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A FORTALEZA DA UTOPIA lATINO-AMERICANA de Octóvio lonni, O labirinto Latino-americano. (Apresentação poro o edição em espanhol) Paz e Terra, 1993 POR LÚCIO FERNANDO OLlVER COSTILLA Professor titular do Universidade Nacional Autônomo de México, e professor visitante no Pós-groduaçõo em Sociologia do Universidade Federol do Ceoró. O livro em espanhol foi preparo do em 1996. As livrarias latino-americanas têm hoje, nos seus estantes, mais um livro essencial para indagar sobre a nossa identidade comum a partir da argumentação socio- política: a tradução para o espa- nhol, pela Universidade Nacional Autônoma de México, do livro do sociólogo brasileiro Octavio Ian- ni, O labirinto latino-americano. América Latina se desmancha sob a mundialização do capital, hegemonizada pelos Estados Uni- dos de Norteamérica, gerando uma forte competência e isola- mento entre os países da região. Porém, lutam contra dito desapa- recimento tanto a vivência diária das populações, que participam de legados comuns da história, as migrações constantes entre seus habitan tes, a multiplicidade de convênios e acordos comerciais, políticos e culturais entre os go- vernos (Mercosul, Aladi, Cari- com, etc.), o imaginário utópico latino-americano, assim como o conjunto de problemas compar- tilhados de carácter econômico, político e cultural. Os intelectuais comprometi- dos com o desenvolvimento da região têm começado elaborar uma nova reflexão sobre Améri- ca Latina, cheia de novos conteú- dos. E uma resposta à fala dorni- RE SE N HAS nante na mídia e na propaganda dos governos, que fazem dos paí- ses isolados atores quase únicos da vida econômica e política. Tam- bém as políticas dos grandes em- presários transnacionais se põem de costas à autodeterminação sub- regional latino-americana: tudo pela inserção subordinada e iso- lada à globalização. O livro de Octávio lanni revi- sa quatro aspectos chaves do novo pensamento latino-americano: 1) a crítica de alguns conceitos dua- listas, associados com a reflexão social tradicional de América La- tina, tais como o confronto entre modernização e atraso, civilização e barbárie, institucionalidade e instabilidade política, desenvolvi- mento e subdesenvolvimento, etc; 2) o complexo sentido da questão nacional nos momentos atuais, em que domina uma tendência a que o nacional seja absorvido pela mundialização da vida econômi- ca e cultural, situação na qual, pa- radoxalmente, diversos fenôme- nos e forças sociais ligados ao na- cional e ao local, adquirem uma vitalidade renovada; 3) as mudan- ças na democracia e no Estado na- cional, pela globalização e trans- nacionalização da economia. Por último, 4) o conjunto de idéias, noções e teorias com que os lati- no-americanos nos autoconhe- cemos, e que, para nós, têm um conteúdo específico, próprio, dis- tinto à visão européia ou norte- americana ... O tratamento de lanni tem pro- posições sumamente rigorosas e de alto nível científico, sem dei- xar de ser acadêmicas, (construí- das com a rigorosidade dos con- ceitos teóricos) e se baseiam tam- bém numa definição política substantiva. Ianni chama às coi- sas por seu nome; por exemplo, quando escreve sobre a situação da democracia e o Estado na nos- sa região ele nós diz: "Desde a fun- dação dos Estados nacionais, na América Latina predominam as forças não democráticas; o sim- plesmente antidernocráticas". Cada um dos capítulos do li- vro está enriquecido com uma fecunda lista de citações que con- têm uma bibliografia de referên- cia, o que é um aporte para o es- tudo dos temas discutidos. O au- tor fez o livro pensando em dia- logar com estudiosos acadêmicos sobre a região. Nesse sentido se entende que seja a Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autôno- ma do México, a primeira em apresentar o material para o pú- blico universitário hispano-falan- te da América Latina. Nesta apresentação do livro pa- ra os leitores de língua espanhola, eu vou apresentar algumas refle- xões que a sua leitura me gerou. a) Uma necessidade urgente ho- je para América Latina é atualizar a sua procura de um objetivo pró- prio de desenvolvimento. Ianni denomina a esse propósito a bus- ca contraditória de ocidentaliza- ção de América Latina. Uma via- gem que, ele diz, sempre é procu- ra e negação, reconhecimento e re- criação. Em nosso entender essa problemática analisada por Ianni remete a uma inquietude básica que atormenta os intelectuais dos países atrasados (colonizados e descolonizados) desde os inícios do século passado: como estar à altura do mundo, como univer- salizar-se para viver a hora atual com todas as potencialidades so- ciais possíveis, superando formas de produção e de vida atrasadas e caducas, e assim mesmo coparti- cipar na crítica das novas formas modernas. Justo Sierra, o intelectual me- xicano de inícios de século, ma- nifestou essa busca de atualidade na aspiração democrática univer- sal. Sua obra teórica e prática do

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A FORTALEZA DA UTOPIAlATINO-AMERICANA

de Octóvio lonni,O labirinto Latino-americano.(Apresentação poro o edição em espanhol)Paz e Terra, 1993

POR LÚCIO FERNANDO OLlVER COSTILLAProfessor titular do Universidade NacionalAutônomo de México, e professor visitante noPós-groduaçõo em Sociologia do UniversidadeFederol do Ceoró. O livro em espanhol foipreparo do em 1996.

As livrarias latino-americanastêm hoje, nos seus estantes, maisum livro essencial para indagarsobre a nossa identidade comuma partir da argumentação socio-política: a tradução para o espa-nhol, pela Universidade NacionalAutônoma de México, do livro dosociólogo brasileiro Octavio Ian-ni, O labirinto latino-americano.

América Latina se desmanchasob a mundialização do capital,hegemonizada pelos Estados Uni-dos de Norteamérica, gerandouma forte competência e isola-mento entre os países da região.Porém, lutam contra dito desapa-recimento tanto a vivência diáriadas populações, que participamde legados comuns da história, asmigrações constantes entre seushabitan tes, a multiplicidade deconvênios e acordos comerciais,políticos e culturais entre os go-vernos (Mercosul, Aladi, Cari-com, etc.), o imaginário utópicolatino-americano, assim como oconjunto de problemas compar-tilhados de carácter econômico,político e cultural.

Os intelectuais comprometi-dos com o desenvolvimento daregião têm começado elaboraruma nova reflexão sobre Améri-ca Latina, cheia de novos conteú-dos. E uma resposta à fala dorni-

RE SE N HAS

nante na mídia e na propagandados governos, que fazem dos paí-ses isolados atores quase únicos davida econômica e política. Tam-bém as políticas dos grandes em-presários transnacionais se põemde costas à autodeterminação sub-regional latino-americana: tudopela inserção subordinada e iso-lada à globalização.

O livro de Octávio lanni revi-sa quatro aspectos chaves do novopensamento latino-americano: 1)a crítica de alguns conceitos dua-listas, associados com a reflexãosocial tradicional de América La-tina, tais como o confronto entremodernização e atraso, civilizaçãoe barbárie, institucionalidade einstabilidade política, desenvolvi-mento e subdesenvolvimento, etc;2) o complexo sentido da questãonacional nos momentos atuais,em que domina uma tendência aque o nacional seja absorvido pelamundialização da vida econômi-ca e cultural, situação na qual, pa-radoxalmente, diversos fenôme-nos e forças sociais ligados ao na-cional e ao local, adquirem umavitalidade renovada; 3) as mudan-ças na democracia e no Estado na-cional, pela globalização e trans-nacionalização da economia. Porúltimo, 4) o conjunto de idéias,noções e teorias com que os lati-no-americanos nos autoconhe-cemos, e que, para nós, têm umconteúdo específico, próprio, dis-tinto à visão européia ou norte-americana ...

O tratamento de lanni tem pro-posições sumamente rigorosas ede alto nível científico, sem dei-xar de ser acadêmicas, (construí-das com a rigorosidade dos con-ceitos teóricos) e se baseiam tam-bém numa definição políticasubstantiva. Ianni chama às coi-sas por seu nome; por exemplo,quando escreve sobre a situaçãoda democracia e o Estado na nos-sa região ele nós diz: "Desde a fun-

dação dos Estados nacionais, naAmérica Latina predominam asforças não democráticas; o sim-plesmente antidernocráticas".

Cada um dos capítulos do li-vro está enriquecido com umafecunda lista de citações que con-têm uma bibliografia de referên-cia, o que é um aporte para o es-tudo dos temas discutidos. O au-tor fez o livro pensando em dia-logar com estudiosos acadêmicossobre a região. Nesse sentido seentende que seja a Faculdade deCiências Políticas e Sociais daUniversidade Nacional Autôno-ma do México, a primeira emapresentar o material para o pú-blico universitário hispano-falan-te da América Latina.

Nesta apresentação do livro pa-ra os leitores de língua espanhola,eu vou apresentar algumas refle-xões que a sua leitura me gerou.

a) Uma necessidade urgente ho-je para América Latina é atualizara sua procura de um objetivo pró-prio de desenvolvimento. Iannidenomina a esse propósito a bus-ca contraditória de ocidentaliza-ção de América Latina. Uma via-gem que, ele diz, sempre é procu-ra e negação, reconhecimento e re-criação. Em nosso entender essaproblemática analisada por Ianniremete a uma inquietude básicaque atormenta os intelectuais dospaíses atrasados (colonizados edescolonizados) desde os iníciosdo século passado: como estar àaltura do mundo, como univer-salizar-se para viver a hora atualcom todas as potencialidades so-ciais possíveis, superando formasde produção e de vida atrasadas ecaducas, e assim mesmo coparti-cipar na crítica das novas formasmodernas.

Justo Sierra, o intelectual me-xicano de inícios de século, ma-nifestou essa busca de atualidadena aspiração democrática univer-sal. Sua obra teórica e prática do

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final do século XIX está encami-nhada a conjugar uma propostade industrialização com um de-senvolvimento da democracia po-lítica para México e América La-tina. Mas tanto a indústria comoa democracia teriam que asseme-lhar-se aos seus similares euro-peus. O universalismo democrá-tico de Justo Sierra expressou essaprocura de ocidentalização, masnão foi muito longe na sua realiza-ção prática devido a sua concep-ção positivista evolucionista: a de-mocracia teria de chegar por umaevolução política lenta do povomexicano, baseada na educação,sem apreciar as travas sociais e po-líticas para o referido processo.

O jovem Marx expressou essamesma inquietude universalizan-te nas suas cartas de juventude(1843), quando perguntava-se sea velha Alemanha poderia estaralgum dia à altura de Inglaterraou França, cujas sociedades e esta-dos para então, já viviam os re-sultados da revolução industriale da revolução política modernasrespectivamente. Embora paraMarx o problema não era só a mo-dernização capitalista da Alema-nha, pois isso significaria passarsó em nível dos demais países eu-ropeus avançados. Para ele a críti-ca tinha que ir mais para lá, atéser uma crítica paralela do mun-do mais avançado, e com relaçãoa Alemanha, até a crítica dos as-pectos modernos da sociedadeAlemanha: sua filosofia do direi-to. Em sua crítica do capitalismoeuropeu Marx deu uma respostanão só nacional e sim mundial.

E em realidade esse é o reque-rimento principal para as ciênci-as sociais da nossa região: expli-car e criticar nosso atraso latino-americano. Mas não para pensar-mos no espelho neoliberal do ca-pitalismo mundial, não para oci-dentalizarmos à maneira norte-. .amencana ou europeIa, com o seu

individualismo egoísta, sua explo-ração industrial e cibernética, suaviolência social, sua alienação esua máquina de guerra e ódio na-cional. Fazer a crítica do atrasojunto com a critica da moderni-dade de que faz parte, que existehoje na aldeia global e que impe-de o nosso desenvolvimento peladependência e pela subordinação.A crítica tem que demostrar oporque da crise do Estado nação,as causas de que exista no mundotodo, uma sociedade de explora-ção irracional dos homens e da na-tureza, além de uma nova exclu-são social e uma falta de valoreshumanistas, junto a una concen-tração de riqueza e poder anor-mais nos países de capitalismoavançado e em nossos países.

Nossa verdadeira ocidentaliza-ção tem que associar-se aos apor-tes que América Latina possa darà crítica e a renovação da demo-cracia política, à reforma da pro-dução e da vida, ao humanismoe ao comunitarismo radical reno-vado, isto é, à liberação nacionale social do mundo atual. Nãoestam os buscando em Ocidenteo que as suas sociedades avança-das são agora, estamos junto aoocidente lutando por um mundodistinto. Nossa definitiva ociden-talização, então, vai se lograrquando a América Latina fizer oaporte novas de opções para omundo contemporâneo.

b) Uma colocação fundamen-tal de Ianni é demostrar no livroque as antinomias tradicional-mente usadas para explicar a nos-sa realidade latino-americana nãosão verdadeiras contradições. Osdualismos são falsos; em realida-de trata-se de situações inter-co-nectadas, em que os fenômenosretrógrados são aspectos geradospêlos fenômenos avançados: abarbárie aludida pelos autores re-nomeados do século passado nãofoi no seu tempo resultado de um

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fracasso da civilização para chegara todos os lugares ao mesmo tem-po; foi desde sempre o fenômenoque acompanhou ao progresso, àsuper-exploração dos trabalhado-res servis, aos quais foi negada ariqueza, a educação e a liberdade,por parte de uma sociedade e umEstado oligárquico explorador,que, embora, tiveram recursos paracultivar processos de alta culturasocial: a civilização.

Outro exemplo: a instituciona-lidade política. O acatamento dasleis e o respeito aos processos dainstitucionalidade política funda-mentam a sua existência em ante-riores ciclos de instabilidade po-lítica que quebraram violenta-mente as travas que uma socieda-de tradicional e um Estado auto-ritário colocaram. Quase sempretem sido necessário uma revoltapopular e uma instabilidade paraque o Estado aceitasse as mudan-ças e desenvolvesse a instiruciona-lidade. Então instabilidade e insti-tuicionalidade são irmãs gêmeas.

O desenvolvimento das cidadescom sua grande variedade de ser-viços tem sido concomitante como empobrecimento do campo,cujos recursos são levados para asurbes: a crise econômica é a basede um novo enriquecimento dosdonos do dinheiro, da mesma ma-neira que a maior acumulação deriquezas e de poder (neo-oligar-quização) que acompanha ao no-vo crescimento econômico finan-ceiro está baseado na exclusão deuma maioria social que engrossaas faixas de pobreza e que já nãoparticipa nem do processo produ-tivo, da comercialização e dos ser-viços vinculados à modernização.Isso quer dizer que desenvolvi-mento para uns é subdesenvolvi-mento para outros, que cresci-mento econômico e moderniza-ção é exclusão social para outros.

Nestas alturas das ciências soci-ais é obrigatório aceitar que o pen-

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samento social ocidental dominan-te até hoje tem sido e é em muitosaspectos simplista e excludente. Avelha fórmula de que A não é B efaz exclusão de B, resulta eviden-temente falsa. Para entender omundo atual, e especialmente paracompreender a América Latinahoje é imprescindivel abrir-nos àcompreensão de que A inclui a B,o pressupõe, o implica. O refina-mento institucional e a luta civili-zada e regulamentada da políticanos Estados e nas grandes cidadesmetrópoles da região, assenta-senormalmente na (a pressupõe)opressão brutal e na violência nocampo e no mundo do trabalho.A riqueza, o desenvolvimento tec-nológico e científico, a educaçãodos países avançados tem comobase a super-exploração dos recur-sos naturais e do trabalho socialtanto na América latina como nasáreas tercerizadas dos países de ca-pitalismo avançado. A mesma coi-sa pode se dizer das mega-cidadesque são núcleos extraordinários dedesenvolvimento industrial, co-mercial e de serviços, cujo funda-mento é a migração rural proveni-ente de um campo empobrecido esem recursos, mesmo que na ver-dade ficou pobre por ter financia-do durante décadas o desenvolvi-mento industrial das cidades (veja-se por exemplo, a discussão dosanos de 1970sobre o colonialismointerno).

Os problemas sociais não têmexistência isolada. Para os caracte-rizar realmente é necessário esta-belecer os vínculos entre cada fe-nômeno e todos os aspectos dadinâmica social. Somente depoisde ter feito o anterior teremosuma visão total e complexa doconteúdo dos fenômenos ditos.Questões como por exemplo aacumulação de capital (tão bemvistas pela sociedade na sua for-ma de crescimento do produtointerno bruto anual), é o outro

rosto da exploração do trabalhosocial; ou também, o desenvolvi-mento tecnológico é a outra carada exclusão social de milhões dedesempregados permanentes e demeninos sem escola nem traba-lho, etc.. Ou, por exemplo, a in-certeza e a pobreza de milhões delatino-americanos é a outra faceda geração de novos ricos na re-gião, como o registra periodica-mente a revista norte-americana"Forbes". A realidade é multi-la-teral e o pensamento não pode seroutra coisa que isso: inter-discipli-nar e multi-lateral.

c) Como nos lembra o lanni, aquestão nacional continua atualsob a era da globalização. Nemsó está presente na vida diária, se-não, sem dúvida, no desenvolvi-mento da cidadania e dos direitoshumanos, na crescente legitimida-de do pluralismo e a diversidade.A questão nacional tem hoje con-teúdos mais plenos. A idéia oci-dental da universalização das so-ciedades pela via da uniformida-de e homogeneização dos seus in-tegrantes tem resultado numa ca-misa de força para o desenvol-vimento multilateral da diversi-dade. Hoje a universalidade temque conter a aceitação da diversi-dadelocal.

O processo teórico recente pro-cura colocar melhor a importân-cia de um desenvolvimento pelauniversalização da diferença e nãoda igualdade, o qual não significaeliminar a reivindicação pela ge-ração de condições de igualdade,como condição para o desenvol-vimento pleno de essasdiferenças.Como sugere o filósofo portuguêsBaoaventura Souza Santos, a ques-tão não é substituir um univer-salismo igualitarista que limpa asdiferenças, por um outro que astoma como fenômenos imcompa-ráveis, e que leva a reconhecer adiversidade mas não a explicá-Ia,nem a vinculá-Ia com o todo. Esse

é o caminho à formação de seitasfechadas.

A nação autoritária, unilateral,homogeneizante, burguesa, quehoje ainda predomina em prati-camente todos os nossos países,ela está numa verdadeira crise naregião. Hoje a nação quer ser umaformação social aberta, em movi-mento e re-organização, onde osseus membros tenham direitos di-versos além da cidadania. Dita na-ção popular terá que vincular-secom a luta pela democracia paraobter um espaço para grandes mo-dificações; espaço no qual possamsurgir e desenvolver-se forças so-ciais, políticas e culturais nacio-nais, com a capacidade para con-frontar-se com a atual hegemoniacapitalista autoritária, que susten-ta a universalidade da igualdade.A nova sociedade civil terá que re-conhecer as suas diversas fisiono-mias e entender a necessidade daorganizacão e luta para se manterviva. Sem dúvida a internacio-nalização dos mercados e merca-dorias eleva a tendência de que anação fique somente como umamensagem cultural prescindível,como um folk.lore de fim de se-mana.Embora, as novas concei-tuacões do nacional permitam fa-zer a associação da nação com aexpressão plena do particular dosseres universais. Também nessesenido um desenvolvimento lati-no-americanista pode ser conco-mitante com o universalismo dosnossos tempos, o qual já não deve-ria ser um universalismo igualita-rista, se não é também um queaceita a diversidade e a diferença.

d) Um grande problema da re-gião latino-americana em temposda globalização é o crescente en-fraquecimento do Estado naçãoque vem da falta de comprometi-mento dos grupos dominantescom o seu país, assim como daforça e influência do domíniotransnacional.

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Como constata o Ianni existeum real declínio do Estado naçãoem quanto a sua soberania. Embo-ra seja mais necessário que nuncapara manter a dominação pela viadas instituições, estratégias políti-cas e socioculturais. O declínio dasoberania corresponde em exten-são e profundidade com as novasformas do domínio dos gruposeconômicos e políticos transna-cionais. Existe também uma ten-dência para subsumir a terra nu-ma economia mundial e sob umEstado também mundial, situaçãona qual eles organizarem e contro-lassem o conjunto dos recursossociais disponíveis, assim como osprocessos produtivos, políticos eideológicos.

Depois de uma década de tem-pos conservadores (como foi a ca-racterização do sociólogo equato-riano Agustín Cueva) podemosconstatar que o retorno à demo-cracia em alguns países tem signi-ficado afirmar o Estado neoliberaltrasnacionalizado, junto a um de-senvolvimento de procesos e prá-ticas democráticas. Tem havidocertamente um desenvolvimentoda cultura política cidadã junto aum agravamento da pobreza, odesemprego e a exclusão sociais.

O antes dito levou a uma parteda intelectual idade a desiludir-secom o desenvolvimento democrá-tico, o qual coloca em cima damesa a questão da legitimade dumEstado que vive da governabili-dade mas não resolve problemassociais urgentes. São poucos os ca-sos em que a cidadania realmentetem a ver com soluções aos proble-mas sociais como a saúde, a edu-cação, a violência, etc. Os Estadoslatino-americanos têm reduzido assuas políticas públicas ao paga-mento da dívida externa e internae o orçamento dedicado as políti-cas sociais é uma porcentagemmuito baixa do gasto público. Emgeral o que prevalece são as políti-

cas neoliberais do chamado "Con-senso de Washington".

O que é a democracia parla-mentar nas nossas sociedades la-tino-americanas, especialmentehoje que a democracia está apre-sentada como o objetivo máximoa obter? O que significa a existên-cia de um povo nacional cujasmaiorias vivem na exclusão soci-al e na marginalidade, emborafaça parte do desenvolvimento dademocracia?

Para refletir sobre as interrogan-tes ditas, convém duas considera-ções: primeiro, a democracia, ob-jetivo a alcançar pêlos povos mo-dernos, não resolve por ela mesmaos problemas sociais. A democra-cia faz parte do âmbito do políti-co, do estado político na forma re-publicana mesma que se baseia naseparação do político do âmbitoprivado e social. Os assuntos quetêm a ver com a condição social: otrabalho, emprego o salário, a mo-radia, fazem parte do privado soci-al, embora em alguns Estados, oschamados Estados de bem estar,tenham tido intervenção positivanessas questões sociais.

Nesse sentido o Estado neoli-beral fala de ter colocado as coisasno seu lugar segundo a teoria daseparação entre âmbito político eâmbito privado. Daí que a demo-cracia, isto é, a participação dasociedade nos assuntos públicos,não leva a uma correção dos gran-des males do capitalismo atual,seja da dependência dos países la-tino-americanos ou o desempre-go e a pobreza.

Ante o desenvolvimento demo-crático, o bloco de poder compos-to por elites econômicas e políti-cas têm optado por uma via alter-nativa para salvaguardar as suaspolíticas e os seus recursos: a se-paração entre o âmbito políticoparlamentar e o âmbito da políti-ca econômica nacional e local.Esta política é levada a cenários

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de "concertação privados" entreempresários, trabalhadores e go-verno. Nas câmaras não discutem-se os problemas referidos à políti-ca econômica, nem aqueles quetêm a ver com o uso do orçamen-to do poder executivo. Tem se uti-lizado a separação entre o poderlegislativo e o poder executivo pa-ra excluir ao primeiro de determi-nados assuntos públicos de impor-tância fundamental. Isso tem de-finido ainda mais a tendênciamoderna a que o poder real (quemtem nas suas mãos as decisões) fi-que concentrado no executivo, dei-xando para o poder legislativo ejudicial tarefas secundárias de de-bate, representação e fiscalização.

Outro aspecto referente à de-mocracia é que ela constitui umespaço aberto para a luta social,embora quem quase sempre con-trola a vida política, tanto dentrocomo fora das próprias institui-ções, é, quem desde sempre temsido educado para mandar, que éa expressão pública da hegemoiacapitalista: a nova tecnocracia mo-derna especializada. Quem tem osaparelhos de poder, quem tem odomínio do conhecimento espe-cializado, nas mãos e quem ganhana democracia. Nesse contexto ologro da democracia republicananão poupa todo o trabalho deconstruir uma hegemonia própriaaos trabalhadores, hegemonia queimplica uma outra visão do mun-do e a construção de políticas dis-tintas para os problemas sociais.A consecusão da democracia, odesenvolvimento da cidadania, aexistência de plenos direitos polí-ticos não significa o triunfo dumacultura política democrática dostrabalhadores, nem a sua real par-ticipação nos assuntos do Estado.Pode significar o êxito de uma vi-são empresarial privada nos assun-tos sociais. Por isso a democracianão pode ser somente um objeti-vo. Tem também que ser o espaço

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em que comfrontam-se opçõeshegemônicas diversas e em que ostrabalhadores desenvolvem seupróprio perfil de políticas nacio-nais, estaduais e locais.

e) O Estado nacional tende àobsolecência? Este, que é um ar-gumento muito corrente em nos-sos tempos, está carregado dereducionismo econômico e dementiras. A globalização da pro-dução econômica mundial, docapital e do trabalho, está real-mente levando à aldeia mundialque transgride os limites estataise nacionais. Porém, concomi-tantemente a ditos procesos econó-mico sociales só na Europa Oci-dental existe um processo políti-co de criação democrática tenden-cial de um Estado regional, aUnião Européia. Na Américanão existe nada similar e, falar daobsolecência do Estado nação sóserve para aceitar as políticas deum Estado Americano regionalque manda autoritariamente, eque é conformado pelo governode Estados Unidos, de organismosempresariais transnacionais comoo Conselho das Américas, e deorganismos financeiros multi-nacionais como o Fundo Mone-tário Internacional e o BancoMundial. Esse Estado transna-cional norteamericano não ex-pressa a construção democráticade um Estado político regionalque substituia ao Estado naçãoem América Latina, e sim revelaa imposição autoritária de umapolítica econômica de beneficioao grande capital trasnacionalnorte-americano. Frente a isso oEstado nação latino-americano,como expressão da vontade desoberania política e de soberanianacional dos povos segue vigen-te, como faz há duzentos anos,embora as tendências inevitáveisda globalização.

O livro de Ianni tem sido tan-to o fio gerador como condutor

das anteriores reflexões. Seguroque sua leitura provocará nos lei-tores latino-americanos muitasoutras considerações que multi-plicarão o pensamento e a sensa-ção de que América Latina mere-ce VIver.

SECULARIZAÇAO EMODERNIDADE RELIGIOSA

de Júlio Mirando,Horizontes de Bruma: os limitesquestionados do religioso e do político.Sõo Paulo, Maltese, 1995

POR FÁTIMA REGINA GOMES TAVARESPesquisadora do Laboratório de Pesquisa SocialIFCS-UFRJ.Doutoranda em Sociologia IFCS-UFRJ

No bojo de uma produção socio-lógica crescente acerca de umaternática até bem pouco tempomarginal para a área t, o trabalhode Júlia Miranda sobre o Cristia-nismo de libertação na Américalatina traduz-se numa tentativaousada- e a meu ver, bem sucedi-da-de reflexão sobre a atualidadeda questão religiosa na socieda-de ocidental.'

N o que diz respeito à produ-ção acadêmica e tecnológica emtorno do tema, parece haver hojeem dia um duplo consenso:

1) o caráter plural e multifa-cetário dos fenômenos religiosose a consequente complexidade doscritérios de abordagem a seremadotados para a sua compreensão;

2) para além da diversidade osmovimentos apontam para umacaracterística comum, qual, seja,um discurso que denuncia o fra-casso do projeto da modernidade.Esse consenso, no entanto, em na-da minimiza a sensação de perple-xidade diante desta "realidade"

que se encontra, mais do que nun-ca, na ordem do dia, atravessan-do pesquisas e discussões sobre otema.

A despeito de abordar umaquestão que, no primeiro momen-to, poderia ser identificada comopontual e circunscrita à um corpodelimitado de análise, a autora pre-tende dar conta de uma reflexãomuito mais ampla do que a prin-cípio o "recorte" escolhido pode-ria requerer. Articulação entre aproblemática mais geral ao cam-po reliogioso e a especificidade docristianismo de libertação e de suateologia é feita com maestria, demodo a compor um quadro bas-tante claro das implicações e doslimites do objeto tratado no âm-bito do contexto da modernidadereligiosa.

Seguindo esta linha de racio-cínio, a autora, logo no início dotrabalho, chama a atenção para aimportância de repensar a atua-lidade do fenômeno religioso esua escrita relação com a proble-mática mais geral da moderni-dade. O que se pretende redis-cutir, portanto, não diz respeitosomente à uma esfera de sentidorelativamente autonomizada,mas antes, à própria dinâmica daredefinição de fronteiras verifi-cadas no âmbito da modernidadee que informa diretamente a pro-blemática dos movimento polí-ticos-religiosos.

O caminho de compreensãoda atualidade do fenômeno reli-gioso apresentado no trabalho,passa pela problematização dasrepresentações em torno do quese convencionou chamar de mo-dernidade, com ênfase especialem uma delas: aquela que reivin-dica como condição de sobrevi-vência à supressão da religião,por entender que a estrutura cog-nitiva da sua visão de mundoapresenta uma incompatibilida-de de fundo com relação à pri-

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meira. Uma representação que,como bem lembra, a autora, res-paldou sua legitimidade numa in-terpretação um tanto apressadodo conjunto da obra dos clássi-cos da sociologia, em especial dacontribuição Max Weber.

No âmbito da constatação des-ta suposta dicotornia entre mo-dernização e religião é que se en-contrariam inúmeras abordagensde desqualificação da importân-cia do fenômeno religioso na atu-alidade, abordagens hoje um tan-to démodé, e que já não atraemmais nenhum adepto dado o seugap em relação à atual "eferves-cência" religiosas; mas tambémàquelas - mais sutis - que orien-tam suas análise por um suposto"retorno do religioso', fruto dosdilemas atuais postos pela mo-dernidade, o que acaba por as-sociá-Ios, no fim das contas, àum certo e racionalismo típicodos períodos de crise e sem mai-ores consequências do ponto devista instituicional. Recorrendoà Jacques Grand'Maison - quetinha analisado o fenômeno apartir da sociedade canadense -a autora afirma que: "a crise nãoé religiosa, mas secular, e é nessenível que se deverá buscar as so-luções. O autor reconhece o fatoinconteste da secularização, masestá seguro que ela, no planoideológico, operou o desapareci-mento do sagrado. (...) E ele ad-verte: corremos o risco de fazeratualmente a mesma coisa, crian-do uma ideologia do retorno, doreligiosos, que encobre o secular.As ideologias do retorno ocultamexatamente o que existe de liber-tador na secularização - diz ele.(p.46-47).

A pergunta, no entanto, conti-nua no ar; se é limitada a pers-pectiva que articula o "retornodo religioso"à crise da moderni-dade, como compreender a atua-lidade do fenômeno que, a des-

peito da variedade de experiên-cias, parece invocar um discursode confronto aos valores da mo-dernidade, ao mesmo tempo emque apresenta um padrão cogni-tivo de adaptação à mesma, sen-do mesmo qualificada por algunsestudiosos como sua "expressãomais radical"?'

O ângulo de análise a ser bus-cado, portanto, deve privilegiaro que há de "novo"neste cenário,conferindo visibilidade à polisse-mia do religioso num contextode radicalização constante doprojeto da modernidade.'. Paratanto, o caminho apontado pelaautora segue a mesma linha deanálise da socióloga das religiões,Daniéle Hervieu-Léger, cuja con-tribuição principal reside na ten-tativa de esclarecimento do "cur-to circuito" (p. 64) em que se en-contraria o debate. Diferentesplanos de análise se entrelaçam,ao se confundir duas ordens dequestões distintas: "A primeiradiz respeito às relações existen-tes entre crescimento do religio-sos e a conjuntura econômica,política, cultural e social das so-ciedades em que ele se verifica,ou seja: esse renovado interessereligioso é fruto da crise da mo-dernidade, incapaz de manter as'promessas' que ela continha? Asegunda coloca a questão das pró-prias produções religiosas damodernidade. Essa nova cons-ciência religiosa não seria umaexpressão da modernidade en-quanto tal? (p. 63).

A alternativa apresentada parasaída deste impasse situa-se ain-da no âmbito das contribuiçõesde Hervieu-Léger, quando de suaproposta de se repensar o fenô-meno enquanto um "amplo pro-cesso de recomposição do cam-po religioso"(p. 67). Busca-se,com isso, a problematização deuma noção pouco analisada pe-las ciências sociais: a questão da

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secularização, cuja visao empo-brecedora que costuma associá-Ia ao movimento de recuo da re-ligião face à modernidade, acabaperdendo de vista toda a produ-ção religiosa intrínseca à esta, sobpena de mergulhar num parado-xo analítico sem saída.

Mas o labirinto possui uma saí-da, e esta parece ser a ampliaçãoe problematização do tipo - idealde modernidade, este pensado co-mo um processo que, se por umlado, no âmbito da sua dimensãohistórica dissolve a religião; poroutro, reconstrói permanente-mente o lugar da utopia - inclusi-ve a religiosa - neste processo. Ocaminho, portanto, para se trans-cender este aparente paradoxo pa-rece ser o de seu próprio reconhe-cimento: "Aplicadas ao estudodos novos movimentos religiosos,as considerações anteriores levama entendê-los como manifestaçõesque se alimentam das contradi-ções da modernidade exatamenteporque ela é intrinsecamente con-traditória, e não somente porqueela é incompleta ou se mostratemporariamente incapaz de re-solver todos os problemas de umaconjuntura particular." (p. 94). Apossibilidade de reconhecer namultiplicidade das experiênciasreligiosas um movimento maisamplo de recomposição do cam-po religioso, enriquece, portanto,a própria discussão dos caminhose descaminhos de uma constru-ção histórica denominada "mo-dernidade" onde, no âmago mes-mo da sua identidade ela se reco-nhece como problemática.

Neste sentido, a própria idéiade modernizar parece carregarem si mesma uma ambiguidadeprofunda e inquietante, compro-metendo, consequentemente, to-do o debate em torno da questãoda pós-moderniadade. Ela pare-ce propiciar como auto-imagema idéia contínua da insegurança

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e do risco, proveniente deste "ví-cio do novo"que ela propicia.

A possibilidade de uma revi-são crítica do conceito de secula-rização constitui um ponto-cha-ve para a autora, alinhavando aanálise da problemática específi-ca, objeto de seu estudo, às ques-tões mais gerais nas quais ele seencontra inscrito. A categoria se-cularização - analisada ao longode todo trabalho, onde se eviden-cia conhecimento profundo noque tange às sua implicações teo-lógicas - possibilita a construçãode uma ponte de mão dupla: porum lado, seguindo a mesma li-nha de Hervieu-Léger, ela funci-ona como mediadora para com-preensão renovada das relaçõesentre religião e modernidade; poroutro lado - e como desdobra-mento do anterior - é tambématravés dela que se pode compre-ender os desafios apresentadospelo cristianismo de libertaçãono âmbito dos movimentos po-lítico-religiosos.

Não é a toa, portanto, que aanálise da gênese e posterior de-senvolvimento da categoria secu-larização ganha central idade teó-rica no âmbito dos fenômenosanalisados pela autora. Esta pare-ce ser extremamente operacional,na medida em que fenômenos des-critos em planos analiticamentedistintos ganham novos contor-nos para a análise. Assim é que,no caso específico do cristianis-mo de libertação e mais especifi-camente da teologia da libertaçãotal como foi elaborada por Gus-tavo Gutierrez, a autora busca in-vestigar os limites posto por estetipo de movimento, que pretendearticular o político e o religiosocujo projeto de ação no mundoconstrói-se a partir de uma abor-dagem que incorpora como refe-rência última a palavra revelada,visando uma transformação radi-cal da sociedade.

N este contexto, o que se pre-tende, dada a articulação proble-mática entre duas esferas de sen-tido crescentemente autonorniza-das ao longo do processo histó-rico de consolidação da(s) mo-dernidade(s), é recuperar a di-mensão especificamente religio-sa deste discurso, pensada comoforça motivadora para a ação nomundo, buscando a especifici-dade do seu sentido último, sem,no entanto, cair no irredutivismoreligiosos que o coloca para alémde qualquer possibilidade analí-tica. O locus dessa busca encon-tra-se no universo doutrináriocristão, que vem sofrendo umprocesso de constante reformula-ção a partir de um diálogo tensio-nado com uma modernidade quese apresenta como referência deadequação.

N o espaço de fricção entre ocaráter revelado da mensagem re-ligiosa e as ambiguidades ineren-tes ao projeto da modernidade,a secularização é compreendidanão como "o fim da religião con-frontada à racional idade crescen-te, mas o resultado do trabalhopermanente, das transformaçõesoperadas nesse universo utópicopelas sociedades particulares,com o objetivo de dar conta dadistância entre as determinaçõescotidianas e as significações."(p. 248).

Situando o caso específico dateologia que orienta o cristianis-mo de libertação, a autora verifi-ca a importância da utilização doconceito para uma compreensãoda especificidade, bem como doslimites de um projeto político as-sentado neste universo simbó-lico: "Ao buscar comprometer-se com a realidade social latino-americana, partindo dos movi-mentos de libertação, e ao recor-rer às Ciências Sociais para ana-lisar os elementos explicativosdessa exigência de explicação, o

referido discurso se situa numprocesso interno ao cristianismoe ao seu universo doutrinário,que representa uma secularização(interna). Aquilo que lhe tornapossível falar, 'do lugar do reli-gioso', sobre a conscientizaçãodos oprimidos e que leva necessa-riamente à relativização da expli-cação conhecida como 'vontadede Deus', integra esse processo,cuja continuação, em nível da so-ciedade, a teologia dessa formagarante. (...) Os limites desse pro-cesso, aqui chamado de secula-rização interna, estão colocadospela própria necessidade de man-ter a integridade no campo. (p.249-250).

NOTAS1. Para uma exposiçãodo lugar con-

ferido à ternática religiosano âm-bito da produçãosociológica noBrasil a partir da década de 1930,ver ALVES,Rubem A. (1978), "Avolta do sagrado:os caminhos dasociologiadareligiãono Brasil".In:Religião e sociedade, Rio de Janei-ro, CivilizaçãoBrasileira,n. 3.

2. Segundoa autora,no conjuntodosfenômenosobservados,podem serdistinguidostrês classesdistintas:aascensãodos "novosmovimentosreligiosos",o recuodocristianismo;osmovimentosquevinculamo reli-giosoe o político,sejamelesdeori-gemcristã,judia ou dinâmica.

3. Dentre asdiversasabordagensqueenfatizam este viés interpretativo,ver especialmente.SOARES,LuisEduardo. (1984), "Religiosospornatureza:cultura alternativaemis-ticismo ecológicono Brasil".In: Origor da indisciplina. Rio de Janei-ro, RelumeDumará.

4. Esta concepção de radicalidadecrescente do projeto da mcder-nidade como fruto de seu caráterauto-reflexivoencontra-sereferen-ciadaemGIDDENS,A. (1991), Asconsequências da modernidade. SãoPaulo,UNESP. (Especialmenteoscapítulos Ie V).

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