A Herança Intelectual Da Sociedade - Florestan Fernandes

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  • 8/10/2019 A Herana Intelectual Da Sociedade - Florestan Fernandes

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    SOCIOLOGIA E SOCIEDADE

    Leituras de introduo sociologia

    Marialice Mencarini ForacchiJos de Sousa Martins

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    A herana intelectual da Sociologia Florestan Fernandes

    A Sociologia no se limita ao estudo das condies de existncia social dos

    seres humanos. Todavia, essa constitui a p oro mais fascinante ou importante deseu objeto e aquela que alimentou a prpria preocupao de aplicar o ponto de vistacientfico observao e explicao dos fenmenos sociais. Ora, ao se falar do

    homem, como objeto de indagaes especficas do pensamento, impossvel fixar,com exatido, onde tais indagaes se iniciam e quais s o os seus limites. Pode-se,no mximo, dizer que essas indagaes comeam a adquirir consistncia cientficano mundo moderno, graas extenso dos princpios e do mtodo da cincia investigao das condies de existncia social dos seres humanos. Sob outrosaspectos, j se disse que o homem sempre foi o principal objeto da curiosidadehumana. Atrs do mito da Religio ou da Filosofia sempre se acha um agentehumano, que se preocupa, fundamental e primariamente, com questes relativas origem, vida e ao destino de seus semelhantes.

    Por isso, seria vo e improfcuo separar a Sociologia das condies histrico -sociais de existncia, nas quais ela se tornou intelectualmente possvel enecessria. A Sociologia no se afirma primeiro como explicao cientfica e,somente depois, como forma cultural de concepo do mundo. Fo i o inverso o quese deu na realidade. Ela nasce e se desenvolve como um dos florescimentos

    intelectuais mais complicados das situaes de existncia nas modernassociedades industriais e de classes. E seu progresso, lento mas contnuo, nosentido do saber cientfico, positivo, tambm se faz sob a presso das exignciasde ssas situaes de existncia, que impuseram tanto ao pensamento prtico,quanto ao pensamento terico, tarefas demasiado complexas para as formas pr -cientficas de conhecimento.

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    Da a posio peculiar da Sociologia na formao intelectual do mundomoderno. Os pioneiros e fundadores dessa disciplina se caracterizam menos pelo

    exerccio de atividades intelectuais socialmente diferenciadas, que pela participao

    mais ou menos ativa das grandes correntes de opinio dominantes na poca, sejano terreno da refle xo ou da propagao de ideias , seja no terreno da ao. Asambies intelectuais de autores como Saint -Simon, Comte, Proudhon e Le Play oude Howard, Malthus e Owen, ou de y on Stein, Marx e Riehl iam alm doconhecimento positivo da realidade social. Conservadores, reformistas ou

    revolucionrios, aspiravam fazer do conhecimento sociolgico um instrumento daao.

    12E o que pretendiam modificar no era a natureza humana em gera l, mas a

    pr pria sociedade em que viviam. Existe, portanto, fundamento razovel para a interpretao segundo a qual a

    Sociologia constitui um produto cultural das fermentaes intelectuais provocadaspelas revolues industriais e poltico-sociais, que abalaram o mundo ocidentalmoderno. De fato, a Sociologia no se imps em virtude de necessidades lgicas,pressentidas ou formuladas a partir da evoluo interna do sistema das cincias. nica disciplina cientfica que poderia ter concorrido, diretamente, para a criao daSociologia, a Biologia. Entretanto, ainda hoje a Biologia opera com organismosabstrados do meio real de existncia. Apesar de ter posto em evidncia o papel dacompetio e do conflito na formao de comunidades e na luta pela vida continuaa ignorar as influncias presumveis da organizao social na diferenciao e naevoluo das espcies.

    Isso que dizer que o desenvolvimento do sistema das cincias se temprocessado sob o influxo de duas ordens de fatores. Uma, de natureza

    especificamente positivo-racional , ligada com as exigncias da prpria marcha dasinvestig aes cientficas. Outra, de natureza ultracientfica, constituda pelo con juntode necessidades prticas (econmicas, cul turais e sociais), que pedem ou precisamser satisfeitas, de modo direto ou indireto, mediante a d escoberta ou a utilizao de conheci mentos cientficos. Algumas disciplinas, como a Qumica, emergiram gr a as concorrncia de fatores das duas ordens. Outras, como a Sociologia, nasceram daconjugao dos efeitos das crises sociais com os da revoluo da mentalidade,

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    produzida pelo advento do pensamento cientifico. Semelhante vinculao daSociologia com as situaes de existncia indica duas coisas. Primeiro, que ospioneiro s da Sociologia possuam ampla compreenso da natureza e das

    possibilidades do conhecimento cientfico. Segundo, que deviam ser recrutadosantes entre os apologistas, que entre os m ilitantes da cincia o que, sob muitosaspectos, foi vantajoso, devido plasticidade exigida, inicialmente, pelasinvestigaes sociolgicas, em particular no livre aproveitamento de recursosintelect uais de procedncia extracientf ica.

    Vista em termos dos ideais da investigao cientfica, a referida vinculao daSociologia com as situaes de existncia social ped e ser apreciada tanto de modo

    positivo, quanto negativo. Assim, certo que ela contribuiu para ajustar rapidamenteo modelo da anlise cientifica natureza dos fenmenos sociais humanos, que elafavoreceu a adoo de padres de comunicao cientfica relati vame nte exotricose que a ela se associa uma nova compreenso do objeto e da s funes da cinciaaplicada. Contudo, nessa vinculao tambm se encontram as razes dos principaisobstculos ao desenvolvimento posterior da Sociologia. De um lado, porque nela seinspirou a identificao, ainda hoje corrente, da Sociologia com a Filosofia daQuesto Social o que acabava por reduzi- la s propores de uma FilosofiaPoltica. De outro, porque podia conduzir ao empobrecimento do campo deinvestigao da Sociologia, especialmente quando a supervalorizao da chamadaSociologia Histrica se processava em combinao com intuitos prticos maldefinidos.

    Tais concluses demonstram que a herana intelectual da Sociologia atendia,escassamente, aos pr -requisitos de uma verdadeira cincia. Isso no significa,porm, que se deva proceder a uma condenao da Sociologia do sculo XIX,como o faz Georges Gurvitch. O melhor ser ia tentar compreender o seu esp rito e osseus resultados, tomando- se como ponto de referncia a significao deles para

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    o desenvolvimento da Sociologia na poca. A esse respeito, seriaconveniente considerar: 1 ) as relaes da emergncia da Sociologia com os efeitosintelectuais dos processos de secularizao dos modos de conceber e de explicar omundo; 2 ) as repercusses das tendncias de racionalizao e dos movimentossociais na delimitao do horizonte intelectual dos pioneiros ou dos fundadores da

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    Sociologia; 3 ) a natureza dos motivos e das ambies intelectuais, inerentes sprimeiras tentativas de aproveitar os princpios do conhecimento cientfico nae xplicao da vida humana em sociedade.

    A explicao sociolgica exige, como requisito essencial, um estado deesprito que permita entender a vida em sociedade como estando submetida a umaordem, produzida pelo prprio concurso das condies, fatores e pro dutos da vidasocial. Por isso, tal estado de esprito no s anterior ao aparecimen to daSociologia, como representar uma etapa n ecess ria sua elaborao. No mundomoderno, pelo que se sabe, ele se constituiu graas desagregao da sociedadefeudal e evoluo do sistema capitalista de produo, com sua e conomia de

    mercado e a correspo ndente expanso das a tividades urbanas. que estes doisprocessos histrico-sociais se desenrolaram de modo a ampliar, continuamente, asesferas da existncia nas quais o ajustamento dinmico s situaes sociais exigiao recurso crescente a atitudes secularizadas de apreciao dos mveis das aeshumanas, do significado dos valores e d a eficincia das instituies.

    No plano puramente intelectual, a secularizao dos modos de conceber e deexplicar o mundo est relacionada com transformaes radicais da mentalidademdia. O efeito mais notvel e caracterstico dessas transformaes consiste noalargamento do mbito da percepo social alm dos limites do que era sancionadopela tradio, pela Religio ou pela Metafsica. Todo sujeito percebe o mundoexterior e as prprias tendncias egotistas atravs de categorias de pensamen toherdadas da sociedade em que vive. Quando a herana cultural constituda,

    predominantemente, por categorias de pensamento modeladas pelo influxo direto e

    profundo das tradies, de noes religiosas ou de explicaes metafsicas aorigem sacerdotal, a percepo social acaba sendo condicionada de forma esttic ae recorrente, o que restringe as potencialidades criticas e inconformistas dos

    agentes humanos em face de suas situaes de existncia. Qualquer anlise daconduta, da sociedade ou do destino humano esbarra com o carter absoluto,intangvel e sagrado das normas, dos valores e das instituies sociais,reconhecidos culturalmente. Nem mesmo uma disposio objetiva ou neutra dereconhecimento das situaes de existncia se toma facilmente acessvel. Nas condies de inquietao e de instabilidade, ligadas desagregao da sociedademedi eval e formao do mundo moderno, as inconsistncias daquelas categorias

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    absolutas e estticas do pensamento se fizeram sentir com rapidez. Contudo, comose estava em uma era de revoluo social (e no apenas de transio de umperodo a outro de uma mesma civilizao), elas no foram simplesmente

    impugnadas e rejeitadas: as formas de saber de que elas derivavam e que pareciamviciar, de diversas maneiras e sob diferentes fundamentos, o uso da razo, queforam condenadas e sub stitudas. Seja no plano pr tico, seja no plano terico,impunham- se tarefas que pressupunham novos padres de apreciao axiolgica,mais ou menos livres dos influxos da tradio ou de concepes providencialistas.

    Portanto, o que se poderia designar como conscincia realista das condies deexistncia emerge e progride atravs de exigncias de novas situaes de vida,

    mais complexas e instveis. Da o enriquecimento dos contedos e o alargamentodos nveis da percepo social do sujeito, expost o a um cosmos moral em que acapacidade de julgar, de decidir e de

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    agir passa a depender, de modo crescente, do grau de conscincia por elealcanado sob re os mveis das aes dos outros ou os efeitos das .possveisalteraes da estrutura e funcionamento das instituies.

    A essa transfor mao bsica do horizonte intelectual mdio precisoacrescentar outras duas consequncias, a ela relacionadas. De um lado, asmodificaes que se produziram na natureza e nos alvos do conhecim ento do sensocomum; de outro, as inovaes que se manifestara m no seio do pensamentoracional sistemtico. As modificaes por que passou o conhecimento do sensocomum tm sido subestimadas, em particular devido s inclinaes intelectualistasdos autores que estudam a histria do pensamento no mundo moderno. Mas, e laspossuem uma significao excepcional, pois foi por meio delas que se projetaramna vida prtica as diversas noes que fizeram da atividade humana, individual ou coletiva, o prprio cerne de todo progresso econmico, poltico ou cultural. Naverdade, foi o conhecimento do senso comum que se exps e teve de enfrentar asexigncias mais profundas e imediatas das novas situaes de existncia social.Por isso ele acabou servindo como verdadeiro fo co de formao e de cristalizaodas categorias de pensamento historicamente adequadas quelas situaes. Tome -se como exemplo a histria da Economia: noes que serviram, primordialmente,para definir o significado de aes, de obrigaes ou de relaes econmicas, na

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    linguagem cotidiana foram ordenadas com base na experincia de atividadeseconmicas concretas e generalizadas, tudo dentro do mbito do conhecimento dosenso comum. Mais tarde, as explicaes assim descobertas constituram o ponto

    de partida de uma disciplina cientfica. Pode-se objetar que existe ampla diferenaentre as explicaes abstratas dos economistas e a teoria do comrcio de ummercador ingls do sculo XVI ou XVII. O paralelo bastante sugestivo, noobstante, para indicar o sentido objetivo e os intuitos de preciso, inerentes aoconhecimento de senso comum no mundo moderno.

    s repercusses da secularizao dos modos de perceber e de explicar omundo no pensamento racional sistemtico so, entretanto, melhor conhecidas.

    Mas, mesmo aqui se verifica que o processo de transformao foi mais rpido nasesferas do pensamento racional vinculadas de modo imediato s situaes prticasde existncia, como se pode comprovar pelo confronto do desenvolvimento do

    Direi to Positivo com o da Filosofia, a partir da desagregao da sociedade medieval.Isso no impede que se reconhea que coube ao pensamento racional sistemticoseja ordenar e dar expresso lgica s elaboraes realmente significativas doconhecimento do senso comum, seja estender os critrios de explicao secular do

    mundo a objetos e a temas que no caem dentro dos limites da reflexo prtica.Graas a estas duas funes, a Filosofia moderna ofereceu os meios intelectuaisatravs dos quais se esboaram as primeiras tentativas de explicao realistasistemtica das condies e efeitos d a vida humana em sociedade. A essastentativas no estiveram alheios, mesmo, nem certa objetividade no tratamentoemprico das manifestaes da vida social; nem um mnimo de esprito relativista,que permitiu entender univocamente os fenmenos de mudana scio -cultural,condicionados pelo espao ou pelo tempo, e que oferecia um fundamento lgico sespeculaes voltadas para a reconstruo social.

    Em suma, aos efeitos do processo de secularizao da cultura namodificao da mentalidade mdia, do conhecimen to do senso comum e dopensamento racional sistemtico devem -se a formao do ponto de vistasociolgico, a noo de que a vida humana em sociedade est sujeita a uma ordemsocial , e as primeiras tentativas da explicao realista dos fenmenos deconvivncia humana. A cons-

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    tituio da Sociologia, entretanto, altera sua relao com os produtosintelectuais e com as tendncias desse processo. Parece bvio que as influnciasintelectuais descritas concorreram para produzir efeitos similares porque as

    quest es que se passaram a colocar, a respeito das formas e natureza da ordemsocial, se tornaram demasiado variadas e complexas, a ponto de exigirem o recurso

    contnuo investigao, sistemtica e a formao de uma disciplina intelectualespecfica. Tome -se A ugusto Comte como referncia. Suas indagaescorrespondiam a questes que no poderiam ser formuladas e respondidas nombito do conhecimento do senso comum ou da Filosofia pr -cientfica. O que aordem social? Como ela se constitui? Como ela se mantm? Como ela se

    transforma? Em outras palavras, com o aparecimento da Sociologia no s seamplia o sistema das cincias, como se descobrem meios intelectuais plenamenteadequados s necessidades de desenvolvimento criador ou co nstrutivo dos modossecularizados de perceber e de explicar o mundo.

    As repercusses das tendncias de racionalizao e dos movimentos sociaisna delimitao do horizonte intelectual dos pioneiros e dos fundadores da Sociologiase fizeram sentir em dois planos distintos. No plano terico, elas levaram convico, muito anterior confirmao de tal estado de esprito pelos resultadosdas investigaes sociolgicas, de que as regularidades de coexistncia e desucesso, que permitem entender e explicar a Ordem dos fenmenos nasmanifesta es da vida social, no possuem uma natureza rgida e mecnica. certo que tal ordem foi descrita como algo que exclui tanto os influxos da

    providncia, quanto o arbtrio de indivduos ou de grupos de indivduos. Mas, issono impedia que se procurasse c onhecer os processos sociais com o intuito decolocar ao alcance da atividade humana meios eficazes de interveno nascondies de existncia social. Estava -se na grande era do pensamento inventivo edo humanitarismo. Conservadores, liberais ou socialistas, todos se interessavam

    pelas descobertas das cincias e por suas aplicaes nas indstrias, nos serviospblicos e nas relaes humanas. Da a construo de elaboraes interpretativasque perseguiam dois fins: 1 ) o de descrever a ordem social como um sistemadotado de organizao estrutura l e funcional prpria, cuja alterao interna seprocessaria atrav s da operao de mecanismos inerentes organizao dosistema; 2 ) o de descobrir as condies dentro das quais a atividade humana

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    poderia tirar determinados proveitos da plasticidade relativa da ordem social,

    mediante o aproveitamento dos conhecimentos fornecidos pela anlise dos referidosmecanismos de mudana do sistema social.

    No pl ano prtico, os ideais de racionalizao concorreram para alimentar aaspirao de inventar tcnicas de manipulao ou de controle das situaes deexistncia social, modeladas segundo os padres do conhecimento posi tivo-racional. Em incentivos dessa espcie repousam, desde o incio, as preocupaessociolgicas sobre as possibilidades e as funes do planejamento no mundomoderno. As impulses coletivas imanentes aos movimentos sociais eram, por su avez, demasiado poderosas para serem subestimadas no pensamento sociolgico.

    Por isso, as acomodaes intelectuais se revelam antes na inclinao a aumentarou a diminuir o intervalo ideal nas relaes da teoria com a prtica, que na negaode sua existncia e importncia. Os que pretendiam aproveitar os conhecimentossociolgicos em manipulaes conservadoras ou reformistas, a exemplo de Malthusou de Comte, respectivamente, julgavam indispensvel a escolha de intervalos maisou men os considerveis. Os que aspirav am colocar aqueles conhecimentos aservio da revoluo social, ao contrrio, tendiam a recomendar um intervalomnimo, a exemplo de Proudhon ou de Marx, com amplas perspec-

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    tivas para o mtuo aprofundamento da teoria a da prtica. Do porto de vistaformal, o resultado seria o mesmo: o n ascimento de uma concepo de cinciaaplicada e da significao construtiva da prtica para a teoria que no encontravasmile nem fundamento nas cincias naturais.

    Quanto natureza dos motivos e das ambies intelectuais, inerentes sprimeiras tentativas de explicar a vida humana em sociedade de forma objetiva: eles

    eram antes fi losficos, que cientficos. Para definir as coisas com maior preciso:eles provinham de uma filosofia plenamente imbuda das descobertas, dascatego rias de pensamento e do valor cincia. O que se costuma chamar decincias sociais, com referncia aos Enciclopedistas, ou de Sociologia, em face deautores como Comt e, Stuart Mill ou Spencer, , propriamente falando, uma Filosofiada Ao Humana compreendendo reflexes que se aplicam a caracteres ouatributos universais da natureza humana e indagaes em q ue essa natureza explicada atravs de elem entos vari ve is das condies d e existncia social. O que

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    importa, em conjunto, so o encadeamen to e a direo que tais - reflexes eindagaes acabaram tomando.

    O encadeamento se revela na fragmentao da Filosofia da Ao Humana,

    desdobrada em trs nveis diferentes de considerao da realidade. Ela seapresenta como uma Filosofia da Histria, quando procura associar o presente aopassado e descobrir as 'leis do desenvolvimento do esprito humano. E la se tornauma Filosofia Social, quando pretende evidenciar as funes civilizadoras" da vidaem sociedade, estabelecendo as primeiras vinculaes dinmicas, de sentidouniversal, da natureza humana com as situaes de convivncia social; e quando sevolta para a questo social, de cuja anlise retira o carter de Filosofia das

    condies atuais de existncia humana e do seu dev ir. El a assume as proporesde uma Filosofia Poltica, quando liga, por meio da anlise e da crtica do s sistemaspolticos modernos, os resultados dos tipos de reflexo e de indagaes filosficas,

    a que poderiam c onduzir a Filosofia da Histria e a Filosofia Social. V-se, portanto, que a Filosofia da Ao Humana era coroada por uma

    Filosofia P oltica, em cuja base estavam uma Filosofia da Histria e uma FilosofiaSocial. Em virtude mesmo de semelhantes vinc ulaes, o pensamento filosficomoderno se encaminhou da reflexo abstrata para a indagao emprica e para aanlise indutiva. acumulao de dados e sua manipulao intelectual seimpunham tanto nas elaboraes da Filosofia da Histria e da Filosofia Social,quanto nas contribuies da Filosofia Poltica. O exemplo de Comte, nico pensadorem que as trs disciplinas filosficas se fundem, construtivamente, demonstra que a

    Filosofia Po ltica, alm de aproveitar os resultados das outras duas, precisavaresolver problemas empricos especficos, nascidos do exame das origens sociaisou da significao ideolgica e pragmtica dos sistemas polticos coexistentes emluta pelo poder. Tais tend ncias para a anlise emprica e indutiva sublinham quoprofundas foram as transformaes de direo, sofridas pelo pensamento filosficomoderno, sob o impacto dos ideais de conhecimento cientifico.

    Portanto, os mveis e as ambies intelectuais, que der am sentido eorientaram as investigaes pioneiras no campo da Sociologia, possuam naturezafilosfica, ainda que esta fosse corrigida e ampliada pelas influncias dopensamento cientfico. A rigor, durante a primeira metade do sculo XIX no existeuma S ociologia propriamente cientfica, mas uma Filosofia da Ao Humana.

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    Mesmo em poca mais recente, as tentativas de Spencer, de Schaffle, de Lilienfeld,de Gumplowiez, de Greef ou de Worms, de construir a Sociologia como um sistema

    logicamente completo de conhecimentos, sob a inspirao ou no do Organ ismo,

    17s contriburam para per petuar as concepes pr -cientf icas de trabalho,

    herdadas da Filosofia da Ao Humana. Isso no implica, porm, em que secondene e rejeite, por filosfica, a Sociologia do sculo XIX. A constituio daSociologia, como disciplina cientifica, seria inconcebvel se aqueles motivos eambies intelectuais, de natureza filosfica, no tivessem inspirado e dirigido asmodernas indagaes sobre a natureza humana e suas relaes com as cond ies

    de existncia social. Em dois pontos essa verificao incontestvel. Primeiro, naquilo que se tem

    descrito como sendo a revoluo copernicana, que proporcionou o advento dascincias sociais: a transio do ponto de vista normativo para o ponto de vistapositivo, na interpretao dos fenmenos sociais. certo que essa transio foicondicionada e impulsionada pela secularizao dos modos de conceber e deexplicar o mundo nas sociedades modernas. No que concerne explicao da

    natu reza humana e de suas relaes com as situaes sociais de ex istncia,contudo, ela se processou, intelectualme nte, pela transformao da antigaMetafsica em Filosofia da Ao Humana. E foi no seio desta que surgiu e sedesenvolveu a tendncia a co nsiderar as situa es sociais de existncia atravs deinstncias empricas, pelo recurso anlise indutiva e com um srio esforo paraconter influncias perceptveis dos sentimentos, de idias preconcebidas ou devalorizaes etnocntricas nas atividades cognitivas.

    Segu ndo, a natureza humana s poderi a ser conhecida e interpretadasociologicamente como parte de um sistema de relaes com sentido, pois ocomportamento dos seres humanos, individual ou coletivamente, regulado pornormas, valores e in stituies sociais. Em consequncia , a observ ao, a descrioe a interpretao da vida social humana exigiam categorias de pensamentoespeciais, que no podiam ser tomadas ao conhecimento fsico do mundo exterior,voltado para um sistema de relaes, destitudas de sentido. Comte apreendeu oproblema com genialidade, ao reconhecer que cabia Sociologia lidar comconceitos nos quais os limites de abstrao do geral seriam condicionados pela

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    extrema complexidade dos fenmenos sociais. Isso equivalia a admi tir, em termosdiferentes, o princpio segundo o qual os conceitos e a explicao cientfica dasatividades sociais humanas so delimitados, f ormalmente, pelo universo emprico de

    sentido a que se referem (Dilthey). Portanto, evidente que, sem os recu rsosccnceptuais legados pela Filosofia da Ao Humana, a Sociologia estaria privada decategorias de pensamento plenam ente adequadas realidade social.

    Esses dois pontos esclarecem uma questo fundamental: a Filosofia da AoHumana no serviu, apenas, de veculo introduo do esprito cientfico no estudoda vida social humana. Ela prpria representa uma fase construtiva dodesenvolvimento da Sociologia. Suas limitaes e inconsistncias acabaram, c om

    tempo, por entravar o progresso cientfico das investigaes sociolgicas, por causada importncia que se chegou a atribuir a problemas sem significao tericaprecisa ou da negligncia do valor da pesquisa emprica sistemtica. Entretanto,

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    seriam pressentidas to depressa as limitaes dessa espcie, se ascontribuies filosficas dos pioneiros e fundadores da Sociologia no tivessemconcorrido para a formao de ideais de trabalho verdadeiros e consistentes? Aalterao inevitvel do clima de produo intelectual e das preocupaes centraisdos investigadores no deve prejudicar o reconhecimento desse fato essencial.

    Feito esse rpido balano, conviria indagar em que consistiam os resultadosa que chegara a referida Sociologia Filosfica. Na caracterizao do ob jeto daSociologia: a) formalmente, ela continua a ter grande atualidade; b) materialmente,

    ela se tornou o bsoleta. Isso fcil de entender -se. que a caracterizao formal doobjeto da Sociologia era, no fundo, um problema lgico. Sua nica implicaoessencial dizia respeito determinao do elemento inconfundvel e invarivel doponto de vista sociolgico. Um problema d essa espcie podia ser resolvido

    independentemente do acmulo de conhecimento emprico-indutivos e de fato o foipela evidncia de que as manifestaes da vida social possuem uma ordem prpria, cuja estabilidade , diferenciao e integrao se produzem atravs de processossociais. A caracterizao material do objeto da Sociologia encontrava, porm, sriasdificuldades. De um lado, por causa da escassez de conhecimentos sociolgicospositivos sobre um nmero suficientemente variado e extenso de situaespossveis de exist ncia social . De outro, em virtude da tendncia a confinar os

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    problemas substantivos da anlise sociolgica s sociedades europias modernasou a fazer delas o fulcro do pensamento sociolgico. Em tais circunstncias, no de estranhar o recurso a analogias, que permitiam dividir o campo da Sociologia de

    acordo com paradigmas tomados a outras cincias. A terminol ogia representa uma esfera do pensamento cientfico cujo

    progresso lento. A o progresso acompanha e reflete o grau de rigor atingido naformula o dos problemas a serem investigados e na verificao dos resultados daspesquisas. Por isso, se foi aprecivel o nmero e a qualidade de conceitos legados

    pela Sociologia " Filosfica, muitos dos quais se conservam at hoje com a mesmasignificao, dela no resultaram, influxos construtivos: a) seja no sentido da

    preciso terminolgica; b) seja no da escolha de critrios para a seleo e aor denao sistemtica de conceitos sociolgicos de interesse heurstico. Almdisso, os poucos princpios que contribuam para a unificao dos conceitossociolgicos correspondiam a necessidades lgicas do pensamento filosfico. Issos contribua para divorciar a crtica dos conceitos do carter instrumental que elespossuem e para aumentar as confuses nascidas do caos terminolgico.

    Na elaborao dos recu rs os de natureza cientfica, destinados observao,descrio e interpretao da realidade, as solues conseguidas tambm seinscreviam antes na rbita do pensamento filosfico, que na do conhecimentocient fico. convico de que o princpio da uniformidade do mundo exterior seapl ica aos fenmenos sociais humanos e de que estes esto submetidos, portanto,a uma ordem social, dou a rpido progresso na assimilao dos caracteres formaise gerais do conhec imento cientfico pelaSociologia. Essa circunstncia teve enormeimportncia prtica para a criao e a difuso de outras convices n ela fundadas,segundo as quais o ponto de vista sociolgico seria logicamente necessrio ecientificamente legtimo. Mas, no podia suscitar, por si mesma, um estado deesprito que assegurasse condies propcias ao desenvolvimento igualmenterpido da pesquisa emprica sistemtica, rea na qual se forjam e refinam osrecursos da investigao cientfica.

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    Em conseqncia, no esboo mais completo de uma teoria da investigaosociolgica, que o de Comte, so parcas e, s vezes, at negativas ascontribuies referentes s tcnicas e aos mtodos de pesquisa, sem que suceda

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    algo m elhor com as sugestes concernentes s tcnicas e aos mtodos deinterpretao, recomendados para as tarefas de construo e de comprovao dasinferncias indutivas. Neste particular, admissvel que a formao da inferncia

    indutiva por meio da anlise racional (segundo a expresso de Cournot), chegaraa alcanar relativa consistncia e acentuou o desenvolvimento da Sociologia comocincia nomottica. O mesmo no se pode dizer, entretanto, da tendncia combinao de instncias empricas discretas ou incompatveis na construo deinferncias indutivas, do hbito a dispensar as evidncias empricas dasgeneralizaes e do abuso da induo por analogia. Aqui se acham os piores traosda Sociologia Filosfica" do sculo XIX e as principais fontes de deforma o da

    mentalidade cientfica, que operavam dentro dela. No plano da teoria, preciso distinguir duas ordens de alvos naquela

    Sociologia Filosfica: 1) os que se definiam formalmente, como consequncia danatureza da Sociologia como cincia nomottica; 2) os que se colocavam nainvestigao de situaes histrico -sociais de existncia humana. Muito se temescrito a respeito das inconsistncias do primeiro tipo de alvos. Resumindo-se osargumentos, constata- se: a) as explicaes sociolgicas insistiam, com parcialidade,na influncia dinmica de determinados fatores, escolhidos pelo sujeito-investigadorcomo "fatores determinantes ou como fatores dominantes (como nas diversasmodalidades de determinismo geogrfico, econmico, racial,etc., que tiveramimportncia na Sociologia); b) a anlise da diferenciao social se fazia sobmo deles inadequados, conduzindo representao da evoluo social como umprocesso linear, contnuo e invarivel; c) as pretenses a constituir a Sociol ogiacomo cincia nomottica levaram ao exagero a preocupao pela descoberta eformulao de leis sociolgicas gerais, destitudas de qualquer significaoempirico-indutiv a. Essas crticas omitem o essencial, que a ausncia de umacompreenso positiva e consistente do papel da teoria na investigao cientfica. Osegundo tipo de alvos mais afim com as modernas preocupaes de pesquisaemprica sistemtica. Como eles se misturam, com frequ ncia, s preocupaesreferidas nos itens a) e b), acabaram sendo negligenciados peta maioria dos

    especialistas. Todavia, eles exerceram uma influncia construtiva. De um lado,porque orientaram a anlise sociolgica para pequenas massas de dadoshomogneos (como nos estudos histrico -sociolgicos de Proudhon, de von Stein,

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    de Marx, e mesmo em trechos de tentativas mais ambiciosas de anlisecomparativa, como as empreendidas por Malthus, por Comte ou por Spencer). De

    outro, porque demonstraram, desde logo, que havia uma contradio entre os

    modelos de explicao tomados das cincias naturais e as possibilidades dageneralizao nas investigaes sociolgicas. Da a convico, que toma alento ecresc e continuamente durante o sculo XIX, de que a Sociologia lida com sistemasdescontnuos, sendo a validade das leis sociolgicas relativa ao modo deconsiderar os tipos sociais investigados.

    O verdadeiro crculo vicioso que se estabeleceu nas relaes mtuas dateoria com a pesquisa, na Sociologia, lana suas razes mais profundas nessas

    duas orientaes tericas do pensamento sociolgico no sculo XIX. Uma delasafastava

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    a reflexo terica da pesquisa emprica sistemtica, A outra, confinava apesquisa emprica sistemtica a alvos tericos em que no se evidenciava, comtoda a pre ciso e clareza, o carter nomottico da explicao sociolgica. Bemponderadas as coisas, entretanto, verifica-se que semelh ante crculo vicioso no

    um produto especfico da Sociologia Filosfica do sculo XIX. Ele parece ser,acima de tudo, a expresso das contingncias da investigao cientfica em umadisciplina que se v compelida a criar instrumentos de trabalho adequados ao objetomais complicado e difcil, a que a cincia jamais se propusera: a natureza e asformas da existncia humana em sociedade.

    Por fim, em um ponto a Sociologia Filosfica parece ser inconfundivelmenterica: na esfera das ref lexes prticas. Aqui, onde no revelam empobrecimento crescente, os desenvolvimento posteriores da Sociologia man tm ntimaconti nuidade com as tendncias sociolgicas do scu lo XIX. A que se devem tais "progressos? Pelo que se sabe, muito mais aos influxos construtivos do pensamento

    filosfico e da conscincia racional dos objetivos dos movimentos sociais, que aosresultados diretos da investigao sociolgica dos problemas sociais. O fato de nose ter descoberto, na poca, uma soluo satisfatria para a sistematizao dostemas da Sociologia Aplicada demonstra que essa interpretao verdadeira. Omximo que se conseguiu, em tal direo, aparece na idia (atualmente inaceitvel),de que existem fenmenos sociais patolgicos, objeto de estudo da patologia

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    social, considerada como disciplina sociolgica. Portanto, inclusive na esfera emque se mostrou mais fecunda e criadora, a Sociologia Filosfica no disps derecursos metodolgicos e tericos que facilitassem a superao das dificuldades

    essenciais, com que se defrontou.Com base nos resultados da presente digresso, legtimo concluir que a

    Sociologia recebeu uma herana intelectual co mparvel a uma faca de dois gume s.De um lado, ela era bastante rica e plstica para encaminhar e permitir a soluo demuitas questes fundamentais, ligadas com a caracterizao do ponto de vistasociolgico, com a definio do objeto da Sociologia, com a seleo e oaproveitamento de categorias de pensamento adequadas natureza dos

    fenmenos soc iais huma nos, com a explorao de critrios de anlise aplicveis descrio e interpretao dos processos sociais, com os alvos prticos inerentesaos conhecimentos sociolgicos ou decorrentes das funes da cincia no mundo

    moderno. Mas, de outro, ela se revelou pobre e obstrutiva. Escaparam-lhe os

    objetives que do sentido especfico investigao cientfica e, com eles, asignificao e a importncia da pesquisa emprica sistemtica, tanto para odesenvolvimento do aparato con ceptual e metodolgico da Sociologia, quanto parao progresso da teoria e das indagaes de interesse prtico. Foi neste plano que oshbitos e as ambies int elec tuais, procedentes do pensamento filosfico, ou doconhecimento do senso comum, se mostraram mais ou menos inco nciliveis com astarefas impostas pela pesquisa cientifica. Em consequncia, a evoluo posterior daSociologia, em direo s normas e aos fins da investigao cientfica, teve que seprocessar, em grande parte , contra a herana intelectual por ela recebida.