular, tendo também pertencido ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
onde participou das comissões de etnografia. Elaborou uma gramática da
língua geral.
Exerceu o cargo de Secretário do Governo de Minas Gerais entre 1860 e
1861. Foi Presidente das Províncias de Goiás Pará, Mato Grosso e São Paulo.
Envolvido na política do Império, e afiliado ao partido liberal, presidiu a
província de São Paulo até a data da proclamação da republica, quando se
afasta da vida política. Na penúltima destas presidências prestou relevantes
serviços. Após a Guerra do Paraguai, na qual participou da batalha de
reconquista de Corumbá dos paraguaios, ganhou do governo imperial o título
de Barão de Corumbá. Mas o recusou, preferindo o de General Brigadeiro,
distinção que então raras vezes se concedia a civis.
São suas obras mais importantes: O Selvagem, obra escrita a pedido de
D. Pedro II para figurar na Exposição de Filadélfia em 1876, tratado do idioma,
dos costumes, mitos e usanças dos nossos índios; uma Viagem do Araguaia; A
Revolta de Felipe dos Santos em 1720, que lhe abriu as portas do Instituto
Histórico Geográfico; “Os Guaianases (romance histórico) ou a Fundação de
São Paulo”; Anchieta e as línguas indígenas. A coleção enviada ao Museu
Nacional acompanha o período de elaboração do texto do selvagem e
provavelmente tinha o objetivo de figurar igualmente na Exposição de Filadélfia
de 1876.
Couto de Magalhães no “Selvagem”75 trata da coleção do Museu
Nacional como um todo pertencente a todos. “Possuímos no Museu Nacional
uma riquíssima e preciosa coleção de instrumentos de pedra polida” elogia a
75 Magalhães, J.C. O Selvagem, SP: Cia Editora Nacional,1940, p.106
62
coleta de Lopes Netto (Ladislau Netto) e de Domingos Ferreira Penna,
membros do Museu e sócios do Instituto, quanto a sessão de penas, armas de
madeira ou ossos, colares de frutas, qualifica de esplendida e as atribui ao
Imperador(?). Daí o espanto de sua própria coleção dos índios ter se dissolvido
em meio a esses artefatos diminui, a apresentação priorizada é a do conjunto e
a propaganda do Brasil a ser apresentado na Exposição de Filadélfia, aqui a
imagem do Imperador Mecenas e Cidadão é corroborada e amplificada pelos
contemporâneos que o viam como uma representação adequada de si próprios
no exterior. A coleção de Magalhães dissolvida na coleção Museu Nacional
comportava segundo documento do AGMN, acervo Kaiapó e outros, existem
várias peças que se encaixam no roteiro de Magalhães , principalmente uma
listagem de 57 peças que compreende os índios do Chaco, Os chamacoco,
Guató e Kadiwéu e Bacahiris da cabeceira do Rio Arinos. Que corresponde a
um de seus roteiros de viagem e possui como característica ter em sua base
peças de tecido e trançado leves e fáceis de transportar:
“1,2 cobertores de tecidos de algodão............Indios doChaco; 3,4,5 bolsas feitas de tecido de barbante, porém com desenhos diferentes........Bacahiris do Rio Verde, cabeceira do Rio Arinos” 40-54- amostra de diversos barbantes ......................Caduéuo; 57- Cesto feito com folhas de diversas palmeiras...........Guató”
O grande número de peças das coleções do Imperador e do Conde D’Eu
presentes no Guia da Exposição Antropológica e no Catálogo, referentes á
grupos os quais Couto Magalhães fez contato sugere a possibilidade de
doação de Couto Magalhães aos mesmos, prática corriqueira na época,
principalmente para um presidente de província e empresário, fazendo com
que ao elogiar as coleções doadas pelo imperador ao Museu em o Selvagem,
elogiasse indiretamente seu próprio esforço.
A partir do final da década de 70, o museu passa a receber as coleções
que podem ser consideradas como uma segunda fase da instituição, como as
seguintes coleções: Coleção procedente da Comissão geológica, coordenada
por Hartt ( membro do Museu por um período) 1877; as enviadas pelo Bispo de
Goiás 1897; a Coleção Guido; Coleção Paula Castro (expedição, Von den
63
Steim). São coleções com informações que passaram para o século seguinte
com um tombamento mais próximo da documentação original, revelando uma
mudança no tratamento referente à parte administrativa do Museu. 1.4 O Tombamento
Tombar alguma coisa, de acordo com normas legais, equivale a
registrar, com o objetivo de proteger, controlar, guardar. Tombamento, também
chamado tombo, provavelmente originado do latim tomex, significa inventário,
arrolamento, registro. O tombamento de bens culturais, visando à sua
preservação e restauração, é de interesse do Estado e da sociedade. O termo
tombamento utilizado no Brasil e em Portugal advém da Torre do Tombo, o
arquivo público português, onde eram guardados e conservados documentos
importantes
Ao dar entrada no registro geral de uma instituição pública como o
Museu o objeto passa a ser uma peça a mais do acervo, deixando assim sua
individualidade para fazer parte de um conjunto maior, a partir do qual será
sempre ordenado. Ganha um número de registro que o ordena de acordo com
a sua posição no conjunto maior e é, então, considerado tombado.
Tal tombamento passa a estar assentado em bases de direitos e
deveres a serem observados pelo Estado e pelos cidadãos e termina por
inscrever, no espaço social, determinadas figurações concretas e visíveis de
valores que se quer transmitir e preservar, pela classificação dada ao objeto
inicial ao ser referido em tal conjunto de coleção ou coleções, se diferenciando
e ordenando.
64
Por exemplo, uma flecha deixa de ser apenas uma flecha para fazer
parte, em primeiro lugar, do acervo do Museu Nacional, passando a pertencer
a vários conjuntos classificatórios como: a coleção etnográfica, a coleção de
armas, a coleção dos Botocudo, a coleção de armas do século XIX, a coleção
doada por Inglês de Souza e outros conjuntos criados a partir de interesses
variáveis de época ou matéria (como as flechas emplumadas com penas de
gavião). O que importa é que a flecha uma vez tombada entrará definitivamente
em uma ordenação institucional pela numeração recebida que a integrará como
mais um número de uma série. Ainda que seja exposta sozinha ou tenha uma
ficha de catalogação individual, seu número de registro (nos museus em geral,
apesar do número de registro não ser considerado estético, é sempre marcado
em local visível) sempre afirmará a flecha como parte de um conjunto ordenado
e seu pertencimento a uma coleção institucional.
Uma das importantes contribuições das classificações presente nos
catálogos de Etnologia. São aquelas que demonstram a presença de
determinadas áreas geográficas na etnologia brasileira. A partir da leitura de
trabalhos de Ratzel76, como possível influência de métodos de classificação da
coleção no século XIX. Percebemos que a questão das áreas geográficas se
impõe não só a partir da prática da coleta de acervos e de dados etnográficos,
mas também através dos resultados finais que podem ser visualizados nas
monografias. Fazendo com que grupos de maior contato entre si tenham
registros comuns, principalmente em função de denominações geográficas em
comum como rios.
Um exemplo interessante é a descrição de Gonçalves Dias de sua
Viagem ao Rio Negro77. Onde a referência dominante é a dos rios que estavam
sendo navegados, de forma que as comunidades ou grupos indígenas são
denominados em função dos rios. Passando estes inclusive a serem
determinantes quanto às observações das relações entre grupos, e integrando
76 RATZEL,Friedrich - History of Makind - London : Macmilan and co. 1896. 77Dias, Antonio Gonçalves- Viagem ao Rio Negro- Publicação da Academia Brasileira de Letras RJ, 1977
65
a descrição de um certo caráter unindo Rio e tipo psicológico, segundo o autor
exemplifica no relato abaixo transcrito.
“Os habitantes de um desses rios são inimigos dos do outro.Os do Uaupés dançam sempre armados com suas flechas;Mundurucus, etc. Os do Içana desarmados.Os do Içana são mais leais.Os do Uaupés um pouco mais atraiçoado(?). No Içana pode-se andar sem arma em todo o rio.(p.118)”
A importância das áreas geográficas pode ser exemplificada usando as
informações contidas no primeiro catálogo da seção de Antropologia do Museu
Nacional. Para uma melhor visualização dessas áreas é só enumerar apenas a
numeração e a procedência das peças. De modo a que se possa observar
melhor as informações quanto ao local de coleta ou território. Analisando dessa
forma a influência desse local, que é tradicionalmente considerado quanto a
objetos como procedência surge o que poderíamos denominar de uma
constituição identitária já apontada por Thiesse78 como sendo uma das três
funções do museu de etnografia.
Como teste a estas observações, verificamos então o primeiro catálogo
da coleção de antropologia do Museu Nacional. Abstraindo o acervo e levando
em consideração apenas à procedência tivemos uma visão bastante clara das
delimitações de época. Em Primeiro lugar encontramos as procedências
totalmente genéricas,como “índios do Brasil”, denominação aplicada á 123
peças do primeiro catálogo que registra um total de 2.499 , além daquelas
denominações continentais como no caso de objetos identificados com uma
breve proveniência: “96-África”
Depois procedências um pouco mais específicas, mais ainda bastante
genéricas, como denominações por províncias, as quais no primeiro catálogo,
não são tão expressivas, sendo as mais freqüentes referencias a Amazonas,
78 THIESSE, Anne Marie - La Creation des Identities Nationales
66
que podem ser entendidas tanto quanto região, quanto por Província ou
mesmo por Rio:
1.073- Índios da Guyana Brazileira 1.126- Índios do Amazonas 2.287- Índios do Brazil – S. Paulo
As denominações por Rio representam 102 peças do primeiro catalogo,
sendo essas aquelas em que aparece apenas o nome do rio como
procedência, pois existem as denominações por; rio e província; por
aldeamento e rio ; Por aldeamento, rio e província . Além daquelas por: grupo e
rio; grupo, aldeamento e rio; grupo, aldeamento, rio e província.
1.064- Índios do Rio Branco 1.112 e 1.113- Índios do Uaupés 1.121 a 1.123- Ìndios Uaupés
Apesar das indicações genéricas, oitenta por cento do primeiro catálogo
possui indicações de grupo. Existem grupos numericamente expressivos :
Índios Karajá-..........................................141 peças Índios Nambikwara-................................129 peças Índios Krixaná...........................................70 peças
As referências que apontam grupo e a localização, indicam por vezes a
possibilidade de um grupo habitar localidades geográficas distintas, servindo
para identificação precisa, por ocasião da crescente informatização das
instituições, é válido lembrar de que informações antigas não são indicam erros
e sim mudanças de localidade dos grupos e definições geográficas são
bastante amplas no século XIX :
1- Índio Botocudo - Rio Mucury – Espírito Santo- Brasil 2- Índio Botocudo - Rio Itamacuary- Minas Gerais- Brasil 1.110- Índios Jauaperys ou Crichanás - Rio Jauaperi, af. do Rio Negro 98- Indio Chavante – Rio Tocantins – Goiás
67
As ordenações geográficas, com certeza representam uma das direções
caras ao século XIX, convém lembrar que uma das matérias ensinadas nos
cursos básicos e secundários era Corografia, uma das publicações de ensino
tinha por titulo Noções de Corografia do Brasil por Joaquim Manoel de
Macedo-1873 -R.J. Para uso do Imperial Colégio Pedro II, com a descrição
pormenorizada dos Rios e de suas bacias: “O Solimões se alonga de Tabatinga
até o Rio Negro, havendo entre esses dous cerca de 237 lagoas ele recebe na
margem direita o Javary, Juthohy, Juruá, O Teffé, a cento e vinte lagoas da
Confluência do Rio Negro: O Coari, O Purus. Pela Esquerda o Iça a duzentas
e vinte lagoas da embocadura do Rio Negro.” Esse aprendizado revela uma
atualização a partir das viagens , bem como uma obsessão nas viagens pela
demarcação dos caminhos fluviais como a observada em Dias e em
Magalhães.
No entanto se fica fácil validar o tombamento geográfico da coleção,
torna-se complexo explicar o apagamento de documentações fartas como o
das coleções Dias, Comissão do Madeira e Couto Magalhães, não só quanto a
colecionadores, como quanto a datas é rara a presença de datas nos dados de
tombamento, muitas vezes a mesma aparece indicando a presença da peça
em eventos posteriores a sua entrada.
Raimundo Lopes79 em seu trabalho sobre a coleção de Dias justifica o
“apagamento” das informações no livro de tombo referindo-se a perda de
referencial para a leitura de etiquetas pregadas ás peças, e usando uma
etiqueta colada á peça da coleção Dias com os dizeres: “E. 97, IHG” para
apontar o quanto essa pista, IHG (destinada ao Instituto histórico e geográfico),
demorou a ser lida pelo próprio.
No entanto essas justificativas, não fazem sentido com relação ao livro
tombo, havendo documentação disponível na própria sessão, o próprio esforço
de recuperação de dados de Lopes ficou restrito publicado e esquecido, sem
qualquer anotação no livro tombo, em verdade o conhecimento de vários
aspectos das coleções ficavam restritos ao conhecimento de poucos e ao
folclore oral de muitos, publicações do próprio Museu como as “Investigações”
79 Lopes, Raimundo- op.cit.p. 589
68
de Ladislau Netto e os “Fastos”80 de Lacerda, ficavam sobre a guarda da
biblioteca eram usadas por poucos eruditos do Museu, para demonstrar seu
conhecimento sobre o passado nobre da instituição. O acervo documental hoje
reunido no Arquivo Geral ficava disperso nas sessões e por vezes em muitas
gavetas esperando oportunidade de publicações futuras, as investigações
praticas, como as de Raimundo Lopes não eram efetivadas, ou seja, não se
transformavam em anotações ou em nova versão do Livro de tombo.
O acumulo de papel e documentações dissociadas do tombo tiveram por
inicio a própria política do Museu. Em sua Luta pela ampliação e valorização de
seus quadros e mais especificamente pela criação da categoria de naturalista
viajante. Foi aos poucos sendo elaborada uma estratégia de resistência que
não permitia a glorificação de coleções entradas de forma pouco cientifica ou
imposta. O caso de uma Comissão incentivada pelo Imperador e orquestrada
pelo IHG, ainda que contasse com membros do Museu, os mesmos se
retirariam na primeira etapa da Comissão no Ceará, retornarão fizeram
relatório, conferencia no IHG e montaram uma exposição com os produtos do
Ceará no prédio do Museu.
Já o empreendimento de Gonçalves Dias no Amazonas, sua Exposição
de produtos em Manaus e o envio de peças para a primeira exposição
Nacional, de certa forma provocam uma concorrência com o Museu . Na qual
mesmo a coleção que ficou no Museu Nacional, possuía vários exemplares
anotados por Dias que deveriam ser enviados ao Instituto, á quem se sentia
devedor de dar contas de seu trabalho na comissão, Dias sempre foi um
membro assíduo do Instituto, a destinação ao IHG é comprovada não s
etiqueta citada anteriormente por Raimundo Lopes, mas a listagem de Dias. No
entanto a estratégia do Museu de incorporar a coleção a partir de sucessivos
pedidos para consulta e empréstimos da mesma, por estar depositada no
Museu e ao mesmo tempo apagar as origens, dissolvendo-a no todo da
coleção MN. Apontada no Guia da Exposição Antropológica, teve êxito,
justamente por omitir informações no tombamento.
80 Lacerda, J. B.- Fastos do Museu Nacional.
69
O mesmo ocorreu com a coleção da comissão do Madeira, tendo essa o
ministério se dedicado a demonstrar a importância, obrigando sua publicação
em anexo ao relatório de Ladislau em 1976 e reforçando pedidos de
agradecimento ao engenheiro coletor. No entanto ao registrar a coleção no
tombo e mencioná-la no Guia da Exposição Antropológica a mesma se perde
em poucos itens com especificações exíguas.
No caso de Couto de Magalhães, cujas viagens poderiam ter um caráter
político mais forte, pois presidiu várias Províncias e cuja preferência do
Imperador ao lhe confiar o escrito onde os indígenas seriam representados na
Exposição de Filadélfia em 1876, preterindo dessa forma o Museu e as
qualificações acadêmicas dos naturalistas. Magalhães em seus livros
principalmente em viagem ao Araguaia ressalta não ser naturalista, no entanto
no selvagem propõe: “Si é útil estudar, descrever e classificar até a mais
miserável planta de nossos campos, ver o mais rude e pobre mineral dos
nossos montes, muito mais nobre e útil é estudar é estudar, descrever e
classificar o homem americano, e vou prová-lo.”
Justamente a partir de 1976, Ladislau Netto, já efetivado como diretor da
instituição redobra esforços para reforçar o Museu como centro de pesquisa.
Colocando a partir da reforma administrativa de 1876, a quarta sessão sob sua
guarda direta até uma posterior separação do Museu, proposto por esse e
defendida durante toda sua gestão como diretor da instituição, para uma
instituição própria. E ao mesmo tempo começa a empreender esforços para a
organização de uma grande exposição Antropológica a ser levada a cabo no
prédio do Museu, prevista em principio para 1879 colocando o Museu de volta
no centro das pesquisas antropológicas.
Com a retirada da quarta sessão do quadro geral da Instituição,
Ladislau consegue eliminar qualquer interferência de nomeação de diretor da
quarta sessão, uma vez que mesmo a documentação oficial do Museu tendo
dado a demissão de Manuel de Araújo Porto Alegre do cargo, ao embarcar par
exercer cargo de cônsul geral na Prússia, oficialmente o cargo continua ser
imputado ao próprio, como podemos constatar no Almanak do Império.
70
1.5 Classificações
“A cerâmica possui normalmente uma ideologia. Praticamente todos os recipientes podem oferecer um valor simbólico; mesmo em nossos cafés, uma xícara de café não tem a mesma forma de um copo de cerveja. Muito freqüentemente, o pote possui uma alma, o pote é uma pessoa.Deve-se estudar enfim cada pote e seu destino.” (p.72)81
Muito já foi dito sobre as classificações de acervo, na coleção do
Museu Nacional. Ao longo da elaboração dos catálogos, elas podem ser vistas
sob o aspecto básicos da descrição dos objetos, que, através de um conjunto
de denominações especificas, podem identificar dois tipos de classificação:
aquela que vai dar conta da alma do objeto e de seu uso social ainda que
brevemente, como, por exemplo, os conjuntos de Paricá ou os instrumentos
musicais e as máscaras, conjuntos mais obviamente ligados ao universo
cosmológico dos grupos pela sua função ritual. Uma das funções sempre
demarcadas, ainda que brevemente e de forma inespecífica: “usada em rituais”
ou ainda “ usada em suas festas”.
E aquela que vai dar conta do processo tecnológico envolvido, como,
por exemplo, canoa escavada, cuja descrição de Malinowisk se transformou
em um clássico ao dar conta da complexidade que uma descrição tecnológica
pode atingir.
“Algumas palavras devem agora ser ditas sobre as características tecnológicas fundamentais da canoa. Também nesse caso, a mera enumeração e descrição das diversas partes que compõem a canoa, a dissecação de um objeto inanimado, não irá nos satisfazer. Levando-se em consideração de um lado, seu objetivo e, do outro, as limitações dos recursos tecnológicos e materiais, tentarei mostrar, em vez disso, de que maneira os construtores nativos solucionaram os problemas que se apresentaram.” (p.89)82
81 MAUSS, Marcel- Manuel d’ ethnographie, Paris: Payot, 2002. 82 Malinowski, B.- Os Argonautas do Pacifico Ocidental – SP: Abril ed.1976
71
O hábito de formar coleções destinadas a museus etnográficos, através
de viagens de campo, tornou-se, para os pesquisadores, tão comum como
aquele de tirar fotos se tornaria no século XX. Em ambos os casos, os métodos
de seleção demasiadamente intuitivos podem gerar séries de objetos sem
descrição pormenorizada, fazendo com que as coleções já ingressem nos
museus com parte de sua potencialidade documental perdida. Infelizmente a
coleção do museu no século XX possui poucas descrições que as insiram tão
bem em sua cultura de origem, como as propostas por Mauss83 ou as
executadas por Malinowski.
A coleção etnográfica reunida por Gonçalves Dias, por exemplo, até a
publicação do material da exposição do Amazonas, contava apenas com
anotações em seu diário de viagem ao Rio Negro, no qual a anotação mais
longa é sobre a flauta Jurupari, objeto de uso ritual; a associação dos objetos
de uso ritual com as plantas alucinógenas e a identificação das mesmas
também é presente como vemos na descrição de Dias sobre o caapi.
“Há uma erva que chamam de Caapi (caipié), tiram a raiz, socam e tomam o sumo, mas em pequena quantidade que lhes produz sonhos acordados, visões e etc.. O Pe Salgado diz que tomou, e que lhe aumentarão consideravelmente o vulto dos objetos.”84
Outros objetos cotidianos como flechas e redes, são mencionadas
pela localidade de fabrico em frases esparsas. O próprio diário de viagem85, em
sua primeira edição pela Academia Brasileira de Letras, na década de 70, é um
texto sem grande divulgação e coberto de muitas lendas e tradições orais a seu
respeito. Que revela apenas anotações básica muitas vezes só referencias
geográficas. Já o trabalho publicado sob a organização de Montello recupera,
no texto do próprio Gonçalves Dias, os percalços de uma classificação da
83Mauss, Marcel- Manuel d’ ethnografie,Editions Payot,Paris,2002 84Dias, Antonio Gonçalves - Viagem ao Rio Negro- Publicação da Academia Brasileira de Letras RJ, 1977
72
época, bem como o conhecimento do nascimento de uma teoria ao
evolucionista. E a preocupação com uma valoração positiva dos artefatos
indígenas, além é claro da falta de tempo e estrutura para dar conta de uma
tarefa tão extensa como: empreender a viagem, Organizar fisicamente o
material, Montar uma exposição, escrever um relatório e enviar para o Rio de
Janeiro o material.
“Cabe aqui desenvolvimento acerca de cada um dos gêneros, que vão ser expostos, por falta de tempo e de “copistas” observar que não foi possível dar uma ordem natural á classificação dos objetos, porque ao mesmo tempo se iam recebendo e acondicionando para o embarque, e outras, não poucas, nos chegavam á ultima hora. Nem foi possível também entrar no indispensável.”
Mesmo nessa missão quase impossível, com os contratempos de
perda do material por naufrágios, existem classificações muitas delas se
ressentem de uma observação de maior duração e menos leituras
evolucionistas como a do cetro Mundurukú de penas, tratar-se da evolução de
uma lança. No entanto por mais curiosa que parecem é com essa descrição
que podemos avaliar as idéias da época da coleção evolucionista, mas
tentando colocar o indígena brasileiro em um grau da escada evolutiva bem
diferente da barbárie pura e simples.
“O cetro de plumas (n.65) é curioso pela perfeição da obra, é mais digno de nota pela reflexão que sugere: foram preciso três séculos para que a lança colossal dos velhos e antigos tuxauas se convertesse em uma haste simbólica e sem préstimo”. Manaos 23/10/1861
O cetro Mundurukú é um dos exemplos de classificação e mudança
de classificação interessantes, na lista que estou denominado de “pré catalogo”
das vestimentas indígenas, que verdade hoje são seriam classificadas como
73
adornos plumários, temos informações que segundo nossa suposição
acompanhávamos caixotes enviados do Pará que conteriam parte do material
da Comissão Langsdorff os cetros Mundurukús são designados como contendo
indicações do pertencimento familiar devido as suas nuanças de cores e
apresenta a denominação lingüística “putá”. Contendo inclusive qual família
pertencia: “15,16,17 Putá espécie de cetro da família Ipacas” ou logo abaixo:
“32 e 33 Putá da família Aririchá”. O “cetro” Mundurukú que passa ao catálogo
como a definição de Dias “cetro de comando”, na verdade possuía uma
designação anterior que o denominava como objeto de família, com uso de
vários membros da mesma. Definido também a questão de cor o cetro de cor
diferente das convencionadas como sendo tradicionais “ vermelho e preto” ou
“amarelo e preto” por possuir as cores “azul e amarelo” e posto em dúvida no
catálogo geral como Parintintim. Que implica na dúvida se grupo inimigo
tradicional dos Mundurukú poderia ter copiado o artefato alterando cores.
O emprego de uma taxionomia mais refinada à coleção de indústria
humana que possa se comparar às classificações do material de Ciências
Humanas, principalmente as tentativas de uma composição Lineana.
Ordenando o material por categorias macro para chegar às micros
características e elaborando complexos esquemas de suas partes, foram
tarefas enfrentadas no século XX. Principalmente em face de uma
sistematização para informatização.
No século XIX, temos classificações baseadas em experiências
múltiplas com nomes étnicos, como zarabatanas, Jamaxim (cesto de carga),
poaris (trompetes globulares), designando objetos junto com termos europeus,
como xícara, jarro, vaso e outros. As classificações variavam de acordo com o
tempo e os objetivos empreendidos na coleta. Mais dificilmente se guiavam
pela forma como as classificações multiformes do século XX.
As divisões maiores se davam quanto ao uso: armas, por exemplo,
eram quase sempre descritas e mesmo tombadas em grupos. No que
consideramos um levantamento pré-catálogo, provavelmente com as duzentas
poucas peças de vestuário que fala o levantamento de 1838, temos uma
ordenação de peças de plumária, como material e adorno ou vestimenta como
74
categoria de uso, com exceção do cetro Mundurukú. As classificações desse
pré-catálogo por vezes são bem mais elaboradas, do que as que foram
transportadas para o catálogo geral. E apontam para á categoria de
vestimentas indígenas, nota-se que exclui objetos como as cabeças
Mundurukú, classificadas á parte no levantamento institucional de 1938. E
apesar se ser predominante os objetos com penas a categoria plumária, não é
utilizada a opção é funcional, vestimenta, com observações da ocasião de seu
uso:
”11-adorno para a cintura (com chocalho) nas danças,feito de frutos de leguminosa enfeitando com uma corda de penas de arara tendo na extremidade uma borla de penas de mutum” 86
A perda de informação no transporte da listagem que estamos
denominando de, pré catálogo, para o Catálogo Geral da Instituição faz com
que a coleção de plumária Mundurukú registrada em catálogo chegue
catálogo geral como a exemplificada abaixo:
“769- Insignea de Chefia, Índios Mundurucús 770-? 771 a 795- pulseiras Índios Mundurucús 796- Ornato de cabeça deMundurucús (Sala Gabriel Soares- Exposição Anthropológica) 797 a 804-braceletes dos Índios Mundurucús 807 a 824- Índios Mundurucús 825- Enfeite de penas(Offerecida a S.M. o rei Alberto da Bélgica em outubro de 1920 por ordem do s.m. diretor ) 825 e 826- Acangatar , Índios Mundurucus 827- Índios Mundurucús(Museu Paranaense) 828 a 839- Índios Mundurucús 840- Índios Mundurucús (Commissão do Madeira – Amazonas-1873) 841 a 855- Índios Mundurucús 856- Índios Mundurucús e Mahués (Sala Gabriel Soares- Exposição Anthropológica)”87
86 Pré catálogo-anexo 2 87 Registro Geral SEE
75
O processo de perda se inicia com os registros das peças no guia da
Exposição Antropológica de 1882, que acredito será usado na elaboração do
catálogo geral, devido ás suas inúmeras referencias á exposição, e aos
colecionadores presentes no mesmo guia. A coleção de vestimentas
Mundurukú, por exemplo, a partir do guia da exposição passa a ser inserida em
outra categoria classificatória a arte plumária, até então não vemos menção ao
termo além dos relatórios produzidos por Manoel de Araújo Porto Alegre onde
o mesmo reforça o “arranjo artístico” dos adornos com penas:
“Sala Gabriel Soares - Etnografia e Archeologia Nesta sala acham-se expostos muitos produtos da arte plumária brasileira, adornos, tecidos e vestes de diversas tribus do Brazil”88
A partir daí vemos novas categorias de ordenação classificatórias que
não se referem, mas diretamente ao uso como tecido, se referindo á técnica de
tecelagem e a categoria de “Arte Plumária” com suas implicações de que esta
escapa ao universo da produção artesanal e entra no mundo das produções
artísticas. Começa o uso classificatório naturalizado no século XX.
Acompanhado da perda das informações de uso e por vezes de grupo em itens
como: “8. vestimentas usadas pelos Mundurucus e outros indígenas do
Amazonas em dias de festa. (M.N.)”. Começa assim a se formar amassa
indistinta de adornos da Arte Plumária.
A coleção do século XIX é sua sobrevivência apesar da ”falta de
informações” através de uma valoração estética. Sua presença constante em
exposições e publicações durante todo o século XX e o início do século XXI.
Deve-se menos a falta de informação promovida por “bagunça” ou escassez de
recursos financeiros, do que a orientações que priorizaram em determinados
momentos, quais informações deveriam ser postas em destaque e mantidas,
88 Guia da EXPOSIÇÃO Antropológica e 1882, p. 51
76
através dos livros oficiais como as publicações e o Registro Geral ou Livro de
tombo institucional.
A coleção Mundurukú, serve bem para exemplificar o fato por ter
contado re sempre com acréscimos de informação extra-registro, por exemplo,
à pesquisa de Manizer no inicio do século XX. Por exemplo. As etiquetas da
exposição como a etiqueta da cabeça e sua ilustração, armazenadas no setor
de etnologia, hoje no acervo iconográfico do mesmo, que foram talvez
guardadas para publicações futuras, no entanto mereceram estaque de peça
única na exposição de 1882, por possuírem um duplo encantamento, o de
provocar horror pela sua “barbárie” á uma sociedade como a do Rio de Janeiro
em 1882, cujos traços de civilização ainda eram recentes e de provocar
admiração pelos guerreiros Mundurukú e sua coragem, afinal a coragem e as
batalhas indígenas eram o alvo da literatura romântica que apesar de estar
saindo de moda, ainda era lida e a coragem guerreira estava presente devido à
proximidade do fim da Guerra do Paraguai:
Fig. 3 Pariuá (Cabeça troféu Mundurukú) Litografia, acervo SEE
77
“Pariuá (trophéu guerreiro) é uma cabeça mumificada por processo especial. Logo depois da luta, o guerreiro Mundurucú vencedor degolla o inimigo morto. Apropia-se da cabeça que prepara arrancando-lhe os dentes , os olhos, extraindo-lhes o encephalo e raspando-lhes o cabello. Depois de estar assim tratada é posta a cabeça sobre o fumeiro para enxugar. Untan-na com óleo de Andiroba(carapa Guianensis) e enche-na de estopa e bolinhas de algodão, tapam-lhe a boca com resina; no lugar dos olhos collocam bolas de resina ás quaes prendem dentes de cotia. Ornamentam, depois, a cabeça com pingentes de pennas e fios de algodão. Um grosso cordão passado pela bocca serve para o possuidor do funebre tropheu possa carregá-lo quando o prende á cintura. é também costume trazê-lo espetado á ponta de um bastão. Com os dentes do inimigo morto ornamenta o TUCHAUA (CHEFE) uma cinta pariuate-ram que representa para os Munduruku uma condecoração."
As classificações acompanham as mudanças da produção de
conhecimento, em primeiro lugar na classificação da lista pré catalogo temos
as classificações feitas por Comissões de viagens exploradoras, já que ao que
temos indicações documentais de ser a coleção Munduruku é proveniente da
comissão Langsdorff, corroboradas pela pesquisa do Dr. Manizer 89 no Museu
Nacional em 1914. As classificações da coleção levam em conta a observação
o mais detalhada possível do uso e da inserção nos costumes das sociedades
observadas como os manuais para viajantes apregoavam desde Gerando.
Portanto as observações comentadas sobre ser o “cetro” Mundurukú um
distintivo de familiar são parte da preocupação e do treinamento dos
integrantes das comitivas.
Ao Considerar a produção do conhecimento intelectual brasileiro em
formação através de textos publicados pelos membros do IHGB, os estilos
também se modificam; Gonçalves Dias, José do Couto Magalhães e Ladislau
Netto marcam fases distintas que se sucedem, mas ao mesmo tempo chegam
a competir em termos de interesse.
89 MANIZER, G. G. A Expedição acadêmica de G. Langsdorf ao Brasil (1821-1822). São Paulo: Ed. Nacional, 1967.
78
A intensa produção de José do Couto de Magalhães, vinda a partir de
cargos de presidência de província vividos com intensidade de viagens. Couto
preocupado com a inserção do elemento indígena sempre observa não ser um
naturalista, e em suas classificações das indústrias dos índios se sente mais a
vontade de descrever sem justificar. Seu investimento era no estudo dos em
termos lingüísticos e sua grande preocupação era ressaltar a necessidade de
aprofundar esses estudos para contribuírem de uma forma mais positiva na
integração do indígena. Sua descrição do acervo por vezes está abertamente
referida á sua experiência de combate e caça.
“Falando em armas, não poderia deixar em esquecimento uma, que é das mais terríveis, isto é , o porrete: tiram-no do cerne e madeiras de lei, atam-no com uma corda e manejam-no de modo que sua pancada, se não é sempre mortal, serve pelo menos para derribar a vitima e dar-lhe ocasião de matá-la mais comodamente. Existe aqui em, Crixás, o alferes Antonio Xavier, que foi derribado de cima do cavalo por um desses tiros, lançado de sessenta passos de distancia! O porrete é curto, de 3 palmos, e o cabo de quatro polegadas; a ponta é mais larga do que o resto e termina em forma de azagaia ”90
A experiência acadêmica e literária de Gonçalves Dias por sua
formação em Coimbra, bacharelado e estudos complementares da língua
alemã e sua preocupação com a inserção das partes em um todo abrangendo
preocupações como a forma da educação indígena era efetivada, além da sua
constante preocupação com a valoração estética do Indígena brasileiro,
executada na sua obra poética, faz de suas descrições em alguns itens
preocupação estética e em outros como o abaixo descrito narração de conflito,
por vezes invertendo a ordem mais usada de se falar de conflito na descrição
das armas e de estética na descrição dos adornos:
90 Magalhães, J.C.- Viagem ao Araguaia -SP: Companhia Editora Nacional, 1957. p.101
79
“Nas armas há grande variedade com insígnia de mando, são belos Murucú- Maracás, as grandes lanças usadas pelos chefes: curiosas pelo cumprimento das hastes, pela perfeição do trabalho e por uma pedra ou esferas que mal se sabe como, forçaram a entrar por uma fenda longa e estrita, que se vê na parte superior da haste n. 1 O acangatar de número 63 é o enfeite de um dos chefes dos Araras, Morto em Combate ainda esse ano, nas imediações na ilha de igual nome, no Rio Madeira”91
A experiência e formação de Ladislau como naturalista, acostumado
basicamente a ver através de calcificações e ordenações das partes a solução
para o entendimento e o conhecimento e a sua preocupação política com a
projeção institucional faz com o acervo indígena passe a ser mais um item
coletado em seu grande arquivo de documentação dos “antigos íncolas dessa
terra”. O destino das populações indígenas contemporâneas não lhe afeta, só o
estudo de seus aspectos físicos e de seus artefatos. Essa preocupação com o
acúmulo para estudos posteriores de caráter tecnológico aproximados dos
arqueológicos na composição de grades evolutivas, faz com que a
classificação passe a ser feita em forma de conjunto onde mesmo a
procedência pode ser confundida o que importa é serem indígenas presentes
no território do Brasil, assim chegamos aos grandes conjuntos indistintos como
os presentes no guia da Exposição Antropológica de 1882:
17- Brincos de indígenas do Amazonas (M.N.) 69.- Coleção de colares de diversas tribus- Exp: M.Nac. e D. Amélia C. de Albuquerque. 34- Ornatos para pernas (M.N.)
No entanto a instituição sempre teve seus papéis secretos ou explorados
por poucos até a criação do arquivo geral do Museu já no final do século XX,
em 1994, iniciado através de um projeto para resgate da memória do Museu
Nacional coordenado por uma bibliotecária que durante alguns anos, chefiou a
Biblioteca do Museu; Maria José Veloso da Costa Santos. Os papéis ficavam
91 MONTELLO, op. Cit.
80
dispersos em seções e departamentos muitas vezes separados em gavetas,
reservados para futuras pesquisas, que nunca se efetivaram. Ou então eram
publicações da biblioteca geral sob o selo Obras raras, que eram pouco
manuseadas e conhecidas como os fastos do museu e relatórios e decretos do
século XIX, Sendo a própria Chefe da Biblioteca durante várias décadas do
século XX. D. Dulce Fonseca Fernandes da Cunha, autora de um livro sobre a
biblioteca da instituição92
Os documentos originais então que foram utilizados para essas
publicações estavam fora de acesso em caixas, onde ficaram até a sua
abertura no arquivo geral, no entanto partes dessas informações sempre
surgiam e eram integradas ainda que de forma desordenada, por vezes em
publicações como a de Raimundo Lopes e raras vezes anexadas ao catálogo,
em anotações a lápis ou apareciam em informações pontuais em textos
expositivos.
Para que se possa realmente ter uma idéia do acervo do século XIX,
com todas as suas possibilidades de informação é necessário que se proceda
à atualização do catálogo geral do Setor de Etnologia, com a integração da
documentação dispersa e as observações disponíveis atualmente em pesquisa
bibliográfica. Seria um investimento em linha contrária ao das reduções
efetuadas com vistas á informatização em vários acervos institucionais desde o
fim do século XX etnográficos, mas geraria um banco de dados informatizado
com informações consistentes.
92Cunha, Dulce - História da biblioteca do Museu Nacional do Rio de Janeiro, 1863 -1973 Rio de Janeiro, Museu Nacional, 1966.Série livros,(III)
81
CAPÍTULO 2
OS PROCEDIMENTOS DE DIVULGAÇÃO DA COLEÇÃO
O trabalho do Museu no século XIX, por vezes, se confundia com o
trabalho com as coleções, mesmo ultrapassando a estas. As coleções eram o
objetivo primeiro e último dos trabalhos, inclusive aqueles empreendidos para
divulgação que hoje podem ser vistos como divulgadores de idéias e do
trabalho intelectual do Museu, a saber: Exposições, Publicações e Iconografia.
É através dessa divulgação e do quanto ela transcende as coleções que
podemos ter uma amostra das lutas internas e externas e dos ideais do grupo
de pessoas vinculadas a formação da coleção.
82
2 As Exposições
O conceito de exposição para o século XIX, com certeza, não pode ser
visto como o entendido no presente século nem no passado, pois o conceito
contemporâneo de exposição refere-se à segunda metade do século XX, com o
fim da Segunda Guerra Mundial e a criação do ICOM (Comitê Internacional de
Museus), a partir de quando foi dada importância máxima às exposições e
passou-se a esperar que as mesmas fossem a principal motivação de uma
instituição museológica. A partir daí, seria através delas prioritariamente que os
significados deveriam ser transmitidos ao público, unindo o objeto e o que se
diz a seu respeito. Dessa forma, a exposição passa a se constituir em uma
forma de narrativa cultural privilegiada, colocando em um mesmo espaço duas
linguagens irredutíveis93.
O caminho de sacralização das exposições, no entanto, foi longo. No
presente trabalho, meu interesse é focar, no século XIX, as exposições do
Museu Nacional ou o seu acervo, devido à correspondência existente quanto
às exposições universais e as nacionais, partindo-se das exposições temáticas
iniciadas no Museu, em um processo de circulação de acervo que, ao seu
término também trará benefícios ao museu e à sua coleção, além do benefício
imediato de promover maior visibilidade da instituição e de seus membros.
No século XIX, as Exposições Universais visavam ampliar vendas e
aumentar o consumo, segundo uma ampla bibliografia culminada por Plum94.
Atualmente cumpre ressaltar a dimensão de universalidade dada a partir da
diversidade de itens expostos que englobavam praticamente toda a atividade
humana e pela participação de um grande número de nações95. Essas
93Focault nos chama a atenção para a irredutibilidade do que se vê, que jamais reside no que se diz. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000s. 94PLUM, Werner. As Exposições Mundiais no Séc XX: Espetáculos da Transformação Sócio-Cultural: Bonn: Friedrich-Ebert- Stiftungs, 1979 Universais. 95PESAVENTO, Sandra J. Exposições Universais. SP. HUCITEC, 1997.
83
exposições não produziam sínteses ordenadas nem tinham um caráter
educativo; o seu caráter civilizador se limitava a dar conhecimento da
existência de novas tecnologias, embora, na Exposição Universal de Paris,
1989, tivesse lugar o Palácio das Crianças. Uma das primeiras conotações
educativas das exposições só apareceria com Boas, no final do século XIX:
“Resumindo, acredito que a função educativa de um museu do tamanho do Museu Americano de História Natural é divertir as massas, instruir o grande número de pessoas que procuram o museu em busca de conhecimento, aperfeiçoar o conhecimento daqueles que possuem uma instrução mais elevada e ajudar os que estão interessados em estudos mais especializados.” (p.359)96
Esse primeiro elemento de racionalização entre o lazer e um caráter
educativo, que se aprofunda de acordo com a disponibilidade de apreensão do
espectador, faz parte da observação natural do público e do desejo de
potencializar e dirigir tal público, ou apenas uma fatia dele, para um
aproveitamento específico, ou seja, para a transmissão de uma mensagem
“educativa“ previamente estabelecida pela instituição que planejava a mostra.
Utilizo-me desse conceito para estabelecer, a partir daí, uma diferença entre
um vago e possível projeto civilizador, presente nas exposições do século XIX
e uma ação educativa. No entanto, essa diferença, se pensada através dos
séculos pode ser enganosa, uma vez que o vago processo civilizador e o
projeto educativo possuem uma continuidade maior do que se estabelece
normalmente através de uma oposição de modelos, principalmente no caso de
uma mostra sobre indústria humana, em que a visão de outros humanos se
estabelece.
Um museu ou exposição etnográfica exerce um fascínio especial e
promete aos visitantes algo mais, uma racionalidade ordenadora, um sentido
96BOAS, Franz - As Funções Educativas dos Museus Antropológicos -in: A Formação da Antropologia Americana- Org.STOCKING, Jr. RJ: Editora Ufrj, 2004.
84
como nos lembra Oliveira (2000)97, algo que nos ajuda a entender o outro que
nos escapa. Se essa citação ajuda a compreender exposições voltadas para
um princípio mais contemporâneo de diversidade cultural também pode, de
certa forma, ser transposta para o século XIX, quando a compreensão do outro
necessariamente colocava o problema de hierarquização do outro em relação a
si próprio, ou seja, na ordenação do mundo social, se fazia necessária uma
visão de qual o local, qual o grau de sofisticação, maior ou menor, de como
esse outro seria visto em relação às pessoas que propunham a exibição.
Termos descritivos ou expositivos, como “Arte plumária”, não podem ser
naturalizados por um tratamento contemporâneo que tornou o termo quase que
conjugado, pois significavam uma flexibilidade de suporte para a categoria Arte,
normalmente ligada à categoria escultura, pintura e arquitetura, bem como a
possibilidade de colocar o indígena como produtor de arte.
Ao mesmo tempo, os conjuntos expositivos devem ser levados em
conta, por mais que pareçam ser apenas uma miscelânea colocada daquela
forma sem nenhuma intencionalidade. Os documentos para tal empresa podem
parecer escassos, mas contamos com descrições e imagens no caso das
exposições, a partir de 1861, quando temos relações e imagens mais precisas.
Temos, então, outras fontes, principalmente as descrições de imprensa, a
importância da mesma na divulgação do preparo da exposição, angariando
participações, durante o evento na divulgação e a descrição dos mesmos. Isso
foi fundamental para a coleta de dados sobre as exposições.
97OLIVEIRA, J.P.- Máscaras: Objetos étnicos ou recriação cultural - in: Os índios, nós -Museu Nacional de Etnologia- Lisboa, 2000.
85
2.1 Exposição Museu Nacional, Primórdios.
Pretendo dar conta minimamente do que foram as exposições do Museu
Nacional do Rio de Janeiro ou a ele ligadas nas décadas propostas. Pelos
documentos até agora obtidos, podemos verificar, em primeiro lugar, que aquilo
hoje denominado como exposição permanente parecia uma mistura de
exposição e o que hoje denominamos reserva técnica, ou seja, com exceção
do acervo nos laboratórios, tudo era exposto ao público. A quantidade
prevalecia sobre a qualidade e a ordenação, como vemos neste documento já
da segunda metade do século XIX:
“Doc.187 Tenho a honra de propor a V.Exa que se tire dos medalheiros todas as moedas e medalhas que existirem em número de três para cima e que sejam guardadas em deposito, convenientemente rotuladas com o nome das nações a que pertencem, mas que isso seja feito debaixo das vistas do Dr. Ladislau Netto, já que o diretor da secção acha-se ausente. Proponho mais que se tire da exposição pública o quadro intitulado Venus de Ticiano que pertence ao Sr. Drumond, do qual já tem havido diversas reclamações de alguns paes de família, que o julgam imoral pela posição indecente que o autor dá à uma de suas figuras. Museu Nacional 7-08-1868 Carlos Burlamaqui Porteiro aceito a proposta, Francisco Freire Allemão”
No entanto, precisamos nos lembrar do nosso olhar contemporâneo e
verificar que o fato de tudo ser exposto parece não ser o que propriamente
incomodava os visitantes estrangeiros, acostumados a também ver “tudo” em
seus Museus, e sim a valoração dada ao acervo e a confusão entre um
86
material nacional exposto e a pretensão de expor um acervo que, aos olhos
europeus, parecia ridículo:
“Entre os objetos que o museu expõe, alguns há que num semelhante estabelecimento da Europa, seriam talvez colocados no alto dos armários como não tendo um grau de interesse bem evidente; são eles, todavia que atraem, com mais fruto certamente, o olhar da multidão”.
O caráter de informação ao público local sobre várias as partes do
mundo, inclusive da Europa, simbolizado pela presença de um pintassilgo
taxidermizado no acervo chocava Dennis. Em seu trecho sobre o Museu
Nacional98, o mesmo não refletia sobre a possibilidade de uma arara
taxidermizada, em um museu francês, ter o mesmo efeito exótico. A reflexão de
Dennis sobre as exposições abstrai a população ávida de conhecer o mundo
europeu e seus pintassilgos. Também o faz pensar no Museu como um
arremedo dos museus europeus e de suas tendências, embora ele próprio,
Dennis, faça uma observação sobre a preferência do público por esse acervo.
As separações iniciais da exposição eram bastante abrangentes: na
parte dedicada à indústria humana, já se notava uma separação inicial entre as
brasileiras e as demais. A forma de expor era importada, como os arranjos
denominados “Tropheos”, que vão ser característica das exposições por todo o
século XIX, em várias partes do mundo, tão carregados de valores
imperialistas, já que os primeiros são assim designados nos museus britânicos,
por serem parte do espólio trazido das missões punitivas nas colônias.
A necessidade dos arranjos estéticos, no entanto, a meu ver faz parte
da ênfase necessária a ser dada nos artefatos indígenas, que deveriam ser
vistos como passiveis de contemplação estética, reforçando a noção de o
indígena e seus artefatos serem integrantes, importantes no contexto histórico
brasileiro em formação. Mesmo Coombes99, ao se referir às exposições do
século XIX nos museus britânicos, relaciona as discussões sobre arte e
98 DENNIS,F. Brasil,São Paulo: Ed. EDUSP,1980. 99 COOMBES, Annie- Reinventing África, New Havem, London: Yale University Press, 1994.
87
natureza dos ornamentos às discussões sobre degeneração, geradas pelos
objetos provenientes das expedições punitivas, diferentemente do que
denomina de um brilho estético dos materiais vindos por meio de pesquisas
antropológicas, como os bronzes do Benin. Para Price100, o caráter dos objetos
“primitivos em exposição” sempre trai uma exotização que, por vezes, pode
chegar à repugnância. A autora se refere às exposições do século XX,
empenhadas justamente em diluir esse exotismo. Ao pensarmos no século XIX,
podemos imaginar que os efeitos visuais dificilmente caminhariam para uma
não exotização dos indígenas.
Levando-se em conta o acervo do Museu, principalmente a plumária
podendo ser proveniente de coletas científicas, como a procedida pela
Expedição Langsdorff, e a filiação ideológica ao romantismo do primeiro
curador, que relatava seus cuidados para melhor expor as vestes indígenas, a
tentativa era mais próxima de dar um brilho estético, o que certamente não
eliminava o caráter de exoticidade.
“Separadas as vestes dos indígenas brasileiros das de outras regiões, ficando estas colocadas em forma de Tropheos e com um arranjo artístico, mais conveniente e harmonioso para sua Exposição ao público. O partido que se pode tirar da disposição arquitetônica da sala (...) a péssima luz que oferece o edifício, pois não foi construído para museu e nem mesmo na parte nova se procurou este meio tão eficaz e profícuo para realçar todos os objetos que aí se deviam colocar. 26 de Janeiro de 1947 Manoel de Araújo Porto Alegre”101
Um marco das exposições parece ser a dupla exotização dos
indígenas. Apesar de serem “os nossos indígenas”, eram tão desconhecidos e
exóticos como os povos asiáticos ou polinésios. Essa exotização expressa
também através da miscelânea visual que compunha os desfiles
comemorativos da época. A curiosidade e a representação desses povos pode
100 PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000. 101 PORTO-ALEGRE,op.cit.
88
ser medida por uma descrição de um desfile comemorativo transcrito por
Silva102, na Gazeta do Rio de Janeiro de 1810:
1- Carro da América acompanhado por dança de índios 2- Carro representando o império da China 3- Carro da imortalidade, dança “Heróis Portugueses” 4- Carro representando as ilhas do pacífico com índios
próprios 103
Os carros e as danças eram oferecidos por associações de negociantes
e de oficiais vários, como: pedreiro, carteiro, carpinteiro e outros, além dos
serventuários, como os do matadouro. Esses desfiles marcam dois pontos de
referência com o Museu, o primeiro por serem realizados no Campo da
Aclamação ou Campo de Sant’Ana, e o segundo por marcarem uma visão
expositiva não muito distante da presente na exposição permanente do Museu,
onde objetos indígenas, representações dos heróis portugueses e artefatos
provenientes das ilhas do pacífico conviviam, talvez com mais harmonia do que
podemos avaliar contemporaneamente.
Para melhor demonstrar o quadro das exposições, além das breves
descrições que podemos obter sobre a exposição do Museu, as primeiras
retiradas dos relatórios de Manuel de Araújo Porto Alegre, em que o mesmo
descreve os trophéus, como junções harmônicas e decorativas de um mesmo
grupo de objetos, como, por exemplo, as armas dos indígenas brasileiros,
fazendo supor que os conjuntos, até a sua intervenção na década de quarenta
do século XIX, estivessem bastante misturados. Porto Alegre havia tido uma
experiência com exposições, em sua viagem a Paris, acompanhando o retorno
de Debret, provavelmente lidou com as necessidades estéticas de uma
exposição.
Entre as primeiras notícias de preocupação interna com a exposição,
encontradas no AGMN104, vemos um pedido de planta, alternativo ao enviado
pelo Museu, visando à reforma da mesma e ao envio do engenheiro e lente de
102 SILVA, op.cit. 103 Idem 104 Doc. número 148 pasta 1840-1844 AGMN.
89
Belas Artes Grandjean de Montigny105 para sua execução. A apresentação do
anteprojeto para a reforma se dá em 1842. Ladislau Netto106, em sua
publicação sobre o Museu datado de 1870, coloca a reforma em execução no
relatório de 1844, no qual Custódio Serrão, então diretor da instituição,
reivindica sua conclusão:
“Esta harmonia que não deve achar-se na distribuição dos objetos e na forma dos armários como também na construção do edifício, (...) As três galerias projetadas na parte do edifício que se está em começo, e que são de maior simplicidade e economia, podem, de mais, concluir-se com muito pequeno sacrifício, (...)A sessão de numismática e artes liberais, arqueologia e usos e costumes das nações modernas acha-se em uma sala cujo teto ameaça ruína.”107
No relatório de 1844108, Porto Alegre também reclama do andamento
das obras, observando que pouco se avançou no trabalho com as coleções e
exposições, devido às coleções estarem amontoadas em armários e gavetas
por causa das obras, e alerta para o perigo que correm as coleções,
principalmente as brasileiras, que incluíam “desde os aborígines até a invasão
do homem civilizado e seus progressos.”
No relatório subseqüente, Porto Alegre já descreve o novo arranjo das
salas, no qual aponta que já estariam separadas as vestes dos indígenas
brasileiros dos de outras regiões, ficando as mesmas colocadas na forma de
troféus e com um arranjo mais artístico, mais conveniente e harmonioso para
sua exposição ao público, Porto Alegre atenta para detalhes da exposição,
como “a péssima luz que oferece o edifício, pois não foi construído para Museu
e nem mesmo na parte nova se procurou esse meio tão eficaz e profícuo para
realçar todos os objetos que aí se deviam”, guardadas as proporções devidas
105VAINFAS, Ronaldo.Dicionário do Império,RJ:OBJETIVA,2002 p.347. 106NETTO, Ladislau, Investigações sobre o Museu Nacional- RJ: Instituto Philomático, 1870, p.81/82. 107Idem 108Doc. Número 35 pasta 1845 AGMN.
90
às escaramuças internas da Escola de Belas Artes, da qual tanto Porto Alegre
como Montigny eram professores.
Lacerda109 data de 1856 a conclusão da parte nova do edifício
correspondente à sua ala esquerda. As salas foram pintadas pelo cenógrafo
João Ignácio da Silva Freitas, e comprados móveis da importância de 7$000
para guarnecer os salões.
2.2 Exposição Museu Nacional, 1870
O fato do reaproveitamento de prédios que acomodavam mal as
exposições vai ser o anúncio de várias situações posteriores ao próprio Museu
Nacional e à boa parte das instituições fundadas a partir de então. Temos a
descrição de Moreira de Azevedo110, da segunda metade do século XIX, sobre
o Museu como um edifício pequeno e feio. Pode-se imaginar o benefício de um
princípio de separação e uma disposição mais clara, pelo menos por algum
tempo. Na época da descrição pormenorizada de Ladislau Netto (1870), vinte e
quatro anos após o início da reforma, parecem haver novamente a
necessidade de reforma de espaço e reorganização.
No circuito descrito por Ladislau em 70, a quarta sessão se faz
representar por três salas: 7, 8 e 9, sendo priorizada no texto a sala de número
9, apresentada por Ladislau Netto de modo a não deixar dúvidas sobre a sua
importância:
109LACERDA, J. B.- Fastos do Museu Nacional, RJ, 1895. 110AZEVEDO, Moreira- O Rio de Janeiro, Sua História, Seus Monumentos, Homens Notáveis, usos e curiosidades. RJ: Livraria Brasileira, 1969.
91
“é este o salão mais importante que oferece o Museu Nacional. Digo o mais importante porque o vasto e rico gabinete mineralógico (salão n. 5) de que já apresentamos aqui um ligeiro computo, iguais e até melhores se lhe podem antepor nos museus europeus, enquanto que esse salão possui a mais completa coleção Etnográfica que jamais se viu de nossas numerosas tribos indígenas. E não somente por essa coleção o devemos recomendar aos olhos dos apreciadores, mas ainda pelas curiosidades que aí se encontrão de alguns países da América Meridional e Central.”111
Ao apresentar a sala que descreverá, Ladislau marca o que era
importante para uma exposição: expor uma coleção completa que pudesse
rivalizar com as instituições européias, apresentando o que marcava a
diferença do Império Brasileiro, seus indígenas. A ligação desse império com
as Américas meridional e central também devem ser demarcadas, em uma
época em que, como já comentamos, as antiguidades desses locais eram
subvalorizadas. Já no primeiro armário descrito o conteúdo é uma múmia
Aímara (Bolívia) e seus apetrechos, o enfoque da descrição é dado na posição
da múmia “tendo os joelhos aconchegados ao peito e as pernas enlaçadas
pelos braços”. A partir daí, faz uma referência comparativa com o que
denomina de mortos de algumas tribos do Amazonas, como os índios
“Gamellas”, por exemplo, que são conservados dentro de cofos, pondo-se-lhes
entre as pernas um cesto de com batatas, mandioca, milho e alguns utensílios
e vasos úteis.” Continua a comparação com os objetos que foram encontrados
com a múmia e colocados ao redor da mesma no armário de exposições.
Duas preocupações podem ser retiradas do texto que não trata de uma
descrição pura e simples: a primeira, uma preocupação com um estudo
comparativo que poderia levar a aspectos de revelação de uma civilização
Amazônica pretérita; e a segunda, ao manter o cesto com os pertences ligados
à múmia, a preocupação expositiva de promover um entendimento do contexto
por meio de uma pequena ambientação, o que seria usado por Ladislau
posteriormente, em 1882.
111 NETTO, Ladislau. Investigações, op. Cit.
92
O armário número dois é descrito com o conteúdo de “toda” a coleção de
antiguidades bolivianas oferecidas, em 1868, ao Museu Nacional, pelo
conselheiro Lopes Neto, então em missão diplomática na Bolívia. Entre objetos
de couro, fac-símiles de um calendário e de um ídolo, não se descreve a
quantidade dos objetos apenas, “muitos outros artefatos que longo fora
enumerar aqui”. Note-se a presença de cópias, apontando para uma
característica da coleção de acervo estrangeiro, incluindo o das Américas, que
se formou no Museu. Nessa coleção, peças com a importância das múmias
conviviam ao lado de outras com um caráter que viria a ser denominado no
século XX, como turístico, mas que já pertenciam à coleção do Museu no
século XIX.
No armário número três aparecem: ornatos plumários (indicados como
atavios de guerra), e cabeças troféus dos índios Mundurukú, colares Wapixanã,
peças sem descrição de grupo e artefatos trançados dos Uaupés. Verificamos
que os troféus de vestimentas, produzidos por Porto Alegre, foram postos em
vitrines de grande mistura e quantidade de materiais, seguindo-se o mesmo
arranjo no armário de número quatro.
No armário número quatro, encontrava-se um conjunto delimitado por
função: os instrumentos musicais de vários grupos. Junto à descrição dessa
vitrine, encontrava-se a observação sobre a estadia, no Museu, de três índios
de um grupo de Goiás, que tocaram os instrumentos que se supunham ser de
guerra e, segundo os mesmos, eram de festa e provocaram enlevo pela
maestria e principalmente pelo fato de as pessoas do Museu não conseguirem
tirar nenhum som de tais instrumentos. Aos poucos, junto com a descrição dos
armários, Ladislau Netto vai focando interesses e classificações. É interessante
o fato dos instrumentos musicais indígenas se formarem enquanto categoria já
nesse momento, uma das categorias em reserva mais fácil de ser identificada e
mais estudada ao longo do século XX. A própria presença de sons musicais e
principalmente sons capazes de provocar enlevo em tal época é bastante
sintomática de uma positivação do elemento indígena.
Mais curioso ainda é vermos a longevidade das práticas de visita de
indígenas ao Museu e o contato com seus acervos, sendo essa uma
93
característica que seria mantida ao longo do século XX. Pode-se inclusive
alegar o fato da presença desses índios ter como objetivo as primeiras
pesquisas de Atropologia Física, para que se fizessem medidas comparativas
para um quadro racial. No entanto, o fato de terem contato com seus artefatos
e opinarem sobre os mesmos e principalmente de ser narrado é bastante
importante para uma função da coleção do Museu na relação entre os
indígenas e as pessoas que formavam o seu corpo administrativo.
No armário de número seis, os conjuntos de instrumentos de caça e
guerra e outros ornatos festivos formam um conjunto definido pela procedência
“Valle do Amazonas”, com a descrição dos artefatos dos índios Uaupé, Tukano,
Boré e Tecuna. Provavelmente eram provenientes da recente coleção da
Comissão Científica, 1861, fazendo com que o acréscimo de peças na década
de 60 do século XIX na exposição fosse significativo, levando-se em conta
também as antiguidades bolivianas (1868).
No armário de número sete, prossegue a descrição de artefatos do “vale
do Amazonas”, mudando os grupos para Juma, aos quais são atribuídos três
crânios que se supõem serem, entre eles, de um português e de uma
brasileira, ambos recentemente assassinados e devorados pelos mesmos.
Aparece aí a marca das preocupações temáticas da época: o canibalismo,
como veremos na parte das publicações relativas à Exposição Antropológica, o
acervo vai tendo um destaque expositivo à medida de sua ligação com os
temas da época. No mesmo armário, vemos uma descrição do que é
denominado como cópias de artefatos em argila, entre os quais menciona uma
bacia e um jarro pintado que dizem feitos pelos índios aldeados da grande e
famosa tribo Mura. O cuidado de afirmar a procedência indígena nesse caso
também aponta para o apuro técnico da cerâmica que provavelmente integra,
no registro geral, o grupo genérico de louça dos índios civilizados, misturando
várias procedências possíveis e formando uma só categoria. O armário parece
conter uma anteposição barbárie x civilização, pois no mesmo se encontram os
crânios jumas e as louças dos índios aldeados.
Nos armários de número 8, 9 e 10 seguem as curiosidades indígenas
sem computo de quantidade. No armário 11, vemos o destaque para uma
94
pratele ira com uma coleção de figuras em guaraná e em borracha,
provavelmente a coleção de esculturas de animais feitas pelos Mawé. O
armário doze continha o que podemos chamar de miscelânea arqueológica
com “pedra extraída do antigo palácio de Cristóvão Colombo, uma coleção de
arqueologia da Escandinávia, um modelo de gesso com inscrição em língua
latina encontrado nas escavações urbanas dos tempos coloniais.”, aproximada
do que hoje seria denominado de Arqueologia Histórica.
Prosseguem as curiosidades indígenas, no armário 13, com destaque
para a luva de tocandira, componente de um rito de passagem que vai
despertar atenção e a curiosidade por demonstrar a coragem exigida para que
um índio fosse considerado um homem ou um guerreiro indo de encontro aos
ideais românticos da época. No armário, o destaque é para a enorme e
horrenda “máscara Tecuna, descrita com minúcias de materiais: tecida de
cipós, besuntada de breu, com olhos de vidro e espelho e coberta por uma
cabeleira de fibras vegetais”.
Seguem os armários 15 e 16 com o acervo preponderantemente dos
índios do Amazonas. Destaque para o retrato do jovem Apiacá, realizado em
1826 por Henrique José Dias. No Doc.N.74. AGMN, temos uma idéia da
procedência do quadro e do seu significado: “Sua Majestade o Imperador
manda remeter a cópia do retrato de José Saturnino Jurucuariary, chefe dos
índios Apiacaz com uma sucinta explicação de esclarecimento”. José Saturnino
Juruciaricy, chefe dos índios Apiacaz, na província de Mato Grosso, na ocasião
em que se apresentou ao Presidente da Província, oferecendo seus serviços
ao Império em 1826, depois de já ter aldeados mais de 10 mil indivíduos
daquela nação nas margens do Rio Arinos e estabelecido plantações
comestíveis, de grande utilidade para os condutos que vão do Alto Paraguay
Diamantiana à província do Pará. Deu-se-lhe a patente de capitão dos Índios
da aldeia de Tacuara, em setembro do mesmo ano. Quarenta e poucos anos
após a oferta, temos o quadro na exposição do Museu, como uma imagem do
indígena, escolhida provavelmente pelo suporte e maestria do trabalho, mas
também por representar um índio participativo e integrado ao Império. O texto
de Ladislau indica:
95
“Aquele rapaz fez-se nosso aliado e batizou-se com o nome do presidente da província do Mato grosso, José Saturnino, depois senador do império, e que lhe serviu de padrinho. Esse retrato em que lê se acha tal qual se apresentou ao dito presidente, em 1826, com todos os seus distintivos e ornatos de festa e de guerra, é trabalho de José Henrique Dias, o primeiro diretor da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro”.112
No armário dezessete, estavam expostas as divindades indianas,
aproximadas por Ladislau às divindades gregas, que comenta ter “Krichanna
alguma coisa das façanhas de Hercules e Apollo”. O armário também continha
algumas peças chinesas, além do modelo em bronze da mão do Imperador,
feito em 1840, e uma espingarda em madrepérola. Entre este último armário e
o primeiro ficaria o medalheiro.
O salão de exposição é descrito como uma galeria longa com oito
pilastras (de ferro fundido) no compartimento central, criando um quadrilátero
central onde se encontravam três belas estatuas originais do escultor Fernando
Petrich, de 1845. A descrição dessas estátuas feita por Ladislau é digna de
observação bastante cuidadosa:
“Estas estatuas representam: o Brasil, na figura de um jovem índio, garbosamente adornado de penas e armado para guerra ou para caça; Portugal, personificado n’um robusto e altivo cavalheiro da idade média; e a França, na figura de Napoleão primeiro, sentado e meditabundo, sobre um rochedo, tendo junto de uma guia acorrentada e um livro meio aberto pelo dedo indicador como se lhe marcasse a pagina que o faz cismar. Apoiada no pedestal vê-se uma canoa indígena denominada ubá”. 113
A descrição visual de um Brasil com o elemento indígena, o elemento
português e o francês, representado por Napoleão, é naturalizada por Ladislau.
Com curso no Jardim de Plantes em Paris, correspondendo a uma visão de
época, sua interpretação de um conjunto expositivo pode ser próxima de como
um determinado segmento da população do Império se imaginava, não
112 Idem 113 Idem.
96
diretamente como descendente, mas como uma inspiração na nação francesa.
“Próximas ao medalheiro, estátuas e bustos e outras curiosidades”,
assim Netto descreve peças históricas. Ladislau Netto vai terminar sua
descrição com um libelo por uma reforma com a exclusão de objetos históricos
e artísticos. “Além disso, muitos anos provavelmente se há de passar sem que
esses objetos sejam convenientemente colocados onde melhor lhe devam
ficar. Se é que para fora do Museu não os transferir alguma justa e
conseqüente reforma”.
Digno de nota é o fato do material da África, podendo ser proveniente da
África ou dos africanos do Brasil, já citado no capitulo anterior, se encontrar na
sala de número sete, junto com os objetos de Madagascar, Nova Caledônia,
Ilhas Aleutas e Ilhas Sandwich. A Àfrica na exposição permanente estava
distanciada de qualquer composição do Brasil, exemplificando um fator
apontado por Domingues114 sobre a discussão de época, visando à imigração
como se a formação do povo brasileiro ainda fosse uma questão de escolha. A
população mais representativa seria reservada aos “nossos mais diversos
autóctones”, exemplificado inclusive como o acervo principal da área de
indústria humana. É particularmente através dele que o Museu irá se
representar nas exposições nacionais e internacionais.
114 DOMINGUES,H M Bertol- A Noção de Civilização na Visão dos Construtores do Império, RJ:Dissertação de mestrado em História, UFF, 1989
97
2.3 Exposição Nacional de 1861 e Exposição Universal de Londres 1862
Sobre as exposições nacionais e internacionais e a participação do
Museu, escolhi fazer uma breve análise um bloco de exposições interligadas,
executadas no ano 1861/1862:
- Exposição de Artefatos provenientes da província do Ceará,
Museu Nacional;
- Exposição Nacional de 1861;
- Participação brasileira na Exposição Universal de Londres 1862.
O diferencial dessa mostra é a composição de um acervo que parte de
uma pesquisa planejada. A Comissão Científica do Império, ainda que a
coleção chega diluída à mostra final em Londres. Podemos acompanhar os
sucessos e fracassos da constituição da formação desse acervo a partir dos
relatos da Comissão Científica do Império que formou a maior parte do que foi
exposto pelo Brasil, ganhando, então, visibilidade nas exposições
internacionais.
Sobre a Exposição de Artefatos provenientes da província do Ceará,
existem as seguintes notícias: uma delas publicada por Moreira de Azevedo115,
que nos descreve como sendo a primeira exposição de indústria que houve no
Rio de Janeiro e se deu em um dos salões do Museu Nacional, de sete a
quinze de setembro de 1861, com produtos naturais relativos à indústria, usos
e costumes da província do Ceará colecionados pelo Dr. Manoel Ferreira
Lagos, em suas excursões naquelas províncias, na qualidade de membro da
Comissão Científica do Império enviada às províncias do Norte. Desse ensaio
de exposição, nasceu a idéia da grande Exposição de dois de dezembro de
115AZEVEDO, Moreira- O Rio de Janeiro, Sua História, Seus Monumentos, Homens Notáveis, usos e curiosidades. RJ: Livraria Brasileira, 1969. Moreira de Azevedo, O Rio de Janeiro e suas Histórias
98
1861. Exageros à parte, a exposição de produtos do Ceará vai funcionar como
uma prévia e terá seu material incorporado à primeira Exposição Nacional.
Temos um relato mais extenso da mesma, através do Diário do Rio,
segundo Braga116, através dessa a exposição promovida por Manuel Ferreira
Lagos, que irá integrar a comissão da primeira Exposição Nacional. A notícia
começa indicando as dificuldades que Manuel Ferreira Lagos sofreu durante a
coleta do acervo:
“Consta-nos a esse respeito a insistência de Dr. Lagos foi capaz de conseguir... pediu ele a cama em que dormia de passagem quando oferecia alguma coisa de curioso, essas camas eram sempre redes, mas a vergonha dos habitantes em vender ou fabricar iguais fazia com que ele não quisesse perder a amostra que deparara”117
A descrição confere com um conjunto de redes no catálogo das
Exposições Nacionais e de Londres, na última, com algum destaque e uma
descrição mais aprofundada. Esses artefatos vão ser os formadores da coleção
de etnografia regional da quarta sessão e, mais tarde, do Setor de Etnologia do
Museu Nacional. A exposição de produtos do Ceará vai dar conta de produtos
naturais e industriais, seguindo a norma de classificação de época.
Na parte descrita como natural, tem destaque a coleção de abelhas e
seus produtos: “dezoito qualidades de mel e sua cera”. Além do mel, temos
classificados, como natural, pássaros, resinas, gomas, amido etc.
O conjunto relativo à carnaúba e seus produtos é um dos exemplos de
junção do natural e da indústria, sendo descrito como: ”A Carnaubeira que há
na Exposição amostras de tronco, de palha e de seus produtos; como abanos,
esteiras e urus, cestas e chapéus, assim como velas de cera que suas folhas
produzem”.
A renda e os crivos de Aracati, que mais adiante veremos ser tratada
como produção indígena na iconografia, foram expostos em grande variedade:
116BRAGA, Renato- op. cit 117Idem
99
“Os crivos de Aracati distinguem-se pela variedade de pontos, como seja o
cerzido de susto, o papelote de seda”. Lagos segue descrevendo que, em
Aracati, era muito difundido o trabalho de rendas em almofadas.
Na exposição também estava uma vestimenta completa de vaqueiro,
com seu chapéu, gibão, guarda peito, perneira, luvas e peia-boi, montado na
sua cela, armado de vara e ferrão com bainha, representando o homem do
sertão para o serviço. Essa representação do sertanejo precede a descrita por
José de Alencar e a presente em tipos regionais subseqüentes e vai estar na
mostra permanente do Museu Nacional durante o século XX.
A exposição se completa com destaques para cerâmicas e esculturas
em madeira produzidas em Inhamum, além de modelos de jangadas e
embarcações do Ceará. Pode-se visualizar um roteiro que será bem próximo
às exposições regionais e de folclore: redes, rendas, cerâmicas, esculturas em
madeira e cestos, além de uma primeira visão de um tipo que seria, nos anos
subseqüentes, consagrado como o sertanejo, que vai se unir à pintura do
vaqueiro de Reis de Carvalho, descrita na parte de iconografia. Manuel Ferreira
Lagos, com sua coleção que, em grande parte, se encontra hoje no Setor de
Etnologia e sua subseqüente exposição, cumpre uma etapa que vai se
encadear na Exposição Nacional e na representação do Brasil na Exposição de
Londres, ajudando a compor, através dos objetos, uma imagem da nação que
seria mais tarde transformada em verdadeiros ícones do Ceará e do Brasil.
A primeira Exposição Nacional, realizada em 1861, foi precedida de
várias coletas nas províncias. Já no primeiro capitulo, mencionamos a coleção
recolhida por Gonçalves Dias; cumpre mencionar ele ter chefiado uma equipe
que coletou os produtos naturais e industriais de praxe então: mineralogia,
botânica e especialmente amostras de madeiras, óleos resinas e alimentos.
O destaque dado a essa coleção pelo número de espécimes e variedade
fez com que a mesma constasse em um anexo no catálogo da Exposição de
1861, além do atraso de seu envio, devido aos percalços enfrentados por Dias,
a partir da sua nomeação pelo presidente de província do Amazonas. Dias,
responsável direto pela sessão de Etnologia narra assim seus percalços:
100
“Exposição de produtos naturais e industriais.(Manaos) No curto espaço de 11 dias, que tantos contam hoje foi preciso escolher, recolher, catalogar e acondicionar todos os objetos destinados à exposição- isto em uma terra pequena e sem recursos, numa província vastíssima de território, rica e variadíssima de produtos e com comunicação tão lenta”.118
Com toda falta de tempo e recurso, Dias transformou a participação do
Amazonas em uma participação bastante especial, rivalizando com a
participação do Ceará e a do Museu Nacional. Manuel Ferreira Lagos, além de
ser membro da mesma Comissão do Império, era também seu colega na
Secretaria de Negócios do Império e membro do Instituto Histórico e Artístico,
na época bem freqüentada por Dias.
Através do catálogo da Exposição, publicado em 1862 pela Tipografia do
Diário do Rio de Janeiro, temos notícia de que a Primeira Exposição Nacional
durou cinco dias e teve como presidente O Marquês de Abrantes. Entre os
membros da comissão, figuravam o Barão de Mauá (Sociedade de Apoio à
Indústria) e Frederico Cezar Burlamaque, diretor do Museu Nacional na
ocasião. O decreto-lei de sua nomeação se encontra no AGMN, bem como
documentação esparsa referente à mostra, como a aceitação de Carlos
Gomes, então um jovem maestro, para compor o hino a ser executado na
abertura da mesma. A composição de um hino demonstra a importância do
evento. Para termos uma idéia do que era esperado de uma mostra, temos a
comparação de André Rebouças119 em seu diário , sobre a abertura da
Exposição de Viena em contraste com a Exposição de Londres, sendo a
ausência de Musica um dos tópicos. A composição de uma música,
encomendada para a abertura, marca a solenidade do evento.
A mostra se realiza no prédio da Escola Politécnica, antiga escola
Central e atual IFCS. Além do hino, podemos ter uma idéia da solenidade pelo
cerimonial de abertura planejado com antecedência e descrito no catálogo, no
118DIAS, G- Relatório in Relatórios da presidência da província do Amazonas in Gonçalves Dias na Amazônia org. Montello, Josué Rj: ABL,2002. 119REBOUÇAS, André- Diário e Anotações Autobiográficas. Rj: Livraria José Olimpyo Editora,1938.
101
qual temos uma amostra privilegiada do comportamento da sociedade da
época à abertura da exposição: as pessoas convidadas deveriam chegar uma
hora antes do designado a SSMM e AAII, vestidas segundo a etiqueta do paço
em dia de gala. A entrada terá lugar pela porta dos fundos, ao lado do teatro.
Pelas portas da frente, destinadas às entradas de SSMM e AAII, só serão
admitidas pessoas em serviço que vierem em coche da casa Imperial. Meia
hora após a retirada dos augustos senhores, será franqueada a entrada pela
porta da frente a todas as pessoas decentemente vestidas.
As informações nos localizam de que sociedade estamos tratando, uma
sociedade de corte120, com suas regras conhecidas e difundidas. Um traje de
gala do paço imperial era um código conhecido; a prevenção com aqueles que,
por ventura, pensassem em burlar as regras também é clara, ao se estabelecer
qual o transporte que seria aceito para as pessoas com direito à entrada
principal; e o fato de as exposições serem abertas a pessoas decentemente
vestidas também implicava um código de época presente em todas as regras
de exposição pública.
A essas regras seguem-se as de uso durante a mostra, o horário de
abertura das dez da manhã até as três da tarde. Os bilhetes de entrada que
custarão 1$ réis para cada pessoa, nos dias de domingo e quinta-feira, e nos
demais 500 rs. As regras de comportamento geral: será permitido conservar
chapéu; não será permitido entrar de bengala e guarda-chuva, furar e tocar nos
objetos expostos; os visitantes serão responsáveis pelos danos causados aos
objetos expostos.
Pode-se constatar, pelas normas, um conjunto de regras de convívio
social entendido pelo grupo franqueado a freqüentar a exposição, que se
estende também a ter como pagar o ingresso. As regras vão desde o traje até
o comportamento considerado danoso, bem como os apetrechos danosos,
como bengalas e guarda-chuvas, e a preocupação com o não tocar os objetos,
o que fará parte de uma cultura de como assistir uma exposição ou, pelo
menos, a maior parte das exposições por bastante tempo a seguir.
120 ELIAS, Nobert. A sociedade de corte- Lisboa: Estampa, 1987
102
O próprio estabelecimento de regras de conduta, faz com que a
exposição demonstre um caráter “civilizador”, como se comportar, como treinar
o público, que veremos presente nas litografias da mostra, para participar da
forma esperada, sem causar danos aos materiais expostos e, de certa forma,
também um treino de apreciação, sem toque, mesmo como aparece pelas
litografias nos materiais mais à mão, mais sedutores a uma investigação de
textura pelo tato. A idéia de se dominar uma vontade e abstrair textura, tão
naturalizada, estava em fase de construção.
As imagens litografadas por Henrique Fleiüss e publicadas pelo Instituto
Artístico contribuem para uma análise da exposição dos objetos de indústria
humana na mostra. O caráter diferenciado das exposições dessa indústria,
como, por exemplo, da mostra de pintura e da de etnologia nos salta aos olhos.
A sala de modas e pintura é retratada no todo, com vitrines, visitantes, bancos
em frente às telas, para maior conforto na observação, todo um aparato que,
para a época, demonstrava civilização, usado aqui como termo nativo. Os
visitantes quase que se confundem com os manequins das vitrines e, com
certeza, vêem na mostra um espelho de seu mundo ou uma aspiração de um
ideal a ser conquistado, fruição contemplativa diante das telas, realizada
placidamente em bancos ou em pé para retratar a sala.
Fazendo pensar em termos de um comportamento ideal esperado para
os espectadores da mostra, exposto pela litografia, em um primeiro plano. Essa
gravura não é realizada para documentar o que estava exposto, mas sim o
espaço do salão e a disposição do público, com um certo destaque para a
presença de senhoras, um dos índices de mostrar a civilização da corte, a
presença de público feminino em locais públicos, principalmente em uma sala
tão adequada como a de modas e pinturas. Podemos observar em um primeiro
plano que a figura masculina segura a cartola com as mãos, embora algumas
outras, logo atrás, a mantenham sobre a cabeça e a figura feminina porte
chapéu, o traje dos visitantes retratados é composto por uma formalidade que
vai um pouco além do que contemporaneamente imaginaríamos como
decentemente vestidas, dando a medida de qual traje se esperava ao elaborar
tal regra :
104
Já a imagem do material indígena revela a imagem do troféu descrita
por Porto Alegre, Nela, vemos uma mistura de acervo onde o caráter estético
do arranjo final é valorizado em detrimento do seu conteúdo. Mal se podem
localizar os objetos individualmente e temos todos sobre a legenda de armas,
mesmo objetos de uso cotidiano, como bancos e cestos, e de uso ritual, como
o sairé121. Não existem vitrines, aparentemente os objetos estão dispostos no
chão e na parede. O foco da litografia não é o de uma vista geral da sala ou do
público, mas documentar o acervo e a disposição do conjunto. No entanto,
convém realçar que o próprio fato de o conjunto ter sido litografado dá uma
medida da importância do material para a exposição.
A preocupação de Gonçalves Dias com a identificação dos objetos e a
descrição minuciosa de alguns deles se perde em um conjunto de coisas
perfeitamente identificáveis, como remos, bancos e raladores, que se
confundem com outras de compreensão mais complexa, como, por exemplo,
as lanças Muruku-Maraká122, descritas e contextualizadas por Dias. A
composição do conjunto mistura adornos de penas que perdem sua visibilidade
e parece estar longe do conjunto harmônico descrito por Porto Alegre ao
mencionar o troféu de vestimentas indígenas. A mistura de procedências, a
generalização dos objetos e o titulo genérico de indígenas do Amazonas dão
conta de como os esforços de Dias foram empregados.
Na parte central do conjunto, podemos ver um remo pintado por índios
aldeados com a coroa imperial ao centro, ladeada por ramos de café, sua
colocação central, encimado pelo sairé que, por sua vez, é encimado pela cruz,
mostra em um conjunto indígena o respeito pelos valores vigentes na corte,
através de dois de seus símbolos mais relevantes, a coroa e a cruz. Ou seja,
uma demonstração das possibilidades de submissão dos indígenas á Igreja
Católica e a Monarquia.
121Sairé- Adereço usado nas procissões do Rio negro, reprenta uma espécie de frontão de igreja vazado, encima do por uma cruz,com estrutra em madeira , recoberta por algodão cru. 122Lança-chocalho dos Tukano. Esculpida em uma longa vara de madeira, aguçada na parte inferior de onde vem a denominação “lança”. Fendido o lenho longitudinal e aquecido, forma uma cavidade onde são inseridos fragmentos de calcedônia.resfriada a madeira, a intumescência permanece mas prende as pedrinhas no seu bojo,formando o chocalho que antecede a ponta aguçada. Verbete dicionário do Artesanato Indígena. Berta Ribeiro,p. 203
105
Fig. 5 Troféu de Armas dos Indígenas do Amazonas Primeira Exposição Nacional, 1862 Litografia, acervo BMN
106
O conjunto de objetos de procedência do Ceará litografado foi
denominado de produtos da carnaúba, proveniente do Museu Nacional e muito
provavelmente feito à maneira da Exposição dos produtos do Ceará, no MN,
por Ferreira Lagos, em um resumo do conjunto inicial, elaborado pelo próprio,
que participou tanto da comissão quanto da execução e montagem da
Exposição Nacional.
Fig.6 Troféu da Carnaúba Primeira Exposição Nacional, 1862 Litografia, acervo BMN
O troféu da Carnaúba possui menos elementos do que o indígena,
facilitando sua clareza e compreensão, igualmente ampliada pelo fato de todos
os objetos pertencerem, de algum modo, ao mesmo assunto do titulo, sejam
produtos “naturais” sejam os de “indústria”. Podemos identificar uma idéia de
107
natural, absolutamente construída, através da representação da palmeira da
carnaúba emoldurada e de seus produtos recortados e produzidos para indicar
possibilidades de beneficiamento. O conjunto se apresenta tendo como ponto
de fundo uma manta tecida; figuram, entre os itens colecionados no Ceará,
mantas e teares. No centro do conjunto, vemos três bases formando uma
espécie de altar no centro do qual se encontra o quadro com a reprodução
iconográfica da palmeira da carnaúba. Na prateleira, logo acima, formada pelo
uso de bases com tamanhos decrescentes, aparecem vários vidros
provavelmente contendo ceras e resinas; no andar de cima, encontram-se
pequenas peneiras e cestos; mais acima, um vidro de proporções maiores que
os anteriores precede uma cestaria. As bases são encimadas por um chapéu
trançado, formando uma espécie de moldura que arremata o conjunto. Vemos
dois ramos da palmeira e um cortinado onde se encontram dois abanos e dos
quais descem, pela lateral, várias cordas trançadas. Esse conjunto é encimado
por duas esteiras, tomando a forma de um frontão neocolonial. Nas laterais,
vemos conjuntos de chapéus e cestos e, em frente, a composição principal,
colocados no chão os artefatos utilizados no beneficiamento da carnaúba.
Para finalizar, vamos mencionar a premiação da exposição. Na
distribuição de medalhas, a Comissão Diretora da Exposição da Província do
Amazonas foi premiada sem menção ao nome de Gonçalves Dias. E quanto à
premiação relativa aos materiais que figuraram na exposição da Província do
Ceará, as medalhas foram dirigidas aos doadores do material de várias
localidades, como Aracaty.
108
Exposição Universal de Londres, 1862
Na exposição universal de Londres de 1862, o Brasil se representa
como unidade, misturando os estilos regionais e indígenas. As Exposições
Universais são objeto de vários estudos e a sua definição está sempre filiada
ao progresso e à civilização, como vemos em Neves123, a qual reforça a idéia
de uma necessidade de demonstrar o progresso e pertencimento à civilização.
Outra necessidade era a de demonstrar uma unidade, misturando estilos, para
se chegar ao modelo nacional. Ou seja, mostrar as nossas características
“naturais”, através dos produtos agrícolas e dos artefatos indígenas, em
conjunto com as produções da “cultura civilizada”, como podemos visualizar na
fotografia da representação brasileira na exposição. A descrição dos artefatos,
enviados no catálogo próprio124, da Exposição nos dá conta da diminuição do
artesanato indígena e do destaque dado às redes do Ceará e ao Fumo do
Amazonas.
Fig. 7 Pavilhão brasileiro na Exposição Universal de Londres,1862 Fotografia Litografada, acervo BMN
123NEVES, Margarida de Souza. Uma Arena Pacífica. In Revista Gávea ( N0 5 ,1998). Rio de Janeiro: PUC/RJ, 1998. 124Catálogo Geral de Produtos Remetidos para a Exposição de Londres: Typografia de A. Witting. 1862.
109
A mistura parece próxima da descrição da exposição do Museu
Nacional, em seus primórdios. No entanto, o acabamento das vitrines e da
forração das bancadas segue uma tendência neoclássica, as bancadas laterais
possuem paredes forradas onde se encontram diversos tipos de objetos, de
fios de penas a redes, quadros com iconografia variada, botas, peles e rolos de
fumos e cordas, procurando uma composição decorativa harmônica, sem
nenhuma intenção de contextualização. No conjunto, aparecem pequenas
vitrines nas bancadas e, ao centro, existe um conjunto de vitrines baixas em
cuja parte central aparece uma bancada, apenas parcialmente visível, com
vidros de produtos já citados, óleos, resinas e etc. (vidros esses ainda na
coleção do Museu - Setor de Etnologia). O resumo brasileiro decorado com
tendências à harmonização é centralizado por bandeiras unidas pelo emblema
com o diagrama do Imperador: P II, encimado por um frontão em arabescos
com o Nome “BRAZIL”, em letras recortadas, finalizado pela coroa imperial,
colocado acima do bandô que arremata todo o espaço expositivo.
O resumo expositivo possui uma unidade em destaque, a nação
brasileira, e é representada, enquanto Império, pelo monogramo de seu
imperador e pela coroa imperial, os retoques harmônicos são condizentes com
o gosto da época e conseguem situar o exotismo das redes e peles dentro de
um quadro imperial ou pelo menos de uma moldura imperial proporcionada por
elementos, como o bandô, a forração e o mobiliário de bancada, utilizados
para uniformizar um material tão diverso.
Através do diário de André Rebouças125, que presenciou a exposição
de Londres e a de Viena em 1873, dirigida por Varnhagem, na ocasião já Barão
de Porto Seguro, a Exposição de Viena comparada com a de Londres não
tinha nenhum caráter civilizador. Quanto aos materiais indígenas no Catálogo
da Exposição, não existe menção a artefatos indígenas e a plumária foi
substituída por flores de penas da florista Natte, que acompanharam os Barões
da Comissão até Viena, segundo relato de Rebouças, o que, de certa forma,
vem a corroborar as idéias de Varnhagem, exploradas em suas obras.
125REBOUÇAS, André- Diário e Anotações Autobiográficas. RJ: Livraria José Olimpyo Editora,1938. p. 237 / 242
110
2.4 Exposição de Filadélfia 1876
Em Filadélfia, em 1876, a Exposição Universal tomou um caráter
marcadamente americano e industrial. Nessa Exposição, o Império se mostra
presente tendo o próprio Imperador, D. Pedro II, se encarregado de ciceronear
a exibição brasileira no dia de sua inauguração, como vemos em notícia do
Herald126, transcrita por Guimarães127
“Quando sua Exa atingiu a sessão do Brasil, entretanto houve uma pausa maior. O presidente, o Imperador e as senhoras entraram na sessão e ai permaneceram alguns minutos. S. M. revelava com garbo ao presidente e a Mrs. Grant a significação dos produtos exibidos pelo seu país, flores, tecidos de penas de pássaros, ricas e belas madeiras talhadas e esculpidas em formas primorosas”128
O Brasil, nessa exposição, se apresenta com destaque para o café,
tendo mesmo montado um café com o nome de Café Brasil para apreciação da
bebida. Apesar do toque exótico dos produtos descritos acima, a ênfase
brasileira se deu no Hall da agricultura do qual podemos mostrar uma imagem.
No Hall, o algodão e o café dominam formando uma decoração com vistas a
impressionar, arcos revestidos com rama de algodão natural e uma torre
composta por vidros, contendo o fruto do café, são os elementos dominantes.
Também em destaque, há uma lista da produção agrícola encimada pela coroa
imperial onde se veem, como os principais produtos nacionais, o café, o açúcar
e o tabaco. 126Jornal americano que acompanhou a visita de D. Pedro II aos E.U.A, mandando um emissário para acompanhá-lo desde a saída do Rio de Janeiro 127Guimarães, Argeu- D. Pedro II nos Estados Unidos. RJ: Editora Civilização Brasileira. P.231 128Idem
111
Fig. 8 Exposição de Filadélfia, 1876. Pavilhão Brasileiro. Foto, acervo BN
Algumas máquinas ficavam confundidas no poscênio. André Rebouças
aparece como auxiliar técnico da exposição, no entanto não participa da
montagem do evento. As máquinas ficam em segundo plano e a imagem da
matéria-prima domina a cena. A preocupação da comissão brasileira em
demonstrar um caráter científico, embotada no exotismo dos produtos
mencionados pelo jornal americano, como flores e penas, não é corroborada
pela descrição brasileira. O Herald prefere deixar todo o cunho científico a
cargo do Imperador, elogiando a sua demonstração de ser um homem de
conhecimentos científicos profundos, durante a visita ao Instituto Smitsoniano.
Na descrição brasileira do relatório da exposição, no entanto, aparece um item,
o XVII, no qual está descrita a Exposição Científica, dividida em Comissão
Geológica e Coleção do Museu Nacional.
Na verdade, o presidente da Comissão Geológica por essa ocasião era
o diretor da Sessão Geológica do Museu Nacional, Carlos Hartt. Segundo
112
Freitas129, um dos argumentos que motivaram a criação da Comissão
Geológica do Império foi a possibilidade de que os trabalhos dessa comissão
servissem como base para a representação da natureza brasileira no estande
nacional. A contribuição de Hartt para o evento foi decisiva; além de organizar
a sessão dos minerais do estande brasileiro, cedeu fotos de Marc Ferrez,
fotógrafo da Comissão. Pela primeira vez, foram expostas as fotos dos
Botocudos, acompanhadas por réguas de medição que seriam expostas
também na Exposição Antropológica de 1882, no Museu Nacional e na
Exposição Universal de Paris em 1889. As fotos de natureza que se
destacaram foram as da Cachoeira de Paulo Afonso. Vemos um Brasil inserido
em instrumentais modernos, como a fotografia.
Quanto à coleção do Museu Nacional, preparada por Ladislau Netto um
dos quinze membros adjuntos da Comissão, é tida como uma das mais
notáveis e, ao mesmo tempo, um dos grupos mais curiosos da exposição no
seu geral. A coleção de Arqueologia Brasileira, exposta em dois grandes
elegantes móveis e representando, segundo o catálogo, todas as formas
conhecidas da idade da pedra polida da América, são pequenos vasos da ilha
de Marajó, artisticamente esculpidos e moldados. Além da coleção
arqueológica e de artefatos etnológicos englobados na notícia, surge uma
referência, a coleção de numismática.
129FREITAS, Marcos Vinícius. Hartt,Expedições pelo Brasil Imperial, 1865-1878. SP:Metalivros,2001
113
2.5 Exposição Antropológica, 1882
A partir de uma propaganda ativa do interesse do Império do Brasil
pela Ciência, Ladislau Netto começa a fazer planos para uma Exposição
Antropológica Brasileira, idealizada para 1879 e levada a cabo em 1882.
Quando o Ministro da Agricultura, que ocupou, no mesmo ano e no precedente,
a pasta da Fazenda e o cargo de Primeiro Ministro, deu o apoio do governo
para a realização, esse Ministro, José Antônio Saraiva, foi um dos ministros
responsáveis pela realização da primeira Exposição Nacional em 1861, quando
era responsável pela pasta de Negócios do Império.
Datam de 9 de janeiro de 1881 os primeiros documentos constantes no
AGMN relativos às providências referentes à Exposição Antropológica prevista
para o início de 1882, e que seria adiada para 29 de julho do mesmo ano. Em
Abril de 1881, começam a chegar ao Museu às primeiras doações relacionadas
à exposição. Um ano e meio de preparação é um tempo considerável e
demonstra bem o tamanho do investimento.
A partir de 1881, começam os investimentos com viagens aos grupos
indígenas e escavações. Efetivamente Ladislau Netto vai ao Pará ultimar os
serviços e participar pessoalmente da coleta entre os Tembé e das escavações
Arqueológicas.
O Museu fecha as portas dois meses antes para a preparação da
exposição, que é acompanhada passo a passo pela imprensa. No dia primeiro
de junho, começa a montagem das oito salas do pavimento superior do Museu.
As imagens divulgadas na imprensa130 começam nas escadas ladeadas com
fartos grupos de folhagens e arbustos. As plantas ambientavam e preparavam
o visitante para a entrada em um mundo diverso do seu.
130 Jornal do Comércio, Gazeta de Notícias, O globo e Revista Ilustrada.
114
Subindo a escada, chegava-se primeiro à sala Vaz de Caminha, numa
referência ao primeiro cronista a relatar a vida dos indígenas brasileiros. Nesta
sala, ocorria a maior uniformidade de acervo, um grupo de objetos
manufaturados em madeira e ornados em troféus harmônicos, que, olhados a
distância, pareciam uma composição de formas redondas (remos) com formas
proporcionadas por linhas verticais (armas) que se expandiam. À esquerda da
sala Vaz Caminha, abria-se a sala Anchieta, (em uma ordem cronológica, as
homenagens dos que descreveram os indígenas), onde estavam todos os
quadros a óleo representando diversos grupos indígenas, obras impressas
antigas e modernas, os manuscritos de F. Hartt, gravuras, litografias,
numerosas fotografias e uma infinidade de documentos, incluindo a coleção de
desenhos da Comissão Científica do Império e outras obras descritas no guia
da exposição.
À direita da sala Vaz de Caminha, tem lugar à sala Rodrigues Ferreira,
denominada de salão e escolhida como palco para a inauguração da
Exposição, pois, como já vimos no ritual da Inauguração da Exposição
Nacional de 1861, nessa sala, parte da ambientação referente aos Mundurukú
é substituída por um estrado com lugar para assento para O Imperador e
família, sendo colocada no lugar no dia seguinte.
Nessa sala, temos duas ambientações, ambas referentes à viagem de
Ladisalu Netto e o que ele teria visto ou testemunhado da vida indígena. Elas
representam um avanço bastante interessante em termos expositivos: primeiro,
por mostrarem um todo em busca de coerência e não objetos agrupados; e em
segundo lugar, pela escolha do momento a ser recortado na ambientação, vida
cotidiana do grupo em um resumo de seus elementos na ambientação,
denominada, na imprensa, como “modelo de maloca tuxáua do aldeamento
Portirita, afluente do Rio Capim”. Vemos aí um modelo de casa montada de
forma que as estruturas de construção laterais ficassem aparentes, de maneira
a possibilitar a visão de seu interior, onde se encontram objetos de cestaria.
Na lateral, em escala natural, vemos duas esculturas de indígenas em Papier
Marché, uma de frente para a outra, em uma possível posição ritual, lembrando
uma benção católica. Vemos também um indígena sentado sobre um banco e
115
paramentado com plumária Mundurukú (coifa - com cobre nuca) e do Uaupés
(pulseiras), com uma bolsa tecida atravessada; com uma das mãos, ele toca
uma flauta dupla de osso, e com a outra segura, um ramo na direção da
escultura, logo à sua frente, sentada no chão, segurando uma forquilha. Ambas
esculturas são compostas com abundância de cabelos proporcionada por
perucas. As paredes de fundo estão compostas por troféus de armas.
Ladeando a ambientação, quase encoberta por ela, encontra-se uma das três
esculturas moldadas dos Xavantes, segurando uma lança e comum adorno,
provavelmente de pele de onça, na cabeça que aparece sobre a maloca.
FIG. 9 Antropológica, 1882 Museu Nacional
Fotografia, acervo SEE
No centro da sala, sobre uma plataforma de pouca altura, apresentava-
se uma reconstituição da “vida indígena no vale do amazonas” composta por
três ubás, canoas de casca de jataí e piramã. Uma delas foi utilizada por
Ladislau Netto, em sua excursão pelo Rio Capim, pilotada na ambientação por
esculturas em papier marché, em tamanho natural, portando uma delas um
cesto Tembé de função variada, na cabeça, como proteção, e outra, um
chapéu de palha de modelo comum. Nas outras duas ubás, esculturas em
116
papier marché que pilotavam usavam chapéus de palha e portavam remos, as
canoas estavam repletas de cestas e armadilhas de pesca. Completando o
cenário, uma escultura feminina de pé, em coleta de plantas, com um cavador
em uma das mãos, outro cesto em outra mão, repleto de plantas, e um cesto
na cabeça, à maneira de chapéu, completando o cenário, plantas, aves e
tartarugas taxidermizadas. Podemos ver, ao fundo, duas esculturas em gesso
dos Xerente, a que parece ao lado da reconstituição anterior e outra de um
índio sentado igualmente segurando flechas, portando colar e tanga.
Fig.10 Exposição Antropológica,1882 Museu Nacional Fotografia, acervo SEE
Seguia-se à sala Lery, com a designação de arqueologia, composta por
39 itens de fragmentos de cerâmica, a sala Lund, destinada á Antropologia
Biológica, que, na época, denominava-se apenas de Antropologia. A sala
continha crânios e ossos e apenas um esqueleto completo. Por destaque, a
sala possuía o primeiro crânio achado perto da Lagoa Santa e uma múmia
encontrada no morro da Babilônia, província de Minas Gerais. Um quadro em
tamanho natural de um indígena do alto Amazonas completava o cenário,
dando um referencial de pertencimento às ossadas.
117
A sala Martius possuía como destaque a comparação entre a cerâmica
indígena brasileira e a coleção particular do Imperador de cerâmicas
arqueológicas do Peru e Bolívia. Outro grupo de objetos se referia a objetos de
trançado usados também por “civilizados”, nas proximidades da capital à
época, objetos como tipiti, balaios, esteiras e tubos para carregar água.
Fechando o circuito da exposição, encontrava-se a Sala Gabriel
Soares, uma das mais variadas da exposição, contendo além de troféus,
painéis já descritos de forma a delimitarem grupos de espécie de objetos,
fugindo ao estilo meramente decorativo como o da fotografia abaixo, que
apresenta uma composição de material arqueológico, sendo o tablado,
praticamente ao rés do chão, repleto de mãos de pilão e outros objetos líticos
similares. O painel do meio, preso à parede, comportava, de um lado, um
grande número de pontas de machado de pedra e pontas de flecha, separadas
do outro grupo de objetos pela inscrição: “instrumentos de pedra”, de outro, o
grupo de tangas de cerâmicas e fragmentos de tangas de cerâmica, além de
tembetás de pedra variados em tamanho e material . No painel superior, havia
mãos de pilão, outros objetos de pedra e alguns zoolitos. Essa composição
mostra, senão uma ordenação, um caminho para uma ordenação por espécie.
Fig.11 Exposição Antropológica, 1882 Museu Nacional
Fotografia acervo BN
118
Encontrava-se, nessa sala ainda, uma coleção de ornatos indígenas
disposta em armários e vitrines centrais, divulgada como completa. Pendentes
do teto, constavam diversas redes de fabricação indígena, simples e enfeitadas
de penas, um mosqueteiro Guató, luvas dos índios Mawé, saquinhos de caça
feitos de tucum, vestimentas dos índios Tikuna, vestes pintadas dos índios do
Rio Purus, troféus de guerra dos Mundurucu, balaios, cestos e pentes do Rio
Uaupés.
A exposição de 1882 foi separada por áreas de conhecimento que,
mais tarde, seriam constitutivas da Antropologia. As salas de Etnologia,
fotografadas por Marc Ferrez, misturavam vestígios dos troféus com o inicio
das reconstituições ambientais dos grupos. Na sala denominada de Alexandre
Rodrigues Ferreira, foi montada uma reconstituição da vida dos Tembé, grupo
visitado para recolha de material para a exposição, por Ladislau Netto. A
reconstituição, como instrumento de visualização, é tão impactante que
precisamos lembrar como Burke131 propõe, sua intencionalidade a qual não
pode ser minimizada, nem, confundida em meio a uma aparência de confusão
geral. Existe sempre junto com a confusão uma proposição da ordenação e de
melhoria no estado das coisas, revelando uma intenção que não deve ser
desprezada. Proponho que as imagens sejam vistas dentro de uma proposta
de levar o visitante a ter contato com o ambiente dos grupos, principalmente
dos Tembé e dos Mundurukú, vistos por Ladislau no Pará.
131BURKE, Peter- Testemunha Ocular: Historia e Imagem- SP: EDUSC,2004.“Precisamos fazer um esforço para lembrarmos que esse imediatismo é uma ilusão”
119
2.6 Exposição universal de Paris, 1889
A Exposição Universal de Paris de 1889, realizada para comemorar o
centenário da Revolução Francesa, teve uma característica bastante especial
para o Brasil. O Catálogo da Exposição Brasileira132 vinha acompanhado do
título: “Empire du Brésil” e da indicação da chefia de Sua Majestade Dom
Pedro II. A exposição brasileira planejada e executada pela monarquia se
encerra praticamente junto com o fim do regime. Ao término da Exposição, o
Brasil passa para o regime Republicano, seria a última participação em
exposição universal enquanto Império do Brasil.
Para o Museu Nacional, seria um auge na participação das Exposições
Universais: Ladislau Netto não só compõe, dessa vez, a comissão brasileira de
estudos para a exposição, como é distinguido no catálogo como “Directeur de
l’Exposition Brésilienne D’Antropologie et Ethnographie ou Pavillion Amazone,
Section de l”Histoire de L´Habitation Humaine”. Também seria a última
exposição antes da mudança de prédio do Campo de Sant’Ana para o palácio
da Quinta da Boa Vista.
A Exposição como um todo se propunha a que, pelo preço de um
ingresso (a exposição era paga e deu lucro), o visitante desse a volta ao
mundo no Campo de Marte em seis horas. Nessa volta ao mundo, esperava-se
demonstrar os avanços da técnica, a pujança da indústria e a diversidade das
civilizações, onde, numa aldeia senegalesa, reprodução de sua matriz africana,
nativas de seios nus cruzam olhares espantados com parisienses de fraque. A
Rua do Cairo, de tão parecida com a original, acaba tão suja quanto. As
notícias que identificam os pontos altos e marcam as diferenças marcam
também qual era o público. Um público pagante, vestido com cerimônia, como
indica o fraque, e que voltava para jantar de cinco as sete e assistir aos shows
132Catálogo da Exposition Universelle de Paris, 1889. Paris: Imprimiere Chaix, 1889
120
de fontes luminosas. No total, 28 milhões de pessoas visitaram a exposição,
podendo-se incluir uma classe de freqüentadores assíduos.
Na exposição de Paris, 1889, segundo Barbuy133, uma proposta de
expor a totalidade dos produtos do gênero humano. O Brasil dá inicio ao que
seria uma longa série de exposições tendo como temática principal a
“Amazônia”. Temos a descrição de plantas amazônicas despertando atenção, à
entrada do pavilhão, e destaque para a exposição “Monumentos Históricos de
Habitação Humana” do expositor Ladislau Netto e de peças de Sant’Ana Nery e
do Barão de Marajó, representando a província do Pará, com destaque para a
peça mais chamativa da exposição, a “cabeça de índio mumificada”,
pertencente ao Barão de Marajó, membro da comitiva.
No catálogo, temos a descrição da coleção de cerâmicas, compostas
em grande parte pela coleção exumada na Ilha de Marajó e pertencentes ao
Museu Nacional do Rio de Janeiro. Ainda no catálogo, temos um conjunto que
poderia ser visto como as peças sempre constantes em exposições no século
XIX:
“85- Pontas de flechas e Tembetá 150- Máscara Tikuna 158- Bastão de Plumas dos Chefes Mundurukú 169- Retrato de um Índio Botocudo 177- Cabeça mumificada de um chefe Jivaro, Alto Amazonas, pertencente ao Barão de Marajó.”
Com esse resumo, também se encerram as exposições do Museu
Nacional no século XIX, pois, no retorno ao Rio de Janeiro, começa a se
pensar a mudança de prédio, a exposição do Museu é fechada para a
efetuação da mesma, vindo a reabrir já no Palácio de São Cristóvão, sob a
administração do governo republicano.
As exposições brevemente descritas, no entanto, marcam as
subseqüentes, quer pela continuidade, quer pelas diferenças. As ambientações
seriam perseguidas por todo o século XX, como uma maneira de contextualizar
os objetos, os troféus, embora tenham saído de cena, sempre mantém sua
133 Barbuy, Heloisa- A Exposição Universal de Paris, Ed Loyola, 1988.
121
sombra nas exposições de conjuntos de objetos. A grande mudança verificada
pela necessidade de textos e informação, preservada ao longo do século XX,
vem diminuindo em exposições mais reservadas à performance e fruição do
ambiente e dos objetos. As diferenças no número de objetos a serem expostos,
também são relativas ao tamanho da Mostra, mas, com certeza, a grande
herança do processo expositivo do século XIX foi dar visibilidade a algumas
peças e a alguns grupos, que, dessa forma, foram selecionados a representar
a coleção em outros séculos e em outros regimes políticos, pelo menos no que
diz respeito à parte de acervo de indústria humana que se tornaria Setor de
Etnologia.
2.7 Publicações
Uma das formas fundamentais de divulgação da Instituição e das suas
coleções, bem como das idéias que nortearam sua formação e conservação,
são as publicações de época em suas mais diversas formas, com seu efeito
minimizado pela grande população de iletrados. Contemporaneamente, o efeito
das publicações, em um aspecto mais amplo, já aparece evidenciado em
trabalhos como o de Schwarcz134, no qual a autora narra a importância das
imagens e dos comentários sobre as publicações como um efeito maior do que
a leitura pura e simples. Machado135 descreve a importância da leitura em voz
alta, muitas vezes executada para um público maior do que o familiar, como no
caso dos folhetins: ”O jornal era disputado com impaciência. Pelas ruas ao
134SCHaWARCZ,Lilia M. “Retrato em Branco e Negro- Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX” São Paulo: Circulo do Livro,1989 135MACHADO, Ubiratan- A vida Literária no Brasil durante o Romantismo.RJ: Ed. Uerj, 2001. p. 45.
122
redor dos lampiões fumegantes da iluminação pública, viam-se ouvintes ávidos
cercarem qualquer improvisado leitor”.
As publicações têm o poder de nos demonstrar quais eram as
discussões que contextualizaram a formação das coleções. Algumas implicam
diretamente documentos da coleção como a “Viagem Pitoresca e Histórica” de
Debret e as publicações que foram realizadas por Ladislau Netto, como
institucionais, a partir de 1870, com a publicação de suas Investigações, que
abrangem os Arquivos do Museu Nacional, 1876 (primeiro volume), e a
divulgação em fascículos de textos destinados a uma população mais ampla,
inicialmente publicados em fascículos e, mais tarde, reunidos sob o titulo de
“Revista da Exposição Antropológica de 1882”.
Antes de nos determos nas publicações exemplificadas por sua relação
direta com a coleção de indústria humana, vou esboçar um panorama mais
amplo das publicações mais gerais que inspiravam as discussões mais
específicas e as respostas que, muitas vezes, eram dadas através dos objetos
coletados e expostos. A escrita da História do Brasil era a tarefa a que se
propunha o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a partir da sua criação
em 1839. Eram significativas, no entanto, as diferenças produzidas por alguns
sócios do Instituto, na forma de escrita dessa história, e a avaliação dos
mesmos sobre quais humanos eram produtores de indústria ou quais humanos
deveriam fazer parte da população brasileira e qual a posição social desses na
época.
Sobre a discussão do papel do indígena na construção dessa história,
Bertol Domingues136, em sua dissertação de mestrado, “Civilização na Visão
dos Construtores do Império”, discute integração ou não do elemento indígena
como formador de uma nação civilizada, ressaltando a importância desse
procedimento no calor das discussões sobre a imigração européia. Kodama137,
em sua tese de doutoramento, vai falar sobre o papel do índio na História do
Brasil e as implicações para uma política indigenista do Império relacionada
aos problemas ligados à Nação e sua formação.
136Bertol Domingues, op.cit. 137Kodama, Kaori- Os filhos das Brenhas e o Império do Brasil: A Etnografia no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (1840-1860), 2005. PUC. RJ.
123
Minha intenção não é repetir aspectos tão bem discutidos, mas
focalizar alguns detalhes da construção dessa história que vão influenciar
diretamente a formação das coleções e das representações institucionais do
Museu sobre o indígena. A partir do século XVI, vemos relatos que irão
influenciar as discussões sobre o indígena, não só suas narrativas
etnográficas, mas as análises que vão gerar uma espécie de senso comum
perpetuado e discutido por séculos, até vir a ser proposto como objeto de
reflexão no século XIX.
Entre essas duas proposições, temos a questão de ser a língua
indígena desprovida de certas letras,tais como o F, o L e o R, porque eram sem
fé, sem Lei e sem Rei. Para melhor exemplificar o início e a importância dessa
discussão no século XIX, citamos Denis138, 1837, que, filiado ao movimento
romântico, tomará parte na reflexão, seguido em sua opinião por vários
pensadores brasileiros do século XIX, entre eles, alguns ligados diretamente
ao Museu ou à formação de suas coleções: Porto Alegre, Gonçalves Dias,
Couto Magalhães, Ladislau Netto e outros.
“Era costume, no séc XVI, decidir-se apriorísticamente que os povos selvagens nenhuma idéia tinham da divindade. Alguns escritores, aliando a mais falsa idéia às mais bizarras concepções, iam repetindo que a língua dos brasileiros era desprovida de certas letras, tais como o F, o L e o R, porque eles eram sem fé, sem lei e sem rei. Todavia,quando se examina a mitologia dos povos da raça túpica, ficamos espantados com o desenvolvimento metafísico, que parece caracterizá-la”139
A leitura dessas memórias localiza qual população indígena se estava
expondo e coletando no momento e como ela estava sendo discutida tanto em
termos de sua integração à nação brasileira, como sua participação, enquanto
personagem, em um projeto de organização da historiografia brasileira, iniciado
pelo IHGB. No qual o modo de tratar o indígena era iniciado pela monografia de
Martius e prolongado através do debate sobre a valoração da historiografia,
138 Denis, Ferdinand- Brasil-SP: EDUSP,1980 139 Idem
124
acalorado principalmente entre Abreu e Lima e Vanhagem, sobretudo a partir
da publicação do Compêndio de História do Brasil, escrito pelo General
pernambucano José Inácio de Abreu e Lima140, em 1843. Laemmert é
censurado por Vanhagem no IHGB, que publicaria sua História Geral do Brasil
em 1857, enfrentando um áspero debate com Gonçalves Magalhães, membro
do IHGB e seu colega na carreira diplomática.
No entanto, na escrita da história proposta pelo IHGB, a visão que sairá
vencedora será a de Vanhagem141, em sua História Geral do Brasil, que irá
referendar a anomia social descrita pela ausência de F, L e R, difundida por
Macedo142, em suas Lições de História do Brasil para Uso da Instrução
Primária, 1875, na lição VI: “O gentio, em suas relações sociais” (p. 512), “o
gentio não conhecia arte, nem ciência, nem indústria. Em sua língua, faltavam
o F,L,R”. Isso demonstrava como, à época da Exposição Antropológica e de
suas publicações, os dilemas ainda giravam sobre as bases enfrentadas por
Porto Alegre e Gonçalves Dias.
Outra das proposições que acarreta diretamente na imagem coletada e
exposta é a do indígena ter uma integração com a natureza que o faz precisar
de pouco para sua sobrevivência, em uma frase do Padre Anchieta, em que ele
ressalta que o indígena sabe aproveitar a natureza para prover as suas poucas
necessidades.
Vemos a descrição positiva da integração do índio-natureza, essa
posição também será foco de combate. Temos, em um texto de José Bonifácio
de Andrada, no Arquivo do IHGB143, o seguinte apelo: “Façam lhes conhecer
novos gozos, e ganhe lhes a vontade, e mostrem se lhes as vantagens da
civilização, então não lhes será odiosa”. Com certeza, precisar de pouco e ser
harmônico com uma natureza, descrita por Vanhagem144 mais tarde, com cores
nada positivas,não era uma recomendação de época à civilização.
140Abreu e Lima, José Inácio de- Compêndio de História do Brasil,RJ: Laemmert 1843. 141Vanhagen, Francisco Adolfo, História Geral do Brasil,volume 1. Edições melhoramentos,1948 142Macedo, Joaquim Manoel de, Lições de História do Brasil, para uso da instrução primária. Garnier, 1887. 143Andrada, José Bonifácio, Civilização dos índios e Coisas do Brasil- IHGB. Doc. N.5023. lata 192 ( Copia AGMN). 144Op. cit, p.15.
125
“Apesar de tanta vida e variedade das matas-virgens, apresentam-se elas um aspecto sombrio, ante o qual o homem se constrita... Tais matas, onde apenas penetra, o sol, parecem oferecer natural guarida aos tigres e aos animais trepadores do que aos homens. Mas ânimo, que tudo doma a indústria humana! Cumpre à civilização aproveitar e ainda aperfeiçoar o bom, e prevenir e destruir o mau”.145
A partir dessas discussões mais abrangentes, julgo primordial entender
as publicações de intelectuais e naturalistas que se institucionalizaram em um
Museu de História Natural e formaram suas primeiras coleções de Indústria
Humana e a elas procuraram dar sentido. Vamos enfocar, como exemplo de
publicação da primeira curadoria, publicações que se remetem a Manuel de
Araújo Porto Alegre não só como autor, mas também como editor., Publicações
essas referentes a um período antecessor e ao período de sua curadoria da
quarta sessão do Museu. Outro enfoque será dado às publicações de Ladislau
Netto que se referem diretamente à coleção de indústria humana, já
aparecendo com a denominação de Etnografia.
A Revista do IHGB, na qual podemos encontrar artigos e pareceres dos
diretores de sessão do Museu Nacional, como o parecer de Porto Alegre sobre
as inscrições da Pedra da Gávea, logo no seu segundo número, vol.1, 1839.
Logo nas primeiras reuniões, surge o tema da inscrição na Pedra da Gávea, a
procura por vestígios de civilizações antigas na América vai ser uma constante.
Nesse primeiro texto, o que se analisa é um Manoel de Araújo Porto Alegre
ponderado e instruído com conclusões como:
“Os povos que têm uma civilização nascente, são naturalmente crédulos, e sua imaginação os arrasta a ver tesouros encantados por todas as partes; e os homens amigos do misterioso algumas vezes também crêem encontrar vestígios dos outros homens naquilo, que é um acaso da natureza”.146
145Andrada,op. Cit. 146PORTO- ALEGRE, Manuel de Araújo. Relatório sobre Inscrição da Gavia. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ( No 2, volume 1: 1856).Rio de Janeiro: Laemmert,1856.
126
Nessa, Manuel de Araújo Porto Alegre ainda não havia sido nomeado
diretor da quarta sessão do Museu, mas se mostrava particularmente
interessado em temas ligados à futura sessão e a questões indígenas, tendo
sido um dos editores da primeira revista romântica brasileira “Niterói”. Ele
convivia, no Instituto, com Frei Custódio Alves Serrão, diretor que promoveria a
reforma de 1842, criando a quarta sessão para a qual Porto Alegre seria o
primeiro diretor nomeado.
Em seu primeiro volume, que compreende quatro números da revista,
vemos dois textos ou duas memórias com tema indígena, ambas tratam de
manuscritos do século XVI e do século XVIII oferecidos por sócios do Instituto,
sendo a primeira delas: “História dos Índios Cavaleiros ou da Nação
Guayacuru”147, escrita no Real Presídio de Coimbra por Francisco Rodrigues
do Prado, comandante do mesmo. Lá descrevem-se os seus usos e costumes,
leis alianças, ritos e governo doméstico, e as hostilidades feitas a diferentes
nações bárbaras, aos portugueses e espanhóis, males que ainda são
presentes na memória de todos no ano de 1795. Nessa memória, apesar da
descrição dos danos causados pelos índios Guaicurus, eles são apresentados
sobre diversos aspectos positivos e terminam o texto como aliados dos
portugueses e causando danos aos espanhóis para regozijo do autor.
O segundo texto notícias sobre os índios Tupinambás, seus costumes,
etc. de um manuscrito que conserva na biblioteca de S.M. o Imperador e que
tem por título- Descrição geográfica da América portuguesa; sem o nome do
autor; e só no fim da obra se acha a seguinte explicação: “Esta é a fiel noticia
que pude alcançar em 17 anos que continuamente girei pelo Brasil, assim pela
costa como pelo sertão, do que bem se colige que esse continente o melhor de
todo mundo pela qualidade dos ares, pela fertilidade da terra, pela excelência
das águas, pela produção do mar, pelo que mostra, pelo que oculta e pelo que
inculca que pode vir a ser - 1587”.148 Aqui, os indígenas são apresentados
como viciosos , e o texto dá como destaque os rituais de antropofagia, embora
147SAMPAIO, Francisc Xavier Ribeiro. Extrato da Viagem a São José do Rio Negro, fez o ouvidor, e intendente geral da mesma. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (No 2, volume 1: 1856).Rio de Janeiro: Laemmert,1856 148SOUZA, Gabriel Soares de.Memórias sobre os Tupinambá e seus Costumes. In: Revista do Instituto Histórico (NO 3 , Volume 1: 1856) Rio de Janeiro: Laemmert, 1856.
127
descreva costumes e aparências, em alguns casos, com simpatias. Esse texto
teve sua publicação integral e descoberta de autor : Gabriel Soares de Souza,
realizada por Vanhagen a partir de buscas intensas de fragmentos existentes
no Brasil, em Portugal e Espanha, dando validade ao texto que será publicado
por Vanhagen em 1851, com dedicatória ao Instituto Histórico do Brasil.
Vanhagen no entanto minimiza a linguagem original.
Podemos traçar um quadro de diferenças, importante para marcar a
contradição sempre presente na representação do indígena e a riqueza com
que seus usos costumes e aspectos físicos são narrados, compondo um
quadro que, embora contraditório, vai marcar uma imagem que, por vezes, é
tida como desinformada, conforme o caso da literatura romântica e mesmo das
coleções e imagens do Museu no século XIX, partindo normalmente de
pessoas com o conhecimento de textos narrativos, como os primeiros
publicados pela revista do IHGB.
Quadro dos Aspectos Físicos e Morais dos Guaiacuru e Tupinambá. Revista do IHGB . VOL. 1
Guaicuru Tupinambá
Aspectos físicos Estatura Alta Cor mais escura do que o cobre. Robustez e estado de saúde perfeito Dentes mal postos e denegridos Pés mimosos Cabelos uns os tem crespos e outros lisos As mulheres nada têm da graça ingênua da Eva.
Mediana estatura Cor baça Bem figurados Tem muita força Semblante alegre Bons dentes Pés pequenos Cabelos curtos
128
Dados de cultura material
Adornos: canudos de prata enfiados em linhas, contas nos pulsos e nas pernas e uma chapa de prata batida no peito. As mulheres andam envoltas em um grande pano de algodão dos pés até o pescoço. Vivem os homens nus, e são seus enfeites de plumas e de penas que trazem à cabeça, nos pulsos e nas pernas. Usam cinta de algodão tinto de um palmo. Depois da comunicação com os espanhóis se cobrem de contas. Tem beiço furado e nele metido um pau da grossura de uma pena de escrever os mais ricos em prata. Na orelha meias luas em prata.
Fazem buracos no beiço superior e nas faces em que metem ou penduram pedrinhas de várias cores. Usam de uma forma de carapuças vermelhas e amarelas, que lhes chegam ao pescoço, e as fazem de peles de pássaro que para isso esfolam. Ornam o pescoço com colares de dentes dos contrários que mataram. Nós pés, trazem cascavéis de que fazem certa de certa erva seca, tinem muito e se ouve a distancia. Cingem os rins com peles de ema, que esfolam com toda a pena, e lhes cobre quase todas as costas.
Dados de religião ou locais onde se encontram referências dos autores a deus ou demônios em uma referência à sua própria religião
Não conhecem Deus, e, por isso, nas suas calamidades, a nada sobrenatural recorrem. A respeito de sua origem, dizem mil desatinos.
Há muitos Tupinambás que na realidade são feiticeiros; outros que o querem parecer e são pontualmente obedecidos, porque ninguém os quer como inimigos. Esse respeito que conseguem, custa-lhes caro, porque o demônio os maltrata freqüentemente e os mói de pancada. A estes, chamam os mais de pajés.
129
Dados sobre família É costume vir à mulher para a casa do marido. As mulheres só concebem após os 30 anos. Costume de matar o filho no ventre.
A mulher verdadeira do Tupinambá é a primeira que conheceu. Em seus casamentos, não há mais cerimônias que dar o pai à filha ao genro, e tanto que carnalmente se conhecem ficam casados. O índio, que não é o principal da aldeia, quantos mais filhos tem, tanto mais honrado se reputa entre os mais. Casam os pais com as filhas, os filhos com as mães; uns irmãos com outros, porque não respeitam grau de consangüinidade.
Dados sobre aspectos morais
O marido ama ternamente a mulher: é verdade que bem pago fica pois ela tem o desvelo excessivo em o agradar. Este povo selvagem ama-se afetuosamente, e vive em si uma grande harmonia, sustentada dessa amizade que faz a formosura da vida.
Não há língua honesta que refira, nem ouvidos católicos que ouçam os fatos que obram esses gentios para satisfazer sua sensualidade. Entregues ao ócio, só cuidam da satisfação da sua luxúria. São incessantemente dados ao pecado da sodomia, tendo-se por mais graves os que mais o freqüentam; e não admitindo diferença entre agente e paciente, motivo porque, com a mesma publicidade, o executam.
Dados de sua organização interna
Ao seu governo, mostra ter princípio como as outras nações.
Vivem os Tupinambás arranchados em aldeias; em cada aldeia reconhecem todos um por seu maior, ou principal, para que na guerra o dirija; e é somente nesse ato que lhes prestam alguma
130
noção de obediência. Quando os Tupinambá se dividiram ainda eram uma nação, e sempre conservavam a mesma linguagem.
Destaques reiterados Os Guaiacurus são tão soberbos que a todo gentio, confinantes, tratam com soberba.
Em sua linguagem não tem F,L, R, grandes ou dobradas, circunstâncias que muitos notam dizendo que não tem F, porque lhes falta a fé. Não tem L, porque lhes falta lei. E não tem R, porque não tem rei que os governe. Como engordam os cativos, em solenidades, os matam e comem.
Com esse quadro, procuro reter alguns dados que serão marcados em
discussões, exposições, imagens e formação de acervo. De algum modo serão
usados nas discussões do IHGB em um subtexto não verbalizado ou escrito
para serem combatidos ou postos em relevância, mas estarão disponíveis a um
público em busca de conhecimentos esclarecidos sobre os indígenas149 e muito
provavelmente influenciarão obras e opiniões posteriores. Embora sua
diferença de data e de estilo seja marcante, o fato de terem sido publicados no
primeiro tomo da revista do Instituto, como os primeiros trabalhos designados
como de relevância para publicação, coloca-os em uma chave de entendimento
para além da data de sua produção. A sua divulgação de modo recortado pelo
que poderia se chamar na época a divulgação de idéias através da imprensa, a
contribuição deles para a argumentação na proposição dos pontos do IHGB e
como eles por vezes alguns de seus dados estão inseridos nas respostas os
torna relevantes para o entendimento das publicações posteriores.
149 A revista era entregue aos sócios do Instituto, que, em sua primeira versão, contava com cinqüenta sócios efetivos; de um número ilimitado de sócios correspondentes tanto no império, como nas nações estrangeiras e de sócios honorários.
131
Das primeiras questões ou pontos levantados a serem discutidos,
quatro entre seis se referem aos indígenas, três deles ligados à melhor forma
de civilizar os indígenas. No primeiro volume, aparecem publicadas duas
versões para a quarta questão: “Se a introdução dos Africanos no Brasil serve
de embaraço á civilização dos índios, cujos trabalhos lhes foram dispensados
pelos escravos. Neste caso, qual é o prejuízo da lavoura brasileira entregue
exclusivamente aos cativos”.
A primeira resposta à quarta questão é publicada, com o subtítulo de
“sorteada na sessão de quatro de fevereiro desse ano”, foi desenvolvida na
décima sexta sessão, publicada no terceiro trimestre de 1839, desenvolvida por
Januário da Cunha Barbosa150, secretário perpétuo do instituto, cônego e
pregador da capela imperial, professor público de Filosofia racional, e cronista
do império.
Seus argumentos são precedidos de um libelo contra a escravidão em
geral: “Antes de expender a minha opinião sobre este programa, devo declarar
que não sou patrono da escravidão, nem dos índios, nem dos negros; e por
isso considero a liberdade como um dos melhores instrumentos da civilização
dos povos”. Seus argumentos vão circular contra qualquer escravidão, com
elogios à condução dos jesuítas na civilização dos indígenas e seu principal
argumento gira em torno de trazer os indígenas para um comércio vantajoso,
criando necessidades e os conduzindo a uma comunicação civilizadora pelas
armas da catequese, fazendo com que os mesmos nômades de então se
tornassem “uma classe trabalhadora que nos dispense dos africanos”. Sua
conclusão é que “os pobres negros, fora de seu país natal são menos aptos
aos nossos trabalhos do que os índios. Os negros, portanto servem de
embaraço à civilização dos índios; e o que mais é, servem não pouco de
retardar a nossa própria civilização, o que deixo de tratar por não se tratar
desse programa (...) agricultura; porque como diz o economista espanhol
150BARBOSA, Januário Cunha. Se a introdução dos escravos Africanos no Brasil embaraça a civilização de nossos índios. In: Revista do Instituto Histórico (NO 3, Volume 1: 1856) Rio de Janeiro: Laemmert, 1856.p.159- 166
132
Bernardo Ward: ela não medra onde o que trabalha não colhe, e o que colhe
não goza do fruto de seu trabalho”.
Publicado logo a seguir, temos o parecer do sócio José Silvestre
Rebello, negociante, que começa sua memória dando a origem do comércio de
escravos na América a Cristóvão Colombo. Prossegue esclarecendo que, em
São Paulo, a transição do comércio escravo para o comércio africano se deu
devido ao fato de “o trabalho dos indígenas luzia menos do que o dos
africanos, e estes passaram a custar menos dinheiro do que o resgate dos
índios, deixados então à disposição dos meritórios Jesuítas, esclarecendo não
ter sido a transição feita sem querelas”. Foram expulsos jesuítas de São Paulo;
“e a teima de povoadores da mesma província em prosseguir o resgate deu pé
a uma enorme coleção de mentiras e falsidades, que se acham impressas em
vários livros contra os ativos e valentes paulistas”. Continua esclarecendo sua
posição de que, se há atraso na agricultura, “a culpa é da ignorância dos
feitores e não dos escravos semi-brutos, mas dos administradores que não
conhecem Botânica e Química”.
As duas memórias estão eivadas das questões futuras das publicações
e de seus desenvolvimentos, algumas delas como o libelo contra a escravidão,
em geral, seria discutido de forma esparsa, por muitos anos à frente, até se
tornar uma questão candente. Já questões como a civilização através da
catequese, seriam bastante discutidas nos anos vindouros, bem como o papel
dos paulistas, no Compêndio de História do Brasil, escrito pelo General
pernambucano José Inácio de Abreu e Lima, em 1843. O papel dos paulistas
não é o de heróis e os índios são mencionados como sendo:
“Muitas nações e povoações diferentes (mais de cem nações brasileiras, umas escondidas nos bosques, outras nos rios, nas costas marinhas. Algumas pacíficas, quase todas errantes... Tupis senhores do oeste -16 tribos distintas). Os brasileiros possuem algumas virtudes sociais e domésticas. Exercitam o respeito e a hospitalidade, e vivem tranqüilamente entre si; não se desamparam nas moléstias como fazem outras povoações da América, e são fiéis a seus aliados”.151
151ABREU E LIMA. José Inácio, Compêndio e história do Brasil, RJ: Laemmert, 1843, p..28
133
Censurado por Vanhagem no IHGB, a polêmica com Abreu e Lima
resultaria em um dos pontos de destaque na história geral de Vanhagem, com
defesa ao heroísmo dos bandeirantes paulistas. A questão da catequese entre
os indígenas também extrapolaria o IHGB sendo discutida em Revista
Guanabara, criada como espaço de discussão alternativo, antecedido por
tentativas como a criação da revista Minerva e posteriormente da Revista
Guanabara criada em 1849, no começo do acirramento das discussões, nota-
se que Vanraghen também possuía espaço na revista como jornalista
correspondente da Europa.
O debate a partir de 1849 passa a não se restringir à revista ou às
sessões do IHGB. A publicação de artigos em jornais e a criação de revistas,
como a Revista Guanabara, cujos editores eram Manuel de Araújo Porto
Alegre, Antonio Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo, abriam seus
espaços para a apresentação de artigos científicos, em um ambiente mais
arejado do que o Instituto do qual eram sócios.
Espaço esse preenchido normalmente por membros do Museu
Nacional, como a publicação da memória sobre botânica de Francisco Freire
Allemão (diretor de seção do museu), ilustrada, que narrava efeitos danosos de
uma árvore comum na época, denominada vulgarmente de Santa Luzia, já no
primeiro volume da mesma. A revista também possuía um viés político forte,
além de tratar de variedades como a crítica de ópera do Teatro São Pedro. No
entanto, seu viés principal era um espaço para o diálogo com a produção
histórica e científica da época, explicitada em “História da Pátria”, de Gonçalves
Dias, na qual autor critica a História do Brasil de Berredo por suas referências
aos “selvagens”. “Não digamos como diz Berredo, que era um povo bruto e feroz, nem os apreciemos pelo que hoje conhecemos. Não degenerarão ao contato da civilização, porque esta não pode envilecer ; mas embrutecerão a força de servir, perderão a dignidade, o caráter próprio, e o heroísmo selvagem, que tantos prodígios cometeu e perfez. Vede o que fizeram e dizei se não há magnanimidade nessa luta que sustentam a mais de três séculos, opondo a flecha à bala ao tacape sem gume à espada de aço refinada.” 152
152DIAS, Antônio Gonçalves.História da Pátria: Reflexões sobre os Annaes Históricos do Maranhão de Bernardo Berredo. In: Revista Guanabara, Vol. 2 Tomo I. 1850.25-57
134
Além de abrir uma viva discussão ao criticar a catequese como método
prioritário de civilização dos indígenas, Gonçalves Dias, no segundo volume da
revista Guanabara, responde às criticas religiosas provenientes da sua critica à
História do Maranhão por Berredo. Dias, colocando reflexões acerca dos
indígenas, falou nos jesuítas por incidente, caindo na censura religiosa, como
reprovava a censura religiosa como a qualquer outra censura. Responde
argumentando que não se pode considerar o índio em catequese senão como
um ente em transição. “Nesse estado o índio não é nem civilizado, nem
selvagem, nem pagão, nem católico; mais tarde sem preparatório,
instantaneamente passa de um estado a outro, torna-se igualmente incapaz de
ambos- de viver na cidade como homens civilizados, a de viverem na selva
como bárbaros. Eram exemplo de obediência, a exemplo da habilidade
jesuítica, um exemplo, de piedade se quiserem: mais daqui a heroicidade vai a
distancia do mundo”. Essas opiniões dificilmente seriam levantadas e, se
levantadas, não seriam publicadas no espaço do IHGB. Elas mostram, além da
posição de Gonçalves Dias, o apoio de Porto Alegre, então curador da quarta
sessão do Museu, em questão com o governo Imperial devido à Academia de
Belas Artes, e que também utiliza a revista para suas criticas aos métodos de
admissão e premiação da mesma se posicionando contra a família Taunay.
A partir de meados da década de 50 do século XIX, o Jornal do
Comércio abre espaço a ser ocupado pelas notícias enviadas pelo museu.
Espaço que Ladislau Netto ocupará a partir de sua entrada na instituição com
avisos sobre o funcionamento, pedidos de doação e agradecimentos a
doadores. Aumentando a visualização do Museu, o jornal também publica
vários artigos e descrições sobre o museu, transformando-se em uma fonte de
divulgação do Museu.
Ladislau Netto, membro da geração seguinte a Porto Alegre e Dias e
diretor da sessão de Botânica do Museu, terá um vivo interesse pela quarta
sessão da qual passará a se encarregar pessoalmente a partir de 1876. Para
uma melhor divulgação do Museu e de suas reivindicações, vai publicar um
livro com o título de Investigações, em 1870. Um livro sobre o Museu, sua
história, suas dificuldades e seus projetos futuros, direcionado ao público
135
brasileiro. O Museu, já com meio século de idade, tornou-se uma instituição
com história de vida a ser narrada, ou talvez seguindo o tom das investigações,
com uma história das dificuldades enfrentadas. O livro é escrito para um
público amplo, como deixa claro Ladislau no primeiro parágrafo dirigido ao
leitor.
“A regra da ciência dos clássicos e a norma critica dos bibliográficos bem pouco terão que ver na índole da presente publicação. Certo é que nem para estes diretamente nem tampouco para aqueles outros, senão para o público brasileiro, empreendemos trazer lume as notícias meio históricas meio científicas que havemos aqui traçado acerca do Museu Nacional do Rio de Janeiro. E pois que ao povo nos dirigimos, ao povo em que de todo se não extinguiu a centelha da imaginação e o balsamo da esperança; ao povo , finalmente que as flores classifica pelo perfume e pelas cores e as aves pelas suas melodias, bem era que n’um singelo discorrer o tratássemos sobre assuntos que a ciência, de ordinário não cuidosa de instruí-lo, costuma revestir de formas e caracteres para ele indecifráveis.153
Essa fase das publicações indica a nova possibilidade de publicação
própria da instituição e suas instâncias mais populares como as investigações
e os fascículos da revista Exposição Antropológica, 1882, e mais cientÍficas
como os arquivos do Museu Nacional, 1876. Todas têm como idealizador
Ladislau Netto. A publicação das Investigações é um apelo reivindicatório, daí a
necessidade que atinja o maior número possível de leitores, embora o texto
contenha alusões a louváveis boas intenções do governo imperial. O peso do
texto está explicito nas suas intenções demonstradas ao leitor:
“Um guia, um simples guia para quem alguma vez se dispusesse a examinar as nossas coleções, deverá ser e bem quiséramos que fosse este livro se mais alto não nos bradasse o descuido e a vilipendiosa apatia em que por tão largos anos se há deixado ficar o brasileiro.”154
153NETTO, Ladislau- Investigações- Rio de Janeiro: Instituto Philomático, 1870 154Op.cit pg10
136
Nos parágrafos seguintes, segue o tom dado às crônicas históricas do
Museu “crônica de três longos quartos de século, que não deixa de ser curiosa
e útil de conhecer-se senão que muito o é pela série não interrompida de cruéis
desenganos”. O guia das exposições já foi bastante explorado no capitulo
anterior e a crônica histórica é mencionada aqui e acolá na tese, principalmente
no capitulo três, já que é muito difícil encontrar um documento que narre, com
tantos detalhes, as dificuldades financeiras enfrentadas pelo corpo
administrativo da instituição. No entanto, a publicação é mais do que um
conjunto de fontes interessantes. Trata-se de uma tentativa pioneira de tornar
pública a importância e o descaso institucional ao mesmo tempo, tentando
abarcar um público maior e difundir conhecimento e dar conta a esse público
do funcionamento de uma instituição pública. Expôs-se a criticas e, com
certeza, já esperava por elas: “censure-nos a seu talento, sem as
preocupações nem os escondimentos da delicadeza, que de coração lho’os
agradecemos”. Abre, assim, o diálogo para que a instituição seja discutida e
ganhe visibilidade. Essa publicação mais ou menos desconsiderada como um
todo é um grande passo para dar voz à instituição junto ao publico e a fazer
valer suas reivindicações junto a instancias burocráticas superiores.
O arquivo do Museu Nacional, com formato de revista científica tem
como data de sua primeira publicação, 1876, sob a administração de Ladislau
Netto, após reforma oficial do Museu. A partir de então, a voz do Museu passa
a se concentrar em suas próprias publicações. Os artigos de interesse direto
para a coleção e que compunham quadro mais geral de análise do que viria
mais tarde a ser denominado de cultura material começam a surgir, como no
caso do artigo “Apontamentos sobre o Fabrico de Louças de Barro entre os
Selvagens”155, Hartt. Publicado pela primeira vez em língua inglesa, como
folheto avulso em 1975156, e republicado no volume do Arquivo Nacional, em
homenagem à Exposição Antropológica de 1882.
155HARTT, Carlos. Apontamentos sobre o Fabrico de Louças de Barro entre os Selvagens, (vol.VI), RJ, Arquivos do M.N., 1885 (1875). Hartt, empreendeu cinco viagens pelo Brasil, sendo a última como diretor dos trabalhos da Comissão Geológica do Brasil, 1874/1878 156Mesmo ano da publicação do livro “Mitos Amazônicos da Tartaruga”, demonstrado o interesse de Hartt, por vários aspectos além da mineralogia.
137
Charles F. Hartt inicia seu artigo justificando a importância econômica e
histórica da origem e evolução da arte do oleiro, bem como a discussão de
seus processos. Por lidar com mineralogia, os processos e a análise dos
componentes da cerâmica são seu interesse, descreve métodos e composição
de cerâmicas de várias localidades, através de bibliografia, dados repassados
por outros observadores, como, por exemplo, José do Couto Magalhães, do
qual registra as informações sobre os grupos Karajá , Kaiapó, Xavante, Xerente
e Guajajara, ou observações próprias sobre Mawé, Mundurukú e outros.
Sua filiação aos estudos evolucionistas traz uma filiação aos estudos de
embriologia de Von Baer e Agassiz157. Freitas158 narra a passagem de Hartt de
um pensamento orientado por Agassiz (criacionista) a um pensamento
evolucionista mais orientado pela idéias darwinianas. Hartt transfere para o
estudo da cerâmica a orientação teórica evolucionista com a seguinte
justificativa:
“Assim como podem-se determinar os períodos de crescimento de um animal pelo estudo de muitos indivíduos da mesma espécie em diferentes graus de desenvolvimento, assim também pode-se ir assinalando os passos progressivos da evolução de uma arte, com maior e menor exatidão, pelo exame da prática dessa arte entre povos de diferentes estados de adiantamento” p. 63159
Embora o artigo tenha a uma proximidade em relação aos estudos
difusionistas, Hartt deixa claro não ser essa sua intenção, ao afirmar “A arte do
oleiro sem dúvida originou-se independente em muitas nações diferentes, e
muitas circunstâncias podem ter levado ao uso do barro no fabrico das
vasilhas”.
Sua visão evolucionista, no entanto, se expande a fazer da cerâmica de
seus tipos e forma de produção, uma regra de evolução entre os povos. A
ausência de cerâmica estaria associada a exemplos de povos de cultura mais
157 Louis Agassiz coordenou a primeira expedição da qual Hartt participou no Brasil em 1865. 158 FREITAS, Marcus Vinícius- Hartt: Expedições pelo Brasil Imperial- SpP: Metalivros, 2001. 159 Arquivos do Museu Nacional, Op. Cit.
138
primitiva, como os Botocudos, ajudando a construir a imagem de “primitivo”, por
definição plena, que se revela nas coleções e exposições.
“Não conhecem o uso da louça de barro muitos povos selvagens (...). Em alguns casos, como entre os Botocudos, pode-se explicar essa ignorância pelo grau extremamente baixo de cultura intelectual da tribo”.160
As conclusões do autor formam alguns aspectos que podem
demonstrar o interesse especulativo em busca de comparações e de uma certa
universalidade de padrões. Ele afirma, a partir dos grupos estudados, ser a arte
cerâmica predominantemente feminina, já que a mulher no fabrico e
ornamentação se revela como a primitiva artista decoradora, sendo uma das
características da evolução a arte cerâmica passar para a esfera masculina,
saindo de uma produção doméstica, para uma escala maior de produção,
mesmo observando a grande produção das louças pelas “índias Civilizadas do
Amazonas”.
Suas observações sobre padrões decorativos, como a grega,
comparando o trabalho das ceramistas que decoram suas cerâmicas com
gregas e igualmente a mulher civilizada que borda a grega. Sugerem ser a
grega uma forma arcaica persistente através dos séculos, frisando que as
gregas com que as selvagens decoram seus potes demonstram o começo
embrionário da vida da arte. Esse argumento será utilizado por Ladislau Netto,
em artigo na revista da Exposição Antropológica.
No entanto é preciso lembrar que essas proposições marcam o caráter
eminentemente científico que é dado ao estudo, em dia com o método
histórico, que propunha grandes investigações sobre determinados assuntos
tanto quanto a sua temporalidade como em sua abrangência, no caso, os
selvagens em geral e os brasileiros mais especificamente. Convém lembrar o
comum do termo para as classificações evolucionistas que propunham as
classificações evolutivas de selvagens, bárbaros e civilizados, a partir da
160 HARTT, op. Cit.
139
presença de uma grade de instituições, entre elas, o estado associado ao grau
de civilização.
A simplificação desse modelo leva a constatação da construção de
quadros evolutivos em diversos cortes da vida dos grupos indígenas como no
caso citado no fabrico das louças, onde se compara desde o fato do João de
Barro construir sua casa, até a fabricação da porcelana, dando-se atenção ao
estado da louça entre os “nossos” selvagens.
Um dos grupos enfocados como mais primitivos: os Botocudos. O
grupo que então vivia em estado de guerra constante, por ser seu território o
Rio Doce, um dos alvos preferenciais de expansão do Império, portanto com
chances reduzidas de se dedicar à técnica da cerâmica. Fato esse interpretado
como a ausência de um dos itens de civilização e da sua confirmação na
categoria de selvagens. Convém ainda lembrar ser o grupo um dos alvos
preferenciais para os estudos de craniometria (medições do crânio com intuito
de demonstrar a evolução e as características humanas de maneira
fisicamente comprovada) em voga nos países da Europa.
No entanto, o artigo, além de compor com clareza qual o contexto
científico da coleta dos objetos em cerâmica, deixa um relato bastante preciso
e especifico sobre o processo de composição da cerâmica, com identificação
de tipos de argila e desengordurantes que formavam a cerâmica de grupos
variados, tornando-se um documento precioso para compreender a coleção de
industria humana do século XIX.
No livro de José do Couto Magalhães, publicado em 1876, para figurar
na exposição de Filadélfia, pela primeira vez, o elemento indígena é tratado
desvinculado da História do Brasil, como um elemento formador, mas traz a
sua visão enquanto personagem vivo e presente da vida do império. Couto de
Magalhães, tendo sido presidente das províncias do Pará, Mato Grosso e
Goiás, descritas pelo próprio como sendo as de maior número de selvagens,
passa a se interessar principalmente pelo aproveitamento dos indígenas como
força de trabalho, ao invés da pura importação de trabalhadores. Dessa forma,
objetiva o trabalho entregue à Quarta Exposição Nacional, preparatória para a
“Exposição de Filadélfia”:
140
“O fim das Exposições coligindo produtos, e elementos de riqueza de um país, é chamar a atenção sobre aqueles que, sendo suscetíveis e grande desenvolvimento para a riqueza publica, não tiveram obtido ainda a necessária atenção das classes pensantes”. No futuro nenhum assunto talvez se entrelace tão geralmente com o desenvolvimento da riqueza e o engrandecimento do Brasil como o amansamento de nossos selvagens.” P. 24161
Na sua defesa de uma idéia, Couto Magalhães vai publicar suas notas
Etnográficas no sentido de valorar as instituições indígenas, como passiveis de
modificação em direção à civilização, e, para tanto, vai empreender um grande
esforço de entendimento das línguas indígenas com o objetivo de trazer os
indígenas para a língua portuguesa.
Na parte do livro dedicada à família e Religião Selvagem, Couto
Magalhães passa a uma refutação do antigo “sem F, L, R”. Com uma
introdução ao tema, escreve sobre o título de classificação antropológica sua
assertiva: “Não são os caracteres físicos, e sim os Moraes, que entram como
elemento principal em busca de uma classificação antropológica”. Partindo
desse princípio, estabelece como regra para seu trabalho a observação direta
dos “sentimentos de sociabilidade” e “sentimento religioso”. Impõe-se como
limite evitar com igual cuidado as sugestões pessimistas, assim como o
“domínio do romance e da poesia”. Em dia com a literatura discutida no
momento, citando Darwin em suas notas, Magalhães recusa uma filiação
romântica a priori, mas descarta uma visão degeneracionista da composição da
população brasileira.
Em um item denominado de prejuízos antigos, faz uma critica ao
sistema de catequese, referindo-se ao índio catequizado como um ser
degradado (lembrando a definição de Gonçalves Dias) e colocando os jesuítas
como grandes homens apenas em comparação com os praticavam extermínio
puro e simples. Como membro do IHGB, convém lembrar que se trata de uma
posição frontalmente contrária a de Vanhagen, então, hegemônica.
161MAGALHÃES, General Couto de- O Selvagem- SP: Companhia Editora Nacional, 1940.
141
Nesse capitulo, aparece, pela primeira vez, a “Teogonia dos índios”, na
qual o autor faz um esboço do que seria, a seu ver, a composição dos deuses
indígenas, generalizando termos Tupis, junto com a lenda de Nani, onde
explica a importância da mandioca para os índios e o fato do processo da
mesma ter sido revelado por um sobrenatural. Esses textos são republicados,
na Revista Antropológica Brasileira, como divulgação em separado dos
costumes indígenas.
A segunda parte do livro trata exclusivamente de um curso de língua
Tupi viva ou Nheengatú. Língua geral que o autor usava para se comunicar
com os indígenas e a que se dedicou a conhecer através de método cientifico
de então. Na última parte, o autor dedica-se às lendas encaradas como método
de educação intelectual, comparando algumas com as colhidas por Hartt.
A Revista da Exposição Antropológica Brasileira, publicada em
fascículos, visando informar a um público mais amplo características do que foi
representado na Exposição, complementando o guia da mesma. Revelava
uma necessidade de se ampliar o conhecimento do público sobre o evento.
Dirigida por Alexandre Mello Moraes Filho162, jornalista, médico escritor e
membro do IHGB de segunda geração, tendo sido seu pai membro e
historiador do mesmo, ficaria conhecido como folclorista pela sua obra “Festas
e tradições populares”, 1888. Manter-se-ia, no entanto, como um poeta da
causa indígena. A revista Antropológica foi editada pela tipografia Pinheira, em
1882, em fascículos e distribuída nesse formato, posteriormente reunidos em
forma de livro.
O prefácio de Ladislau Netto à Revista escrita para comemorar o evento
da exposição, criada por homens de talento, “um deles poeta dos mais
festejados e populares do Brasil”. Menciona ter o público, tanto do Rio de
Janeiro como das províncias, recebido com tal regozijo os fascículos, que os
mesmos estavam sendo reunidos em um único volume com seu prefácio.
Ladislau inicia o prefácio com um texto no qual deixa clara a sua filiação
preferencial a uma teoria do autoctonismo do homem americano:
162VAINFAS, Ronaldo (org.)- Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, pg. 32
142
“E na verdade, posto que pareça demasiado arriscado negar que uma ou diversas invasões houvesse recebido em seu seio o novo mundo, principalmente pela costa da fronteira às ilhas Aleutas, ou mais ao norte, pelo estreito de Bering, muito natural, e mais que provável, é, a meu ver, houvesse a América produzido uma espécie humana sua, assim como produziu milhares de espécimes amimais congêneres do antigo continente.” P.IV.163
Entretanto, Ladislau coloca-se diante de um impasse a ser resolvido no
futuro mencionando “Onde buscar, porém, provas desse absoluto
autoctonismo, e quais podem nos convencer da presença de uma fusão de
concurso estrangeiro na intricada e milionária fase de despertar da história do
homem Americano”. Objetiva, dessa forma, as propostas da Exposição
Antropológica e, conseqüentemente, da Revista da mesma, como dando voz a
diversas possibilidades e teorias que serviriam para criar “sobre bases positivas
os alicerces do futuro”, provocando o que Monteiro164 denomina de um
cardápio variado.
Vamos então tentar apresentar resumidamente a variação de idéias
expressa em torno da Exposição Antropológica, por sua Revista. Em primeiro
lugar, salta-nos aos olhos a variedade de grupos representados, com
descrições de complexos coletivos (Tribu) ou de seus indivíduos (índio ou
índia).
Artigos sobre a denominação tribu ou índios no plural temos Mauhés,
Mundurucus, Aruaquis e Parequis, Uaupés, Miranha, Caxuiana, Arara,
Tecuna, Conibo, Usahys ( Uapixanã),Tupinambá, Tabayaras, Parecis, Garayos
( índios do Guaporé), Palmellas, os Barbados de Mato Grosso (Umutina),
Cabixi, Chiquito (Mato Grosso). Sob o título geral de descrições, Uaupé,
Tamoyo, Canoeiros e Yauhá.165 A variedade escapa à dicotomia Tupi e Tapuio,
163NETTO, Ladislau. Prefácio da Revista da Exposição Antropológica Brasileira, RJ: Typografia Pinheiro & Cia,1882 p. III- VII 164MONTEIRO, J.- As “Raças” Indígenas no Pensamento Brasileiro do Império. In Raça Ciência e Sociedade, ventura, R. (org.) RJ: Fiocruz, 1996. 165Os nomes acima foram verificados no mapa Etno Histórico de Curt Nimuendajú ( RJ: IBGE, 1981) e com exceção dos Yauhá encontrados, os nomes entre parênteses foram igualmente encontrados no mapa.
143
tentando abranger um grupo bem maior conhecimento, que, levados em conta
às descrições de temas gerais, amplia bastante o quadro.
Não existe, no entanto, uma uniformidade de tipo ou pensamento nas
descrições. Por exemplo, os Botocudo são descritos por J. B. de Lacerda166
que descreve seus caracteres físicos, acrescentando que “Sob o ponto de vista
moral e intelectual são os Botocudos a expressão de uma raça humana no seu
maior grau de inferioridade”. Essa posição reforça um quadro cientificista167
que é minoritário no geral da Revista, já que Batista de Lacerda assina quatro
artigos na Revista, sendo apenas um descritivo, um sobre a medida de força, e
mais dois, um sobre sambaquis e outro sobre o crânio da Lagoa Santa.
Já J. Barbosa Rodrigues168, naturalista autodidata e pesquisador em
Botânica, após publicar em 1870, uma obra por ele ilustrada sobre orquídeas
brasileiras, consegue uma viagem comissionada pelo governo para explorar o
vale do Amazonas, dando destaque ao gênero palmarium, viagem a que
empreendeu de 1872 a 1875, colhendo várias informações, inclusive as de
caráter etnográfico presentes na revista. Conduz suas descrições de outra
forma como podemos ver quanto aos Yauapery”, que usam os homens os
cabelos cortados e as mulheres longos, são altos musculosos, guerreiros e de
boa índole. Descreve com detalhes pertinentes ao tamanho do texto, os
artefatos e adornos, como por exemplo sua descrição das armas dos
Yauapery: “Suas armas são o arco e as flechas. Aquele é cilíndrico, aldegaçado para ambas as extremidades e muito maior do que um homem; estas são de duas espécies, de taquara e de suumba, com ponta de osso. A de Taquara é a maior que conheço: mede a ponta mais de dois palmos de comprido sobre duas e meia polegada de largura pintada internamente de Mucuná ( Mucuna ureus) e as de bico de osso tem a suumba pintada também da seiva do mesmo cipó.” Pg.48169
166LACERDA, J. B.BOTOCUDOS. Revista da Exposição Antropológica, p.2. Batista de Lacerda. Nessa época, sub- diretor da sessão de zoologia do Museu. 167Através do que era é encarado na época como uma ciência exata a Antropologia na época vai medir capacidades musculares e intelectuais com o mesmo “rigor” e medidas, transformando assim qualquer idéia de subjetivação em uma ciência palpável e concreta. 168SÁ, Magali Romero de- O Botânico e o Mecenas, José Barbosa Rodrigues e a Ciência no Brasil na Segunda metade do séc. XIX.in História, Ciências e Saúde. Manguinhos, vol.III (suplemento)- p. 899-924. 2001. 169RODRIGUES, J. Barbosa- op.cit, p. 48.
144
O Barbosa Rodrigues com 19 artigos quase todos descritivos tem
sempre uma descrição rica para artefatos e adornos com ênfase no nome dado
pelo grupo, e significados idem, sendo sua as observações já mencionadas no
capitulo um que filiam as cores dos adornos Mundurukú à organização familiar
dos mesmos. Dispõe-se também à identificação das matérias primas
empregadas, principalmente daquelas que se referem à Botânica. Sua precisão
quanto aos artefatos o faz complementar o guia da exposição, recomendando,
por exemplo, que se vejam as flechas Yauapery que descreve no Museu
Nacional, grupo 76 da Sala Rodrigues Ferreira, observando que o guia as dá
também como sendo dos Conibo, Coxibo, Peba e Jurunas.
Os artigos gerais perpassam as discussões candentes, sendo um deles,
“Atavismos”, de Ladislau Netto, referente a mestiços de brancos com negros.
Ladislau responde por artigos mais gerais, no total de quatorze artigos, dentre
eles, “Observações relativas à teoria da evolução (fragmentos extraídos da
conferência do dr. Ladislau Netto, na Sociedade de Ciência Argentina, Buenos
Aires)”. Ladislau sempre assume um tom nacionalista quanto às questões que
elabora e positiva quase sempre o elemento indígena e o mestiço. Será,
portanto, tratado como um cientista romântico pela geração de 1870,
capitaneada por Silvio Romero.
Outras colaborações da Revista são os textos póstumos de Hartt,
versando sobre mitologia, Evolução dos ornatos e a tanga Marajoara. Seu
sucessor no Museu e companheiro de viagem, Orville Derby, aparece com um
artigo sobre os povos antigos do Amazonas. José Couto Magalhães aparece
com dois pequenos artigos: “Teogonia” e “Lenda de Nani”.
Foram editados seis textos do padre José de Anchieta sobre temas
variados, entre eles, “Cantiga em língua tupi” e “O anjo do caminho” e um do
padre Simão de Vasconcelos, sobre Campo de Goitacazes.
J. Serra e Melo Moraes Filho redigiram artigos jornalísticos acerca do
índio literário romântico e iconográfico e de lenda populares com o elemento
indígena em um total de 31 artigos. Portanto, o “cardápio da Revista”, nos
termos de Monteiro, era bastante variado e diretamente interligado à exposição
145
e ao esforço de promover um panorama com tudo ou quase tudo do que era
dito, visto e discutido sobre a questão indígena.
Como forma de divulgação da coleção, as exposições e publicações
ajudaram não só a dar visibilidade à coleção como a trazer para um público
maior as discussões intelectuais geradas no IHGB, formando um quadro de
informações em vários níveis que viriam a ecoar por bastante tempo. Como se
formou um corpo administrativo institucional no Museu, as relações
interinstitucionais que proporcionaram a formação da coleção e o processo de
divulgação são o tema do capítulo seguinte.
146
CAPÍTULO 3 O MUNDO SOCIAL
O capítulo trata das pessoas que efetivaram o funcionamento da
instituição, bem como de algumas daquelas que contribuíram para o aumento
das coleções, além de dar ênfase às relações da instituição com o mundo social
de sua época. Ou seja, como contemplar o objetivo de contribuir para o
desenvolvimento do comércio, da indústria e das artes, por meio da pesquisa
científica. As relações sociais, em uma época em que poucas pessoas
ocupavam vários cargos, eram de fundamental importância para compor um
quadro administrativo de funcionamento mínimo, para garantir um objetivo tão
ambicioso para a época, como difundir a ciência. Aos poucos, a formação desse
quadro vai se profissionalizando com o esforço dos seus participantes,
chegando ao último quartel do século XIX, a uma estrutura de funcionamento no
Museu com organização suficiente para promover maior visibilidade à instituição
e a transformação das relações sociais em relações interinstitucionais.
147
3.1 Relações da Instituição Com o Mundo Social
O Museu se relaciona com o mundo social de sua época de forma
bastante intensa. Para isso, creio que contribuíram diversos fatores, dentre
eles, a localização no Campo de Sant’Ana, com a proximidade física de várias
instituições, como o Senado do Império, as sedes da Sociedade Auxiliadora
Nacional (tendo sido a primeira no próprio museu), o Colégio Pedro II, a
Secretaria de Negócios Estrangeiros do Império, as livrarias onde o convívio
social era menos oficial e a pouca distância do Paço Imperial, do IHGB e das
redações de jornal, o Teatro Lírico. Enfim, o Museu possuía uma localização
geográfica central dentro da vida pública do Império. A importância desse fator
pode ser vista desde o decreto de sua criação, que o localiza em local
escolhido pela monarquia para as aclamações e festas populares, vindo a ser
conhecido também como o Campo da Aclamação. O Museu é pensado para se
localizar em um centro de poder e estar próximo à rede burocrática que se
formava junto com o Império. À medida que este vai se formando junto com as
instituições burocráticas, instâncias decisórias por onde passavam as decisões
de orçamento para as instituições: o Senado, onde eram votadas as verbas
para o Museu, onde eram lidos os relatórios em que a instituição prestava
conta de suas atividades. “AGMN Doc. N.73: O regente interino, em nome do
Imperador solicita o envio da relação de objectos que existe depositados no
museu para ser levado ao conhecimento da Assembléia geral, no relatório da
mesma instituição”.
A relação com o ministério vai sendo regulamentada com os anos e na
medida em que os decretos detalhados de regulamentação do Museu vão se
sofisticando e ficando claro até que ponto vai autonomia institucional e onde
começa a ingerência do Ministério. Nos primeiros tempos, as medidas eram
ordenadas de maneira direta pela secretaria de Negócios do Império, e
148
algumas delas apontam para a indicação de funções do Império que
começavam a ser esclarecidas, como, por exemplo, os valores inicialmente
depositados no Museu. “AGMN, Doc N.32, pasta 1: Ordem para recolher
coleção de diamantes ao Tesouro Nacional”.
Dentro do quadro em que o Museu vai adquirindo seu perfil institucional
e criando sua autonomia, a ingerência do imperador, principalmente a exercida
no segundo reinado, nos assuntos ligados às instituições científicas, nas quais
o Museu se enquadrava, pode ser vista no comentário de Murilo de
Carvalho170, que apresenta sinteticamente muitos dos pontos vistos na
pesquisa com relação à Instituição e ao Segundo Reinado.
“Mostra um imperador democrático apesar do paradoxo político, no entanto que como qualquer chefe de governo tinha suas belicosidades e vaidades no caso literárias e científicas e esse quadro menos próximo da perfeição do que o geralmente traçado, regia a vida das instituições científicas e intelectuais da época, um quadro de incentivo e probidade administrativa.”171
Um dos fatores a ser abordado é a formação de um quadro de
funcionários capazes de dar conta das tarefas às quais a instituição científica
se propunha. Em primeiro lugar, o Museu necessitava de um quadro de
funcionários especializados, com conhecimento e comprometimento científico.
Esses funcionários necessitavam de um corpo auxiliar que, com
conhecimentos bastante elaborados para a época, se dispusessem a exercer
funções que envolviam diretamente o serviço prático e manual, muito mal visto
em uma sociedade escravocrata. Preparadores, coletores e guardas da
coleção não podiam ser figuras que encarariam o serviço da instituição como
uma “posta” e um ganho, era preciso conhecimento, treinamento e dedicação,
o que causava dificuldades, como a apontada por Candido, abaixo, sobre o
funcionalismo público em geral durante o Império .
170CARVALHO, José Murilo de. D. PEDRO II.Companhia das Letras,2007, SP. 171Idem
149
“Num país como o Brasil do século XIX, ser funcionário público era estar perto dos donos do poder, de maneira crescente na medida em que se dava a subida na escalada, tudo era mais distintivo do que hoje. Ser funcionário era ‘ter uma posta’. Mas ser funcionário dependia de muita coisa. Dos favores, do parentesco e até da habilitação. Os burocratas realmente habilitados deviam se ressentir, como se vê nesses relatórios, da presença dos penetras sem qualificação funcional, nomeados por pistolão e desmoralizando a carreira.”172
Outro fator também apreendido por Silva173 foi o hábito administrativo,
herdado da fase de Reino Unido, de vários cargos serem ocupados pelas
mesmas pessoas, não só em conselhos consultivos, mas também em cargos
administrativos de fato, como por exemplo Luis Riedel, diretor da Seção de
Botânica do Museu e Diretor do Passeio Público. Além dessa acumulação,
existem várias acumulações oficiais como a que coloca Manuel de Araújo Porto
Alegre como diretor da quarta seção do Museu, mesmo esse residindo em
Berlim e Lisboa consecutivamente e tendo pedido desligamento oficial da
função antes de embarcar para Berlim.
Para demonstrar essa situação, compus um quadro dos nomes que
ocupavam posições nas principais instituições de interlocução de 1844, ano em
que todos os cargos oficiais passam a ser publicados no ALMANAK do
Império174, até 1876, observando um espaço entre os quadros, de quatro a
cinco anos, de acordo com o ritmo das mudanças
A partir de 1876, o quadro de funcionário do Museu se amplia, devido à
reforma do regimento, fazendo com que a demonstração de um quadro mais
geral seja tão extensa que se torne pouco produtiva. Outras instituições
também multiplicam seus quadros, como a Secretaria de Negócios
Estrangeiros. Vale lembrar, no entanto, que as relações se ampliam, inclusive
em termos do aparecimento de mecenatos para a ciência. O quadro demonstra
não só a ocupação como a mudança de cargos, e principalmente a escolha da
172CANDIDO , Antônio -Um Funcionário da Monarquia .Ensaios Sobre o Segundo Escalão. Rio de Janeiro:Ouro sobre Azul,2002,p.11 173SILVA, Maria Beatriz Nizza. Op.cit. 174ALMANAK DO IMPÉRIO.Disponível na INTERNET via http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/almanak. Consultado em 10 a 12 de 2007
150
representação externa brasileira, que, nos seus primeiros tempos, era
realizada, por quadros que integravam um corpo intelectual nascente da nação:
Quadro de Titulares de Cargos e Instituições
Ano Museu Nacional Campo D Aclamação, esquina com rua da Constituição (antiga rua dos ciganos)
Instituto Histórico e Geográfico
Colégio Imperial D. Pedro II Antigo Edifício da Igreja São Joaquim, Rua da Imperatriz
Academia de Belas Artes
Secretária de Negócios Estrangeiros Campo D Aclamação 11, lado da Rua do Conde
1844 Frei Custódio Serrão Diretor Geral e da Seção de Mineralogia, Geologia e Ciências Físicas Manoel de Araújo Porto Alegre Diretor da secção de Numismática e Artes liberais, Arqueologia, Usos e Costumes das Nações Modernas. Luis Riedel Diretor da Secção de Botânica Emilio Joaquim da Silva Maia Diretor da Seção de Anatomia Comparada e Zoologia
Manoel Ferreira Lagos Segundo Secretário Perpetuo Emilio da Silva Maia Sócio efetivo Frei Custódio Alves Serrão Sócio efetivo Manoel de Araújo Porto Alegre Sócio efetivo Domingos Gonçalves Magalhães Sócio efetivo Francisco Freire Alemão Sócio correspondente
Dr.Domingos Gonçalves de Magalhães Professor de filosofia Emilio Joaquim Silva Maia Professor de História Natural
Manoel de Araújo Porto Alegre Professor de Pintura
1850 Francisco Leopoldo César Burlamaque Diretor Geral do Museu e da Seção de Mineralogia Manoel de Araújo Porto
Manoel de Araújo Porto Alegre 3o vice-presidente: Secção de Arqueologia e Etnografia Americana Manoel
Dr.Domingos Gonçalves de Magalhães Professor de filosofia Emílio da Silva Maia Professor de Ciências Naturais
Capitão Honorário Manoel de Araújo Porto Alegre Diretor
Manoel Ferreira Lagos Arquivista Antônio Gonçalves Dias (em comissão)
151
Alegre Diretor da secção de Numismática e Artes liberais, Archeologia,Usos e Costumes das Nações Modernas. Luis Riedel Diretor da Secção de Botânica Emílio Joaquim Silva Maia Diretor da Secção de anatomia Comparada e Zoologia
Ferreira Lagos Secretário Perpetuo
Antônio Gonçalves Dias Professor de História do Brasil e Latim Antônio Gonçalves Dias Professor de História do Brasil e Latim
1855 Francisco César Burlamaque Diretor da Seção de Mineralogia E Diretor Geral do Museu Manoel de Araújo Porto Alegre Diretor da secção de Numismática... Riedel Luis Diretor da Secção de Botânica Emílio Joaquim Silva Maia Diretor da Secção de anatomia Comparada e Zoologia Guilherme Süch Capanema Adjunto da Seção de Mineralogia
Manoel de Araújo Porto Alegre Primeiro Secretário Joaquim Manoel Macedo Segundo Vice- Presidente
Dr.Domingos Gonçalves de Magalhães Professor de filosofia Emilio Joaquim Silva Maia Professor de Ciências Físicas Joaquim Manoel de Macedo Professor de Geografia e História do Brasil
Manoel de Araújo Porto Alegre Membro Honorário, Professor Jubilado e ex-Diretor
Dr.Domingos Gonçalves de Magalhães Encarregado de Negócios Manoel Ferreira Lagos Oficial Antônio Gonçalves Dias Oficial
1859 Francisco César Burlamaque Diretor da Secção de Mineralogia e Diretor Geral do
Joaquim Manuel de Macedo Segundo Vice-presidente, comissão
Joaquim Manuel de Macedo Professor de Geografia e história do Brasil Emílio Joaquim
Secção de ciências e acessórios; Anatomia das Paixões Dr. Luiz da
Dr.Domingos Gonçalves de Magalhães Encarregado de Negócios
152
Museu. Manoel de Araújo Porto Alegre Diretor da secção de Numismática... Luis Riedel Diretor da Secção de Botânica Emílio Joaquim Silva Maia Diretor da Secção de anatomia Comparada Guilherme Süch Capanema Adjunto Secção de Mineralogia
subsidiaria de história Manoel de Araújo Porto Alegre Primeiro Secretário, Comissão de Arqueologia e Etnologia. Emílio Maia Revisão de manuscritos
Silva Maia Professor de Zoologia
Fonseca Arqueologia; vago Professor Honorário: Guilherme Capanema
Estrangeiros Espanha Antônio Gonçalves Dias Oficial Manoel Ferreira Lagos Oficial
1865 Francisco César Burlamaque Diretor do Museu e Diretor da Secção de Mineralogia Guilherme Süch Capanema Adjunto Secção de Mineralogia Manoel de Araújo Porto Alegre Diretor da secção de numismática Residente em Berlim José Thomas de Oliveira Bastos Adjunto secção de Numismática... Manoel Ferreira Lagos Bibliotecário
Joaquim Manuel de Macedo Segundo Vice-presidente, comissão de trabalhos geográficos Guilherme Capanema Comissão de Arqueologia e Etnologia. Francisco Freire Alemão Comissão de admissão de sócios Manuel Ferreira Lagos
Joaquim Manuel de Macedo Prof de História do Brasil
Pintura Histórica José Reis de Carvalho Professor Honorário José Reis de Carvalho História das artes, estética e Arqueologia Vago
Diretor interino da 1a Seção e primeiro oficial. Manoel Ferreira lagos Corpo diplomático e consulado Áustria Ministro Presidente: Domingos José Gonçalves Magalhães Prússia Cônsul Geral Manoel de Araújo Porto Alegre Residente em Berlim
1870 Francisco Freire Alemão Diretor Geral do Museu e da Secção de Botânica
Segundo Vice- Presidente e orador Joaquim Manoel de Macedo
Professor de História Antiga Manoel Duarte Moreira de Azevedo Prof de História
Pintura Histórica Victor Meirelles História da Arte História e Arqueologia Pedro Américo
Primeiro Oficial Manoel Ferreira Lagos Corpo Diplomático Áustria
153
Guilherme Süch Capanema Adjunto Secção de Mineralogia Manoel de Araújo Porto Alegre Diretor da secção de numismática Residente em Berlim José Thomas de Oliveira Bastos Adjunto secção de Numismática. Manoel Ferreira Lagos Bibliotecário Ladislau de Souza Mello Santos Netto Adjunto Secção de Botânica
Comissão de trabalhos em História Comissão de Estatutos e redação da Revista Francisco Freire Alemão Comissão de Arqueologia e Etnologia Guilherme Capanema Comissão de Geografia Manoel Duarte Moreira de Azevedo Comissão de admissão de sócios
Natural Antônio Maria Corrêa e Sá Benevides. Professor de Corografia e História do Brasil Joaquim Manoel de Macedo
de Figueiredo e Mello Professor Honorário Guilherme Capanema Professor Jubilado da Academia Manoel de Araújo Porto Alegre
Ministro residente Francisco Adolfo Vanhagen Manuel de Araújo Porto Alegre Cônsul Geral Lisboa Gonçalves Magalhães Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário Conselheiro Estados Unidos da América
1876 Ladislau de Souza de Mello Santos Netto Diretor geral e da segunda seção 1a Seção João Joaquim Pizzaro Antropologia,Zoologia Geral e Aplicada e Paleontologia Vegetal Carlos Frederico Hartt 3a Ciências Mineralogia e Geologia e Paleontologia Geral
Joaquim Manoel de Macedo 2o Vice-presidente Manoel Duarte Moreira de Azevedo Comissão de Estatutos e redação da Revista Francisco Freire Alemão Comissão de Arqueologia e Etnologia Guilherme Capanema Comissão de Geografia
Prof de História Natural Antônio Maria Corrêa e Sá Benevides. Professor de Corografia e História do Brasil Joaquim Manoel de Macedo Prof de História Antiga Manoel Duarte Moreira de Azevedo
Pintura Histórica Victor Meirelles História da Arte História e Arqueologia Pedro Américo de Figueiredo e Mello Professor honorário dessa seção Guilherme Capanema
Barão de Santo Ângelo Manuel de Araújo Porto Alegre Cônsul Geral Lisboa Visconde do Araguaia Gonçalves Magalhães Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário Conselheiro Vaticano
154
A ligação entre Museu e IHGB é praticamente total. No primeiro quadro,
podemos ver que apenas Luis Riedel não é sócio do IHGB. Alguns nomes que,
nele, aparecem no vão, aos poucos, se aproximando do Museu e vice-versa.
Por exemplo, Manuel de Araújo Porto Alegre era do IHGB, antes der convidado
para a Quarta Seção, já havia demonstrado seu interesse no Instituto por
Arqueologia e Etnologia. Francisco Freire Alemão colabora de forma bastante
efetiva no Instituto antes de ser chamado para a sua direção geral. Já outros
nomes, como Ladislau Neto, vão do Museu para o Instituto em uma segunda
fase das relações posterior a 1860.
Algumas relações não passam necessariamente pelos quadros de
funcionários do Museu, como no caso de Gonçalves Dias, formador de coleção
e interlocutor de Manuel de Araújo Porto Alegre, Diretor da Quarta Seção.
Outro interlocutor Gonçalves Magalhães, escritor, vai se dedicar à carreira
diplomática com intensidade chegando a postos de prestígio. Sua forma de
interlocução ocorre por meio das discussões impetradas no IHGB, onde se
empenha no debate da formação do povo brasileiro, Gonçalves Dias e
Gonçalves Magalhães eram partícipes das idéias que Porto Alegre traria para
sua curadoria no Museu. Os três fechavam um cerco ideológico em defesa dos
indígenas, nos termos da época, na capacidade do elemento indígena ser
civilizável e compor a população brasileira harmonicamente. Essa posição
ecoava no Museu, em suas Exposições e publicações, e se contrapunha a
Vanhagen (diplomata como Magalhães) que discorria sobre a ferocidade do
indígena e sua incapacidade de integrar uma sociedade brasileira moderna e
progressista.
O governo imperial oscilava entre posições e apoios. Nas comissões das
Exposições Universais, por exemplo, em 1862, a representação brasileira,
levada a Londres por Manuel Ferreira Lagos, continha material indígena
coletado por Gonçalves Dias, em Paris, 1967, sendo Manuel de Araújo Porto
Alegre encarregado da sua montagem. Já em Viena, 1973, Vanhagen é chefe
da Comissão, não existindo, nela, representação dos indígenas, e Porto Alegre
sequer tem permissão para se hospedar em terra, como menciona Rebouças,
155
em seu diário175: “O Porto Alegre ficará a partir de 23 em vapor de Lisboa por
falta de recursos pecuniários e de ordem do governo.”
Por um lado, eram apoiados enquanto artistas e literatos, no caso de
Gonçalves Dias, recebeu uma comenda, mesmo sem estar muito inclinado
para aceitá-la. No caso de Gonçalves Magalhães, foi seu fiel defensor quando
a publicação da Confederação dos Tamoios, feita às suas expensas, foi
criticada. No entanto, quando entrevam posições que afetavam as posições do
Estado, ou mesmo as administrativas, agia com bastante cautela. Seu apoio a
Agassiz e Vanhagen era público. Na ocasião da pendência de Manuel de
Araújo Porto Alegre, na direção da Academia de Belas Artes, sua decisão foi
aceitar a demissão do mesmo. A posição dos mesmos como editores de
órgãos de imprensa não oficiais, provavelmente, era levada em conta, apesar
dos mesmos nunca atacarem diretamente a figura imperial. Já o governo era
bastante criticado, principalmente quanto á ineficiência de seu funcionamento
burocrático.
Posições opostas também se dão na mesma instituição e, por vezes, no
grupo social mais próximo. Joaquim Manuel de Macedo, editor da revista
Guanabara, junto com Gonçalves Dias e Porto Alegre, vai, aos poucos, se
aproximando das idéias de Vanhagen e difundindo-as, já que, ao lecionar no
Colégio Pedro II, na cadeira de História, sucedendo Gonçalves Dias, vai redigir
um compêndio, que resume as idéias de Vanhagen, em oposição ao ensino na
cadeira de História do Brasil do Colégio Pedro II na época em que Dias ensinou
com um compêndio mais liberal, em suas opiniões, a respeito do indígena.
Joaquim Manoel de Macedo também é um dos redatores encarregados da
Exposição de Filadélfia, mas, nessa exposição, a parte indígena foi escrita por
Couto Magalhães, com seu livro “O Selvagem”, que prega absorção pacífica do
elemento indígena e a importância da composição do elemento indígena na
formação do brasileiro.
Dentro do perfil de vários cargos, também podemos ver o das
especializações. Macedo vai se especializando em Política, tendo vários
mandatos na Assembléia Geral, utilizando-se de seu poder como escritor e de
175REBOUÇAS, André- Diário, op.cit, p.239.
156
sua credibilidade no IHGB, para escrever livros como a “Carteira de Meu Tio”,
no qual ironiza o sistema eleitoral, sem, no entanto, abdicar de participar do
mesmo, além de manter seu cargo de professor do Colégio Pedro II até a
morte. Gonçalves Magalhães se mostra um escritor e diplomata dedicado,
galgando postos, como o cargo de Ministro Plenipotenciário, mas não
alcançado o baronato.
Outros, no entanto, permanecem com perfis e cargos múltiplos, como
Manoel Ferreira Lagos. Ele cursou Medicina, sem defender tese, e a Academia
de Belas Artes, chegando a expor na classe de Escultura. Tornou-se Zoólogo,
Bibliotecário e Oficial da Secretaria de Negócios Exteriores, chegando a ser
considerado um dos maiores bibliófilos brasileiros do período, tendo, em sua
biblioteca, cuja maioria dos livros versava sobre assuntos brasileiros, mais de
quatro mil volumes. Após sua morte, a Biblioteca Nacional comprou a maior
parte da coleção: 3.475 volumes, 300 manuscritos e 146 mapas.
Sua trajetória aponta um início de carreira ligado a conhecimentos
efetuados no IHGB, onde se tornou Secretário Perpétuo. Logo depois, passa à
Secretaria de Negócios Estrangeiros, chegando a Primeiro Oficial da mesma,
mantendo um posto, e, ao mesmo tempo, articulando mudanças em um quadro
funcional. No Museu, apesar de ausência do título de Doutor, pois fez
faculdade de Medicina, mas não defendeu tese, é admitido como adjunto da
Zoologia, passando a Titular. Exerce também o cargo de bibliotecário do
Museu. Uma vida funcional bastante diversificada e de uma forma bastante
singular, muito bem entrelaçada e tecida ao longo dos anos.
Através de personagens com múltiplos cargos e encargos, vão se
formando as relações institucionais. Também surgem as primeiras dedicações
exclusivas à instituição, como a de Ladislau Neto, que dedica sua vida
profissional ao Museu, tendo assumido postos no IHGB e na Sociedade
Auxiliadora Nacional, de uma forma que hoje se convencionou chamar de
representação institucional. Sempre discutindo e se empenhando pela
instituição, sua projeção e seus direitos, Ladislau Neto marca a mudança de
um forte caráter pessoal na curadoria das coleções exercidas até então e a
157
manutenção de relações interinstitucionais representadas por um curador,
principalmente a partir de 1870.
3.1.1 Instituições de Interlocução
Como primeira instituição de interlocução, apontamos a Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional, criada em 1825, por Álvares Pinto de
Almeida, tendo, desde a fase da elaboração de seu estatuto, estabelecido
diálogo com o Museu Nacional na figura de seu diretor de então, Dr.
Caldeira176. Criada no espírito da ilustração e como uma sociedade de classes,
propunha-se a ter um caráter científico177. A Sociedade, que contava com um
número significativo de membros, teve sua sede no Museu Nacional, até a sua
transferência na gestão de Ladislau Netto. Apesar de membro da referida
sociedade, lutou por sua saída das dependências do Museu, como deixa claro
em suas “Investigações”. A sociedade foi responsável por diversos eventos
relacionados diretamente ao Museu, entre eles, a primeira Exposição Nacional
de 1861, em que atuou na organização geral e escolha dos artefatos a serem
expostos, tendo seus membros, como o Barão de Mauá, trabalhado
intensamente para a realização da mesma.
A atuação da Sociedade Auxiliadora, ainda pouco estudada, aponta para
um respeito à monarquia, evidenciado, por exemplo, nas normas da montagem
da exposição, sendo, no entanto, menos interligada diretamente ao apoio do
monarca e à sua presença do que viria a ser o Instituto Histórico e Geográfico.
176NETTO, Ladialau,-Investigações- RJ: Instituto Philomatico- 1870, p.38/40 177BARETO, Patrícia Corrêa Sociedade Auxiliadora Nacional. XVII Encontro de História ANPHU
158
A Sociedade me parece mais próxima do que Elias178 identifica como a luta
presente no século XIX, de classes empresariais urbanas contra o domínio das
classes superiores tradicionais. Um de seus membros mais ativos viria a ser
Irineu Evangelista da Silva, o futuro Barão de Mauá, empresário, muitas vezes,
em choque com o os interesses mais tradicionais da monarquia.
Em 21 de outubro de 1838, criou-se o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, o IHGB, inspirado no Institut Historique, fundado em Paris, em 1834.
Membros da "boa sociedade", figuras importantes da elite econômica e literária
do Rio de Janeiro, associaram-se de imediato. Desde a sua inauguração, o
IHGB contou com a proteção de D. Pedro II, expressa por uma ajuda financeira
que, a cada ano, significava uma parcela maior do orçamento do Instituto. Mas
foi somente a partir de 1840 que o Imperador, além de participar
freqüentemente de suas sessões, tornou-se o grande incentivador da
Instituição. Cabe-nos acrescentar que, na sua ata de fundação, consta que o
Instituto foi fundado sob os auspícios da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional, fato esse pouco lembrado na escrita da história do Instituto, que dá
preferência a sublinhar o papel de D. Pedro II. Bertol Domingues179 menciona o
fato de o IHGB, aos poucos, se distanciar da Sociedade Auxiliadora e aumentar
seus vínculos com o Estado. O Imperador chegou a presidir quinhentas e seis
sessões do Instituto.
O Colégio D. Pedro II, criado em 1837, também pode ser considerado
como instituição interlocutória, uma vez que seu quadro de docentes contava
com grande parte dos membros do IHGB e com alguns dos diretores do Museu
Nacional. Manuel de Araújo Porto Alegre lecionou Desenho, cadeira herdada
de Gonçalves Magalhães. Gonçalves Dias lecionou História. Além do fato dos
compêndios de História, elaborados e utilizados no Colégio Pedro II, Abreu e
Lima e Joaquim Manuel de Macedo comportam uma visão do indígena a ser
transmitida por toda uma geração educada no Colégio, a partir da década de
40, e que vai até o final do século XIX.
178ELIAS Nobert. Processos de Formação do Estado e Construção da Nação. [Processes of state formation and nation building] Tradução de Kenzo Paganelli.In: INTERNATIONAL SOCIOLOGICAL ASSOCIATION.Transactions at the Seventh World Congress of Sociology. Varna: International Sociological Association, V.III 179DOMINGUES, Heloísa Bertol, op.cit.
159
Fundada por membros do Museu em 1850 e sem os compromissos da
boa sociedade, surge a Sociedade Velosiana, interrompida em 1855 e com
retorno em 1870. Ambas as ocasiões foram presididas por Francisco Freire
Alemão, tendo como membro Frederico Cezar Burlamaque (futuro diretor do
Museu) e Guilherme Capanema, Diretor Adjunto de Mineralogia. A seção de
Linguística Indígena foi presidida por Antonio Manuel de Melo. A Sociedade,
apesar de uma vida breve, serviu para congregar membros interessados na
pesquisa científica, com a leitura de várias memórias referentes a diversas
ciências, entre elas, a Linguística, conforme documentos no AGMN, sendo
algumas dessas publicadas pela revista “GUANABARA”. Seus estatutos
lembram a estrutura organizacional do próprio Museu, bem como seus
objetivos, destacando-se, no entanto, seu caráter de grupo voltado para
estudos científicos, pela proposição de envio e leitura das obras. Como os dois
títulos de que temos registro na documentação do AGMN: Viagem ao
Tocantins, de Manoel Lourenço de Souza, e uma memória sobre os radicais
indígenas da palavra pitanga. Também presente, na documentação, está o
regimento da sociedade, dando destaque à História Natural e à Linguística,
transcrito abaixo:
“Estatuto da Sociedade Velosiana do Rio de Janeiro 1870 Art.1º A Sociedade Velosiana tem por fim indagar, coligir e estudar todos os objetos pertencentes às ciências naturais, com particularidade os pertencentes à história natural do Brasil, e juntamente averiguar e interpretar as palavras indígenas com que forem esses objetos designados. Art.8º A sociedade será dividida em 4 secções que serão como comissões permanentes, a saber; a de Zoologia, a de Botânica, a de Geologia e Ciências físicas, a de Etnografia e Arqueologia , cada uma elegerá um diretor e um secretário. Art.3º Sócios efetivos são os que ocupando-se com o estudo das ciências naturais, e dedicando-se a elas teórica ou praticamente, tem residência mais ou menos permanente no Império. Sócios correspondentes, os que possuindo as mesmas habilitações, residem entretanto nas províncias ou em países estrangeiros. Sócios honorários aquelas pessoas respeitáveis e distintas por seu saber em ciências naturais, ou pela publicação de obras e escritos originais relativos a qualquer dos ramos d’estas ciências, ou por serviços relevantes que hajam prestado quer a eles em geral, quer a esta sociedade em particular. Art.17º Qualquer trabalho, memória, livro impresso ou manuscrito, que for apresentado à sociedade por pessoas a ela estranhas, será enviado à respectiva secção a qual dará parecer acerca de seu merecimento”. 24/07/1870
160
Construindo relações profícuas, os diretores do Museu Nacional de
meados do século foram sócios atuantes, quer do IHGB, quer da Sociedade
Velosiana, quer da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Eram também
responsáveis, ao lado de outros naturalistas e interessados nas práticas
científicas das demais instituições da corte, pelas principais iniciativas
científicas nesse campo, no período. Como a proposta de Exploração Interna,
que originou a Comissão Cientifica do Ceará, levada posteriormente ao IHGB,
por Manoel Ferreira Lagos, também membro da Sociedade Velosiana. Os
resultados dessas relações foram evidenciados com o crescimento dos
quadros de funcionários do Museu, de suas coleções e da visibilidade do
trabalho desenvolvido pelo Museu, através de Exposições, Publicações ou
relatos das pesquisas em andamento, efetuados nessas instituições.
Uma das relações importantes é a que se efetua entre Manuel de Araújo
Porto Alegre e Gonçalves Dias, comprovada de várias maneiras. Essa relação
entre o curador da coleção e um intelectual, que poderia ser considerado como
um etnólogo, como marca Kury180, ao considerar que “a abordagem de
Gonçalves Dias foi bem diferente do indianismo de gabinete da primeira
geração romântica. A investida estética e intelectual do poeta maranhense teve
suporte antropológico”. Já Antônio Candido181 o denomina de primeiro talento
do romantismo, que parece finalmente configurar-se com ele, para além dos
programas e intenções, um conjunto de boa qualidade sobre o índio. Enfatiza
ainda que são os únicos versos realmente belos dessa tendência, não porque
correspondam etnograficamente ao que o índio foi, mas, ao contrário, porque
construíram dele uma imagem arbitrária que permite recolher no particular da
realidade brasileira a força dos sentimentos e das emoções, comum a todos os
homens.
Há duas visões diferentes para Dias, um autor que procurou eficiência
nas duas áreas em que atuou inclusive no período de sua atividade mais
intensa como “etnógrafo”. Não produz poesia, de 1857 a 1861, apesar da
180KURY, Lorelay- A Comissão Cientifica de Exploração in: Ciência, Civilização e Império nos Trópicos- org. Heizer,A. & Videira,A.A.-RJ: Access-2001, p.46. 181CANDIDO, A. O Romantismo no Brasil, Antônio Candido. FFLCH/ USP. SP: HUMANITAS, 2002.
161
polêmica sobre não ter escrito a história da Comissão, principalmente como se
imagina hoje o que seria a história da Comissão e os relatos etnográficos. Foi
membro ativo do Instituto Histórico, mas preservando caráter independente,
sendo mencionado por Machado182 como aquele que quase recusou uma
comenda, achando a despesa desnecessária. Escreveu bastante sobre a
questão indígena antes da viagem ao Rio Negro, expondo suas idéias em
textos como: “o Brasil e a Oceania”, ou na revista Guanabara. De posse de
material observado nas viagens, recua: se, em cartas, descreve a paisagem,
cala sobre o homem ou diz pouco, de forma abreviada, contrariando seu estilo.
No entanto, em sua práxis de redigir os relatórios, pode ser aferida sua
perspectiva naquele que redige sobre a Educação no Solimões, demonstrando,
além do empenho, as observações de alguém perceptivo o suficiente para
entender que, com o modo de vida local, a educação indígena representava
um esforço bem maior do que o simples investimento em criar uma escola e
alocar um professor: “Para dizer a um destes que mande seu filho à escola,
que não os tire de lá antes de aptos, é ordenar que redirecionem a norma da
vida”.183 Dias, após a extinção da Comissão, segue viagem de tratamento de
saúde para a Europa e trava conhecimento com C. Martius, no período em que
estaria redigindo ou elaborando mentalmente seus relatos da viagem ao Rio
Negro. Cabe lembrar que, nesse período, Porto Alegre (redator das normas da
Comissão) era cônsul em Dresden. Portanto, na época em que recebia as
pranchas do material etnográfico litografadas, Dias se encontrava em um
ambiente propício à discussão sobre o material.
A importância das relações de Gonçalves Dias no Museu passa por
vários momentos, e por duas amizades pessoais, Porto Alegre e Capanema,
Diretor da Anatomia Comparada do Museu e companheiro de viagem, durante
a expedição científica do Império. Mas a rede social não se congela, o ciclo se
estende a outros nomes e a outras instituições intimamente ligados na época.
Entre elas, estão a já mencionada de Manoel Ferreira Lagos e a de Francisco
Freire Alemão, membro do Instituto desde sua criação, que mais tarde vai
182MACHADO, Ubiratan- op.cit. 183MONTELLO, Josué-. op. cit..
162
dirigir o Museu, assim como figuras que primeiro se tornam conhecidas no
IHGB, passam a dirigir seção no Museu e vice-versa.
Ladislau Netto também foi membro do IHGB e expandiu suas relações
pessoais muito além das fronteiras nacionais. Consta, em uma de suas
biografias, redigida por Costa184, faz menção, por exemplo, à sua amizade com
Ernest Renan. Sua correspondência com membros de instituições estrangeiras
e seus esforços para integrar o Museu Nacional no circuito de troca
internacional são evidentes e alcançados, em parte, com a publicação dos
Arquivos do Museu Nacional que passa a ser permutada com publicações de
instituições de renome. Esforça-se também no sentido de permuta de coleções,
com menos sucesso.
As relações entre o Museu Nacional e a Academia Imperial de Belas
Artes foram bem mais próximas no século XIX, não só por ser o Museu a
instituição que, por um período, abrigou a Academia no prédio do Museu em
1822185. As relações tiveram continuidade, através de Manoel de Araújo Porto
Alegre, não só nos nomes que exercerão funções na Academia, como também
nos nomes da Academia que participarão do Conselho do Museu Nacional,
como Victor Meirelles. Além disso, havia a participação de pintores da mesma,
quando necessário nas atividades do Museu, como a atuação de Décio Villares
e Aurélio de Figueiredo, que pintaram os quadros a óleo para a Exposição
Antropológica de 1882.
A Secretaria de Negócios Estrangeiros, mais tarde Ministério dos
Estrangeiros, teve, ao longo do século XIX, um crescimento acelerado. Suas
relações com o Museu são bastante significativas e vão além dos nomes em
comum, como Manuel de Araújo Porto Alegre e Manoel Ferreira Lagos, que
oficialmente integraram as duas instituições por um período. Mas a rede de
relações foi tecida também a partir do IHGB, onde o corpo diplomático como
um todo figurava como sócio. A Secretaria de Negócios Estrangeiros também
passaria a se relacionar mais diretamente com o Museu, face ao caráter
184COSTA, A.- Ladislau Netto in: Indiologia.RJ. Ministério do Exército 185“vemo-lo dar agasalho em, em janeiro de 1822, à Academia de Belas Artes e ao seu diretor, Henrique José da Silva, á pretexto de se tornar oneroso ao estado o aluguel do prédio em que então trabalhava”. P.28/29 in “Investigações”. Ladislau Netto, RJ: Instituto Philomático, 1870
163
diplomático assumido pelas Exposições Universais, nas quais o Museu passa a
ter sempre um envolvimento cada vez mais valorizado. Nesse período, inicia-se
um caráter que vai ser desenvolvido ao longo do século XX e tem sua
continuidade no século XXI: o caráter diplomático das exposições nos grandes
centros difusores da cultura, como nos países europeus.
Podemos começar a exemplificar o relacionamento entre a Secretaria e
o Museu com o relato em Missão, elaborado por Gonçalves Dias e Raja
Gabaglia, da Exposição de Paris, 1855. Antes da Comissão Científica do
Império com dois membros do Ministério, ambos oficiais da Secretaria,
Gonçalves Dias e Manuel Ferreira Lagos. Eles montariam conjuntos
importantes para a Primeira Exposição Nacional preparatória para a Exposição
de Londres. A atuação de Manoel Ferreira Lagos, como uma das pessoas
encarregadas de supervisionar a montagem geral da mesma, lhe garantindo
um lugar de maior destaque na Exposição de Londres e referenda seu cargo
de Primeiro Oficial da Secretaria. Manoel Lagos era Adjunto da Seção de
Zoologia do Museu, passando a Diretor e responsável pela biblioteca do
Museu, a partir de sua criação em 1863, continuando a atuar na Secretaria
como Primeiro Oficial e membro ativo do IHGB, como demonstra o quadro.
Os possíveis desentendimentos e disputas internas na Secretaria (Dias x
Lagos), observados na correspondência de Dias com Capanema (também
Adjunto no Museu), no entanto não influenciaram que o material de ambos
fizesse parte da Exposição Nacional e Universal, na representação harmônica
de uma nação, através das suas diferenças, garantida pelo material coletado e
exposto por Dias (Amazônico), e pelo material coletado e exposto por Lagos
(Ceará). Também se pode observar a permanência de ambos na Secretaria:
Dias normalmente encarregado de missões de viagens, e Lagos, de um
trabalho baseado na corte.
A formação de quadros especializados vai fazer com que os nomes, ao
invés de constarem em lista das mesmas instituições como funcionários,
passem a se encontrar apenas nas Instituições de discussão e representação
como o IHGB e em grandes representações da Nação, como nas Exposições
164
Universais, nas quais Ladislau Neto, representando o Museu, vai ganhar um
espaço precioso.
3.2 Aquisição das coleções, os interesses científicos da Instituição
Como foi mencionado na Introdução, o Museu Nacional foi criado com
o intuito não só de expandir uma coleção inicial, mas de formar uma coleção. A
partir desse dado, cria-se uma tensão entre os interesses do governo imperial,
os de subordinar a coleta de acervo a locais onde seus interesses
expansionistas se manifestassem, e inversamente o interesse institucional, o
de coletar acervo que demonstrasse e/ ou provocasse interesse científico.
Diversas são as tentativas de contratação de naturalistas viajantes. As
respostas do governo, invariavelmente, solicitavam o envio de normas de
coleta para que seus funcionários em missão pudessem executar e enviar
material aproveitável ao Museu. Uma dessas respostas, redigida por Frei
Custódio Serão, discrimina as pretensões de uma aquisição científica.
“Em resposta ao oficio de V.S. em que (...) declaro que serão importância para o museu todos os produtos naturais da Província do Pará; pois se alguns possuímos são raros e despidos de esclarecimentos a que deveriam maior parte de seu valor. Desses objetos apontamos os seguintes: Esqueletos de quadrúpedes encontrados, pelo menos o crânio e as patas acompanhados do sistema dentário e das unhas, os peixes, répteis e moluscos que por suas dimensões possa ser conservado, mostras de madeira de construção. Lâminas transversas, contendo a casca, (...) espécies mineralógicos e de rochas que possam indicar a natureza do Terreno. Objetos de uso dos indígenas que esclarecerão seus costumes, sua indústria, sua nacionalidade ou diferença como tribos distintas. Frei Custódio Alves Serrão”.186
Anos mais tarde, podemos ver o desabafo dos danos gerados por essa
política na resposta de Ladislau Netto, dada ao ministério a respeito das
186AGMN.Doc. 29
165
críticas de Louis Agassiz187 ao Museu Nacional. Agassiz começa sua
correspondência com D. Pedro II, em 1863. Em 1865, com a expedição Thayer
já estruturada, escreve discorrendo sobre seu interesse em estudar a
embriologia dos animais amazônicos, e sua visão de que a origem das
espécies deveria ser discutida à luz do material brasileiro. Segundo Freitas188,
“O cientista jogava com a vaidade das pessoas e, agindo através dos
intermediários, sabia transformar seus interesses pessoais em demandas
daqueles de quem ele, na realidade, necessitava de ajuda”. Dessa forma,
Agassiz e os membros de sua comissão desembarcam no Rio de Janeiro com
um diálogo pré- estabelecido com D. Pedro II. Suas criticas às instituições da
corte, como o Colégio Pedro II e o Museu Nacional, aparecem no relato da
viagem, cuja publicação é dedicada a D. Pedro II. Indiretamente o Imperador
faz uma cobrança ao Museu quanto às criticas, em documento enviado pelo
ministério. Pela resposta de Ladislau, podemos avaliar o grau de dificuldade do
Museu, enquanto instituição, e das suas relações com o governo:
“Acabo de ler as observações do Professor Agassiz sobre o Museu Nacional na sua “A Journney in Brasil” e convinha respondê-las pela parte que me compete neste estabelecimento. O Museu Nacional, e portanto a secção a meu cargo, não pode competir com as coleções de História Natural que mais se distinguem atualmente no velho mundo, e nem excedem de um número limitadíssimo estes estabelecimentos tipos, notando-se no mais perfeito d’eles lacunas tão sensíveis quanto inevitáveis sempre. O nosso Museu é imperfeito e incompleto confesso. Mas se quando o ilustre professor nos visitou se tivesse indiscretamente declinado ao algarismo de nossas verbas, estou certo de que tais asserções nunca teriam vindo aos lábios e ainda menos a pena. Dê-me um só homem, um simples arborisador como é fácil achá-los e formá-los e eu me encarregarei de provar em seis meses que pelo menos a secção de Botânica do Museu Nacional fôra inconsiderado quem se convenceu de que as coleções aí formadas destinavam-se a permanecer por longos anos em seu estado. Deus Guarde V.Exa. Museu Nacional, 30 de junho de 1868 “189
187Agassiz, defensor do criacionismo em oposição a Darwin, criou o Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard. 188FREITAS, Marcus Vinícius. Hartt, Expedição pelo Brasil Imperial.op. cit. 189AGMN pasta 1868
166
Em suas investigações sobre o Museu Nacional, Ladislau amplia essa
reforma. Durante o século XX, esse documento foi interpretado como fonte de
conhecimento da coleção do Museu, por aqueles que detinham sua guarda.
Sua intencionalidade está bastante relacionada a descrever as dificuldades que
a Instituição enfrentou desde sua criação até 1870. Ladislau descreve, como
época de aumento das coleções, o início da década de 1860, através de dois
correspondentes: Manuel de Araújo Porto Alegre diretor da Seção de
Numismática e Arqueologia e Cônsul Geral do Brasil em Berlim e o Naturalista
Francês L. Jacques Brunet, nomeado por portaria de junho de 1860. No
entanto, Brunet é nomeado para o Ginásio Pernambucano, em 1862. O então
diretor Burlamaque insiste na contratação de outro viajante, conseguindo
apenas Luis Baraquin, que não recebia salário e pouco coletou para o Museu.
A morte de vários membros do Museu e sua consequente desorganização fez
com que a luta por viajantes fosse continuada por Ladislau, que integra a
instituição por decreto de 1865, ocupando o cargo após seu retorno da França
onde estudava Botânica, já no período da direção de Freire Alemão.
Ladislau dedica-se, no epílogo, a responder, mais uma vez, a Agassiz,
de forma velada, defendendo o trabalho da Comissão Científica do Império,
esclarecendo que as críticas à comissão são feitas a “dois ou três exploradores
despretensiosos e sobrecarregados de trabalho, a quem mais não se concede,
além de modestos vencimentos do que o necessário para o transporte de suas
pessoas e de suas coleções”, em contrapartida ao que chama de ostensivas
comissões científicas que, a seu ver, “Não sabem viajar senão parodiando o
astro-rei, cercados de satélite e numerosa comitiva”.
Essa atitude de defesa institucional, no entanto, não vai impedir Ladislau
de criar um diálogo com Charles Hartt, que virá a ser diretor da Seção de
Mineralogia do Museu a seu convite. Fica clara a luta por competência e
verbas, passando obviamente pela contratação de pessoal, principalmente por
viajantes que pudessem fazer uma coleta científica de interesse institucional.
Quando finalmente o Museu consegue contratar novamente um
naturalista viajante, nas instruções enviadas exemplificadas por aquelas
167
enviadas ao Sr. Guilherme Schwacke190, em 22 de julho de 1874, pelo então
Diretor interino Ladislau Netto, afirma-se a preocupação em marcar a
intencionalidade do progresso da ciência.
“No que, porém, mais insisto nestas rápidas instruções com o fim essencial dessa viagem, é nas investigações antropológicas, que espero serão auxiliadas pelas autoridades locais interessadas pela prosperidade das ciências brasileiras, particularmente deste museu que as representa no Brasil(...) Estude como e de que matéria são feitas as armas, as vasilhas ou quaisquer utensílios encontrados nas sepulturas ou usados até hoje, comparando esses objetos entre si.”
A tensão entre os interesses do Museu e os do governo podem ser
exemplificada pelo ocorrido por ocasião da formação e da entrada da coleção
da Comissão do Madeira. No doc.1, pasta 12, do AGMN, constam alguns
elementos sobre os objetivos que nortearam a expedição iniciada nesse ano,
entre eles o de inspecionar os trabalhos de construção da estrada de ferro
Madeira-Mamoré e a medição e demarcação das terras devolutas do Madeira.
Nesse mesmo documento se introduz, de forma incisiva, a relação da comissão
com o Museu Nacional através da ordem do Ministro da Repartição de
Agricultura, para que o Museu forneça ao engenheiro Antônio Alvarez dos
Santos Lima, chefe e inspetor da comissão, instrumentos de coleta específicos:
“três caixas, duas prensas e os objetos necessários para se proceder à
arborização, materiais já requisitados para o serviço da comissão”. Além da
menção específica ao material requisitado, é de notar a omissão de qualquer
referência a instruções relativas ao processo de recolha. Na época era comum
se pedir ao Museu instruções sobre o que e como coletar.
No mesmo ano, 1872, a comissão envia 121 peças ao Museu
acompanhadas de uma lista com a procedência e indicações sumárias de uso
dos objetos. O Museu custa a agradecer formalmente o envio da coleção e a
cumprir a ordem do Ministério de publicar a lista das doações da comissão,
agradecendo oficialmente o recebimento da coleção só em 1875 e publicando
a lista só em 1876. O Museu estava em luta para optar o que receber e por 190AGMN, PASTA 1874.
168
quem. O ministério, irritado, manda diversas solicitações de que o Museu
agradeça a coleção oficialmente. A coleção é importante numérica e
qualitativamente, e bem documentada, apesar de ter dispensado as normas do
Museu, ela se encontra de acordo com elas. Entra, no entanto, em choque com
o tipo de política de aquisição pelo qual a instituição estava lutando, a
contratação do viajante data de 1874. Como conseqüência, até hoje, no livro de
registro, a coleção é mal documentada, omitindo-se o nome do engenheiro e
data das poucas peças com o registro “Comissão do Madeira”.
No entanto, ao empreender esforços para a realização da Exposição
Antropológica de 1882, Ladislau se vê obrigado a solicitar envio de peças pelos
presidentes de Província, o que passa a fazer a partir de 1878, e, com a
proximidade da Exposição, a incentivar qualquer doação de acervo ao Museu
através da publicação do nome dos doadores no Jornal do Comércio. O
esforço para dar visibilidade e conseguir recursos para a exposição valia o
abrandamento do caráter científico das coleções. A exposição de 1882 vai
dobrar as coleções e tornar o conhecimento propagado pelo Museu conhecido
por um público bem amplo através da revista da Exposição.
169
3.3 Implantação de um Quadro Administrativo 3.3.1Funcionamento Geral do Museu
Apesar de ter sempre uma grande suspeita em relação à visão do
Museu Nacional e sua época de ouro ligadas ao Império, a associação da
formação da instituição e da coleção com o nascimento da “Nação” brasileira é
uma tentação ou uma realidade, só que não tão direta, pomposa e enfática,
como por vezes é naturalizado, principalmente associando as benesses do
“Imperador Cidadão”191 D. Pedro II ao progresso do Museu.
Tentando estabelecer as relações entre a administração da instituição
e as coleções durante o período em que essas se formam, pretendo
demonstrar um pouco do funcionamento administrativo da instituição e detalhar
um pouco melhor quem eram os personagens envolvidos com as coleções da
indústria humana.
O Museu Nacional surgiu por decreto real, em 1818, e transformou-se no
local em que deveriam ser recolhidos os objetos dignos de observação e
exame, que poderiam ser empregados em beneficio do comércio, da indústria e
das artes (decreto de criação do Museu Nacional, Doc.1 pasta 1). Esses
objetos variavam da maquinaria da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional à Coleção Werner de Geologia. Nos primeiros anos, tem-se a
impressão de uma grande miscelânea posta aos cuidados de Frei José da
Costa Azevedo, matemático, filósofo, lente da Academia Militar e reconhecido
como grande pregador, tendo vários sermões publicados, e nomeado primeiro
diretor do Museu Real, e de João de Deus de Matos, seu auxiliar e preparador,
antigo aprendiz de Xavier dos pássaros, sempre vivamente ligado às coleções
191 Segundo Schwarcz (1998), como o imperador D. Pedro II preferia ser denominado.
170
de História Natural existentes no Brasil, citado como um grande especialista em
sua arte, a taxidermia (Lopes, 1977, pp. 48).
A formação inicial que podemos constatar por fontes de documento é de
um diretor, um porteiro e, por vezes, um funcionário temporário encarregado
das finanças, para a época, escrivão de receitas e despesas. Tomás Castro
Viana exerce esta última função sem vencimento por um tempo, indo ao Museu
apenas para executar suas tarefas. O porteiro ou guarda do museu era um
cargo bem diferente do que passa a ser a partir do século XX. Na época, eram
funções do porteiro: o cuidado com as coleções, anotações sobre sua entrada,
acompanhamento de pesquisadores e, no caso do primeiro porteiro do museu,
único funcionário além de seu diretor, trabalhos de coleta e taxidermia das
coleções. Essa prática, longe de ser uma característica nacional proveniente da
falta de recursos, era comum durante o século XIX, sendo adotada desde o
Museu de Elias Ashmole, Universidade de Oxford. Temos documentação que
comprova a prática da atividade do porteiro, logo no início do funcionamento da
instituição:
“Porteiro pede gratificação extra por excursão à Macaé para recolher ’Produtos’”.192
A partir da independência política do Brasil, vemos, nos documentos,
uma preocupação com a administração do estabelecimento por parte dos
governantes e uma lenta composição e resposta dessa organização por parte
do Museu, à medida que as nomeações eram feitas e o Museu se formava
administrativamente. Ainda no primeiro reinado (1827), é solicitada ao Museu a
elaboração de um regulamento interno, sendo que o mesmo só seria
implantado em 1842. O catálogo do Museu solicitado, em 1839, pela Regência
vem a ser parcialmente efetivado no relatório de 1844, após a nomeação dos
diretores de seção, como vemos na relação de documentos abaixo transcrita:
192AGMN.Doc n.14 (1821)
171
“Doc. N.84 (1827) Pedido de Regulamento Interno Doc. N.142 Regulamento N.123 de 3 de fevereiro de 1842 dá ao Museu Nacional uma organização acompanhando à melhor classificação e conservação dos objetos. Artigo 1 O museu Nacional desta corte será dividido em quatro secções: 1 Anatomia Comparada e Zoologia 2 Botânica, Agricultura e Artes Mecânicas. 3 Mineralogia, Geologia e Sciencias Phisicas. 4 Numismática e Artes Liberaes, Arqueologia, Usos e Costumes das Nações Modernas. Cada uma destas secções será confiada a um director especial, que poderá ter um ou mais adjuntos, em relação ao número de subdivisões da respectiva secção. Doc.N.91 O regente em nome de D. Pedro II solicitando um catálogo. “(...) cathalogo circunstanciado de todos os productos de natureza, de arte, existentes no Museu Nacional, declarando o estado de conservação, em que se achão bem como uma relação de todos aquelles que desde o principio do dito estabelecimento tenhão sido emprestados para fora deles.” 8 de Julho de 1939 Doc.N.195 (1844) “Em comprimento da ordem que me foi comunicado e em aditam os officios de 30 de Abril de 1843 e 8 de julho de 1839 tenho a honra de remeter inventário com o esclarecimento apresentado pelos D.D. das diferentes secções.” 193
O envio do inventário ao Senado é narrado por Ladislau, nas
Investigações, como tendo causado um grande mal-estar nas relações do
Museu com o Senado. Ladislau fala da acusação levantada pelo Senado que o
cobrava com veemência e o Museu o enviou tão logo pôde ou tão logo teve
pessoal para executar a tarefa. Frei Custódio Serrão, então Diretor,
acrescentou, em sua defesa da instituição, que, se os trabalhos de
classificação e confecção dos catálogos fossem fáceis, o governo não teria
autorizado a divisão administrativa por sessões. Como podemos ver pela data
de entrada dos diretores das sessões, o inventário tinha um prazo útil a ser
executado: 193AGMN. DOC. 84 ( 1827), 91 ( 1839), 195 (1844)
172
“Doc.129 Dr. Luiz Riedel para Diretor da seção de Botânica, Agricultura e Artes Mecânicas do Museu. Doc.N.134 Manoel de Araújo Porto Alegre para o lugar de diretor da seção de Numismática e Artes liberais, Arqueologia, usos e costumes das nações modernas”.194
Os salários dos diretores, que mal tinham sido instituídos, no entanto,
seriam diminuídos pelo Senado. Ladislau acrescenta que a resposta de Frei
Custódio foi de pouca valia para o Senado vitalício e retrógrado. A redução foi
executada, gerando um mal-estar que levou Frei Custódio Serrão à demissão
da direção do Museu, em 1845. Os demais diretores, mesmo com salários
reduzidos, continuaram na instituição.
O pagamento dos salários, bem como o controle através da exigência de
relatórios de trabalho e da freqüência para o pagamento, torna-se uma das
formas efetivas de presenciarmos as relações do governo imperial, através dos
ministérios, com relação ao Museu e seu funcionamento administrativo,
formando, ao mesmo tempo, a profissionalização e a hierarquização dos
cargos. A observação de os diretores pertencerem a outras instituições é
importante na medida em que marca o salário ganho ser complementado em
outras funções públicas, empreendimentos particulares ou ambos. A presença
na instituição e o trabalho junto às coleções eram facultativos e a diretoria
poderia mesmo ser exercida de forma honorifica, o que não se verificou na
maioria dos casos relatados: o interesse científico do ocupante parece ter sido
a medida para a realização dos trabalhos.
A cobrança de presença por parte do ministério foi questionada pelo
Museu, que, em resposta, esclarece não ser a cobrança para os diretores,
ocupantes de vários cargos, mas sim para os demais cargos. “Doc.112,
Esclarecendo ser a folha de ponto dos empregados subalternos e não dos
diretores de secção, visto serem estes professores de Academia e outros 194 AGMN. DOC. 129, 134
173
estabelecimentos scientificos”. Os documentos relativos a folhas de falta dos
funcionários são comumente encontrados no AGMN.
Em vários momentos de crise financeira, os salários dos diretores do
Museu eram rebaixados, como o observado no decreto a seguir: “Doc.N.4
Restabelece vencimento de 800$000 para três diretores de secção do Museu
que em 1843 tinham passado a receber 200$000”. O mesmo ocorria durante o
período da Guerra do Paraguai, não havendo registro documental de redução
salarial em outras instituições.
Os cargos, como Adjunto Viajante, eram de difícil remuneração, sendo,
em época de crise, os primeiros a serem tornados sem vencimentos. No
entanto, os serventes e seus vencimentos eram sempre objeto de
preocupação. Eles dependiam de forma mais direta dos ínfimos salários
(10$00), embora pudessem residir no Museu, como mostra a relação de
moradores do mesmo no ano de 1869:
“Doc.n.21 (1869) Lista dos moradores do Museu Nacional: Porteiro 38 anos, Mulher 34 anos, 4 filhos de 6 a 11/2 , 6 irmãos de 39 a 18 anos, tia de 62 anos, duas escravas alugadas de 50 anos. Serventes André Paulino de Carvalho casado 48 anos, esposa 25 anos, três filhos de 5 a 1 ½ e três viúvas. 2 serventes solteiros Heliodoro Pereira Leite Pedro Marcelino “195
O caso dos serventes, em 1869, estabelecidos como tal, é um caso
interessante de integração e profissionalização institucional e de integração dos
“africanos” na sociedade nacional. Seguiam-se sempre caminhos bem
díspares, o tratamento de escravos, ex-escravos, africanos livres, mulatos e
outras categorias, ficando quase sempre distanciado do enquadramento dos
mesmos nas instituições acadêmicas, salvo nomes proeminentes cuja inserção
195AGMN doc. 21 (1869)
174
ficou documentada por meio de diário, como o exemplo do engenheiro de
André Rebouças. Os servidores mais comuns que serviam nas instituições
imperiais poucas vezes são descritos; no entanto, é claro que eles existiram e,
por vezes, pode-se tratar, como no Museu, de integrações de africanos livres.
No arquivo geral do Museu Nacional, temos um passo a passo da
substituição do uso de escravos de aluguel por trabalhadores livres. O fato da
propriedade de escravos não se coloca, a substituição é feita de escravos de
aluguel por africanos livres, negros que eram libertos do tráfico ilegal e ficavam
à disposição do governo sem salário. A substituição foi recomendada como
medida de economia ao Museu, que vai, aos poucos, providenciando cartas de
alforria, pagamento196, aumentos de pagamento, transformação do pagamento
em salário. E, por último, há a incorporação como servente, sem referência ao
fato de serem ou não africanos, como no documento acima sobre a moradia
dos funcionários, mudando-os de status. Embora haja referência ao fato de um
deles estar de volta ao Museu, não se sabe como e que temporada passou
fora. Um deles faleceu na época em que o Museu perdeu diversos funcionários
por falta de higiene no laboratório, cobrada pelo ministério; mas foi enterrado
com toda documentação necessária a um trabalhador livre, carta de alforria e
certidão de batismo.
Esse processo não exclui, por exemplo, a presença de duas escravas de
aluguel na residência do porteiro. Traz, no entanto, como diferença, uma forma
de convivência social bastante específica: o africano que se integra como
funcionário, com residência oficial, salário e documentação. Parece que é do
interesse da administração imperial, em dado momento, perguntar pela
emancipação dos africanos livres. O museu responde com o nome
Hermógenes, abstendo-se assim do tratamento anterior de mencionar apenas
africano livre e quantificar. Posteriormente, vai se referir apenas à função
servente, abandonando a categoria de “africano livre”. Podemos ver uma
seqüência de documentos que comprovam essa incorporação:
196Embora a proposta salarial fosse modesta, mais modesto ainda foi o proposto pelo Governo.
175
“Doc.N.129 Substituição de escravos por africanos livres (devido aumento do preço de aluguel dos escravos) Doc.N.9 Gratificação oficial de 4$000 para o affricano livre que se acha há anos a serviço do museu. Doc.N.23 Falecimento do Africano livre e anexo sua carta de alforria de 1848 com anotação de batismo no verso. Doc.127 Remessa de outro Africano livre Doc.135 Concessão de alimentação 6$00 e 4$00 de gratificação mensal ao africano livre Hermógenes. Foi pedido 20$00 pelo diretor. Doc.86 Insistindo no aumento dos serventes. Doc.1 9 (1865) Inquirindo a situação dos Africanos livres, se já foram emancipados. O Africano livre Hermógenes volta a prestar serviço em 1864. Doc.144 ( 1868) Não concede dispensa da Guarda Nacional para os serventes. Doc.68 (1871) Africanos livres passam a ganhar com contratos de pessoas livres. Doc.75 (1871) Aumento de 10 mil réis ao salário mensal dos serventes”.
Podemos pensar em termos de uma formação administrativa, não
cabendo exatamente no modelo weberiano197, mas se esboçando, através de
alguns fatores, como, por exemplo, às nomeações para o museu, seguindo um
caráter profissional, com diretores, desde o primeiro, diplomados, indicados,
com qualificação e diplomas, os títulos de doutor não são meramente de
tratamento. Mais tarde, à medida que cresce, no Segundo Império, a ingerência
de indicações, vemos claramente a recusa por parte do Museu quanto ao nível
do cargo pretendido:
197 WEBER, Marx- Ensaios de Sociologia-Rio de Janeiro, Zahar Editores.
176
“Proposta de nomeação de adjunto de numismática e arqueologia para Luiz de Carvalho Jr”. Resposta de Ladislau Neto “Os adjuntos do museu (...) estas habilitações são adquiridas (salvo se possua reconhecidamente o pretendente) no lugar de praticante, como simples amador no lugar de prova satisfatória e suficiente não pode ser nomeado por enquanto senão para esta última classe.”
A evolução do quadro administrativo pode ser considerada a partir da
indicação de um diretor de reconhecida competência, embora sempre filiado a
uma indicação, a partir de convivência direta com a família imperial, como, por
exemplo: Francisco Freire Alemão, médico do imperador. Passa aos poucos a
ser modificada a partir de Ladislau Netto em 1876, sem um relacionamento
direto com a corte. Os diretores de seção deviam seus cargos à indicação e
confirmação de competência profissional por certificação e experiência, bem
como para os adjuntos. Para o porteiro, a comprovação e indicação vêm com o
parentesco198; para os serventes, há a transformação de uma categoria social à
parte em funcionário. Esse quadro que se forma ao longo de mais ou menos
cinqüenta anos está pronto para ser amadurecido nas últimas décadas do
século XIX, através de mecanismos como a criação da Congregação do Museu
Nacional. A instituição só passaria a ter concursos no século XX,
diferentemente de outras Instituições da época, como a Escola Central ou
Politécnica, a Santa Casa de Misericórdia e o Colégio Pedro II, que passam a
ter concursos para preenchimento de suas funções na segunda metade do
século XIX.
198Carlos Burlamaqui era irmão de Francisco Cezar Burlamaqui, um dos diretores da instituição.
177
3.3.1.1 REGULAMENTOS/ REGIMENTOS DO MUSEU NACIONAL199
Durante o Século XIX:
Decreto Assunto Regulamento nº 123 – 03/02/1842 Nova organização do MN Decreto nº 6.116 – 09/02/1876 Valida novo regulamento Decreto nº 9.942 – 25/04/1888 Valida novo regulamento Decreto nº 3.211 – 11/02/1899 Valida novo regulamento Decreto nº 379A – 08/05/1890 Valida novo regulamento
Através do quadro, podemos constatar a presença de dois regimentos
efetivos no período tratado do Império e de permanência do Museu no Campo
de Sant’Ana, que vão dar conta da expansão dos quadros administrativos da
instituição. No primeiro modelo, bastante simplificado, a expansão é bem maior
do que aparenta, já que se trata da divisão de uma primeira divisão de área de
conhecimento e funções que servirá, daí para frente, como modelo para as
subdivisões da instituição. É bom analisar com calma e notar que existiam
subdivisões previstas para cada divisão, provavelmente pensava-se que cada
subdivisão corresponderia a um adjunto. Deixa-se uma estrutura minimamente
preparada para mudanças e ampliações e criam-se os cargos de diretores de
seção e adjuntos. Também se estabelece o cargo de praticante, a ser indicado
pelos diretores de seção, e se estabelece uma prova para os mesmos, sem
maiores especificações. Cria-se o Conselho de Administração do Museu e se
estabelecem suas competências:
199Obs.: Na Biblioteca Geral do Museu Nacional, existe uma publicação mimeografada sobre todos os atos administrativos do MN que, estando em péssimo estado de conservação, não é permitido fotocopiar. MUSEU NACIONAL (Brasil) Coleção dos atos administrativos referentes ao Museu Nacional. (mimeografado).
178
“Art.30 Haverá um conselho composto dos diretores de sessão, o qual terá o titulo de Conselho de administração do Museu Nacional. Os adjuntos tomarão parte no conselho e terão voto consultivo. Na ausência dos diretores de sessão a que pertencerem, poderão ter voto deliberativo, si para isso forem autorizados por determinação especial do governo. Art. 40 Ao conselho compete: 10 Dirigir a policia geral do estabelecimento; 20 Propor Adjuntos 30 Dispor das quantias consignadas ao Museu em conformidade das leis e ordens do Governo”.200
No regulamento de 1842, o diretor está restrito à nomeação dos
serventes. Fica criado o cargo de secretário e ajudante, ficando os mesmos
incumbidos dos cuidados com o arquivo e biblioteca. Os diretores de seção têm
por obrigação: dispor e classificar os objetos das seções, segundo sistema
adotado pelo conselho e formar catálogo exato de todos os produtos.
Ao longo do século XIX, existem mudanças no regulamento, sofisticando
a forma de funcionamento do Museu e aumentando o quadro administrativo e a
independência de atos com relação ao governo, principalmente a partir de
1876. O regulamento de 1876 é bastante extenso e subdividido em capítulos
bastante esclarecedores de uma organização administrativa pretendida.
O capítulo I trata do Museu Nacional, seus fins e organização, focando o
interesse prioritário no estudo da história Natural, do Brasil, seu ensino e sua
aplicação às industrias e ás artes: “para esse feito coligirá e conservará sob
sua guarda, devidamente classificados, os produtos naturais e industriais que
interessem aqueles fins”. A divisão passa a ser em três seções, acrescidas de
uma seção anexa: “Art.2o Dividir-se-ha em três sessões: 1a De Antropologia, Zoologia animal e aplicada, Anatomia Comparada e Paleontologia Animal; 2a De Botânica geral e aplicada e paleontologia vegetal; 3a De Sciencias physicas: mineralogia, geologia e paleontologia geral. Arto 3o Enquanto se não realizar a creação de estabelecimento especial para o estudo de arqueologia, etnografia e numismática, constituirão esses materiais uma sessão anexa ao Museu Nacional” 201
200 Regulamento nº 123 – 03/02/1842 201 Regulamento, decreto n.6116.
179
O decreto cria uma seção anexa, segundo o próprio, enquanto não se
cria um estabelecimento especial para: Arqueologia, Etnografia e Numismática.
A seção anexa ao Museu, com um status entre seção e instituição ficará sob a
guarda da direção geral, conforme o especificado no oitavo item do artigo
sexto, no qual se definem as competências do diretor. Dessa forma, Ladislau
passa a dirigir duas seções do Museu, de grande peso para as relações
interinstitucionais: a seção anexa e a Botânica.
Ainda no capítulo I, temos a ampliação do quadro de funcionário no
artigo quinto: “Além do diretor geral, haverá três diretores, um secretário, um
amanuense, um bibliotecário, um porteiro, seis praticantes, três preparadores,
e naturalistas viajantes cujo número será fixado pelo Ministro da Agricultura
sobre proposta do Diretor Geral, de igual modo será marcado o número de
serventes”.
O decreto segue com o capítulo II, tratando da administração exercida
pelo Diretor Geral estabelecendo entre suas funções: “Promover relações entre
o Museu e análogos estabelecimentos nacionais e estrangeiros” e amplia seu
poder de nomeação, estendendo-se para os cargos de naturalista viajante,
secretário, amanuense, bibliotecário e porteiro. No artigo sete, compõe o
conselho diretor do Museu. As funções do conselho são modificadas ficando
claro logo no primeiro item “Deliberar sobre as questões em que for consultado
pelo Diretor geral”, ou seja, a mudança de poder é clara já que no regulamento
anterior ao conselho em primeiro lugar competia dirigir a política institucional. O
conselho passa a ser usado principalmente nas novas funções do Museu:
definir programas de curso, designar comissões de publicação, definir prazos e
instruções dos concursos. Ou seja, o conselho perde o poder político e se torna
um mediador nas questões científicas e metodológicas da Instituição.
Dessa maneira, Ladislau Neto, que já havia garantido também uma
diminuição das representações de diretores no Conselho (através da
transformação da Quarta Seção em Seção Anexa), vai garantir um controle
maior da direção geral sobre a Instituição, aumentando significativamente seu
poder político.
180
O capítulo II, em seu artigo oitavo, relata a competência dos servidores,
por exemplo, aos diretores de seção, cabe “primeiro classificar segundo regras
científicas, os objetos que estiverem sob sua guarda na seção, organizando o
respectivo catálogo, com declaração do estado em que se acharem e indicação
dos que forem precisos para completar as coleções. Segundo lecionar as
matérias da seção em conformidade com o programa adotado”. Ou seja, o
papel do diretor não é mais uma questão de consciência e dedicação à ciência,
é para ser exercido segundo padrões estabelecidos por normas claras e
científicas, a serem cobradas por meio de relatórios e de capacidade de
lecionar publicamente sobre os assuntos de sua competência.
O capítulo III estabelecia normas para o funcionamento dos cursos
públicos e a elaboração de seus programas. O quarto tratava das publicações,
criando o Arquivo do Museu e estabelecendo formas de distribuição do mesmo.
O capítulo V voltava a ter um caráter administrativo, tratando das nomeações,
substituições, vencimentos, licenças, apresentações e penas.
O artigo vinte e três estabelece que o diretor geral e os diretores de
seção e seus subdiretores serão nomeados por decreto, os praticantes e
preparadores por portarias do ministro, e os demais empregados pelo diretor
geral. O artigo vinte e quatro estabelece a nomeação de diretores e
subdiretores de seção por concurso, observando-se os seguintes itens como
requisitos: “10- Qualidade de cidadão brasileiro 20- Maioridade legal 30- Moralidade 40- Capacidade profissional”202
Os concursos não trazem as especificações de matéria indicada aos
cargos de diretores das seções. Apresenta-se, nesse regimento, a novidade da
nacionalidade brasileira, até o ano anterior 1875. Hartt, cidadão americano,
exerceu a função de diretor da seção de Mineralogia, tendo deixado o cargo
202 Idem
181
por falecimento. Para o cargo de praticante, as exigências estão estabelecidas
de maneira mais claras, sendo necessário galgar o primeiro degrau científico
na instituição:
“10-Qualidade de cidadão brasileiro 20- Maioridade 18 anos 30- Moralidade 40- Habilitação em exame público nas seguintes matérias: língua nacional, latim e francês; geografia, aritmética e geometria.”203
O artigo vinte e seis estabelece que poderão ser dispensados de
concurso para o preenchimento da vaga, os que provarem ter professado com
distinção204 em universidade, faculdade ou escola nacional ou estrangeira, as
matérias sobre as quais versarem as provas. Nas disposições gerais, ficam
acertados os salários e as despesas mensais com os mesmos.
203Idem 204A distinção nas matérias era bastante difícil de ser alcançada segundo relatos de diários e correspondências.
182
3.3.1.2 Salários
O pagamento dos salários, bem como o controle da freqüência para o
pagamento, tornam-se efetivos, através dos ministérios, com o Museu e o
funcionamento administrativo, formando, ao mesmo tempo, a profissionalização
e a hierarquização dos cargos. A observação dos diretores pertencerem a
outras instituições, principalmente nos primeiros tempos, é importante, à
medida que marca o salário ganho, que era complementado por outras funções
públicas, empreendimentos particulares ou ambos.
À medida que os diretores passam a se dedicar com exclusividade à
instituição, a necessidade de um salário maior aumenta, o que faz com que
aumentem as pressões da parte da instituição por aumentos salariais. Nas
suas “Investigações”, Ladislau transforma os salários em uma questão central.
No entanto, os aumentos só serão conseguidos a partir de 1876, como
demonstra o quadro salarial. A acumulação de funções passa a ser interna,
como uma forma de aumentar os ganhos na forma de gratificações.
A presença na instituição e o trabalho junto às coleções que em
princípio eram cobrados de forma pouco efetiva, podendo mesmo ser exercido
de forma honorífica, o que não se verificou na maioria dos casos relatados,
apenas em alguns casos de adjuntos, como o da Quarta Seção, por exemplo,
no caso de Pedro Américo, em uma época em que o interesse científico dos
ocupantes parece ter sido a medida para a realização dos trabalhos. Já à
medida da especialização dos cargos, os salários sobem e o Museu pode
passar a ser encarado como local de onde se retiram os ganhos para a
sobrevivência.
Os cargos, como adjunto viajante, eram de difícil remuneração, sendo,
em época de crise, os primeiros a serem tornados sem vencimentos. No
regimento de 1876 são os únicos cargos cujo número fica a ser determinado
pelo Ministro da Agricultura, demonstrando a importância das divergências em
torno de número e salário desses postos entre o Museu e o Ministério. Os
183
naturalistas viajantes eram fundamentais para cumprir a árdua tarefa de coletar
tudo em um território tão grande. Por parte do Ministério, havia sempre
soluções mais econômicas, como o aproveitamento das comissões já
existentes; por parte do Museu, havia a necessidade demarcar um campo
científico.
Os serventes e seus vencimentos eram sempre objeto de preocupação
da parte do Museu: serventes treinados, que pudessem mesmo “arborizar “205,
se fosse o caso, eram essenciais ao bom andamento do Museu, sempre em
carência de funcionários. Por sua vez, os serventes sempre dependeram de
forma mais direta dos ínfimos salários (10$00), embora pudessem usufruir
outros benefícios paralelos como alimentação e residência no Museu, como
mostra a relação de moradores do mesmo no ano de 1869 já mencionada
anteriormente:
Para demonstrar a evolução do quadro administrativo e seus salários,
foram compostos dois quadros referentes aos anos de 1844 e 1876, após as
respectivas mudanças regimentais, efetivadas em 1842 e 1876, com os
respectivos salários. Para que se possa ter uma idéia de valor, é necessário
lembrar o alto preço da moradia na corte, onde um salário de diretor de seção
não dava conta de um aluguel206 e manutenção mínima da casa, pois seu
salário anual de R$ 800:000 réis percebia uma quantia mensal de apenas
66$00, o que fazia com que os diretores gerais, que dedicavam mais tempo e
energia à instituição, morassem no Museu. Um exemplo disso é a descrição de
Ladislau207 sobre a residência de Frei Custódio Serrão: “Alojado num
205 Coletar material botânico. 206 Jornal do Commercio 1849: “Poucas casas para alugar. Anúncios da mesma casa só aparecem uma vez. As casas normalmente não aparecem com preços só com indicações de onde tratar do aluguel. Só as mais populares aprecem com preços: - Aluga-se a metade de uma casa por 10$000. Rua S. Pedro. Cidade Nova. - Aluga-se por 10$000 casa n. 9 do beco da rua Bom Jardim, com quintal e poço. Os anúncios de casa são poucos a maioria dos anúncios se refere a aluguel, venda e gratificações por escravos fugidos: -Aluguel de duas pretas que cozinham, lavão e fazem todo serviço por 12$00 reis. - Pretinha, para o serviço interior da casa 9 $ reis. - As gratificações por pretos fugidos variam de 20$000 a 400$000 reis Mobílias são pouco anunciadas: - Mobília de Jacarandá 130$ reis para cima, mesa estendida a 80$00 reis”. 207 NETO, Ladislau- Investigações. op. cit.
184
pequenino aposento que existe na mansarda do edifício”. O funcionalismo
público, para aqueles devotados à ciência, não trazia conforto financeiro à
medida do status adquirido, como fica claro nas biografias sobre Francisco
Freire Alemão, que, após ocupar diversos cargos de prestígio, retorna ao sítio
em Mendanha, herdado de seus pais, pequenos lavradores e, lá, falece.
O quadro abaixo mostra que o maior salário do primeiro quadro era o do
Porteiro, guarda e preparador: João de Deus de Mattos, de grande confiança e
responsabilidade junto às coleções, chegando a ser diretor substituto por duas
ocasiões, entre a saída do Dr. Caldeira e a chegada de Frei Custódio Serrão e
durante período de viagem de Frei Custódio. Após a nomeação dos diretores
de seção, essas substituições eventuais passaram a ser coberta pelos
mesmos. No entanto, a importância de João de Deus de Mattos fica
estabelecida pelo seu salário, que também leva em conta sua dedicação
exclusiva à instituição.
Nota-se que não existe aumento de salário, acumulação de salário ou
qualquer gratificação extra pelo acúmulo de cargos. Frei Custódio Serrão
recebe apenas como Diretor Geral, sendo o seu salário igual aos dos diretores
de seção e inferior ao do porteiro, preparador e guarda. Joaquim Maia também
não recebe pelo cargo de Secretário qualquer remuneração extra.
185
Quadro de Funcionários de 1844 FUNÇÃO
OCUPANTES ORDENADO
Diretor do Museu
Frei Custódio Alves Serrão 800,00
Diretor da Seção de Mineralogia, Geologia e Ciências Físicas
Frei Custódio Alves Serrão
Diretor da Seção de Anatomia Comparada e Zoologia
Emílio Joaquim da Silva Maia 800,00
Diretor da Seção de Botânica, Agricultura e Artes Mecânicas
Luiz Riedel 800,00
Diretor da Seção de Numismática, e Artes Liberais, Arqueologia, Usos e Costumes das Nações Modernas
Manoel de Araújo Porto alegre 800,00
Secretário
Emílio Joaquim da Silva Maia
Ajudante de Secretário e Tesoureiro
Francisco Antônio do Rego
Porteiro, Guarda e Preparador das Seções de Zoologia e Botânica
João de Deus de Mattos 1.000,00
Guarda, e preparador das Seções de Mineralogia e Numismática
José da Silva
2 Serventes que fazem a vez de contínuos
20,50
4 Serventes um para cada seção 10,00
186
Quadro de Funcionários de 1876 a 1877 Função
Ocupante Ordenado Gratificação
Diretor Geral
Ladislau Netto 3.000,000 1.500,00
Secretário João Joaquim Pizarro 800,00 Amanuense João da Motta
Teixeira 800,00
Bibliotecário Manoel da Motta Teixeira
800,00
Diretor de Seção de Antropologia, Zoologia Geral e aplicada e paleontologia Geral
João Joaquim Pizarro. 2.000,00 1.000,00
Subdiretor da Seção de Antropologia, Zoologia e Anatomia comparada
João Baptista de Lacerda
1.600,00 800,00
Praticante Manoel da Motta Teixeira
600,00 200,00
Praticante Daniel de Oliveira Barros de Almeida
600,00 200,00
Preparador Eduardo Teixeira de Siqueira
800,00 400,00
Diretor da Seção de Ciências Físicas,Mineralogia,Geologia e Paleontologia Geral
Carlos Frederico Hartt 2.000,00 1:000,00
Subdiretor da Seção Ciências Físicas,Mineralogia,Geologia e Paleontologia Geral
Carlos Luiz de Santos Junior
1.600,00 800,00
Praticante Antonio de Souza Mello e Netto
600,00 200,00
Praticante Antonio Teixeira da Rocha
600,00 200,00
Preparador Carlos Leopoldo César Burlamaque
800,00 400,00
Diretor da Seção de Botânica Aplicada e Paleontologia Vegetal.
Ladislau Netto
1.500,00
Subdiretor da Seção de Botânica Aplicada e Paleontologia Vegetal.
Nicolao Joaquim Moreira
1:600,00 800,00
Praticante João da Motta Teixeira
600,00 200,00
Praticante Lourenço José Ribeiro da Cruz Rangel
600,00 200,00
Preparador
Vicente Alves Ribeiro 800,00 400,00
Conservador da Quarta Seção
1.000,00
1 Desenhador
600,00
187
1 Preparador praticante
600,00 600,00
Contínuo
700,00 300,00
4 Serventes
600,00
Naturalista Viajante Domingos Soares Ferreira Penna
O crescimento do quadro e suas especificações, com a presença de
subdiretores, preparadores e praticantes em todas as seções, incluindo a
denominada ainda de Quarta seção, a Seção Anexa, na qual se incluíam duas
categorias específicas a seu funcionamento, a figura do conservador e a do
desenhador. Todos os cargos passam a receber salários e gratificações, salvo
no caso dos conservadores e desenhadores da Quarta Seção, que recebiam
apenas gratificações. Também ocorreram omissões, como o caso do porteiro e
guarda, além de reduções, como no caso do contínuo. No entanto, o aumento
salarial desse e dos serventes, esses sem gratificações, foi um dos mais
substanciais.
O salário do diretor geral passa a ser o maior, mesmo sem contar com a
gratificação pelo acúmulo da direção da seção de Botânica. As acumulações,
passíveis de gratificações, são dadas ao diretor de seção, no caso da
secretaria, e aos dois preparadores, nos casos de amanuense e bibliotecário,
marcando um incentivo extra, dado pelo Museu à dedicação integral à
Instituição, já que a nomeação desses era função do Diretor do Museu.
A hierarquização dos cargos é efetuada, complementando-se a
mudança regimental, na mudança salarial. Não existe mais espaço para
inversões hierárquicas ou dúvidas sobre a hierarquia dos cargos e suas
responsabilidades. Um preparador ganha mais do que um praticante, mas ele
não pode acumular cargos, e pela previsão do concurso ou da proficiência fica
vedado a este o acesso ao cargo de praticante, sendo esse o primeiro de uma
possível escala até o cargo e direção de seção. Com essa hierarquização, os
cargos com características técnicas ou administrativas, vão se distanciando
188
dos cargos científicos. Fica claro que, devido à acumulação, os cargos de
secretário, amanuense e bibliotecário ainda estão na órbita dos possuidores de
cargos científicos. O surgimento de novos João de Deus Mattos, ou a
manutenção de status de Carlos Burlamaqui, se torna impossível.
Podemos interpretar os cargos com nomes vagos como cargos que
poderiam ser exercidos de maneira temporária ou com nomeação facilitada. Já
o cargo de naturalista viajante está sem salário fixo, devido à eterna pendência
dos ministérios em assumir a necessidade desse cargo.
O regulamento passa a ser levado a efeito com a contratação de pessoal
e salários condizentes para fazer dos cargos um lugar efetivo, não apenas uma
da formas de conseguir equilibrar um orçamento. A produção do Museu
também cresce em todos os sentidos: cursos, publicações, coleções e
exposições. A reforma administrativa, promovida por Ladislau Netto, vai colher
seus frutos em visibilidade institucional e produção científica. O Museu se
profissionaliza, mas, para tanto, foi preciso a conquista de uma autonomia
mínima que se dá com a mudança de vinculação da instituição.
189
3.3.1.3-VINCULAÇÃO INSTITUCIONAL DO MUSEU NACIONAL
Durante o Séc. XIX
A vinculação institucional inicial do Museu ao Ministério do Império tem
a duração de 46 anos. Eram também vinculados ao Ministério a Academia
Imperial de Belas Artes, a Academia imperial de Medicina, o colégio Pedro II e
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A mudança de ministério, segundo
Lacerda208, foi planejada.
“Enfeudar o Museu a jurisdição de outro ministério, que tivesse mais largas esanchas[Marcos Po1] para gastar em empreendimentos novos, antolhou-se-lhe como uma medida de grande alcance. Convites insistentes foram dirigidos ao Conselheiro Manuel Pinto de Souza Dantas, Ministro da Agricultura, para visitar as sessões do Museu; e de uma visita ali fez o operoso Ministro resultou ficar ele convencido da necessidade que havia de passar á jurisdição de seu Ministério o Museu Nacional, transferência que foi levada a efeito em maio de 1868.”209
208 LACERDA,João Batista de- op. cit 209 Idem
Período Vinculação Legislação 6/06/1818 a 12/10/1822 Ministério dos Negócios do Reino
12/10/1822 a 29/04/1868 Ministério dos Negócios do Império
29/04/1868 a 08/05/1890 Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas
Decreto nº 4.167 de 08/05/1890
08/05/1890 a 06/12/1892 Ministério da Instrução Pública Correios e Telégrafos
Decreto nº 379A 08/05/1890
190
A mudança de vinculação do Museu para o Ministério da Agricultura,
em 1868, trouxe uma maior proximidade não só física, a sua sede também se
localizava no campo de Sant’Ana, como de relacionamentos possíveis para
que o Museu se desenvolvesse, de maneira mais livre, as relações Ministério,
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e Sociedade de Agricultura
Fluminense. Apesar da ausência de estudos sobre isso, acredito que a
existência dessas relações fazia com que o diálogo entre os membros do
Museu, também atuantes nessas sociedades e o Ministério, fosse mais
próxima do que o exercido até então com o Ministério dos Negócios do Império.
O Ministério da Agricultura parecia mais interessado em ações. Onde a
ciência poderia ser proveitosa, o conhecimento científico não mais é
considerado como um obstáculo à ação daqueles que representavam
interesses gerais, conforme indica Mattos210, mas um acréscimo na luta por um
progresso almejado.
Ladislau encerra a primeira parte da publicação das Investigações com a
mudança do Ministério para a Agricultura, associando-a à iniciativa que o
mesmo vinha tomando quanto ao desenvolvimento da indústria nacional,
atribuindo ao Conselheiro Manoel Pinto de Souza Dantas a mudança.
Acrescenta:
“Nós que, afora o caráter de estabelecimento de instrução pública que reveste o museu, nada tínhamos realmente a ver na repartição do império, exultamos com aquela medida tão providencial quanto prometedora para o nosso estabelecimento.”211
Ladislau descreve o amplo horizonte de aplicação científica das ciências
naturais na agricultura, destacando a economia rural e a zootecnia, colocando
o Museu no papel de árbitro idôneo de tais assuntos junto ao governo e ao
povo.
210 MATTOS, Ilmar- O tempo Saquarema- Editora Access: 1987 211 NETTO, Ladislau- Investigações op. Cit, p.136
191
Exorta a sua fé no futuro da instituição e releva que, em um ministério no
qual se concentram as Comissões, os problemas de afirmação de pessoal,
principalmente de naturalistas viajantes, serão contínuos.
3.3.2 Fases administrativas e Curadores das Coleções de Indústria Humana
As atuações individuais, quem eram essas pessoas e como se inseriam
socialmente são importantes para se possa ter uma medida de como eram
exercidas as funções no Museu e em suas coleções. Um dos itens
indispensáveis eram as pessoas que lidavam, diretamente com elas, suas
biografias resumidas. As pessoas escolhidas tiveram atuações hierárquicas,
temporalmente, diferenciadas e, ao mesmo tempo, fundamentais. Manuel de
Araújo Porto Alegre exerceu a primeira diretoria da Quarta Seção,
transformada em seção anexa; Carlos Burlamaqui, durante um grande espaço
de tempo, no cargo de porteiro, exerceu forte influência sobre a coleção,
embora a sua posição em uma hierarquização de saberes fosse inferior. E por
fim, Ladislau Neto que, no cargo de Diretor da Instituição, pegou para si o
encargo de dirigir a Quarta Seção, realizou a Exposição Antropológica e a
transformou em uma seção de Antropologia. Nesse item, entrarão breves
biografias dos curadores do século XIX.
192
3.3..2.1- Manuel de Araújo Porto Alegre
Porto Alegre, como é mais conhecido, principalmente enquanto pintor,
tem narrado em suas biografias, as origens humildes, no entanto sem grandes
especificações do quão humilde. O termo deixa claro que não era um homem
bem nascido para época, apesar de possuir recursos suficientes para
empreender viagem da província à corte, com intenção de se tornar pintor.
Torna-se discípulo de Debret, inclusive acompanhando-o em sua volta a Paris
e fazendo a viagem de estudo quase que obrigatória para pintores da época à
Itália. O texto de Debret sobre a fundação da Academia de Belas Artes212
coloca Araújo Porto Alegre como um jovem parente do Visconde de São
Leopoldo, Ministro que inaugura a Academia, acrescentando o elogio de ser o
mesmo dotado das mais felizes qualidades e que já vencera todas as
dificuldades do desenho durante três anos cursando sua classe. Coloca o
nome de Porto Alegre na lista de alunos fundadores da Academia de Belas
Artes.
Em Paris em 1834, Manuel Araújo Porto Alegre escreve na companhia
de dois brasileiros, José Gonçalves Magalhães e Francisco Torres Homem, o
resumo da história da Literatura, das Ciências e das Artes Brasileiras.
Escreveria a parte referente às Belas Artes, sendo o artigo publicado por
Debret, quando já membro do IHGB, usando, como apresentação, o artigo
escrito por “meus colegas de Instituto”. Participou ainda em Paris de seu
primeiro empreendimento como editor: a Revista Nitheroy, fundada com
Francisco Torres Homem e Azevedo Coutinho e tida como primeiro veículo de
difusão do Romantismo no país. Escrita e impressa em Paris, cidade onde os
autores se encontravam para estudo, em Língua Portuguesa, veiculavam, em
seus artigos e estudos, o programa de reforma e nacionalização da Literatura
Brasileira. Em 1836, foi convidado pelo Historiador Francisco J. Nichaud, 212DEBRET.J.b. - Viagem Pitoresca e Filosófica ao Brasil. Tomo II, volume III. SP: USP, 1966, p.112.
193
Presidente do Institut Historique, para fazer parte, com os pintores franceses
Leon Cogniej e Raymond Auguste Quinsce-Movisan, da Comissão que deveria
dar conta da Exposição Geral do Louvre. Uma parte de seus relatórios a
respeito das reformas foi publicada, em 1837, no jornal do L’Institut.
De volta ao Brasil, Porto Alegre assume várias funções. Entre elas, a
partir de 1842, a de Diretor da 4ª Seção do Museu Nacional, apesar de poder
exercer o cargo apenas honorificamente, como fará seu adjunto Pedro
Américo, nomeado após sua partida, pintor, mas não exclusivamente usando a
pintura como meio de expressão. Empenhou-se na sua tarefa que hoje pode
ser vista como a primeira curadoria da coleção, sendo um dos primeiros sócios
permanentes do IHGB, Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Suas relações
o faziam próximo das discussões a respeito das populações indígenas
brasileiras, que defendia, dentro das possibilidades de época, dando à mesma
uma qualidade estética aos artefatos, atestada por seus escritos de História da
Arte, nos quais avalia o material indígena como portador de um certo “pendor
industrial” e estético.
Os principais cargos que acumulou foram: Professor de Pintura
Histórica, Diretor e, depois, Membro Honorário da Imperial Academia de Belas
Artes, da Escola Militar, Pintor Imperial da Câmara, Primeiro Secretário, Orador
e depois Membro Honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Diretor das Obras da Alfândega, Fundador da Imperial Academia de Música e
Ópera Nacional. Hélio Leboum, um de seus biógrafos, denomina-o de ”Homem
faz tudo”, possuidor de uma atividade incessante. Apesar de manter sua
atividade como pintor, procurava exercer suas atividades com presteza, era
especialista em relatórios bem feitos, nos quais apontava os problemas das
tarefas deixadas a seu cargo.
A respeito do Museu Nacional, vemos sempre seus relatórios
preocupados com a preservação da coleção e de seus significados. Para Porto
Alegre, o principal objetivo da coleção parece ser o de um grande arquivo de
documentos, conceito surpreendente, já que a coleção como arquivo é
evocada de forma recorrente a partir da década de oitenta do século XX,
quando as coleções, sob denominação de patrimônio, passam a ser objetos de
194
vários estudos. Devemos ressaltar também que as suas idéias de documentar
tinham por matriz suas teorias da irreversível extinção dos indígenas,
discutidas em vários fóruns de debate (como, por exemplo, o IHGB), como
constatamos em trecho de um de seus relatórios.
“A coleção do museu dos indígenas do Brasil de importância tão instrutiva que não se pode desconhecer, e tornar-se-á de dia a dia mais preciosa, à proporção que penetre a civilização do nosso país, pode conseguir uma coleção tal qual marque com perfeição a natureza, e caracteres peculiares de todas as tribos deste continente, o Museu Nacional será o único no mundo com arquivo de documentos originais sobre o estado destes aborígines desta parte d’América Meridional”.213
Podemos também inferir, a partir do trecho destacado, sua
preocupação com o que atualmente se institucionalizou como patrimônio
nacional. A ser mantido em território nacional, concorrendo com outros
patrimônios. Acompanhando seu discurso, podemos identificar suas
reclamações para melhor atender a divulgação e guarda do mesmo,
caracterizando, assim, as suas preocupações patrimoniais, uma vez que a
noção de um patrimônio público vem sempre associada às suas condições de
preservação e divulgação. Suas atitudes, sempre propondo obras e compra de
mobiliário, encaixando as mesmas em suas tarefas de arquiteto, combinavam-
se com suas preocupações acerca de preservação, desenvolvidas na Escola
de Belas Artes, durante o breve período que administrou a Academia. Eram
preocupações obsessivamente repetidas que ainda são atuais, como a citada:
213 Relatório 1844
195
“Relatório dos trabalhos, e aquisições havidas no Museu Nacional desta corte, durante o ano de 1845”. Secção de Numismática e Artes Liberais, Arqueologia ,Usos e costumes das nações modernas. Pouco avançou no decurso d’este ano, por se terem deslocado todos os objetos da sala arruinada em que estavam e acharem-se amontoados em armários e gavetas sem ordem conveniente. As reclamações constantes, que o conselho tem tido a honra de dirigir ao governo Imperial sobre o edifício do Museu, aumentam cada vez mais a necessidade da conclusão da obra, que salvará objetos tão preciosos e importantíssimos para os estudos históricos, não só dos outros povos, como particularmente do Brasil, desde os aborígines até a invasão do homem civilizado e seus progressos.”214
Podemos também constatar a sua evidente escolha de, no meio da
mistura de objetos que compunha a seção, privilegiar os acervos indígenas
nacionais, principalmente em termos de exposição, escolha essa coerente com
sua posição no movimento nativista e que, sem dúvida, permitiu a chegada da
coleção ao século XXI. Sua experiência em exposições no exterior faz com que
provavelmente ele transporte modelos europeus, como os troféus, para a
exposição do Museu Nacional, permitindo uma maior divulgação das mesmas,
que, na época, podem ter produzido o efeito de suavizar o barbarismo com que
essas populações eram normalmente vistas pelo senso comum. Esse efeito
comungava com o projeto do romantismo literário, do qual era partícipe; sua
preocupação com as exibições públicas era evidente.
Na Academia Brasileira de Belas Artes, ele provoca grandes
discussões, ao defender os interesses de uma Arte voltada para a natureza
nacional e ao se insurgir contra a naturalização do comando de estrangeiros na
direção da Escola. Após se retirar como docente da Academia, em 1838, volta,
em 1852, como seu primeiro diretor brasileiro. Amplia seu edifício, inaugura
novas cadeiras, inclusive a de Desenho Industrial, e areja seu ensino.
No entanto, Félix Taunay (ex-diretor da Escola), à frente, por meio de
intrigas na corte, nomeia à sua revelia um professor para a cadeira de Pintura
Histórica. Indignado, Porto Alegre se demite e se afasta do Brasil. Passa,
então, a exercer funções diplomáticas na Europa, em Dresden, Berlim e 214 Relatório 1845
196
Lisboa. Seu trabalho junto a exposições passa a ser o de colaborar na
organização dos pavilhões brasileiros, na Exposição de Paris, em 1867, e em
Viena, em 1873.
Junto ao trabalho diplomático, é tido como excelente diplomata e seus
relatórios são elogiados. Dedica-se ainda a escrever literatura: deixou 135
trabalhos publicados, 20 peças teatrais e quatro traduções.
Ao embarcar para a Europa como diplomata, pede demissão de seu
cargo no Museu:
“Tendo sido nomeado Cônsul Geral do Brasil na Prússia e devendo brevemente partir para o meu destino. Manoel de Araújo Porto Alegre, 1 de junho de 1859”.215
O governo não se apressa em realizá-la e nem em substituí-lo,
nomeando, em 1872, Pedro Américo para o lugar de adjunto e concedendo
uma dotação para que Porto Alegre compre moedas para o Museu, o que ele
efetiva, como comprova uma carta no Arquivo Geral. Parece que ele mantém
correspondência com Freire Alemão, então Diretor do Museu de Nacional.
Oficialmente se mantém como Diretor da Quarta Seção até sua transformação
em seção anexa.
Apesar de ser, por vezes, superficialmente descrito como “o amigo de D.
Pedro II” ou como “pintor oficial”216, só acolhia a política imperial até certo
ponto. Levava seus interesses científicos, literários e artísticos acima dessa
amizade e, como editor de várias revistas, defendia esse interesse. Na
Lanterna Mágica, primeira revista ilustrada brasileira de caricaturas críticas,
não concordava com as políticas imperiais na área artística e científica. Embora
considerasse D. Pedro II como amigo, amizade essa vinda de seu pai Pedro I,
o qual inclusive visitou no exílio em Paris. Em sua carta de demissão da
Academia,Porto Alegre escreve:
215 DOC. 63 (1859) 216SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
197
“Vossa Excelência sabe quem combate hábitos de relaxação, não é amado pelos mandraços; e quem é justo, sofre dos que contam com o poderio misterioso do Patronato”.
A paixão que o movia, e como gostava de ser reconhecido, era a de
ser visto como um funcionário à serviço da nação brasileira. Para isso,
renunciou a uma possível glória como Pintor Acadêmico. Seus interesses o
levavam a uma grande ansiedade de conhecer, organizar e modificar,
mantendo parte de seus quadros inacabados. A preservação da coleção de
plumária do século XIX, tida como miraculosa nos dias atuais, certamente se
beneficiou do seu zelo, acompanhada da intencionalidade de guardar um
registro suave dos indígenas nacionais. Nas suas mãos, a coleção de Etnologia
toma a sua forma inicial: os adornos plumários valorizados, as armas,
principalmente as flechas, organizadas em troféus para exposições.
Contemporaneamente, temos como corrente, como a seleção curatorial
diz, muito sobre o que é preservado e exposto. No século XIX, essas decisões
acarretaram o que seria transmitido ao seu próximo sucessor de fato, a
curadoria de Ladislau Neto, em 1976. As peças que sobreviveram dos caixotes,
as peças que ficaram do Museu Nacional, coletadas pela Comissão Imperial
(pejorativamente denominada de Comissão das Borboletas), cujo integrante em
Etnografia, Gonçalves Dias, era amigo de Porto Alegre de longa data, como
demonstra a indicação de Porto Alegre para que Dias seja aceito como sócio
do IHGB, e que passaram a integrar a coleção por sua insistência, apelo de
Porto Alegre e de Capanema, Diretor de Anatomia Comparada, foram
preparadas para preservarem o que hoje se constata: o apuro estético. Isso
não ocorreu por acaso, mas pela valorização que Porto Alegre acrescentava ao
material nativo, em sua visão de um intelectual que se inspirava na criação de
uma feição artística romântica para um país em processo de construção de sua
imagem.
198
3.3.2.2 Carlos Burlamaqui
Durante vários períodos de crise ou de ausência da direção o controle
do acervo passava por um de seus únicos funcionários: o porteiro, cuja
importância se evidencia através dos anos de serviço (47 no total) e por meio
dos registros efetuados no livro do porteiro. Cabe-nos a ressalva de que, nos
museus europeus, também havia essa divisão, um especialista e um porteiro,
que funcionava quase como uma espécie de adjunto do especialista e tinha
esse nome por sua função na admissão do público e sua condução. Alguns
autores, como Bittencourt (1997)217, ao falar do museu, sentem-se impelidos a
marcar o nome de Burlamaqui, tendo dificuldades de classificá-lo.
“Carlos Leopoldo César Burlamaqui, irmão do diretor do período, Frederico Burlamaqui, foi contratado em 1857 como... porteiro. É certo que, cento e cinqüenta anos atrás, esse cargo não era tão humilde quanto é hoje em dia mas fazia parte da pirâmide burocrática. (47 anos no cargo).”218
Como podemos comprovar sua inserção na instituição de forma
atuante junto às coleções e seu zelo particular pela integridade das coleções
da Quarta Seção, da qual foi nomeado preparador, seus cuidados com a
preservação e a divulgação dos objetos são evidentes. Podemos exemplificar
seus cuidados com a integridade da coleção fartamente:
“MN.Doc.29 Peço licença a vossa Excelência para dizer as palavras seguintes a respeito da desvantagem de tirarem-se objetos do estabelecimento a seu cargo: acho muito inconveniente que o governo imperial mande como é de costume tirar objetos pertencentes às coleções que possua o Museu Nacional, objetos estes que são quase todos ofertas de particulares ou por investigação dos empregados. Ora a cada objeto que se tira de uma coleção deixa um vácuo, que quase nunca se pode preencher e eu como preparador e conservador da secção de numismática acho meu dever velar pela secção e ouso dizer aquilo que talvez não me consinta”.
217Bittencourt, José Neves- “Território Largo e Profundo” tese de Doutoramento-Curso de Pós Graduação em História - UFF – Niterói - 1997. 218 Idem.
199
Suas interferências iam além dos cuidados com a preservação e
entravam diretamente na seleção das peças a serem expostas, ou seja,
diretamente na exteriorização da instituição, embora algumas de suas
intervenções possam parecer ingênuas, como a demarcada, outras seguiam
um bom senso expositivo. Observador do caráter do público, serviu ao Museu
como um intermediário, como podemos classificar suas intervenções na
exposição, por vezes, propondo a retirada de moedas e medalhas que existiam
três para cima, sendo as demais transferidas para o depósito219, ou suas
ponderações no mesmo ofício para que fosse retirado o quadro “Vênus de
Ticiano” da exposição, em função de alguns pais de família considerarem o
quadro imoral pela posição “indecente” dada pelo autor a uma de suas
figuras.220 Ao mesmo tempo, age como mediador das doações de acervo,
como o envio de armas indígenas para servirem de modelo ao marmorista José
Bueno. Doc. 196
Outro dado interessante, que corrobora a importância das relações
sociais estabelecidas no Museu, é o fato de o porteiro ser um dos moradores
das dependências do Museu, com sua família, bastante extensa, como consta
na lista dos moradores do Museu Nacional : Porteiro 38 anos , Mulher 34 anos,
4 filhos de 6 a 11/2, 6 irmãos de 39 a 18 anos, tia de 62 anos, duas escravas
alugadas de 50 anos. Lá, convivia com os serventes, diretamente no ambiente
de trabalho, em um estado pré- burocrático, no entanto de contribuição
personificada o suficiente para ser ignorada. Durante muito tempo, sua
preferência pelas moedas e medalhas vai aumentar esse acervo, hoje
pertencente ao Museu Histórico Nacional. Por mais de quarenta anos, dedicou-
se aos cuidados do Museu e da coleção da Quarta Seção como seu
preparador; seu tempo junto à mesma foi único no século XIX.
219 Possivelmente existia um depósito geral, precursor das reservas técnicas. 220 AGMN DOC.187,1868.
200
3.3.2.3 Ladislau de Souza Mello Neto
Nascido em 1838, na cidade de Maceió. Filho de fazendeiros, ele veio
para a corte aos 18 anos, onde cursou Matemática e História Natural, na
Academia Imperial de Belas Artes, sempre lembrado enquanto diretor do
Museu Nacional. Sua institucionalização foi tão forte que pouco se encontra de
sua biografia; alguns dados são encontrados em Costa221, em breve artigo no
qual o mesmo lamenta não encontrar referência sobre a infância de Ladislau
Neto, a não ser que aprendeu Grego e Latim com Padre Joaquim, vigário da
Freguesia de Maceió e que se recusou a cursar o bacharelado em Direito.
Em 1860-1861, Ladislau participou da viagem da Comissão
Astronômica e Hidrográfica, incumbida dos estudos da costa de Pernambuco,
publicando uma série de artigos, no Correio Mercantil. Em 1863, trabalhou
como geógrafo e botânico da Comissão de Exploração do Vale São Francisco,
datando dessa época suas primeiras pesquisas sobre cerâmica e líticos. Um
ano mais tarde, seguiu para Paris, sob patrocínio imperial para cursar Botânica,
no Jardim das Plantas. Participou de excursão à Argélia para o estudo de
plantas, segundo Costa, em Argel estudou a flora, observou o homem,
examinou as raças, interpretou a história mais antiga, familiarizando-se com as
línguas orientais, cujo curso seguiria em Paris, estendo a viagem até a “terra
dos faraós” de onde viria sua inspiração para o estudo das civilizações e povos
distintos. Ao chegar ao Brasil, ingressa na Seção de Botânica do Museu
Nacional.
“Secretaria de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30 de março de 1865 Pela secretaria de estado dos negócios do império se comunica ao Illmo Senhor Diretor do Museu Nacional, que, por decreto do corrente mês, foi nomeado Ladislau de Souza Mello Netto para o lugar de Diretor da Secção de Botânica, Agricultura e Artes Mecânicas do Mesmo Museu”.222
221 COSTA, Angyone- Indiologia, RJ: Gráfica Laemmert ltda. 222 AGMN doc. 150
201
Em 1868, foi nomeado Diretor Substituto do Museu Nacional e Diretor
efetivo, de 1876 até 1894. Seus interesses pela Quarta Seção se evidenciam
com clareza, quando no regulamento de 1876, no qual se passa para sua
direção direta, a Quarta Seção, “Enquanto não se realizar a criação do
estabelecimento especial para o estudo da Arqueologia, Etnografia e
Numismática”. Sua justificativa que, a meu ver, foi utilizada para retirar a seção
da direção fictícia de Pedro Américo, sucessor de Manoel de Araújo Porto
Alegre, e lhe dar destinos mais “científicos”. Seu interesse pela Etnologia e
Arqueologia, que acabaria por empenhar em representar na Exposição
Antropológica de 1882, ficaria evidenciado no prefácio da edição comemorativa
dos Arquivos:
“Mal volvi ao solo natal foi meu primeiro cuidado socorrer-me dos meios que melhores e mais prontos se me afiguraram para a realização das minhas cada vez mais alimentadas esperanças. Neste propósito oficiei a 18 de maio de 1867 ao senhor Conselheiro Dantas, então ministro da agricultura, pedindo aos poderes públicos e ao país inteiro a mais viva atenção para o estudo dos antigos iconoclastas desta terra, onde vagam, há já três séculos, forasteiros e perseguidos seus malfadados descendentes “223
A Exposição Antropológica de 1882 foi de grande importância para a
expansão da coleção e sua divulgação no século XIX. Seu empreendedor
Ladislau Neto, que dirigiu a instituição, no que Maria Margareth Lopes224
denominou de “anos de ouro do Museu Nacional”, foi de fundamental
importância para a formação da coleção etnológica. Houve uma grande
expansão da coleção, com o evento da exposição, por sua causa e em sua
conseqüência.
Um dos fatores de grande importância foi a realização de pesquisa de
campo no Pará, visando achados arqueológicos. Os Tembé tiveram a vida
cotidiana reconstituída na Exposição, a partir dos dados de sua viagem. Os 223Prefácio Arquivo do Museu Nacional, vol. VI. 224LOPES, Maria Margaret - O Brasil Descobre a Pesquisa Científica: Os Museus e as Ciências Naturais no Século XIX, Editora Hucitec, São Paulo, 1977.
202
anos de preparação da Exposição são uma das pistas da importância do jogo
de relações que se desenvolvia na formação da coleção. A viagem de Ladislau
ao Pará, por exemplo, é fruto de uma intensa relação por correspondência com
Ferreira Penna, Diretor do Museu Goeldi. As relações que se travam entre as
duas instituições no período causam bastante confusão posterior, uma vez que
a coleta não fica diferenciada dos empréstimos institucionais. A não restituição
de acervos institucionais emprestados ao Museu Nacional, por ocasião da
Exposição de 1882, ecoaria pelo século XX.
A aceitação do público, os elogios da Imprensa e uma condecoração
recebida como idealizador da exposição por parte do governo fizeram da
Exposição Antropológica um evento de repercussão altamente positivo.
Independentemente da Exposição, Ladislau Netto, em nome de um maior
cientificismo, irá priorizar coleções efetuadas por naturalistas viajantes
treinados. Conduziria o Museu em direção à institucionalização científica,
promovendo pesquisas direcionadas, ensino através de cursos públicos e
divulgação, como a promovida pela Exposição Antropológica, e publicações. A
partir da exposição passa a ser encarregado de missões internacionais como a
representação brasileira no Congresso de Antropologia, em Berlim, 1888, o
segundo a se realizar no mundo. Organizou e dirigiu a mostra “Amazônia”, na
Exposição de Paris, 1889. Foi condecorado com uma ordem honorífica alemã,
em 1890, e representou o Brasil na Exposição de Chicago, 1890.
Costa menciona o fato de Ladislau ter se recusado a qualquer função
política. Tendo sido nomeado deputado para a Constituinte Republicana de
1891, recusou o mandato, já havia marcado sua dedicação exclusiva à
instituição. Costa termina seu artigo enumerando seus artigos científicos e
títulos honoríficos nacionais e internacionais e sua amizade com Ernest Renan.
Ladislau Neto ficou conhecido como um homem dedicado a uma
instituição e, dentro dela, desenvolveu seus múltiplos talentos e interesses em
Botânica, Arqueologia e Etnologia. Ele foi um homem do seu tempo, com
interesses inseparáveis entre os estudos naturais e aqueles que
contemporaneamente denominaríamos de culturais.
203
O panorama esboçado, através da composição do quadro de funcionário
e das personalidades descritas, leva a algumas generalizações. Os quadros
superiores eram pessoas que tiveram acesso a uma formação no exterior e
retornaram com o intuito de profissionalizar suas áreas de atuação e, ao
mesmo tempo, dar uma imagem a algo entendido como uma nação, ou seja,
criar o Brasil e os brasileiros, através da composição de imagens visuais, nas
exposições e nos quadros, de publicações ou da transmissão passo a passo de
uma profissionalização da carreira científica.
Nem sempre o esforço era acompanhado do apoio direto do governo
imperial, preocupado com o progresso científico, mas em sua medida, e a partir
de suas prioridades. Por exemplo, os serventes do Museu não foram liberados
de prestar serviço durante a Guerra do Paraguai e as medidas de economia
impostas pela guerra atingiam duramente a instituição. As cobranças e um
interesse científico por parte do Imperador Pedro II nem sempre eram
acompanhadas de medidas efetivas para o desenvolvimento das ciências por
brasileiros e para interesses brasileiros. A publicação de litografias do material
coletado pela Comissão Científica de 1862 é um exemplo, nunca foi realizada
e, como Anderson descreve no item Museu, a publicação de imagens
litografadas popularizava os símbolos nacionais. O império brasileiro preferia
publicar a imagem da família imperial. Os itens expostos na Exposição
Antropológica de 1882, como pertencentes ao Imperador, não foram doados ao
Museu após a exposição, permanecendo na coleção particular do Imperador
sábio até o fim da monarquia. A coleção de vasos peruanos só passa ao
Museu depois do leilão do Paço, no começo da República.
Na verdade, a lenta composição de um quadro administrativo e científico
de profissionais, que poderiam tornar efetivo um decreto de criação de
instituição científica, se deu pela implementação prática efetivada pelos
profissionais nomeados ao longo dos anos para dirigir a instituição e, mais
tarde, pela dedicação dos profissionais que compunham as seções. Os
progressos lentos e negociados passo a passo, junto à estrutura burocrática
imperial, não deixam espaço para uma interpretação de patrocínio direto
facilitado pelo Imperador.
204
Capitulo 4 Construindo Uma Imagem
As primeiras iconografias tratadas se referem àquelas produzidas
através de observação direta de elementos da coleção do Museu Nacional.
Como um segundo passo são analisadas as iconografias referentes a
pesquisas cujos resultados passaram a integrar-se ao acervo seja sob a forma
de coleção seja sob a forma de iconografia do Museu Nacional em forma de
coleção e de iconografia como, por exemplo, a imagem da coleção incluída nas
pranchas da Comissão Científica de 1861. A imagem dos objetos etnográficos
retratada, enquanto espécimes científicos, aliados ao resultado do que seria
uma pesquisa iconográfica de viajantes. Torna compreensível parte do
sucesso/fracasso das coleções etnográficas.
Outra faceta do quarto capítulo é a imagem do indígena do século XIX,
produzida e preservada no Museu, através de uma tela produzida para a
Exposição Antropológica, situada no hall do Museu representando o índio
símbolo nacional
205
4.1 Iconografia da coleção
“A arte é uma cultura cujos conceitos são expressos por imagens, por imagens em vez de palavras; e a imaginação não é uma figura do pensamento, mas um passado tão vigoroso quanto o filosófico e o científico”.225
Para tratar de uma iconografia geral de acervo etnográfico brasileiro
seria um dever começar pela pranchas de Alexandre Rodrigues Ferreira226. No
entanto, trata-se de descrever a iconografia produzida sobre a coleção de
indústria humana ou a iconografia que passa a integrar a coleção de indústria
humana no Museu Nacional no período da formação de sua coleção. A
iconografia trabalhada nesse item é aquela produzida com uma
intencionalidade de divulgação e/ ou estudo dos objetos que compõem o
acervo de imagens a ele relacionadas ou de registros no local onde foram
observadas, à maneira de anotações desenhadas.
No século XIX, a iconografia e a descrição dos objetos estavam
presentes nos relatos de viagens e nas descrições etnográficas como uma
parte integrante dos mesmos. A tradição de retratar objetos como parte do
entendimento é longa e se dá quase com o começo das viagens científicas,
nas quais a presença de alguém que desenhe com caráter científico é
fundamental. Além dos próprios naturalistas fazerem seus esboços, o desenho
científico de Zoologia e Botânica também era aplicado às pessoas e à
produção de objetos da indústria humana.
Na publicação das viagens, largamente consumidas no século XIX, o
desenho dos objetos ou das coisas era parte do entendimento. Douglas227
infere que “os grandes romancistas nunca duvidaram de que existe uma
225 ARGAN, G.C. História da Arte Italiana, Vol.1 da antiguidade a Ducci. SP: Cosac e Naif, p. 19. 226 FERREIRA, Alexandre Rodrigues- Viagem Filosófica. RJ: Conselho Federal de Cultura, 1974. 227 DOUGLAS, Mary- O mundo dos bens- RJ: Editora UFRJ. 2006, p. 35.
206
grande distância entre o uso dos bens para o bem-estar de um lado e a
exibição, essa função de criar significado, de outro”. A autora se refere
basicamente a Henry James228, cujo romance “Os Espólios de Poynton” faz
uma crítica ao colecionismo da sociedade inglesa do século XIX. Como no
sucesso dos romances do século XIX, a literatura de viagem buscava “coisas”
ou objetos que ajudavam a criar significados inteligíveis que eram mais do que
meras ilustrações, ajudavam a traçar um mapa de entendimento. Toda a
viagem, portanto, começava ou terminava em busca de “coisas” para informar
melhor o futuro viajante ou de “coisas” trazidas por estes, e transformadas em
coleções particulares ou de museus.
Um dos testemunhos dos materiais integrantes da coleção do século
XIX, no Museu Nacional, são as pranchas produzidas no Museu por Jean
Baptiste Debret, durante sua permanência no Brasil, enquanto fundador e
professor da Academia Imperial de Belas Artes.
Debret, bonapartista e antimonarquista convicto, veio para o Brasil junto
com os pintores que integrariam a “Missão Artística Francesa” ou a “colônia” de
artistas franceses229, descrita romanticamente por Schwarcz230, como
“Desventuras dos artistas franceses na corte de D. João”. O meu interesse
reside no fato de ter sido efetivamente Debret um dos iniciadores do ensino
artístico no Brasil e o produtor de uma obra que, como destaca Lima231, possui
um caráter de descrição histórica preponderante condizendo com as análises
de sua obra enquanto pintura histórica, feitas por Sá232:
228Mais especificamente, podemos ver esse conteúdo e o tratamento de objetos como coisas no romance “ Os espólios de Paynton”. 229SÁ, Ivan Coelho de- Academias de Modelo Vivo e Bastidores da Pintura Acadêmica Brasileira, tese de doutorado em História da Arte, Programa de Pós Graduação em Artes Visuais. EBA/ UFRJ,2004. 230SCHWARCZ, L. M.- O Sol do Brasil, SP: Companhia das Letras, 2008. 231LIMA, Valéria. A viagem Pitoresca e Histórica de Debret, por uma nova leitura. Tese de doutoramento, IFCS/UNICAMP,2003 232Op. cit
207
“A idéia de caracterizar Debret prioritariamente como viajante parecia-me longe de concentrar toda a sua importância diante do testemunho que elabora a respeito do Brasil. Ao contrário prioriza seu perfil de historiador parecia ser o canal mais justo para que reconhecêssemos a sua importância, dada a complexidade de seu projeto sobre o país, materializado nos três volumes de sua Viagem Pitoresca e Histórica.”233 p.8
Estudos, como o de Segala234, sobre Victor Frond já apontavam para a
diferenciação na qualidade dos projetos a serem nomeados como “Viagens
Pitorescas ao Brasil”. No caso de seu estudo, mostra ser o projeto de Frond
baseado em fotografias posteriormente litografadas bem mais próximo de um
estudo da sociedade brasileira do que a narração de viagem para deleite, pura
e simplesmente.
Debret desenhou no Museu Nacional pranchas de objetos que aí se
encontravam, compondo o acervo de indústria humana, mais especificamente,
desenhou o acervo de indústria dos índios. Produzindo anotações desenhadas
que viraram posteriormente parte de composições a serem realizadas. Como
professor da cadeira de Pintura Histórica, as grandes composições eram seu
domínio, e nas suas composições aparecem vários elementos de seus esboços
no Museu. Em alguns casos suas anotações eram bastante específicas, por
exemplo, no caso as plumária Mundurukú, anotou a colocação da coifa, por
meio de imagem, seus detalhes de composição e mesmo as aves que
entravam em sua composição, a cabeça troféu também foi anotada e serviu de
inspiração para o modelo que porta a coifa Mundurukú :
Muitas das análises contemporâneas do colonialismo se basearam tanto
na iconografia como nos textos (Pratt235, Thomas236), descrevendo
intencionalidades por trás da iconografia. Oliveira237, em um artigo sobre os
viajantes, alertava, de forma precursora, para as diversas formações e
233 Idem. P. 8 234SEGALA, Ligia- Ensaio das luzes sobre um Brasil Pitoresco: O Projeto Fotográfico de Victor Frond. Tese de doutoramento, PPGAS, MN/UFRJ, 1988 235PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império, SC, EDUSC, 1999. 236Thomas, op.cit. 237OLIVEIRA, João P.- Os atalhos da Magia. Boletim Museu Paraense Emílio Goeldi, série Antropologia, 3 (2), 1987.
208
intenções dos mesmos, bem como para as suas finalidades práticas. Procurei,
então, levar em conta as mesmas para a seleção e análise do material
iconográfico.
Fig.12 Plumária Mundurukú Aquarela e Crayon, J. B. Debret Acervo Fundação Castro Maia
Partes dessas anotações foram transformadas em pranchas
litografadas, nas quais aparecem um grande número de objetos. A partir delas,
podemos verificar suas anotações gráficas ou esboços que foram usados nas
composições históricas, em que o elemento indígena é retratado.
Podemos exemplificar com o quadro a óleo “O caçador de Escravos”238,
onde na composição de um fato histórico: a caça de escravos indígenas,
238 Essa tela teve a atribuição a Debret contestada por Bandeira e Corrêa usando como argumento justamente o fato da tanga de miçanga não ser artefato de indígenas brasileiros, e os cestos da tela não terem sido desenhados por Debret. Bandeira, J. e Corrêa P.- Debret e o Brasil , Obra completa,- Editora Capivara, 2008
209
aparecem figuras de indígenas entre elas a que destaquei abaixo, com
elementos que foram estudados por Debret no Museu, o uso desses elementos
nas grandes composições, nem sempre era absolutamente fiel á etnografia,
pois não se tratava de um estudo científico e sim de uma obra artística que
apesar de seu cunho histórico tinha um compromisso com uma estética
romântica. Os adereços de cabeça, por exemplo: pentes com acabamento
lateral em penas dos Tucano, são colocados em penteados elaborados á
maneira de coques de uso corrente pelas mulheres brancas. Já a tanga de
contas do Rio branco está praticamente descrita, no entanto o objeto que
aparece mais estudado corresponde á prancha de estudo realizada no Museu
Nacional na qual o cesto cargueiro foi colocado á maneira correta com a alça
presa à testa e a carga nas costa. Na tela os traços seguem fielmente os
estudados no Museu.
Fig. 13 Detalhe do quadro “O caçador e escravos”
Debret s/ data, óleo sobre tela, MASP Reprodução digital Gênios da Pintura. Fascículo 1 ED. Abril cultural, 1979
210
Fig 14 Prancha de Debret com cestaria desenhada no MN,
Litografada e impressa no livro Viagem Pitoresca e Histórica, SP:USP,1972
A mistura de artefatos de vários grupos presente na figura acima pode
ser denominada como a composição de um índio genérico, não referido a um
grupo específico e a seus padrões de vestimentas ou aos objetos que
caracterizam sua produção. Uma composição geral que, através de objetos
esteticamente arranjados usados por diferentes índios brasileiros, cria uma
figura simbólica que o retrate. Para isso, o uso de objetos pertencentes aos
índios é de grande importância, não importando sua filiação étnica.
Por vezes, no entanto, o desenho desses artefatos, como no caso das
máscaras Tikuna, ganhou autonomia, figurando na obra “Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil”, cujo primeiro volume dedicado aos indígenas foi publicado
em 1834.
As máscaras, desenhadas por Debret, têm destaque por se tratarem de
pranchas com conteúdo em separado e colorido. Existem outras pranchas, na
mesma publicação, com conteúdos em preto e branco e materiais diversos
expostos em um mesmo quadro, por vezes com algumas confusões, como o
manto das Ilhas Sandwich, figurando como material brasileiro. As máscaras
mereceram o destaque de seu trabalho como colorista e demonstração de seu
traço, ao mesmo tempo, sintético e detalhista. Dificilmente, as fotografias dessa
máscara, produzidas no século XX e XXI239, dão conta do volume e das
características do mesmo, como a prancha de Debret, na qual opta por mostrar
239Como a que aparece no Livro Institucional do Museu Nacional patrocinado pelo Banco Safra, em 2007. p.31
211
seus desdobramentos, frente, costas e lado, demonstrando, dessa forma, sua
tridimensionalidade e perfeição volumétrica.
Fig.15 Máscaras Tikuna Aquarela e Crayon, Debret Acervo Fundação Castro Maia
O professor Debret destaca, em linhas e sombras imperceptíveis, o
volume da cabeça na parte posterior e as reentrâncias e protuberâncias da
face na imagem desenhada de frente, complementada pela visão lateral, na
qual os destaques de volume ficam evidentes. O uso sutil das cores branco e
amarelo faz com que o pintor destaque o elemento artístico original,
acompanhando a sutileza das cores empregadas para a construção da
máscara. As máscaras Tikuna nunca se repetem e, nas máscaras desenhadas
por Debret, o mesmo captura os aspectos sutis empregados pelo artista
Tikuna, que elaborou o original, que, com pigmentação simples, conseguiu um
efeito que se preservou por mais de um século. Em seu texto apresenta a sua
admiração pelas máscaras240:
240DEBRET.J.B.- Voyage Pitoresque et Historique au Brésil- tone I.Paris: Firme Dodot Frére, Imprimeur de l’Institut de France. 1834.p.27
212
“Il ne restatit véritablement plus a l’homme sauvage industries, aprés d’avoir épuisé toutes les ressoucers du tatuage pour se rendre dideux, qu’a se fabrique de masques em forme de tête de animaux de toute espéce , Seul moyan de reproduire physiquemente l’apparance d’une monstruosite plus epouvantable, et par cete menu plus digne de toute l’adimiration de espectateur pendant le jour de fête “241
Ao desenhar o acervo, Debret prestou também auxílio documental à
coleção. Existem pranchas, com o conjunto das máscaras Tikuna em acervo,
no Museu, desenhadas, num total de cinco exemplares, complementadas pela
gravura elaborada por Martius, demonstrando o ritual Tikuna, onde as
máscaras são usadas. No caso das máscaras Tikuna desenhadas no livro,
apenas uma não se encontra hoje na Instituição, podendo a perda ter sido
acarretada por problemas de conservação ou por alguma permuta não
documentada, prática comum até 1930.
Debret pretendeu contribuir para história brasileira com sua obra,
abrindo inclusive espaço para comentário de dois de seus discípulos
brasileiros, Manuel de Araújo Porto Alegre e Domingos Gonçalves Magalhães
em sua obra “Viagem Filosófica ao Brasil”. Através de seus discípulos, que
formariam os futuros alunos da Academia e Belas Artes, teve longa influência
na arte brasileira do século XIX e na composição de uma história iconográfica
brasileira.
Segundo Bandeira e Corrêa242 Manuel de Araújo Porto Alegre foi autor
de algumas das pranchas realizadas no Museu do Campo de Santana, pelo
menos duas, uma delas o estudo das flechas publicado no livro Viagem
Pitoresca e outra onde aparece a trombeta (Trompete) Mundurukú. Dessa
forma anos antes de dirigir a coleção Porto Alegre a conhecera e estudara.
Outro testemunho importante para a coleção do Museu foi a iconografia
produzida pelos artistas da expedição Langsdorff (1821-1829), empreendida
pelo cônsul da Prússia, com os objetivos de descrever e coletar acervo e
informações para o Museu Imperial da Rússia. Os artistas contratados, ao 241 Idem 242 BANDEIRA, J. e CORRÊA P.- Debret e o Brasil , Obra completa,- Editora Capivara, 2008
213
longo das expedições, tiveram uma relação difícil com a coordenação do Barão
de Langsdorff. Alguns, como Rugendas (recrutado na Alemanha), preferem
abandonar a expedição e traçar um caminho individual. A diferença de olhares
e intenções entre os artistas e a coordenação científica da expedição, ao longo
da produção das imagens, causava conflitos principalmente na questão da
autoria, já que, para a coordenação científica, o objetivo principal da expedição
era coleta imperial. A expedição viajava e coletava sob a bandeira da Prússia.
Portanto, todo o material produzido deveria ser entregue à coordenação da
expedição, impedindo qualquer anotação visual ou não, de caráter pessoal que
pertencesse aos artistas.
Adrian Taunay e Hercule Florence forma recrutados já no Brasil e, com
experiência em viagens de exploração, permaneceram na expedição. Adrian
até sua morte (por afogamento, ao atravessar um rio) e Florence até o fim da
expedição. Com a doença do Barão Langsdorff, Florence tornou-se o único a
relatar o fim da expedição, tendo permanecido no Brasil e deixado suas notas
com a família Taunay, que as publicaria como resultado da “malfadada”
expedição.
Existe a possibilidade, já comentada no capítulo um, de parte da coleção
Mundurukú do Museu ser proveniente da coleta realizada pela expedição
Langsdorff. Vários caixotes com coleção ficaram no estado do Pará para serem
remetidos futuramente. Com a doença de Langsdorff e a perda de seu controle
sobre o destino do acervo coletado, uma parte deles pode ter sido remetido ao
Museu Nacional. Pode também ter havido sempre esse propósito, já que o
Barão enviou uma coleção de diamantes do cerro de Diamantina para o
Museu. Ainda que as tentativas de confirmação sejam infrutíferas, certamente a
coleção Mundurukú do Museu pode ser entendida face à iconografia de
Hercule Florance, como podemos visualizar abaixo:
214
Fig. 16 Aquarela de Hercule Fig.17 Plumária Mundurukú Florence. Comissão Langsdorff, acervo SEE. 1829 In: Os Diários de Langsdorff: Rio de Janeiro: Fiocruz, ,1998.
A maneira de descrição cientifica apreendida por Florence, fica evidente
no realismo da composição da aquarela, pelo menos no que diz respeito aos
artefatos. A plumária se encontra completamente descrita. O adereço de
cabeça: uma coifa com cobre-nuca é desenhada de maneira a demonstrar
todos os seus elementos sem prejuízo da composição geral da figura. O uso
das bandoleiras de penas, o detalhe do cinto ser atado à frente e os pendentes
ficarem atrás. São documentos visuais que conseguem recuperar a ausência
de informação do acervo do século XIX. Embora a descrição do guerreiro
Mundurukú seja recorrente na bibliografia do século XIX, os detalhes do uso de
artefatos de plumária, que, ao entrarem no Museu, perdem a sua característica
etnográfica, têm seu entendimento facilitado por detalhes descritos visualmente
por Florence.
A descrição escrita de Florence também é detalhada visualmente.
Florence nos concede relatos mais cotidianos dos Mundurukú. Seus relatos
pessoais são sutis e, apesar de tratar das diferenças visuais, falam também da
215
solidariedade frente a um problema comum aos humanos, a fome. Dessa
forma, a descrição das estranhezas visuais, elaboradas com riquezas de
detalhes também por escrito, é complementada por um caráter moral.
“Os Mundurucus raspam o cabelo da cabeça, deixando acima da testa um feixe redondo e curto; por trás usam cabelo que chega até às frontes de modo que todos, homens, velhos,mulheres e moços são calvos por inclinação. Em cada orelha fazem dois furos, nos quais introduzem cilindros de dois centímetros de grossura. A marcação (tatuagem) da cara consiste em duas linhas que vão do nariz e da boca às orelhas e de um xadrez em losango no queixo. Além dessas riscas fixas, pintam-se com suco de jenipapo que é da cor da tinta de escrever. Ás vezes traçam linhas verticais em algumas partes do corpo. Debaixo do braço trazia um desses índios um pedaço de Catitu (porquinho do mato) assado e embrulhado em folhas secas. A vista desse manjar, que tinha cara de ser excelente, acordou-me o apetite modificado uns dias atrás pela moléstia. Pedi-o ao índio que prontamente cedeu. Com a mesma satisfação saboreando-o, os senhores Langsdorff e Rubzoff, ainda mais faltos desse apetite que eu.”243
Seu relato mais do que enquadrar visualmente os Mundurukú nos
descreve condições de observação e contato de uma forma despretensiosa e
pouco preconcebida para 1829, como veremos na imagem Botocudo, descrita
por Wied-Newied em 1822. Sua capacidade de relatar detalhes visuais por
escrito, no entanto, é bastante especial. Hercule Florence fixou-se
definitivamente no Brasil, seu olhar de viajante é, portanto, diferente do
daqueles que, mesmo sendo partícipes de longos projetos, voltaram a seus
países de origem, como Debret.
Adrian Taunay produziu as pranchas de desenhos científicos da
Comissão, entre elas, a presença de pranchas com artefatos indígenas, em
seu detalhamento e recorte semelhante a encontrada principalmente nos
desenhos botânicos, nos quais aparecem recortes para que se possa visualizar
os detalhes. Suas composições de pranchas formam grupos de artefatos
243FLORENCE, Hercule. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas. São Paulo: Editora Cultrix, USP, 1977. p. 273 a 275
216
identificados por tipo e pertencimento a grupo indígena, como, por exemplo, a
prancha abaixo, na qual se encontram vários tipos de colares e adornos
Bororo. Os detalhes, por vezes, são exagerados em prol do entendimento,
como no caso do peitoral reproduzido no canto inferior direito, em que o
detalhe central em cera e rodelas de concha recortada é aumentado em
proporção ao conjunto.
Fig.18 Adornos Bororo, Hercule Florence
Aquarela e Crayon In: Os Diários de Langsdorff, RJ: FIOCRUZ,1998
217
4.2 Uma Coleção Iconográfica
As expedições anteriores, sua produção e discussão no IHGB244, onde o
primeiro volume de Debret, dedicado aos indígenas foi bastante apreciado,
criaram caminho para a idéia da Comissão Científica do Império levada a cabo
entre 1859/1861, engendrada na Sociedade Velosiana e promovida através do
IHGB com integrantes brasileiros, entre eles a figura de um desenhista José
dos Reis Carvalho, um dos alunos fundadores da Academia de Belas Artes,
professor de Desenho da Escola Imperial da Marinha. A sessão de Botânica foi
chefiada e ilustrada por Francisco Freire Alemão, exímio desenhista científico.
As sessões de Etnografia e Mineralogia contavam com fotografias para
documentar a excursão, pois Gonçalves Dias e Guilherme Capanema, seus
diretores, dominavam a técnica245.
A expedição gerou uma coleção de pranchas que nunca foram
publicadas e, de certa forma, se tornaram invisíveis ou visíveis apenas para
pesquisadores mais atentos e trabalhadores das instituições por onde elas
foram divididas. O trabalho de José dos Reis de Carvalho encontra-se dividido
entre o Museu D. João VI e o Museu Histórico Nacional. O trabalho de Freire
Alemão e as pranchas produzidas com material etnográfico coletado por
Gonçalves Dias encontram-se na Biblioteca Nacional. Já o material etnográfico
possui cópias litografadas no Setor de Etnologia.
Para aqueles que lidaram diretamente com a coleção etnográfica do
Museu, as pranchas acabaram se transformando em uma espécie de lição e
síntese visual do acervo amazônico. Roquette Pinto, ao falar de Gonçalves
Dias, designa-o como “meu primeiro mestre em etnografia brasileira”246,
244As discussões sobre material de viajantes estrangeiros são comuns no IHGB, muitas vezes a visão estrangeira é rejeitada e considerada leviana, como no caso do volume de Debret dedicado aos escravos. A partir desses fatos surge a necessidade de uma comissão brasileira que entenda os fato como brasileiros e não os deturpe. 245Muito embora o material fotográfico da expedição tenha se perdido, provavelmente em sucessivos naufrágios. 246ROQUETTE PINTO, Edgar- Conferências realizadas na Academia Brasileira Letras. Gonçalves Dias. RJ: ABL, 1948, p.83.
218
mencionando as lições deixadas nas pranchas e em documentos por ele
estudados.
As litografias compõem um conjunto de cem pranchas, algumas com
várias cópias litografadas e possivelmente desenhadas também por Henrich
Fleiuss, com o acervo coletado por Gonçalves Dias já no Museu. As mesmas
se tornam inteligíveis, mediante a lista de Gonçalves Dias sobre o acervo
reunido em Manaus, para ser enviada à comissão organizadora da Primeira
Exposição Nacional. A lista faz com que possamos, cotejando com a lista típica
do Setor, obter informações sobre a coleta e outros dados complementares às
pranchas e às peças do acervo, conforme o já visto no capítulo 1.
Em termos iconográficos, podemos notar a influência da expedição
Langsdorff, em especial as pranchas deixadas por Adrian Taunay, que
influenciaram o estilo com que foram desenhadas as pranchas dos artefatos
indígenas coletados e litografadas no Museu por Fleiuss.247 A influência do
desenho das pranchas pode ser observada pelo estilo do corte das flechas
para que se possa proceder estudos de emplumação e ponta, locais onde se
pode observar a tipologia da flecha ou seja sua intencionalidade. A
emplumação indica se ela foi feita para alcançar curtas ou longas distâncias,
aponta se ela foi feita para pesca, caça ou guerra, sendo o local onde a
tipologia de material empregado encontra maior diversificação. Podemos notar,
no entanto, que, na prancha da comissão científica, existem os modelos da
flecha inteira em tamanho reduzido, para que se possa ter uma compreensão
do todo. Na prancha de Adrian, o detalhe é mais evidente, tendo o mesmo
escolhido representar a parte de trás da flecha, onde aparece amarração entre
cabo e ponta e detalhando a parte da taquara que se sobressai no verso da
ponta.
247Henrich Fleiuss, nascido em Dusseldolnf, na Alemanha, foi discípulo de Von Martius. No Brasil, uma empresa tipolitográfica mais tarde originou o Instituto Histórico e Artístico que se encarregaria das litografias oficiais do Império.
219
Fig.19 Flechas de Adrian Taunay Fig 20 Flechas da Comissão Científica do Comissão Langsdorff in: Império, Acervo SEE,Litografia Diários de Langsdorff,RJ;Fiocruz,1998, Litografia
As imagens de acervo podem ter sido tanto desenhadas diretamente do
acervo como geradas por fotos no Museu, antes de serem levadas para
acertos de desenho e litografia. O relato iconográfico da viagem de Dias ao
Amazonas fica, portanto, sendo posterior ao próprio, visto que Gonçalves Dias
não viajou ao Amazonas com desenhista e sim com equipamento fotográfico.
Essas fotos podem ter sido perdidas no naufrágio que atingiu parte do material
da expedição, ou no naufrágio que atingiu o próprio Gonçalves Dias, ou podem
fazer parte do acervo fotográfico do próprio Museu Nacional ou do IHGB, uma
vez que a pesquisa, nesses e em outros acervos fotográficos, ainda pode
revelar surpresas.
220
Fig.21 Muruku-Maracá
Litografia da Comissão Científica do Império Acervo SEE
“Nas armas há grande variedade como insígnias de mando, são belas as Murucu-Maracás, as grandes lanças usadas pelos chefes: curiosas pelo cumprimento da haste, pela perfeição do trabalho e por uma pedra esfera que, mal se sabe como”, Forçaram a entrada por uma fenda longa e estreita, que se vê na parte superior da haste.”
A iconografia das lanças Murucú-Maracá, representadas nas duas
pranchas acima, com a descrição de Gonçalves Dias sobre o material coletado,
é um curioso testemunho do que se pretendia e nunca chegou a ser cumprido.
Não só Gonçalves Dias, mas também Ladislau Netto pensou e começou a
trabalhar na composição de um catálogo da coleção etnográfica, aproveitando
221
as pranchas denominadas de Coleção Típica. Seus intentos de publicação,
bem como os de Raimundo Lopes, no século XX, não se concretizaram.
As “coisas” ou objetos indígenas, tão bem documentados visualmente,
transformaram-se em lições para iniciados, distanciadas do público geral e
mesmo da maioria dos pesquisadores. No entanto, sua sobrevivência aponta
para um conjunto bastante interessante de material etnográfico amazônico, que
acompanha o trajeto de Dias pelos Rios Negro, Solimões e Ucayale.
Fig.22 Arcos Connibo, Rio Ucayale
LITOGRAFIA da Comissão Científica do Império Acervo SEE
A coleta segue a viagem pelos rios, “a estrada do Amazonas”, e a
iconografia segue a coleção recolhida. Nas cem pranchas apenas cinco por
cento das pranchas se refere a plumária que é geralmente retratada nas
iconografias.O destaque nas pranchas da comissão é dado as armas,
retratadas em recortes para melhor entendimento, a perícia do desenho vai ser
ressaltada no detalhe como no caso dos arcos Connibo, onde o desenho
222
valoriza a forma quadrangular dos arcos, seu volume e principalmente a
decoração, reproduzindo fielmente a diferença dos padrões geométricos por
faixa, em cada uma das quatro faixas e nos arcos que servem como modelo,
existe também a tentativa de marcar que os padrões são construídos fio a fio,
retratando a forma como os arcos Connibo são revestidos de fios de algodão
formando os padrões geométricos.
A autoria do desenho é uma incógnita, pois pode ter sido feito pelo editor
das pranchas como por algum praticante do próprio museu, existe um texto
bastante curioso de Silvio Romero248 na biblioteca do Museu Nacional, uma
pequena publicação com o subtítulo de “apontamentos para o quarto volume
da História da Literatura”, onde o mesmo faz uma crítica bastante dura á
Ladislau Neto, começando por seu currículo, menciona o fato de Ladislau não
possuir comprovação de diploma e ter entrado no Museu como praticante de
desenho, fazendo ilustrações, antes de ter seguido para a França e voltado
Botânico. “Todos nós conhecíamos o nosso amável Ladislau, moço vivo e
cheio de habilidade para o desenho”.
Esses dados não aparecem na História da Literatura249, publicada como
tal, na qual Ladislau é tratado como um cientista romântico (termo pejorativo
para um membro da geração de 1870, como Silvio Romero). No entanto, a
biografia oficial mostra ter Ladislau Neto cursado a Academia de Belas Artes.
Nada impossível, portanto, de ter Ladislau estado no Museu na época da
entrada do material da Comissão do Império como praticante de desenho. Seu
interesse pelos padrões geométricos seria evidenciado, mais tarde, pelos seus
estudos da cerâmica arqueológica coletada em sua viagem ao Pará e também
por seu artigo sobre a evolução da arte na revista da exposição antropológica
brasileira.
Outro produto iconográfico da comissão Científica do Império, relativo ao
material coletado no Ceará, são as aquarelas e desenhos em crayon, que se
encontram hoje separadas em duas instituições distintas: Museu D. João VI /
248ROMERO, Silvio, Etnografia Brasileira; Estudos críticos sobre Couto Magalhães, Barbosa Rodrigues, Theophilo Braga e Ladislau Neto.Rio de JANEIRO: Alves, 1988. p.134. 249ROMERO, Silvio, História da Literatura Brasileira. Vol.4, RJ: Livraria José Olinpyo Editora, 1954. p.1784.
223
UFRJ e Museu Histórico Nacional. O segundo conjunto tem a possibilidade de
ser proveniente do próprio Museu Nacional, pois, em sua ficha técnica, consta
como processo de aquisição inexistente. As pranchas do Museu Histórico
formam um conjunto de 32, tendo a observação que o conjunto original teria 39
desenhos. A maioria se refere à Arquitetura, principalmente a religiosa. Em
meio a essas, no entanto, surgem testemunhos sobre a presença de índios em
Aracati, no Ceará, em duas pranchas: uma com habitação indígena e índias em
Aracati, fazendo renda, e o esboço de um índio Xocó. No Museu D. João VI,
temos outra aquarela de índia fazendo renda.
A maioria do conjunto de pranchas se refere à Arquitetura religiosa, no
caso do conjunto do Museu Histórico, e a figuras humanas com caracterização
e cor local e flores, no caso do Museu D. João VI. Em ambos os conjuntos,
surgem a presença de índios em Aracati.. Manuel Ferreira Lagos, autor da
Exposição do Ceará, nunca deixou relatos publicados a respeito da viagem ou
de sua coleta e acervo, coletou grande quantidade de redes e rendas, que
atribuiu à indústria do Ceará no Catálogo da Exposição Nacional de 1861
José Reis de Carvalho, formado pela Academia de Belas Artes e
professor da mesma instituição, com um olhar treinado para anotação visual de
tipos, desenhou indígenas e marcou-lhes a presença. Tendo sido aluno
fundador da Academia, junto com Manoel de Araújo Porto Alegre, seguiu boa
parte das instruções do mesmo sobre o trabalho a ser realizado:
”Sendo o ponto mais importante da etnologia, para o estudo do homem físico, o conhecimento do tipo, só se poderá adquirir noções suficientes por meio de desenhos fidelíssimos do todo, principalmente da cabeça, os quais deverão ser tirados de lado ou de perfil, e mesmo de outras posições favoráveis à demonstração de certos caracteres próprios a distinguir um tipo particular, tanto no homem como na mulher,”250
Seus desenhos foram separados. Provavelmente, a parte do Museu D.
João VI seja a parte dos desenhos que tenha ficado de posse do mesmo e,
250Instruções redigidas por Porto- Alegre in Braga, Renato: História da Comissão Científica do Império Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará,1962. p.203
224
mais tarde, encaminhada à Academia. A parte que se encontra
contemporaneamente no Museu Histórico deve ser aquela entregue
oficialmente como produção da Comissão. Dentro das suas anotações de
figuras humanas locais, podemos ver uma aquarela com a descrição
“Vaqueiro”, anterior às descrições iconográficas ou escritas, que caracterizaram
como um tipo, o vaqueiro, todo vestido em couro. A anotação segue o “tipo”
proposto por Porto Alegre. O conjunto portado na aquarela se encontra descrito
no relato da exposição do Ceará e faz parte de um dos primeiros conjuntos de
entrada da coleção, hoje denominado como regional.
Fig.23 Vaqueiro Aquarela e Crayon de José Reis de Carvalho Acervo Museu D. João VI
A própria lição, apreendida na Academia de Belas Artes, de anotar para
composições posteriores faz com que haja diferenças no tratamento desses
desenhos: o índio Xocó é um esboço fisionômico a crayon, com traços da face
bastante acentuados, lembrando um estudo documental e científico, apesar de
se tratar claramente de um esboço, com certeza, inspirado na norma proposta
por Porto Alegre, de desenhar cabeças com demonstração de caracteres de
um tipo particular. Sobre a identificação Xocó, paira dúvida se ela foi feita por
225
Braga, com base nos dois grupos visitados por Dias no Ceará, os Xocó e os
Cariri. Sobre os Xocó, Braga251 reproduz nota do jornal “Cearense”, de 16 de
março de 1860:
“Esses índios são restos de uma tribo, que vivia em outro tempo sob a proteção do missionário Frei Ângelo de Baixa Verde, aquele que Ferdinand Denis tão belo elogio fez, quando tratou de Pernambuco. Falam mal o português, e conservam o seu idioma. Te há pouco andavam nus. O dr. Gonçalves Dias nos dirá alguma coisa deles, assim também o dr. Lagos que lhes vai fazer outra visita.”252
Gonçalves Dias não deixou registro da visita, nem Manuel Ferreira
Lagos, apenas Reis de Carvalho, com suas anotações, registrou a presença de
indígenas quer fossem Cariri ou Xocó. Sobre os Cariri, Guilherme Capanema,
que acompanhou Gonçalves Dias, chegou a fazer uma palestra no IHGB, dada
como perdida (Boa parte do material lido no IHGB e não publicado se perdeu,
como os textos de Manoel Ferreira Lagos).
Fig.24 Esboço de cabeça de índio Xocó
José Reis de Carvalho Acervo MHN
251BRAGA, Renato. Op cit. P. 369. 252 Idem
226
Já a composição em aquarela, denominada de “índia de Aracati fazendo
renda”, mostra uma composição com a figura feminina central sentada,
portando um vestido com marcas que dão a entender estar sujo ou rasgado, de
pés descalços em evidência, com uma almofada no colo, com renda e mãos
unidas, como ajeitando agulha ou similar. Seu rosto inclinado para baixo
apresenta traços suaves, sua tez é amorenada e seus cabelos pretos,
compridos e lisos passando da nuca e descendo sobre as costas, em um
contexto possível para indígenas aldeados há algum tempo e utilizados na
confecção de artefatos locais. No entanto, no canto á direita, aparece uma
cena com dois indígenas nus, com cabelos recortados acima das orelhas, um
deles sentado sobre uma pedra, com varetas nas mãos, à moda de confecção
de flechas, esboçando, dessa forma, uma composição de aldeia mais “original”,
como uma afirmação da existência de “índios” no local.
O desenho de grupos humanos foi orientado por Porto Alegre para ser
feito de forma a orientar melhor a variação de formas, atitudes e fisionomias.
No entanto, na imagem, vemos um grupo de atitude variável apenas no
destaque dado ao personagem feminino principal, que aparece vestido e
fazendo renda. O grupo de contraste não é caracterizado em seu aspecto
fisionômico.
Fig.25 Índia de Aracati, Aquarela José Reis de Carvalho Acervo Museu D. João VI
227
A aquarela da habitação dos índios em Aracati, revela o que poderíamos
chamar de uma tapera em taipa, com telhado coberto de sapê, de modo algum
diferenciado da moradia de outros habitantes populares, a não ser por seus
prováveis habitantes. O corte lateral do telhado aparece como uma ruína, no
entanto o musgo e as flores dão um toque romantizado, principalmente
ressaltando a habilidade como é colorida a aquarela. Apesar da aparência
romântica, é o desenho de uma habitação indígena em aldeia que revela uma
habitação familiar, distante da oca comunitária. Sobre Aracati, temos notas
esparsas de Lagos e de Freire Alemão, ambos se referem à habilidade das
mulheres de Aracati com relação aos trabalhos manuais, principalmente os de
labirinto, sem entrar em designação de serem essas índias ou descendentes;
existem menções aos Cariri, esparsos pela região.
Fig.26 Habitação dos índios de Aracati
José Reis de Carvalho Acervo D. João VI
José Reis de Carvalho teve seu trabalho com flores, realizado a partir
das aquarelas e anotações visuais da Comissão, premiado na Exposição
Nacional de 1861, e enviado para a Exposição de Londres. No entanto, seu
trabalho “Histórico” e “Etnográfico”, à feição de Debret, um dos seus mestres e
fundador da academia que cursou, permanece inédito e desmembrado. O
228
registro iconográfico da “fracassada” Comissão do Império, como foi vista à sua
época, parece relegado a uma história do que poderia ter sido, ou
esperançosamente do poderá ser um dia reunido.
4.3 A Construção de uma Imagem
Meu interesse no atual trabalho é focar na coleção. Então surgiram as
imagens que fazem parte da coleção e que foram expostas pela Instituição
enquanto seus “índios”, ou seja, sua representação de índio. A partir de então,
o que naturalizamos como o que sempre esteve ali, ao longo dos anos de
trabalho na Instituição, nos saltou aos olhos: o quadro “Indígena do Alto
Amazonas”, produzido para a Exposição de 1882, presente
contemporaneamente no hall de entrada do Museu. Sem maiores explicações
da sua imponente presença, trata-se de uma tela de corpo inteiro em tamanho
natural.
Outro conjunto de imagens persistente nas exposições, produzida
igualmente no Museu para ser exposta é o das moldagens de gesso de três
indígenas, feitas em épocas diferentes. Um Botocudo e dois Xerente que
vagavam pela casa, sendo postos em diferentes locais da exposição, estando
localizados, na época da escrita desse capítulo, dois na Exposição temporária
Vandelli e um recepcionando os visitantes no alto da escada de madeira, na
nova sala de exposição da Etnologia. Apesar de não fazer parte do projeto
original da reforma da sala, lá estava ele no alto da escada na data da sua
inauguração, sem maiores explicações ou motivos, mas impondo sua presença
229
imponente e chamativa.
Ao observar isso, decidi pedir para duas pessoas diferentes fotografá-
los. Comparando imagens que adquiri, na Biblioteca Nacional, sobre a
exposição Antropológica com outras imagens profissionais capturadas ao longo
tempo, percebi que essa imagem deixada por herança do século XIX, nunca foi
discutida, mas esteve sempre presente e transformada em uma das peças
icônicas do Museu, devido ao apreço do público. Poderiam ser as imagens que
responderiam à proposta do professor, implicando no fato de uma delas, a do
“Indígena do Alto Amazonas”, ser ambígua, próxima da influência do índio
romântico, pintado pelos padrões neoclássicos da Academia e utilizado como
símbolo, apesar de uma tentativa de apresentação enquanto documento. Ou
seja, não era tão simples assim a imagem do indígena produzida pelo Museu.
O cientificismo convivia muito mais próximo do romantismo do que eu havia
suspeitado, e essa imagem existia com força suficiente para manter sua
presença silenciosa por mais de um século, uma mudança de prédio e vários
rearranjos na Exposição.
Uma vez encontrados os objetos para análise, a forma de analisá-los era
fundamental. Optei pela pouco da história da sua produção com um fim
comum, a Exposição Antropológica de 1882, e por uma análise que tenta
abranger também a importância da representação da figura humana para a
época, com estilo neoclássico em vigor e com a Academia de Belas Artes,
monopolizando um ensino da imagem, e o fim comum que os integrou a
pertença à coleção do Museu Nacional e suas exposições.
230
4.3.1 O Índio Símbolo
Um dos quadros de imagem persistente no Museu é o único quadro da
Exposição Antropológica que representa um indígena de corpo inteiro, com
informações conflitantes sobre a autoria, pois não se trata de um quadro
assinado e não aparece no catálogo da Exposição. A informação de sua
localização na exposição se deve à imprensa. Nos jornais, como o Jornal do
Comércio, aparece a seguinte referência: “Retrato de corpo inteiro de indígena
do Alto Amazonas. Pintado por Francisco Aurélio de Figueiredo”. Já no Livro de
Registro catalográfico do Museu, podemos ver a seguinte referência: “873.
Retrato de um índio do Rio Uaupés por Décio Villares”. As duas informações
obtidas, no entanto, conduzem ao fato da sua presença na Exposição de 1882.
Podemos apenas dizer que, no catálogo do setor, existe um excesso de autoria
atribuída a Décio Villares, que não concorda com o guia da época.
Outro fato a gerar dúvidas, devido à ausência da descrição no guia, é a
falta de informação sobre o fato de ter sido ou não pintado a partir de um
modelo natural, um esboço a crayon ou uma fotografia. O quadro não estava
colocado na sala Anchieta, junto com a maior parte da iconografia. Sua
presença na sala Lund, sala de Antropologia, que exibia crânios, esqueletos e
ossos em geral, além das fotografias documentais e antropométricas dos
botocudos, realizadas por Marc Ferrez, servia provavelmente de parâmetro
para um indígena em toda a sua plenitude corporal.
O quadro está em perfeita sintonia com os princípios do academicismo
brasileiro; destaque para a figura humana, idealizada próxima do ideal grego,
com proporções mais adequadas à idealização do que a realidade, mesmo
quando se trava de um estudo de modelo vivo. No caso da tela, surge um dado
curioso, seu corpo surge na mesma postura de um desenho de estudo
muscular da Escola de Belas Artes; embora não esteja esfolado (mostrando
sua parte interna), existe um grande destaque na composição muscular da
231
figura. A figura abaixo, um estudo de esfolado da academia, demonstra não só
o estudo muscular próximo ao da tela, mas também a posição semelhante,
necessária para a demonstração da construção da idealização corporal
presente na figura da tela.
Fig.27 Estudo Anatômico de Corpo Sanguínea e Crayon, Pedro Américo, 1875 Acervo MNBA.
233
A meu ver, a tela foi construída a partir de um estudo de fisionomia do
rosto, bem próximo do original, tenha ele sido feito diante do modelo ou a partir
de imagem e uma idealização do corpo, levando-se em conta o estudo da
Academia demonstrado acima. Outro fator é a moralização dada pela peça de
roupa que encobre as partes viris da figura, agindo como um elemento de
moralização e, ao mesmo tempo, despertando um olhar curioso, devido às
formas perfeitas com que o corpo é descrito.
A descrição das peças salvo o adorno plumário Tukano, que possui mais
destaque, trata de uma composição estética e fidelidade à representação de
um índio específico. Na tela, a figura aparece com cinto de penas sobre um
short, pintado em cor clara, bandoleiras de contas, colares de dentes, diadema
vertical (Tukano), com pendentes de penas laterais sobre o peito e pulseiras de
contas em ambos os pulsos. Tirando a faixa frontal do diadema, não existe
possibilidade de se pensar em um estudo prévio de peças à maneira do
recomendado pela Academia, nem de uma identificação da cultura material do
Uaupés.
O quadro lembra ainda as imagens de índios de estúdio fotográfico,
como as que aparecem nas imagens elaboradas por Marc Ferrez,
provavelmente no Rio de Janeiro, usando acervo do Museu, como a imagem
de um indivíduo vestido à maneira indígena, com a camisa com penas Apiaká,
um adorno não identificado e um maracá. O modelo fotográfico com seu painel
de fundo é certamente mais exagerado nos toques exóticos do que a tela.
Embora a vestimenta seja original, sua mistura com um adorno plumário, não
identificado, um maracá em uma das mãos e uma lança na outra amplia o
exotismo. A produção do cenário também contribui para um efeito de mistura,
aparece esteira sob os pés e, ao fundo, o que podemos inferir como sendo um
painel de líber, talvez com grafismos.
234
Fig.29. Apiaká
Fotografia Marc. Ferrez Acervo MN.
A tela em questão representa um ideal de masculinidade e virilidade
próximo do grego, mas bastante interessante quanto ao fato de se encontrar,
na sala, com peças de Antropologia, os estudos de Lacerda, representados
pelo ”Diploma Comemorativo da Exposição Antropológica de Paris, 1878,
concedido ao dr. João Batista de Lacerda pelos seus trabalhos de antropologia
brasileira”. Os estudos contribuíam para uma medição de força muscular, com
resultados nem sempre positivos para os indígenas, como os músculos
apresentados na tela.
A imagem da tela também pode ser considerada como possuindo uma
característica documental e científica forte. Principalmente, quando cotejada
com a fotografia acima, não chega a ser a imagem de uma pintura romântica
acadêmica. Temos uma economia de recursos pictóricos ao fundo e uma
235
necessidade de clareza e realismo presentes, além da diminuição de
expressão facial. Ausência de fundo, apesar de o influxo romântico poder ser
atribuído à postura heróica e à idealização da figura. A tela se torna simbólica
justamente por promover, em seu enxugamento de detalhes ao fundo, um
destaque da figura e, ao mesmo tempo, uma racionalização da mesma,
lembrando o proposto, pelo iluminismo descrito na Enciclopédia:
“A cor e a figura, propriedades sempre ligadas aos corpos, embora variáveis para cada um deles, serve-nos, de alguma maneira para destacá-los do fundo do espaço; uma dessas duas propriedades é mesmo suficiente neste sentido: por isso, para considerar os corpos sob uma forma mais intelectual, preferimos a figura à cor.... Assim, através de operações e abstrações sucessivas do nosso espírito, despojamos a matéria de quase todas as suas propriedades sensíveis, para considerar, de certa maneira, apenas o seu fantasma”.p.29253
Nesse despojamento do sensível e na criação de um corpo descrito
muscular e idealmente, surge uma imagem paradoxal, em sua própria
construção, simbólica, na medida em que está referida à busca de símbolos
que se efetivassem como nacionais. Elias254 se refere aos símbolos nacionais
ou as auto-imagens da nação como usualmente, dando a impressão de
profundidade temporal da nação, criando a sensação de que a nação sempre
existiu. A imagem simbólica ideal, portanto, para a nação brasileira foi a
inspirada no indígena, elemento nativo que, idealizado pelo romantismo, se
tornou símbolo para o Império brasileiro. Aquela tela no hall de entrada do
Museu revela que a imagem simbólica do indígena resistiu à transformação do
índio em objeto de estudo, a passagem de Império a Republica e se
estabeleceu como um símbolo do indígena apresentado a gerações e gerações
de visitantes do Museu Nacional, ao longo de sua existência.
253DIDEROT e D’ALEMBERT. Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado das Ciências das Artes e dos Ofícios por uma sociedade de letrados, Discurso preliminar-Edição UNESP, São Paulo, 1989. 254ELIAS, Nobert- Processos de Formação do Estado, Op. Cit.
236
4.3.2 O índio como objeto de estudo
Os índios moldados, nos “fastos do museu nacional”255, dão o seu
testemunho, quanto à modelagem dos índios realizadas para a Exposição
Antropológica Brasileira:
“Com o fim de realçar a exposição vieram do Espírito Santo e de Goiás algumas indígenas dos dois sexos, procedentes da tribu Botocudo e Cherentes. Esses indivíduos, com outros mais foram retratados a óleo em grandes telas por dois distintos pintores brasileiros. Os Cherentes foram modelados em gesso do tamanho natural, por um estatuário estrangeiro, que estava no Rio de Janeiro. De cada um deles foi por mim tiradas medidas antropométricas.”
Em 6 de maio de 1882, o Jornal do Comércio dá como destaque a
notícia de que estavam sendo providenciadas esculturas em ”papier marche”
para a exposição, bem como “ esculturas modeladas em gesso sobre os
Cherentes que aqui estavam, sob a proteção do benemérito Sr. Dr. Glaziou, “a
cuja iniciativa e desinteressada generosidade se deve também o trabalho do
distinto escultor francês Deprés”. No guia da exposição, aparecem duas
referências numéricas a essas moldagens:
“88. Figura moldada em gesso pelo escultor Leon Després sobre o indígena José, da tribu Cherente, do rio Tocantins.(M.N.) 89. Idem do indígena Zeferino, pelo mesmo artista da mesma tribu. (M.N.)”
255 LACERDA, J.B.- Fastos do Museu Nacional. RJ:1918 p.56/57
237
As moldagens em gesso eram uma prática no século XIX, tratada como
uma ilustração de corpos vivos. No entanto, a utilização artística das imagens
passou a ser vista como um trabalho mecânico256, desvalorizando o processo
enquanto escultura. Como é impossível modelar um corpo por inteiro, no
processo de junção das partes e pela escolha da posição, o escultor pode
demonstrar o seu processo criativo.
Designado como estatuário ou escultor, Leon Deprés deixou pouco
rastro biográfico. No dicionário Benezit257, aparece apenas um verbete que
pode se referir ao escultor mencionado, mas não conta com pré-nome. O
verbete fala brevemente de um escultor Depréz, nascido em Marselhe, no
século XIX, que esculpia animais em madeira. Suas moldagens, no entanto, se
preservaram como imagens vivas dos indígenas Cherentes. Existe, no Arquivo
do Setor de Etnologia, uma foto que se refere ao grupo de três Xerente, dos
quais dois foram moldados.
Fig.30 Xerentes Fotografia, Acervo SEE
256ZERNER, Henri- O Olhar dos Artistas. in: CORBIN,Alain. História do Corpo vol.2. Petrópolis: Vozes, 2008, p.34. 257BÉNEZIT.E.Dictionaire critique et Documentaire des Peintre, Sculpteurs , Dessinateurs et Graveurs. Paris: Gründ, 1999, p.457.
238
Na sala Alexandre Rodrigues Ferreira da Exposição de 1882, podemos
ver acervo e representação do cotidiano integrados. Aí, ajudando a compor a
imagem desse cotidiano, aparecem as esculturas Xerente. As fotos de Marc
Ferrez da exposição foram feitas mostrando duas versões: uma delas, como as
esculturas aparecem na exposição, cobertas com tangas de pano, adereço de
cabeça e portando armas; em outra fotografia, eles aparecem sem tanga com
os órgãos sexuais à mostra. O destaque dado às esculturas moldadas pela
fotografia deixa clara a sua importância na representação do índio. Dessa vez,
com características “reais” indiscutíveis pelo processo de moldagem anunciado
pelos jornais e, fugindo, dessa forma, de uma acusação de construção
romântica. Os Xerente, na descrição de Couto Magalhães258, inclusa na
descrição dos Xavantes de Goiás, é quase tão iconográfica quanto as
moldagens.
“Cor de cobre tirando para o escuro (cor de chocolate), estatura ordinariamente acima da mediana até verdadeira corpulência, cabelos quase sempre duros, o malar e a órbita salientes, quase reto o maxilar inferior, o diâmetro transversal entre os dois posteriores do maxilar inferior é igual ao diâmetro transversal do crânio de um a outro parietal, o calcâneo grosso, o tarso largo, dando em resultado um pé sólido, si bem que algumas vezes de uma pureza admirável de desenho”259
Por vezes, a linguagem pende para o científico, descrição de ossos e
medidas; outras vezes, tem comparações sensoriais, como a cor do chocolate,
e adjetivações, como admiráveis se referindo ao desenho dos pés. As
esculturas moldadas passam igualmente entre o real e o sensível em sua
escolha de posição e da delicadeza dos rostos. Existe uma diferença entre a
imagem da foto e a escultura, como se a foto, pelos trajes e a cartola, não
fosse tão real e palpável como as esculturas, apesar de terem modificações
visíveis, como os cortes de cabelo. A realidade ou imagem viva dos Xerente foi
258COUTO MAGALHÃES. O Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940 (1876), p.112. 259Idem.
239
sendo, ao longo dos anos, despida de seus artefatos e do contexto da
Exposição Antropológica de 1882, onde representava uma espécie de cotidiano
misto dos grupos na sala Rodrigues Ferreira. Tornou-se uma das imagens
representativas do índio “moldado” e exibido pela instituição que atravessou
dois séculos exposta.
Fig. 31 Esculturas Xerente, em 1882, MN.
Fotografia Marc. Ferez.,1882. Acervo BN
241
4.3.3 Imagem Botocudo
“Um Botocudo robusto e entroncado, de olhos agudos e braços musculosos, acostumado desde vergar o lenho duro do grande arco, é, na solidão das florestas sombrias, causa de verdadeiro pavor.”260
A imagem do índio Botocudo de força e belicosidade, expressa nesse
trecho, marca uma visão dominante, no século XIX, sobre o que seria
designado como sinônimo de primitivismo. Ao longo desse século, à medida
que suas terras vão sendo ocupadas, a visão de força vai se perdendo. Na
exposição Antropológica de 1882, alguns anos antes da lei de terras extinguir
várias de suas aldeias, os Botocudo aparecem em uma mostra paralela, para
um público curioso, demonstrando uma imagem bem mais frágil do que a dos
bravos guerreiros, com seus poderosos arcos. Mesmo a sua força vai ser
questionada pelas medições de João Batista de Lacerda e a sua
representação, embora esteja impressa em todos os lados da exposição, não
vai imprimir força ou garbo.
A imagem do Botocudo passa servir também como exemplo para
quadros de evolução humana, como o fixado na fotografia de Marc Ferrez para
Comissão de Exploração Geológica, 1873, na qual uma régua de medição
aparece na foto do busto da indígena, transformando a foto em uma imagem
com realce no exotismo dos adornos labial e auricular, denominado de
batoque, e nos seios pendentes. Uma das conclusões dos trabalhos
antropológicos de então seria a tendência da mulher indígena para a flacidez
dos seios. O rosto com a expressão contraída ressaltada e os olhos com uma
expressão de tristeza não evocam uma figura ofensiva , mas uma figura
submissa.
260WIED- NEWIED, Maximilian- Viagem ao Brasil, São Paulo- Companhia Editora Nacional 1940(1822)
242
Fig.33 Fotografia torso índia Botocudo
Marc. Ferrez Acervo MN.
Essa imagem, acervo fotográfico da Comissão Geológica do Império,
pertence a uma série realizada em 1873/1875, por Marc Ferrez, para figurar na
mostra brasileira a ser enviada para a Exposição de Filadélfia, 1876. Suas
filiações acadêmicas e artísticas sofrem alterações que vão desde uma
mudança de processo técnico, por serem imagens fotografadas dentro dos
limites da técnica fotográfica do século XIX, até as mudanças de filiação
acadêmica. Sua filiação ao evolucionismo e a diferenciação racial, no momento
em estudo na instituição, se evidenciam pelo instrumental utilizado junto com o
modelo. Os chamados estudos “antropológicos” da época, que, em parte do
século XIX, corresponderiam à Antropologia Física, referem-se a exames de
medição e verificação de caracteres físicos da raça, aplicados a indivíduos
vivos, dos quais eram tiradas medidas de variados tipos. As fotos são
acompanhadas de régua de escala, exatamente como contemporaneamente
são utilizadas para evitar a perda de coerência do tamanho dos objetos.
Essas fotos vão estar presentes na Exposição Antropológica de 1882,
junto com quadros a óleo de bustos por ela inspirados. Na sala referente à
243
Antropologia Física, os ossos Botocudos são em maior número, sendo eles:
quatorze crânios, sendo um de criança, cinco crânios com esqueletos, duas
bacias (uma do sexo feminino e outra do masculino).
Não consta, nas notícias da exposição, referências à existência de
escultura ou moldagem de índios Botocudos para a Exposição. Nem no
catálogo da exposição ou nas fotografias da mesma aparece a imagem da
fotografia da moldagem ou escultura Botocudo. Pelo lado da técnica, a
escultura do Botocudo difere da dos Xerente, principalmente pelo tratamento
dado aos olhos e ao fato de estar mais solta, tendo apenas os pés presos a
uma base.
Acredito ser essa escultura uma parte do conjunto de esculturas de
gesso, descrito por Ladislau como constante do salão nove da exposição
permanente do Museu, em 1870, onde o Brasil era representado pela escultura
original do escultor Fernando Petrich, realizada em 1845, de um jovem índio,
garbosamente adornado de penas e armado para a caça e a guerra. Essa
escultura fazia parte de um conjunto de três: uma do colonizador português e
outra de Napoleão261.
Ferdinand Friedeich August Petrich262,escultor alemão em atividade no
Brasil entre os anos de 1843/1855. Foi responsável pelos frisos da Santa casa
e do Hospício, executou também estatua de D. Pedro II, quando jovem em traje
de majestade. Em gesso executou escultura de Padre Anchieta para a Santa
Casa de Misericórdia. A partir das investigações de Ladislau, também
podemos incluir em sua obra realizada no Brasil as três estatuas citadas por
Ladislau.
261Ambas devem ter passado a fazer parte do acervo do Museu Histórico Nacional. 262MIGLIACCO, Luciano- Catálogo da Mostra do Redescobrimento, Arte no Séc. XIX, SP: 2001.
244
Fig.34 Escultura em gesso, Botocudo, Ferdinand Petrich Foto Exposição Museu Nacional,2008
O torso da escultura Botocudo parece mais esculpido de forma ideal do
que moldado. O que chama bastante atenção é o garbo descrito por Ladislau
Neto, um índio capaz de representar o Brasil com garbo, elegância, uma
imagem de força. O rosto da escultura, bastante suave, equilibra, em medida,
os batoques, de maneira que principalmente os auriculares estejam em
proporção com as orelhas, longe da figura atarracada, descrita por Martius263:
“cor de canela clara, altura mediana, estatura atarracada e pescoço curto,
olhos pequenos, nariz curto e achatado e lábios grossos” se na descrição de
263SPIX E MARTIUS,- Viagem pelo Brasil- Imprensa Nacional, 1938(1823)
245
Martius o pescoço é retratado como curto, na escultura as proporções do
pescoço e do resto do corpo respeitam as normas acadêmicas incluindo a
descrição da fisionomia, em que, para compensar o batoque labial, os lábios
são retratados bem finos.
Na Exposição Antropológica, onde a mesma representa botocudos
medidos e estudados, de forma a caberem em uma imagem mais humilde.
Nenhum dos bustos botocudos pintados para a exposição aparece com os
batoques labiais e auriculares juntos. Sempre os batoques auriculares são
retirados, deixando o lóbulo da orelha flácido e caído. As telas também não
representam um Botocudo no pleno vigor da idade, são sempre mais jovens ou
mais velhos, nenhum deles passa a imagem de força ou garbo. Todos os
botocudos são retratados vestidos. Na imprensa, os comentários e as
caricaturas representam os botocudos, de forma ainda mais indefesa, em
comentários como o da Revista Ilustrada264: “mas quem diria! Esses
Antropófagos é que ficaram com medo de serem devorados pela curiosidade
pública”.
A imagem viril garbosa e independente dos Botocudo, transmitida pela
escultura, parece coisa de tempos em que os mesmos não passavam a
imagem de fragilidade da Exposição Antropológica, culminada pela carta
enviada pelo presidente da província do Espírito Santo a Ladislau Neto durante
a exposição. “Vi pelo jornaes que meus Botocudos foram ahi bem recebidos.
Estimei que tenham passado bem e que v.S.a. m’os re-envie logo que for
possível”.
A imagem passada pela imprensa de um índio botocudo frágil e
submetido à curiosidade pública, no entanto, não chega a ser inteiramente
positivada de forma a despertar solidariedade. Em uma das caricaturas, o
botocudo aparece comparado ao negro para uma platéia de possíveis colonos,
ele é desenhado como em todas as caricaturas, com uma cabeça mais
avantajada do que o corpo, sendo esse diminuído, dando idéia de inferioridade
física e, ao mesmo tempo, ressaltando o batoque labial. Na imagem da
caricatura, os batoques auriculares não estão presentes, transformando os
264 Revista Ilustrada no311-12 de agosto de 1882- Acervo Biblioteca Nacional
246
lóbulos em acentuadamente flácidos e deformados. Os colonos da platéia,
principalmente na expressão feminina, exprimem horror ao negro e ao
Botocudo, mas um horror carregado mais de repulsa do que de medo. As
armas são portadas da mesma forma com a enxada na mão do negro, uma
tendência à indolência.
Bem distante da imagem idealizada para a composição do povo
brasileiro pelo IHGB, e também da retratada por artistas com cunho
documental como Debret e Reis de Carvalho, a caricatura, por sua capacidade
de divulgação, vai deixar suas marcas na interpretação popularizada dessa
formação.
Fig 35. Charge publicada na Revista Ilustrada número 311/ 1882
Acervo BN
Dessa maneira, o índio Botocudo garboso e altivo criado pelo Museu,
não se encaixava na mostra de 1882, na qual a figura do índio, em toda sua
força física, passaria para a figura a óleo do índio do Alto Amazonas, um índio
247
um tanto genérico, sem uma denominação de grupo ou nação, referida por
título ou imagem fiel, aparece altivo e simbólico como o índio brasileiro. Em
momentos de demonstração científica de menor intensidade, o Botocudo faria
par com ele na representação do índio brasileiro ou na representação do
brasileiro ancestral.
As imagens, em suas sutilezas, entre moldadas, esculpidas, pintadas de
forma idealizada ou mensurada, passaram, ao longo do século XIX, a
mensagem ao público de um índio, com propriedades sensíveis que podemos
entender melhor, a forma como Ladislau se referiu às flores na abertura das
“Investigações”: “ao povo, finalmente, que as flores classifica pelo perfume e
pelas cores e as aves por sua melodia”. Ao entender a diferença entre a
imagem dissecada e classificada do laboratório e a expectativa de um público
popular, Ladislau explica as características sensíveis, impressas na produção
da imagem do indígena nas exposições do Museu; por isso, o sucesso da sua
durabilidade junto ao público, embora, em dissonância com a vida científica da
Instituição.
248
Considerações Finais
A questão central do trabalho foi estabelecer em que medida coleção e
pesquisa estavam interligadas na constituição da coleção de Etnologia do
Museu Nacional durante os anos de sua formação.
Em um primeiro momento, ficou clara a impossibilidade de pensar uma
coleção de material etnográfico na formação do Museu, onde as divisões eram
bem mais amplas e indefinidas. Com o tempo, a categoria “indústria humana”
foi surgindo com força do material dos arquivos. Na primeira qualificação, o
Professor Moacir Palmeira me pediu para explicitar o seu uso. A partir de
então, comecei a perceber a abrangência da categoria e seu papel de divisor
inicial com relação aos materiais provenientes da História Natural.
A divisão entre categorias de conhecimento foi sendo feita ao longo da
formação da instituição e de sua coleção, de uma maneira bastante vagarosa.
Já a questão que eu me propusera da separação entre pesquisa e coleção na
formação da mesma, com relação ao material de indústria humana, foi se
respondendo de maneira bem clara ao longo da pesquisa. Tanto a coleção
provinha da pesquisa como o seu contrário, a pesquisa provir a partir de
dúvidas suscitadas pela coleção, era possível. O que não era possível era a
separação entre elas, dado que o objetivo central da instituição era formar uma
coleção, um grande arquivo de dados palpáveis das nações indígenas,
inseridas na nação brasileira, mas também de outras civilizações próximas ou
distantes. Isso fica demonstrado pelo número de peças de seu primeiro
levantamento em 1842, mo qual a proporção entre peças brasileiras e o
material estrangeiro é bem equilibrada.
Em um primeiro momento, ficou clara a impossibilidade de pensar uma
coleção de material etnográfico na formação do Museu, onde as divisões eram
bem mais amplas e indefinidas. Com o tempo, a categoria “indústria humana”
foi surgindo com força do material dos arquivos. Na primeira qualificação, o
249
Professor Moacir Palmeira me pediu para explicitar o seu uso. A partir de
então, comecei a perceber a abrangência da categoria e seu papel de divisor
inicial com relação aos materiais provenientes da História Natural.
A divisão entre categorias de conhecimento foi sendo feita ao longo da
formação da instituição e de sua coleção, de uma maneira bastante vagarosa.
Já a questão que eu me propusera da separação entre pesquisa e coleção na
formação da mesma, com relação ao material de indústria humana, foi se
respondendo de maneira bem clara ao longo da pesquisa. Tanto a coleção
provinha da pesquisa como o seu contrário, a pesquisa provir a partir de
dúvidas suscitadas pela coleção, era possível. O que não era possível era a
separação entre elas, dado que o objetivo central da instituição era formar uma
coleção, um grande arquivo de dados palpáveis das nações indígenas,
inseridas na nação brasileira, mas também de outras civilizações próximas ou
distantes. Isso fica demonstrado pelo número de peças de seu primeiro
levantamento em 1842, mo qual a proporção entre peças brasileiras e o
material estrangeiro é bem equilibrada.
No momento em que Ladislau reconhece, em seu texto de 1870, a
importância do cheiro das flores e do canto dos pássaros para as classificações
populares e passa a investir no sensível em termos de exposição, a cisão já
pré-existente entre a vida da instituição interna, ligada à pesquisa, e a externa,
ligada às exposições e seu acervo, estava começando a se definir,
principalmente junto às coleções de indústria humana, que não vão perder seu
valor efetivo de imediato, mas se tornam cada vez mais dependentes do
contexto em que estarão incluídas por exposição ou pesquisa e como esse as
classificará. Coletar ainda é importante, mas a observação local e a descrição
dessa observação, como a efetuada por José de Couto Magalhães, em “O
Selvagem”, 1876, é que trarão o conhecimento necessário.
Na História Natural, a pesquisa prossegue no laboratório com a
dissecação, comparação e desenho dos espécimes coletados. Na coleção de
indústria humana, a comparação e o desenho passam a ser passiveis de
estudo apenas se confrontados com a observação local, sob pena de tornarem
estudos comparativos formais, áridos e, por vezes, inconsistentes. Essa
250
percepção muda o caráter das publicações do Museu, principalmente dos
Arquivos do Museu e da Revista Antropológica Brasileira de 1882, em que só
existe um estudo formal.
Justamente uma das possibilidades de estudo do acervo de indústria
humana no laboratório ou depósito vai marcar o acervo que posteriormente irá
se dividir entre Arqueologia, Etnologia e Antropologia Física: a Arte. A arte,
enquanto possibilidade de entendimento da coleção, vai se dar de uma forma
quase que automática no caso do Museu, devido às suas primeiras curadorias:
Manuel de Araújo Porto Alegre, pintor formado pela Academia de Belas Artes e
seu futuro professor e mestre, vai lidar com a coleção da qual será o primeiro
diretor ainda como aluno, acompanhando Debret em seus estudos.
Provavelmente também foi essa a primeira forma de contato de Ladislau
Neto com a coleção do Museu, desenhando-a, enquanto aluno da Academia.
Se, em sua biografia, é colocado que cursou a Academia por falta de opção
entre Direito e Medicina, fica para o presente trabalho o dado que, através da
arte e da compreensão da construção artística dos objetos da cultura humana,
os primeiros curadores tiveram um lampejo fundamental sobre como
compartilhar as tarefas propriamente científicas com as finalidades expositivas
de um museu.
Outro aspecto a considerar diz respeito aos estudos de evolução da arte.
A “arte primitiva” era colocada como um primeiro patamar, seguindo a criação
da idéia de sociedade primitiva265, sistematizada ao fim do século XIX. Em
estudos, como o de Ladislau Neto, sobre a evolução da arte, em que o mesmo
se baseia nos padrões decorativos dos objetos ou em informação não
publicada sobre os arcos Connibo, nos quais os padrões geométricos são o
destaque de sua descrição.
O fato de o Museu estar inserido em uma sociedade de corte faz com
que o desenvolvimento artístico seja valorizado. Elias266 fala da conformidade
da passagem da sociedade de corte na França, da arte clássica ao barroco e
deste ao rococó. O neoclássico com um influxo romântico, no Brasil imperial,
265 KUPER, Adam- The Invention of Primitive Society- London: Routleadge,1988 266 ELIAS, Norbert, A sociedade de Corte, op. Cit.
251
permitiu uma visão brasileira do indígena que influenciou e foi influenciada pelo
estudo científico da Antropologia Física e da Etnologia, em seus primórdios.
O Caráter das coleções do museu vai se definindo, assim, entre uma
integração do nacional ao universal. Uma duvida freqüente quanto as
exposições do Museu Nacional do século XIX é quanto as suas características
pretenderem demonstrar uma construção nacional ou um caráter universalista
inspirado nos museus imperiais de Viena e britânicos. A partir da pesquisa fica
clara a coexistência das duas tendências a universalista por um motivo
civilizatório ou educacional; dando ao público do museu uma visão do “mundo”
ao seu redor estabelecendo imagens do que era uma fauna, flora e indústria
diferenciada como no caso mencionado do pintassilgo.
O nacional sempre anexo ao nome do Museu e ao seu objetivo de criar
um arquivo demonstrável das formas naturais e de indústria humanas
encontradas no território brasileiro, estudando e transformando-as em material
passível de exploração e melhora das condições de desenvolvimento da
nação. Ao proporcionar esse efeito o arquivo demonstrável funcionava também
como uma forma de integração no universal, conforme o promovido pelas
grandes exposições universais. É o nacional, que cada vez mais, vai conseguir
dar destaque ao Brasil dentro do panorama Universal, como a exposição sobre
a “Amazônia” na Exposição Universal de Paris, 1889.
O caráter civilizador era uma pré-condição da instituição Museu, que, no
Brasil do século XIX, obteve sucesso devido á popularização do “Museo”. A
maneira de se comportar diante de um templo da ciência foi sendo
vagarosamente difundida na corte, junto comum pacote civilizador que incluía
outras instituições e hábitos, como os de ler revistas científicas
Outra questão que impulsionou a pesquisa: a ausência de informações
sobre a coleção do século XIX. Ficou demonstrado que, embora em alguns
casos a falta de informação seja proveniente da coleta, de uma forma geral, o
apagamento foi provocado pela necessidade da criação de uma coleção
institucional, na qual a marca do Museu, definida como M.N., nas exposições
externas, e Museu Nacional do Rio de Janeiro, nas exposições universais,
252
figurasse e se valorizasse frente aos colecionadores particulares, exercendo,
dessa maneira, seu papel de instituição representativa do Império brasileiro.
A composição dos quadros da instituição, em sua longa batalha por uma
capacitação efetiva do corpo de funcionários, em uma nação onde ser um
doutor representava um determinado tipo de bacharel em Direito ou um
médico. Ser um doutor diferente, principalmente em uma sociedade
escravocrata na qual qualquer trabalho manual era mal visto, um doutor que
precisava observar vários meios e, para isso, estar junto de vários meios, além
de manusear equipamentos e trabalhar com as próprias mãos, o que soava
bastante inusitado.
A criação de uma hierarquização de funções tão novas como diretores,
preparadores, praticantes e conservadores de coleção, conseguida em 1876,
foi um dos empreendimentos que garantiu vida longa às coleções do Museu e
sua ampliação. A importância da luta de seus primeiros diretores e
funcionários, empenhando-se junto a uma burocracia de governo em fase de
expansão, para conseguir meios de dar sobrevivência à instituição e efetivar
seu compromisso de criação da coleção, foi muito além do apoio pontual dos
Imperadores e de suas respectivas famílias. A importância dos vínculos criados
pelos membros do Museu, primeiro de uma maneira pessoal e em uma
segunda fase de uma forma representativa também, foi uma das bases da
instituição para a qual contribuíram também fatores como a sua localização
física em um centro de poder, o Campo de Santana.
A existência de uma vida interna no Museu, bastante ativa em seus
laboratórios com análises, discussões, publicações e reuniões de seu conselho
e posteriormente com seus cursos públicos e atividades de preparação para as
publicações, faz com que a atividade do Museu Nacional tenha sempre sido
uma intermediação entre o visto pelo público, em suas exposições e seus
bastidores, nos quais se desenvolveram por um tempo diversas atividades
geradoras de outras instituições ou se abrigaram os períodos iniciais de outras
instituições. Em diversos momentos, a vida externa, ligada às exposições,
aparentava um ritmo mais lento do que a vida interna se desenvolvia. A
instituição desenvolvia suas raízes internas com mais velocidade do que
253
possuía condições de demonstrar na sua parte dirigida ao público. Esse fator
veio se evidenciar com a sua participação nas exposições universais, nas
quais, a partir de uma possibilidade, o Museu estava pronto para demonstrar
coleção e conhecimento e abrir seus espaços.
A criação de uma instituição forte o bastante para resistir a repetidos
momentos de falta de verbas e de inadequação de prédio funcionando apenas
com um diretor e um porteiro a chegar completo sua mudança de localização,
com um prédio definido com base em várias reformas, uma coleção e um corpo
complexo de funcionários. Foi efetivada principalmente pela interligação entre
coleção, pesquisa e suas formas de divulgação, interligados, defendida por
pessoas cuja competência cientifica caminhava lado a lado com a sua
inabalável fé no progresso, tanto no progresso da nação quanto da
humanidade, associando ambas as finalidades em uma maneira romântica de
interpretar a realidade em que viviam.
254
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Anexos II Colleção Typica ( coleção da Comissão do Império, 1861) 1- Arcos Dos Conibos do Rio Ucaiale. 2- Arcos dos Conibos do Rio Ucaiale 3- Arcos dos Maués e dos Karajá 4- Arcos dos índios do madeira e flechas de pesca 5- Flechas de pesca de tribus menos selvagens 6- Flechas de caça dos conibos do Rio Ucaiale 7- Flechas de caça dos conibos do Rio Ucaiale 8- Flechas de caça dos conibos do Rio Ucaiale 9- Flechas de caça dos conibos do Rio Ucaiale 10- Flechas de caça dos conibos do Rio Ucaiale 11- Flechas de caça dos conibos do Rio Ucaiale 12- Flechas de pesca dos conibos do Rio Ucaiale 13- Flechas de caça dos conibos do Rio Ucaiale 14- Flechas de caça dos conibos do Rio Ucaiale e dos Arara do Aripuanã 15- Flechas de caça dos Arara do Aripuanã 16- Flechas de caça dos Maués 17- Flechas de caça dos Maués 18- Flechas de caça dos Uaupés 19- Flechas de caça dos Uaupés e dos Tembés 20- Flechas de caça dos Tembés do Rio Capim
(pesca) 21- Flechas de caça dosindios Tembés, dos Iauapérys e do Alto Mearim
(pesca) 22- Flechas de caça dos e de pesca dos Parintintins
(pesca) 23- Flechas de pesca dos índios do Rio Javary
(pesca) 24- Flechas de caça dos índios do Rio Javary
(pesca) 25- Flechas de pesca do Rio Javary e dos Carajá
(pesca) 26- Flechas de caça dos Carajá
(pesca) 27- Flechas de caça dos Carajá
(pesca) 28- Flechas de caça dos Carajá , 29- Flechas de caça dos Carajá 30- Flechas de caça dos Carajá 31- Sararaca,flechas do Uaupés do Alto Mearim 32- Flecha incompleta e sararaca de tartaruga 33- Sararaca para tartarugas 34- Sararaca para peixes 35- Anzol de tucunaré, arco e flecha para pesca 36- Aparelhos de pesca e pontas
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37- Curabys com barrilha? Esférica ? dupla. Uaupés 38- Curabys com barrilha? Cilíndrica dupla dos Tikuna 39- Curabys com barrilha? Cilíndrica dupla dos Ipurinãs 40- Curabys com barrilha? Cilíndrica dupla dos Ipurinãs 41- Curabys com barrilha? Cilíndrica dupla dos Ipurinãs 42- Curabys com barrilha? Cilíndrica dupla dos Ipurinãs 43- Curabys com barrilha? Cilíndrica dupla dos Ipurinãs e dos Tikunas 44- Curabys com barrilha? Simples e arcos do uaupés 45- Murucú-Maracá dos Uaupés Simples 46- Murucú-maracá dos Uaupés de chefe 47- Lanças , arcos dos Tikunas ? 48- Lanças, arcos Tikunas? E zarabatana dos Uaupés 49- Zarabatanas do Rio Branco e dos Tikunas 50- Zarabatana dos Tikunas e dos Conibos 51- Aljava e flechas dos Bahuanas. Com saco de algodão 52- Aljava e flechas dos Bahuanas. Rio Branco 53- Aljava incompleta dos Uapixanas saco e esteira 54- Aljava incompleta dos Tikunas e complementos 55- Aljava e instrumentos de Taquara Memby e Toré 56- Tacapes do Rio Madeira remos do Pará 57- Cuidaru dos Uaupés e tacape dos Uapixanas, remos ornados 58- Flauta dos Cauchinauas e tambor dos Uaupés Covo e poitá para pesca 59- Bastão sonoro,trombeta de crânio e maracá machado, guampa e tuxaua-itá 60- Remos do Pará e do Araguaia forno de cachimbo,ponta de arpão e bilro 61- Remos Ornados Tacuary 62- Machado depedra, vaso de chifre e tuxaua-itá Tacuary 63- Cachimbo,fisga,bilro e vaso 64- Tubos de cachimbo de Cametá 65- Tubos de cachimbo de Cametá 66- Tubos de cachimbo de Cametá 67- Tubos de cachimbo de Cametá 68- Tubos de cachimbo ramificado e liso de Cametá 69- Tubos de cachimbo e cachimbos 70- Cachimbos 71- Ralos dos Uaupés 72- Ralos dos Uaupés 73- Saco de algodão dos Ipurinãns 74- Casaco de Tururury 75- Camisade turury e bolsa de spata de palmeira 76- Ventarola e pena dos Tikunas 77- Pentes implumados dos Uaupés 78- Pentes implumados com pingentes dos Uaupés 79- Mascara de madeira dos Tikuna e pente dos Uaupés 80- Camisa de Tururry.Pulseira dos Uaupés 81- Bolsinhas de algodão. Ornato de fibras 82- Sacola de Tucum. Cordão de palhas 83- Bastão implumado dos mundurucus.TangaIauapery 84- Colares de sementes e dentes
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85- Colares de dentes de onça,de contas e rodellas 86- Colares de dentes de onça,de contas e rodellas e pennas 87- Pulseira e cuias de missanga 88- Colares de sementes de issus? 89- Colar de rodellas e enfeite de missangas 90- Pulseiras do Uaupés 91- Coroas de pennas dos guajajaras 92- Pulseira Tikuna e coroa Tembé 93- Coroas Guajajara e tembé 94- Coroas Uaupés 95- Acangatares Uaupés 96- Coroas de palha e penas com pingentes 97- Acangatares de penas e coroa 98- Oiá e Coroa de palha e penas dos Uaupés 99- Sairé 100-Producto de esculptura indigena
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