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18 3. Publicado como "Introducti on" em A bbot Suger on the Abbey Church of St.-Denis and /ts Art Treasures, Princeton, Princeton University Press, 1946, pp. 1-37. 4. Publicado (em colaboraçã0 com F. Saxl) como "A Late-Antique Religious Symbol in Works by Holbein and Titian" em Burlington Maggazine, XLIX, 1926, pp. 177-81. Ver também Hercules am Scheidewege und andere antike Bildstoffe in der neueren Kunst (Studien der Bibliothek War- burg, XVII!), Leipzig e Berlim, B. G. Teubner, 1930, pp. 1-35. 5. Publicado como "Das erste Blatt aus dem 'Libro' Giorgio Vasaris; eine Studie über der Beurteilung der Gotik in der italienischen Renaissance mit einem Exkurs über zwei Fassadenprojekte Dome- nicc Beccafumis" em Stiidel-lahrbuch, VI, 1930, pp. 25-72. 6. Publicado como "Dürers Stellung zur Antike" em lahrbuch für Kunstgeschíchte, I, 1921 /2 2, pp. 43-92. 7. Publicado como "Et in Arcadia ego: On the Con- ception of Transience in Poussin and Watteau" em Phílosophy and History, Essays Presented to Ernst Cassirer, R. Klibansky & H. J. Paton, eds., Oxford, Clarendon Press, 1936, pp. 223-54. EPíLOGO, publicado como "The History of Art" em The Cultural Migration: The European Scholar in America, W. R. Crawford, ed., Filadélfia, Uni- versity of Pennsylvania Press, 1953, pp. 82-111. Abreviaturas B: A. Bartsch, Le Peintre-graveur, Viena, 1803-1821. L: F. Lippmann, Zeichnungen von Albrecht Dürer in Nachbildungen, Berlim, 1883-1929 (v. VI e VII, F. Winkler, ed.). INTRODUÇAO: A HISTORIA DA ARTE COMO UMA DISCIPLINA HUMANISTICA I Nove dias antes de sua morte, Emmanuel Kant recebeu a visita de seu médico. Velho, doente e quase cego, levantou-se da cadeira e ficou em pé, tremendo de fraqueza e murmurando palavras ininteligíveis. Fi- nalmente, seu fiel acompanhante compreendeu que ele não se sentaria antes que sua visita o fizesse. Este assim fez e só então Kant deixou-se levar para sua cadeira e, depois de recobrar um pouco as forças, disse : "Das Gefühl für Humanitat, hat mich noch nicht verlassen" - "O senso de humanidade ainda 19

A História Da Arte Como Disciplina

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Page 1: A História Da Arte Como Disciplina

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3 Publicado como Introduction em A bbot Suger on the Abbey Church of St-Denis and ts Art Treasures Princeton Princeton University Press 1946 pp 1-37

4 Publicado (em colaboraccedilatilde0 com F Saxl) como A Late-Antique Religious Symbol in Works by Holbein and Titian em Burlington Maggazine XLIX 1926 pp 177-81 Ver tambeacutem Hercules am Scheidewege und andere antike Bildstoffe in der neueren Kunst (Studien der Bibliothek Warshyburg XVII) Leipzig e Berlim B G Teubner 1930 pp 1-35

5 Publicado como Das erste Blatt aus dem Libro Giorgio Vasaris eine Studie uumlber der Beurteilung der Gotik in der italienischen Renaissance mit einem Exkurs uumlber zwei Fassadenprojekte Domeshynicc Beccafumis em Stiidel-lahrbuch VI 1930 pp 25-72

6 Publicado como Duumlrers Stellung zur Antike em lahrbuch fuumlr Kunstgeschiacutechte I 1921 22 pp 43-92

7 Publicado como Et in Arcadia ego On the Conshyception of Transience in Poussin and Watteau em Phiacutelosophy and History Essays Presented to Ernst Cassirer R Klibansky amp H J Paton eds Oxford Clarendon Press 1936 pp 223-54

EPiacuteLOGO publicado como The History of Art em The Cultural Migration The European Scholar in America W R Crawford ed Filadeacutelfia Unishyversity of Pennsylvania Press 1953 pp 82-111

Abreviaturas

B A Bartsch Le Peintre-graveur Viena 1803-1821

L F Lippmann Zeichnungen von Albrecht Duumlrer in Nachbildungen Berlim 1883-1929 (v VI e VII F Winkler ed)

INTRODUCcedilAO A HISTORIA DA ARTE COMO UMA DISCIPLINA HUMANISTICA

I

Nove dias antes de sua morte Emmanuel Kant recebeu a visita de seu meacutedico Velho doente e quase cego levantou-se da cadeira e ficou em peacute tremendo de fraqueza e murmurando palavras ininteligiacuteveis Fishynalmente seu fiel acompanhante compreendeu que ele natildeo se sentaria antes que sua visita o fizesse Este assim fez e soacute entatildeo Kant deixou-se levar para sua cadeira e depois de recobrar um pouco as forccedilas disse Das Gefuumlhl fuumlr Humanitat hat mich noch nicht verlassen - O senso de humanidade ainda

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natildeo me deixou 1 Os dois homens comoveram-se ateacute agraves laacutegrimas Pois embora a palavra Humanitat apreshysentasse no seacuteculo XVIII um significado quase igual a polidez ou civilidade tinha para Kant uma signishyficaccedilatildeo muito mais profunda que as circunstacircncias do momento serviram para enfatizar a traacutegica e orgulhosa consciecircncia no homem de princiacutepios por ele mesmo aprovados e auto-impostos contrastando com sua total sujeiccedilatildeo agrave doenccedila agrave decadecircncia e a tudo o que implica o termo mortalidade

Historicamente a palavra humanitas tem tido dois significados claramente distinguiacuteveis o primeiro oriunshydo do contraste entre o homem e o que eacute menos que este o segundo entre o homem e o que eacute mais que ele No primeira caso humanitas significa um valor no segundo uma limitaccedilatildeo

O conceito de humanitas como valor foi formushylado dentro do ciacuterculo que rodeava Cipiatildeo o Moccedilo sendo Ciacutecero seu tardio poreacutem mais expliacutecito defenshysor Significava a qualidade que distingue o homem natildeo apenas dos animais mas tambeacutem e tanto mais daquele que pertence agrave espeacutecie Homo sem merecer o nome de Homo humanus do baacuterbaro ou do indiviacuteduo vulgar que natildeo tem pietas e ~d - ou seja resshypeito pelos valores morais e aquela graciosa mistura de erudiccedilatildeo e urbanidade que s6 podemos circunscreshyver com a palavra jaacute muito desacreditada cultura

Na Idade Meacutedia este conceito foi substituiacutedo pela ideacuteia de humanidade como algo oposto agrave divindade mais do que agrave animalidade ou barbarismo As qualishydades mais comumente associadas a ela eram portanto as da fragilidade e transitoriedade humanitas fragilis humanitas caduca

Assim a concepccedilatildeo renascentista de humanitas tinha um aspecto duplo desde o princiacutepio O novo interesse no ser humano baseava-se tanto numa renoshyvaccedilatildeo da antiacutetese claacutessica entre humanitas e barbaritas ou feritas quanto na apariccedilatildeo da antiacutetese medieval

1 WASIANSKI E A c Immanuel Kant in seinen letzten Lebensjahren (Ueber Immanuel Kant 1804 v III) Reeditado em lmmanuel Kant Sein Leben in Darstellungen von Zeitgeshynossen Berllm Deutsche Blbllotek 1912 p 298

entre humanitas e divinitas Quando Marsiacutelio Ficino define o homem como uma alma racional particishypando do intelecto de Deus mas operando num corshypo define-o como o uacutenico ser que eacute ao mesmo tempo autocircnomo e finito E o famoso discurso de Pico Sobre a dignidade do homem eacute tudo menos um documento do paganismo Pico diz que Deus colocou o homem no centro do universo para que pudesse ter consciecircncia de seu lugar e assim ter liberdade para deshycidir aonde ir Natildeo afirma que o homem eacute o centro do universo nem mesmo no sentido comushymente atribuiacutedo agrave frase claacutessica o homem eacute a medida de todas as coisas

f dessa concepccedilatildeo ambivalente de humanitas que o humanismo nasceu Natildeo eacute tanto um movimento coshymo uma atitude que pode ser definida como a conshyvicccedilatildeo da dignidade do homem basead~ ao mesmo tempo na insistecircncia sobre os valores humanos (rashycionalidade e liberdade) e na aceitaccedilatildeo das limitaccedilotildees humanas (falibilidade e fragilidade) daiacute resultam dois postulados responsabilidade e toleracircncia

Natildeo eacute de admirar que essa atitude tenha sido atacada de dois campos opostos cuja aversatildeo comum aos ideais de responsabilidade e toleracircncia os alinhou recentemente numa frente unida Entrincheirados num desses campos encontram-se aqueles que negam os valores humanos os deterministas quer acreditem na predestinaccedilatildeo divina fiacutesica ou social os partidaacuterios do autoritarismo e os inset6Iatras que pregam a suma importacircncia da colmeia denomine-se ela grupo classe naccedilatildeo ou raccedila No outro campo encontram-se aqueles que negam as limitaccedilotildees humanas em favor de uma espeacutecie de libertinismo intelectual ou poliacutetico como os estetas vitalistas intuicionistas e veneradores de heroacuteis Do ponto de vista do determinismo o humanista eacute ou uma alma penada ou um ideoacutelogo Do ponto de vista do autoritarismo ou eacute um hereacutetico ou um revolucionaacuterio (ou um contra-revolucionaacuterio) Do ponto de vista da insetolatria eacute um individuashylista inuacutetil E do ponto de vista do libertinismo um burguecircs tiacutemido

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Erasmo de Roterdatilde o humanista par excellence eacute um caso tiacutepico A Igreja suspeitava e em uacuteltima anaacutelise rejeitava os escritos desse homem que dissera Talvez o espiacuterito de Cristo esteja muito mais difunshydido do que pensamos e haja muitos na comunidade dos santos que natildeo faccedilam parte de nosso calendaacuterio O aventureiro Ulrich von Hutten desprezava seu cetishycismo irocircnico e o caraacuteter nada heroacuteico de seu amor pela tranquumlilidade E Lutero que insistia em afirmar que nenhum homem tem poder para pensar algo de bom ou mau mas tudo lhe ocorre por absoluta necessishydade era incensado por uma crenccedila que se manifestou na frase famosa De que serve o homem como totashylidade [isto eacute o homem dotado com corpo e alma] se Deus trabalhasse nele como o escultor trabalha a argila e pudesse do mesmo modo trabalhar a pedra 2

II

O humanista portanto rejeita a autoridade mas respeita a tradiccedilatildeo Natildeo apenas a respeita mas a vecirc como algo real e objetivo que eacute preciso estudar e se necessano reintegrar nos vetera instauramus nova non prodimus com9 diz Erasmo

A Idade Meacutedia aceitou e desenvolveu mais do que estudou e restaurou a heranccedila do passado Copiou as obras de arte claacutessicas e usou Aristoacuteteles e Oviacutedio do mesmo modo que copiou e usou as obras dos conshytemporacircneos Natildeo fez nenhuma tentativa de interpreshytaacute-Ias de um ponto de vista arqueoloacutegico filosoacutefico ou criacutetico em suma de um ponto de vista histoacuterico

2 Para as citaccedilotildees de Lu tero e Erasmo de Roterdatilde ver a excelente monografia Humanitas Erasmiana de R PFEIFFER Studien der Bibliotek Warburg XXII 1931 1 significativo que Erasmo e Lutero tenham rejeitado a astronomia judicial ou tataUstica por razotildees totalmente diferentes Erasmo recusavashy-se a acreditar que o destino humano dependesse dos movishymentos inalteraacuteveis dos corpos celestes porque tal crenccedila imporshytaria na negaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio e responsabilidade humanos Lutero porque redundaria numa restriccedilatildeo da onipotecircncia de Deus Lutero portanto acreditava na significaccedilatildeo dos terata tais como bezerros de oito patas etc que Deus poderia fazer aparecer a InteIValos Irregulares

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Isso porque se era rossiacutevel considerar a existecircncia humana como um meio mais do que um fim tanto menos poderiam os registros da atividade humana ser considerados como valores em si mesmos 3

No escolasticismo medieval natildeo haacute portanto nenhuma distinccedilatildeo baacutesica entre ciecircncia natural e o que chamamos de humanidades studia humaniora para citar de novo uma frase erasmiana O exerciacutecio de ambas na medida em que era desenvolvido em geral permaneceu no quadro do que era chamado de filoshysofia Do prisma humaniacutestico entretanto tornou-se razoaacutevel e ateacute inevitaacutevel distinguir dentro do campo da criaccedilatildeo entre a esfera da natureza e a esfera da cultura e definir a primeira com referecircncia agrave uacuteltima i eacute natureza como a totalidade do mundo acessiacutevel aos sentidos excetuando-se os registras deixados pelo homem

O homem eacute na verdade o uacutenico animal que deixa registros atraacutes de si pois eacute o uacutenico animal cujos proshydutos chamam agrave mente uma ideacuteia que se distingue da existecircncia material destes Outros animais empreshygam signos e ideacuteiam estruturas mas usam signos sem perceber a relaccedilatildeo da significaccedilatildeo 4 e ideacuteiam estrushyturas sem perceber a relaccedilatildeo da construccedilatildeo

3 Alguns historiadores parecem incapazes de reconhecer continuidades e distinccedilotildees ao mesmo tempo 1 inegaacutevel que o humanismo e todo o movimento renascentista natildeo surgiram de repente como Atenaacute da cabeccedila de Zeus Mas o fato de Lupus de Ferriecircres ter emendado textos claacutessicos de Hildebert de Lavardin ter um sentimen to profundo pelas ruinas romanas dos eruditos ingleses e franceses do seacuteculo XII terem revivido a filosofia e mitologia claacutessicas e de Marbod de Rennes ter escrito um belo poema pastoral sobre sua provincia natal natildeo significa que sua perspectiva fosse idecircntica agrave de Petrarca sem falarmos de Erasmo ou Ficino Nenhum homem do medievo poderia ver a civilizaccedilatildeo da Antiguumlidade como um fenocircmeno completo em si mesmo e historicamente desligado do mundo de sua eacutepoca tanto quanto sei o latim medieval natildeo possui equivalente para o termo humanista antiquitas ou sClCrosancta vetustas E assim como era impossivel para a Idade Meacutedia elaborar um sistema de perspectivas baseado na percepccedilatildeo de uma distacircncia f ixa entre o olho e o objeto ta mbeacutem era imprashyticaacutevel para essa eacutepoca desenvolver uma concepccedilatildeo de discishyplinas histoacutericas baseada na percepccedilatildeo de uma distacirc ncia fixa entre o p resente e o passado middotclaacutessico Ver E PANOFSKY e F SAXL Classical Mythology in Mediaeval Art em Studi es of the Metropolit an Museum IV 2 1933 p 228 e ss sobretudo a p 263 e ss e recen temente o interessante artigo de W S HECKSCHER Relics of Pagan Antiqulty ln Mediaeval Settings Journal 01 the Warburg I n stitute I 1937 p 204 e ss

4 Ver J MARITAIN Slgn and Symbol Journal of the Warshyburg Institute I p 1 e ss

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Perceber a relaccedilatildeo da significaccedilatildeo eacute separar a ideacuteia do conceito a ser expresso dos meios de expresshysatildeo E perceber a relaccedilatildeo de construccedilatildeo eacute separar a ideacuteia da funccedilatildeo a ser cumprida dos meios de cumshypri-Ia Um cachorro anuncia a aproximaccedilatildeo de um estranho por um latido diferente daquele que emite para dar a conhecer que qeseja sair Mas natildeo utilizaraacute este latido particular para veicular a ideacuteia de que um estranho apareceu durante a ausecircncia do dono da casa E muito menos iraacute um animal mesmo se estivesse do ponto de vista fiacutesico apto a tanto como os macacos indubitavelmente o estatildeo tentar alguma vez representar algo numa pintura Os castores controem diques Mas satildeo incapazes ao que sabemos de separarem as comshyplicadiacutessimas accedilotildees envolvidas neste trabalho a partir de um plano premeditado que poderia ser posto em desenho em vez de materializado em troncos e pedras

Os signos e estruturas do homem satildeo registros porque ou antes na medida em que expressam ideacuteias separadas dos no entanto realizadas pelos processos de assinalamento e construccedilatildeo Estes registros tecircm porshytanto a qualidade de emergir da corrente do tempo e eacute precisamente neste sentido que satildeo estudados pelo humanista Este eacute fundamentalmente um historiador

Tambeacutem o cientista trabalha com registros hushymanos sobretudo com as obras de seus predecessores Mas ele os trata natildeo como algo a ser investigado e sim como algo que o ajuda na investigaccedilatildeo Noutras palavras interessa-se pelos registros natildeo agrave medida que emergem da corrente do tempo mas agrave medida que satildeo absorvidos por ela Se um cientista moderno ler Newton ou Leonardo da Vinci no original ele o faz natildeo como cientista mas como homem interessado na histoacuteria da ciecircncia e portanto na civilizaccedilatildeo humana em geral Em outros termos ele o faz como humanista para quem as obras de Newton e Leonardo da Vinci possuem um significado autocircnomo e um valor durashydouro Do ponto de vista humaniacutestico os registros humanos natildeo envelhecem

Assim enquanto a ciecircncia tenta transformar a caoacutetica variedade dos fenocircmenos naturais no que se poderia chamar de cosmo da natureza as humanidades

tentam transformar a caoacutetica variedade dos registros humanos no que se poderia chamar de cosmo da cultura

Haacute apesar de todas essas diferenccedilas de temas e procedimento analogias extraordinaacuterias entre os proshyblemas metoacutedicos que o cientista de um lado e o humanista de outro precisam enfrentar 5

Em ambos os casos o processo de pesquisa pashyrece comeccedilar com a observaccedilatildeo Mas quer o obsershyvador de um fenocircmeno natural quer o examinador de um registro natildeo ficam soacute circunscritos aos limites do alcance de sua visatildeo e ao material disponiacutevel ao dirishygir a atenccedilatildeo a certos objetos obedecem conscienteshymente ou natildeo a um princiacutepio de seleccedilatildeo preacutevia ditado por uma teoria no caso do cientista e por um conceito geral de histoacuteria no do humanista Talvez seja vershydade que nada estaacute na mente a natildeo ser o que estava nos sentidos mas eacute pelo menos igualmente verdashydeiro que muita coisa estaacute nos sentidos sem nunca penetrar na mente Somos afetados principalmente por aquilo que permitimos que nos afete e assim como a ciecircncia natural involuntariamente seleciona aquilo que chama de fenocircmeno as humanidades seleshycionam involuntariamente o que chamam de fatos histoacutericos Desse modo as humanidades alargaram gradualmente seu cosmo cultural e em certa medida deslocaram o centro de seus interesses Mesmo aquele que instintivamente simpatiza com a definiccedilatildeo simshyplista de humanidades como latim e grego e consishydera essa definiccedilatildeo como essencialmente vaacutelida desde que usemos ideacuteias e expressotildees como por exemplo ideacuteia e expressatildeo - mesmo tal pessoa precisa admitir que ela se tornou um pouco estreita demais

Aleacutem do mais o mundo das humanidades eacute detershyminado por uma teoria cultural da relatividade comshyparaacutevel agrave dos fiacutesicos e visto que o mundo da cultura eacute bem menor que o da natureza a relatividade cultural

5 Ver E WIND Das Experiment und dte Metapnllstk Tuumlblnshygen 1934 e idem Some Polnts of Contact between Htstory and Natural Sclence Phtlosophll and HtBtOfJl Essalls Presented to Ernst CasstTer Oxford 1936 p 255 e ss (com uma discussatildeo multo Instrutiva sobre o relacionamento entre os fenOcircmenos os Instrumentos e o observador de um lado e os fatos histoacutericos os documentos e o historiador de outro)

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prevalece no acircmbito das dimensotildees terrestres e foi observada muito antes

Todo conceito histoacuterico baseia-se obviamente nas categorias do espaccedilo e tempo Os registros e tudo o que implicam tecircm que ser localizados e datashydos Mas acontece que esses dois atos satildeo na realishydade dois aspectos de uma e mesma coisa Se eu disser que uma pintura data de cerca de 1400 essa afirmaccedilatildeo natildeo teria o miacutenimo sentido ou importacircncia a menos que pudesse indicar tambeacutem onde foi produshyzida nessa data inversamente se eu atribuir uma pinshytura agrave escola florentina preciso ser capaz de dizer quando foi produzida por essa escola O cosmo da cultura como o cosmo da natureza eacute uma estrutura espaccedilo-temporal O ano de 1400 em Florenccedila eacute totalshymente diferente do ano de 1400 em Veneza para natildeo falarmos de Augsburgo Ruacutessia ou Constantinopla Dois fenocircmenos histoacutericos satildeo simultacircneos ou apresenshytam uma relaccedilatildeo temporal entre si apenas na medida em que eacute possiacutevel relacionaacute-los dentro de um quadro de referecircncia sem o qual o proacuteprio conceito de sishymultaneidade natildeo teria sentido na histoacuteria assim como na fiacutesica Se soubeacutessemos por uma certa concateshynaccedilatildeo de circunstacircncias que uma dada escultura negra foi executada em 1510 natildeo teria sentido dizer que se trata de uma obra contemporacircnea ao teto da Capela Sistina de Michelangelo 6

Concluindo a sucessatildeo de passos pelos quais o material eacute organizado em cosmo natural ou cultural eacute anaacuteloga e o mesmo eacute verdade com respeito aos problemas metodoloacutegicos que esse processo implica O primeiro passo eacute como jaacute foi mencionado a observashyccedilatildeo dos fenocircmenos naturais e o exame dos registros humanos A seguir cumpre descodificar os registros e interpretaacute-los assim como as mensagens da natushyreza recebidas pelo observador Por fi m os resulshytados precisam ser classificados e coordenados num sistema coerente que faccedila sentido

Agora jaacute vimos que mesmo a seleccedilatildeo do material para observaccedilatildeo e exame eacute predeterminada ateacute certo

6 Ver eg E PANOFSKY Ueber dle Reihen folge der vier Meister von Reims (Apecircn dice) em Jahrbuch fuumlr K unstw issensshychatt II 1927 p 77 e S5

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ponto por uma teoria ou por uma concepccedilatildeo histoacuterica geneacuterica Isso eacute ainda mais evidente dentro do proacuteprio processo onde cada passo rumo ao sistema que faccedila sentido pressupotildee os precedentes e os subsequumlentes

Quando o cientista observa um fenocircmeno usa instrumentos que se acham por seu turno sujeitos agraves leis da natureza que pretende explorar Quando um humanista examina um registro usa documentos que satildeo por sua vez produzidos no decurso do processo que pretende investigar

Suponhamos que eu descubra nos arquivos de uma cidadezinha do vale do Reno um contrato dashytado de 1471 e complementado pelos registros de pagamento segundo os quais o pintor local Johannes qui et Frost recebeu a incumbecircncia de executar para a Igreja de St James dessa cidade um retaacutebulo com a Natividade ao centro e Satildeo Pedro e Satildeo Paulo um de cada lado suponhamos ainda mais que eu encontre na Igreja de St James um retaacutebulo corresshypondendo a esse contrato Este seria o caso em que a documentaccedilatildeo eacute tatildeo boa e simples quanto se poderia querer encontrar men~or e mais simples do que se precisaacutessemos lidar com uma fonte indireta como uma carta uma descriccedilatildeo numa cronica biografia diaacuterio ou poema No entanto ainda assim muitos problemas se apresentariam

O documento pode ser um original uma coacutepia ou uma falsificaccedilatildeo Se for uma coacutepia pode ser deshyfeituosa e mesmo se for um original eacute possiacutevel que algumas das informaccedilotildees sejam incorretas O retaacutebulo por sua vez pode ser aquele aludido no contrato mas eacute possiacutevel tambeacutem que o monumento original tenha sido destruiacutedo durante os distuacuterbios iconoclaacutesticos de 1535 e substituiacutedo por outro retaacutebulo pintado com os mesmos temas mas executado por volta de 1550 por um pintor de Antueacuterpia

Para chegar a um certo grau de certeza teriacuteamos de conferir o documento com outros de data e orishygem similar e o retaacutebulo com outras pinturas executashydas no vale do Reno por volta de 1470 Mas aqui surgem duas dificuldades

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Primeiro conferir eacute obviamente impossiacutevel sem sabermos o que conferir cumpriria escolher certos aspectos ou criteacuterios como certas formas de escrita ou alguns termos teacutecnicos usados no contrato ou alguma peculiaridade formal ou iconograacutefica do retaacutebulo Mas jaacute que natildeo podemos analisar o que natildeo compreendemos nosso exame pressupotildee descodifishycaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo

Segundo o material com o qual aferimos nosso problemaacutetico caso natildeo se apresenta em si mais aushytenticado do que o caso em questatildeo Tomacircdo indivishydualmente qualquer outro monumento assinado e dashytado eacute tatildeo duvidoso quanto o encomendado a Johanshynes qui et Frost em 1471 (e por si mesmo evidente que uma assinatura aposta num quadro pode ser e muitas vezes eacute tatildeo discutiacutevel quanto um documento a ele relacionado) Apenas com base em todo um grupo ou classe de dados eacute que podemos decidir se nosso retaacutebulo foi do ponto de vista estiliacutestico e icoshynograacutefico possiacutevel no vale do Reno por volta de 1470 Mas a classificaccedilatildeo pressupotildee eacute oacutebvio a ideacuteia de um todo ao qual as classes pertencem - em outras palavras a concepccedilatildeo histoacuterica geral que tentamos edishyficar a partir dos nossos casos individuais

De qualquer lado que se olhe o comeccedilo de nossa investigaccedilatildeo parece sempre pressupor seu fim e os documentos que deveriam explicar os monumentos satildeo tatildeo enigmaacuteticos quanto os proacuteprios monumentos e bem possiacutevel que um termo teacutecnico do nosso contrato seja um ~ampa~ Agrave-yOacuteiHOV tatildeo-somente explicaacutevel por este determinado retaacutebulo e o que um artista diz a respeito de suas obras deve sempre ser interpretado agrave luz das proacuteprias obras Estamos aparentemente num ciacuterculo vicioso Na realidade eacute o que os filoacutesofos chamam de situaccedilatildeo orgacircnica 7 Duas pernas sem um corpo natildeo podem andar e um corpo sem as pernas tampouco poreacutem um homem anda e verdade que os monumentos e documentos individuais soacute podem ser examinados interpretados e classificados agrave luz de um conceito histoacuterico geral ao mesmo tempo que soacute se pode erigir esse conceito histoacuterico geral com base

7 Devo esse tenno ao Professor T M Greene

em monumentos e documentos individuais do mesmo modo a compreensatildeo dos fenocircmenos naturais e o emshyprego dos instrumentos cientiacuteficos dependem de uma teoria fiacutesica generalizada e vice-versa Essa situaccedilatildeo no entanto natildeo eacute de jeito algum um beco sem saiacuteda Cada descoberta de um fato histoacuterico desconhecido e toda nova interpretaccedilatildeo de um jaacute conhecido ou se encaixaraacute na concepccedilatildeo geral predominante enrishyquecendo-a e corroborando-a por esse meio ou entatildeo acarretaraacute uma sutil ou ateacute fundamental mudanccedila na concepccedilatildeo geral predominante lanccedilando assim novas luzes sobre tudo o que era conhecido antes Em ambos os casos o sistema que faz sentido opera como um organismo coerente poreacutem elaacutestico comshyparaacutevel a um animal vivo quando contraposto a seus membros individuais e o que eacute verdade nas relaccedilotildees entre monumentos documentos e um conceito histoacuteshyrico geral nas humanidades eacute igualmente verdadeiro nas relaccedilotildees entre fenocircmenos instrumentos e teoria nas ciecircncias naturais

III

Referi-me ao retaacutebulo de 1471 como monumenshyto e ao contrato como documento ou seja consideshyrei o retaacutebulo como o objeto da investigaccedilatildeo ou material primaacuterio e o contrato como um instrumento de investigaccedilatildeo ou material secundaacuterio Assim proshycedendo falei como um historiador de arte Para um paleoacutegrafo ou um historiador das leis o contrato seria o monumento ou material primaacuterio e ambos poshyderiam usar quadros para documentaccedilatildeo

A menos que um estudioso se interesse exclusivashymente pelo que eacute chamado de eventos (nesse caso consideraria todos os registros existentes como mateshyrial secundaacuterio por meio do qual poderia reconstruir os eventos) os monumentos de uns satildeo os doshycumentos de outros e vice-versa No trabalho praacuteshytico somos mesmo compelidos a anexar monumenshytos que de direito pertencem a nossos colegas Muitas obras de arte tecircm sido interpretadas por filoacuteshylogos ou por historiadores de medicina e muitos textos

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tecircm sido interpretados e soacute o poderiam ser por hisshytoriadores de arte

Um historiador de arte portanto eacute um humanista cujo material primaacuterio consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte Mas o que eacute uma obra de arte

Nem sempre a obra de arte eacute criada com o proshypoacutesito exclusivo de ser apreciada ou para usar uma expressatildeo mais acadecircmica de ser experimentada esteshyticamente A afirmaccedilatildeo de Poussin de que la fin de lart est la deacutelectation era inteiramente revolucioshynaacuteria 8 na eacutepoca pois escritores mais antigos sempre insistiam em que a arte por mais agradaacutevel que fosse tambeacutem era de algum modo uacutetil Mas a obra de arte tem sempre significaccedilatildeo esteacutetica (natildeo confundir com valor esteacutetico) quer sirva ou natildeo a um fim praacutetico e quer seja boa ou maacute o tipo de experiecircncia que ela requer eacute sempre esteacutetico

Pode-se experimentar esteticamente todo objeto seja ele natural ou feito pelo homem f o que fazeshymos para expressar isso da maneira mais simples quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem relashycionaacute-lo intelectual ou emocionalmente com nada fora do objeto mesmo Quando um homem observa uma aacutervore do ponto de vista de um carpinteiro ele a associaraacute aos vaacuterios empregos que poderaacute dar agrave mashydeira quando a olha como um ornitoacutelogo haacute de assoshyciaacute-la com as aves que aiacute poderatildeo fazer seu ninho Quando um homem numa corrida de cavalos acomshypanha com o olhar a montaria na qual apostou assoshyciaraacute o desempenho desta com seu proacuteprio desejo de que ela venccedila o paacutereo Soacute aquele que se abandona

8 A BLuNT Poussins Notes on Painting Journat of the WaTbuTg Institute I 1937 p 344 e SS diz (p 349) que a afirmashyccedilatildeo de Poussin La fin de l art est la deacutelectation era de certo modo medieval pois a teorta da delectatio como slmbolo ou sinal pelo qual a beleza eacute reconhecida eacute a chave de toda a esteacutetica de Satildeo Boaventura e eacute bem posslvel que Poussin tenha tirado dai provavelmente atraveacutes de uma versatildeo populashyrizada sua defin iccedilatildeo En tretanto mesmo se o teor da frase de Poussin (oi influenciado por uma fonte medieval haacute uma grande diferenccedila entre a afirmaccedilatildeo de que delectatio eacute uma qualidade caTacteristica de tudo o que eacute belo quer seja natural ou feito pelo hom em e a assertiva de que delectato eacute o fim (meta) (fin) da arte

simples e totalmente ao objeto de sua percepccedilatildeo poshyderaacute experimentaacute-lo esteticamente 9

Ora quando nos defrontamos com um objeto natural a decisatildeo de experimentaacute-lo ou natildeo esteticashymente eacute questatildeo exclusivamente pessoal Um objeto feIto pelo homem entretanto exige ou natildeo para ser experimentado desse modo pois tem o que os estudiosos chamam de intenccedilatildeo Se eu decidisse como bem poderia fazer experimentar esteticamente a luz vermelha de um semaacuteforo em vez de associaacute-la agrave ideacuteia de pisar nos freios agiria contra a intenccedilatildeo da luz de traacutefego

Os objetos feitos pelo homem que natildeo exigem a experiecircncia esteacutetica satildeo comumente chamados de praacuteticos e podem dividir-se em duas categorias veiacuteshyculos de comunicaccedilatildeo e ferramentas ou aparelhos O veiacuteculo ou meio de comunicaccedilatildeo obedece ao intuito de transmitir um conceito A ferramenta ou aparelho obedece ao intuito de preencher uma funccedilatildeo (funccedilatildeo essa que por sua vez pode ser a de produzir e transshymitir comunicaccedilotildees como eacute o caso da maacutequina de escrever ou da luz do semaacuteforo acima mencionada)

A maioria dos objetos que exigem experiecircncia esteacutetica ou seja obras de arte tambeacutem pertencem a essas duas categorias Um poema ou uma pintura hisshytoacuterica satildeo em certo sentido veiacuteculos de comunicaccedilatildeo o Panteatildeo e os casticcedilais de Milatildeo satildeo em certo sentidoo

aparelhos e os tuacutemulos de Lorenzo e Giuliano de Mediei esculpidos por Michelangelo satildeo em certo sentido ambas as coisas Mas tenho que dizer num certo sentido pois haacute essa diferenccedila no caso do que se pode chamar de um mero veiacuteculo de comunishycaccedilatildeo ou um mero aparelho a intenccedilatildeo acha-se definitivamente fixada na ideacuteia da obra ou seja na mensagem a ser transmitida ou na funccedilatildeo a ser preenshychida No caso de uma obra de arte o interesse na

9 Ver M GEIGER Beltrlige zur Phlinomenologle des aestheshytlschen Genusses em Jah1buch Uuml1 Philosophie I Parte 2 1922 p 567 e ss Tambeacutem E WIND Aesthetische1 und kunstwissensshychaftliche1 Gegenstand Dlss phil Hamburgo 1923 reeditado em parte como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme Zeit5ch1ift fuuml1 Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 438 e 55

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~deacuteia eacute equilibrado e pode ateacute ser eclipsado por um mteresse na forma

Entretanto o elemento forma estaacute presente em todo objeto sem exceccedilatildeo pois todo objeto consiste de mateacuteria e forma e natildeo haacute maneira de se determinar com precisatildeo cientiacutefica em que medida num caso dado esse elemento da forma eacute o que recebe a ecircnfase Portanto natildeo se pode e natildeo se deve tentar definir o momento preciso em que o veiacuteculo de comunicaccedilatildeo ou aparelho comeccedila a ser obra de arte Se escrevo a um amigo convidando-Q para jantar minha carta eacute em primeiro lugar uma comunicaccedilatildeo Poreacutem quanto mais eu deslocar a ecircnfase para a forma do meu escrito tanto mais ele se tornaraacute uma obra de caligrafia e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem (poderia ateacute chegar a convidaacute-lo por meio de um soneto) mais a carta se converteraacute em uma obra de literatura ou poesia

Assim a esfera em que o campo dos objetos praacuteticos termina e o da arte comeccedila depende da intenccedilatildeo de seus criadores Essa intenccedilatildeo natildeo pode ser absolutamente determinada Em primeiro lugar eacute impossiacutevel definir as intenccedilotildees per se com precisatildeo cientiacutefica Em segundo as intenccedilotildees dashyqueles que produzem os objetos satildeo condicionadas pelos padrotildees da eacutepoca e meio ambiente em que vivem O gosto claacutessico exigia que cartas particulares disshycursos legais e escudos de heroacuteis fossem artiacutesticos (resultando possivelmente no que se poderia denoshyminar falsa beleza) enquanto que o gosto moderno exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam funcionais (resultando possivelmente no que poderia ser chashymado de falsa eficiecircncia) 10 Enfim nossa avaliaccedilatildeo

10 Funcionalismo significa num sentido estrito natildeo a Introduccedilatildeo de um novo principio esteacutetico mas uma delimitaccedilatildeo ainda maior do campo da esteacutetica Ao preferlnnos o moderno ~apacete ~e accedilo ao escudD de Aquilts ou achannos que a Intenccedilatildeo de um dISCUrso legal deverIa estar definitivamente e~ocadQ no tema e natildeo deveria ser deslocado para a fonna ( maIs mateacuteria e menos arte como diz corretamente a Rainha Gertrudes) exigimos apenas que armas e discursos legais natildeo sejam tratados como obras de arte quer dizer esteticamente mas como objetos praacuteticos Leacute tecnicamente Entretanto passhysou-se a conceber o funcionalismo como um postulado em lugar de um Interdito As civilizaccedilotildees claacutessica e renascentista na crenccedila de Que uma coisa meramente uacutetil natildeo podia se~ bela (non pui) essere bellezza e utlllU como declara Leoshy

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dessas intenccedilotildees eacute inevitavelmente influenciada por nossa proacutepria atitude que por sua vez depende de nossas experiecircncias individuais bem como de nossa situaccedilatildeo histoacuterica Vimos todos com nossos proacuteprios olhos os utensiacutelios e fetiches das tribos africanas serem transferidos dos museus de etnologia para as exposishyccedilotildees de arte

Uma coisa entretanto eacute certa quanto mais a proporccedilatildeo de ecircnfase na ideacuteia e forma se aproxima de um estado de equiliacutebrio mais eloquumlentemente a obra revelaraacute o que se chama conteuacutedo Conteuacutedo em oposiccedilatildeo a tema pode ser descrito nas palavras de Peirce como aquilo que a obra denuncia mas natildeo ostenta g a atitude baacutesica de uma naccedilatildeo periacuteodo classe crenccedila filosoacutefica ou religiosa - tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra g oacutebvio que essa revelaccedilatildeo involuntaacuteria seraacute empanada na medida em que um desses dois elementos ideacuteia ou forma for voluntashyriamente enfatizado ou suprimido A maacutequina de fiar talvez seja a mais impressionante manifestaccedilatildeo de uma ideacuteia funcional e uma pintura abstrata talvez seja a mais expressiva manifestaccedilatildeo de forma pura mas ambas tecircm um miacutenimo de conteuacutedo

IV

Ao definir uma obra de arte como um objeto feito pelo homem que pede para ser experimentado

nardo da Vinci ver J P RIClITZR The Litna1l Work8 01 Leonardo da Vinci Londres 1883 n 1445) caracterizam-se pela tendecircncia para estender a atitude esteacutetica a criaccedilotildees que satildeo naturalmente praacuteticas noacutes estendemos a atitude teacutecnica is criaccedilotildees que satildeo naturalmente artisticas Isso tambeacutem eacute uma Infraccedilatildeo e no caso do aerodinacircmico a arte teve sua desshyforra Aerodinacircmica era originalmente um genulno principio funcional baseado nos resultados clentiflcos de pesquiSas sobre a resistecircncia do ar Seu campo legitimo era portanto a aacuterea dos velculos de alta velocidade e das estruturas expostas a pressotildees de vento de extraordinaacuteria intensidade Mas quando esse dispositivo especial e verdadeiramente teacutecnico passou a ser Interpretado como um principio geral e esteacutetico expressando o Ideal de eficiecircncia do seacuteculo XX (aerodlnamlze-se) e foi aplicado a poltronas e coquetelelras sentiu-se que o aerodlnashymismo cientifico original precisava ser embelezado e foi finalmente retransferldo para seu devido lugar numa forma totalmente natildeo-funcionaI Como resultado hoje temos menos casas e moblllas funclonalizadas por engenheiros que carros e trens desfunclonallzados por projettstas

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 2: A História Da Arte Como Disciplina

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natildeo me deixou 1 Os dois homens comoveram-se ateacute agraves laacutegrimas Pois embora a palavra Humanitat apreshysentasse no seacuteculo XVIII um significado quase igual a polidez ou civilidade tinha para Kant uma signishyficaccedilatildeo muito mais profunda que as circunstacircncias do momento serviram para enfatizar a traacutegica e orgulhosa consciecircncia no homem de princiacutepios por ele mesmo aprovados e auto-impostos contrastando com sua total sujeiccedilatildeo agrave doenccedila agrave decadecircncia e a tudo o que implica o termo mortalidade

Historicamente a palavra humanitas tem tido dois significados claramente distinguiacuteveis o primeiro oriunshydo do contraste entre o homem e o que eacute menos que este o segundo entre o homem e o que eacute mais que ele No primeira caso humanitas significa um valor no segundo uma limitaccedilatildeo

O conceito de humanitas como valor foi formushylado dentro do ciacuterculo que rodeava Cipiatildeo o Moccedilo sendo Ciacutecero seu tardio poreacutem mais expliacutecito defenshysor Significava a qualidade que distingue o homem natildeo apenas dos animais mas tambeacutem e tanto mais daquele que pertence agrave espeacutecie Homo sem merecer o nome de Homo humanus do baacuterbaro ou do indiviacuteduo vulgar que natildeo tem pietas e ~d - ou seja resshypeito pelos valores morais e aquela graciosa mistura de erudiccedilatildeo e urbanidade que s6 podemos circunscreshyver com a palavra jaacute muito desacreditada cultura

Na Idade Meacutedia este conceito foi substituiacutedo pela ideacuteia de humanidade como algo oposto agrave divindade mais do que agrave animalidade ou barbarismo As qualishydades mais comumente associadas a ela eram portanto as da fragilidade e transitoriedade humanitas fragilis humanitas caduca

Assim a concepccedilatildeo renascentista de humanitas tinha um aspecto duplo desde o princiacutepio O novo interesse no ser humano baseava-se tanto numa renoshyvaccedilatildeo da antiacutetese claacutessica entre humanitas e barbaritas ou feritas quanto na apariccedilatildeo da antiacutetese medieval

1 WASIANSKI E A c Immanuel Kant in seinen letzten Lebensjahren (Ueber Immanuel Kant 1804 v III) Reeditado em lmmanuel Kant Sein Leben in Darstellungen von Zeitgeshynossen Berllm Deutsche Blbllotek 1912 p 298

entre humanitas e divinitas Quando Marsiacutelio Ficino define o homem como uma alma racional particishypando do intelecto de Deus mas operando num corshypo define-o como o uacutenico ser que eacute ao mesmo tempo autocircnomo e finito E o famoso discurso de Pico Sobre a dignidade do homem eacute tudo menos um documento do paganismo Pico diz que Deus colocou o homem no centro do universo para que pudesse ter consciecircncia de seu lugar e assim ter liberdade para deshycidir aonde ir Natildeo afirma que o homem eacute o centro do universo nem mesmo no sentido comushymente atribuiacutedo agrave frase claacutessica o homem eacute a medida de todas as coisas

f dessa concepccedilatildeo ambivalente de humanitas que o humanismo nasceu Natildeo eacute tanto um movimento coshymo uma atitude que pode ser definida como a conshyvicccedilatildeo da dignidade do homem basead~ ao mesmo tempo na insistecircncia sobre os valores humanos (rashycionalidade e liberdade) e na aceitaccedilatildeo das limitaccedilotildees humanas (falibilidade e fragilidade) daiacute resultam dois postulados responsabilidade e toleracircncia

Natildeo eacute de admirar que essa atitude tenha sido atacada de dois campos opostos cuja aversatildeo comum aos ideais de responsabilidade e toleracircncia os alinhou recentemente numa frente unida Entrincheirados num desses campos encontram-se aqueles que negam os valores humanos os deterministas quer acreditem na predestinaccedilatildeo divina fiacutesica ou social os partidaacuterios do autoritarismo e os inset6Iatras que pregam a suma importacircncia da colmeia denomine-se ela grupo classe naccedilatildeo ou raccedila No outro campo encontram-se aqueles que negam as limitaccedilotildees humanas em favor de uma espeacutecie de libertinismo intelectual ou poliacutetico como os estetas vitalistas intuicionistas e veneradores de heroacuteis Do ponto de vista do determinismo o humanista eacute ou uma alma penada ou um ideoacutelogo Do ponto de vista do autoritarismo ou eacute um hereacutetico ou um revolucionaacuterio (ou um contra-revolucionaacuterio) Do ponto de vista da insetolatria eacute um individuashylista inuacutetil E do ponto de vista do libertinismo um burguecircs tiacutemido

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Erasmo de Roterdatilde o humanista par excellence eacute um caso tiacutepico A Igreja suspeitava e em uacuteltima anaacutelise rejeitava os escritos desse homem que dissera Talvez o espiacuterito de Cristo esteja muito mais difunshydido do que pensamos e haja muitos na comunidade dos santos que natildeo faccedilam parte de nosso calendaacuterio O aventureiro Ulrich von Hutten desprezava seu cetishycismo irocircnico e o caraacuteter nada heroacuteico de seu amor pela tranquumlilidade E Lutero que insistia em afirmar que nenhum homem tem poder para pensar algo de bom ou mau mas tudo lhe ocorre por absoluta necessishydade era incensado por uma crenccedila que se manifestou na frase famosa De que serve o homem como totashylidade [isto eacute o homem dotado com corpo e alma] se Deus trabalhasse nele como o escultor trabalha a argila e pudesse do mesmo modo trabalhar a pedra 2

II

O humanista portanto rejeita a autoridade mas respeita a tradiccedilatildeo Natildeo apenas a respeita mas a vecirc como algo real e objetivo que eacute preciso estudar e se necessano reintegrar nos vetera instauramus nova non prodimus com9 diz Erasmo

A Idade Meacutedia aceitou e desenvolveu mais do que estudou e restaurou a heranccedila do passado Copiou as obras de arte claacutessicas e usou Aristoacuteteles e Oviacutedio do mesmo modo que copiou e usou as obras dos conshytemporacircneos Natildeo fez nenhuma tentativa de interpreshytaacute-Ias de um ponto de vista arqueoloacutegico filosoacutefico ou criacutetico em suma de um ponto de vista histoacuterico

2 Para as citaccedilotildees de Lu tero e Erasmo de Roterdatilde ver a excelente monografia Humanitas Erasmiana de R PFEIFFER Studien der Bibliotek Warburg XXII 1931 1 significativo que Erasmo e Lutero tenham rejeitado a astronomia judicial ou tataUstica por razotildees totalmente diferentes Erasmo recusavashy-se a acreditar que o destino humano dependesse dos movishymentos inalteraacuteveis dos corpos celestes porque tal crenccedila imporshytaria na negaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio e responsabilidade humanos Lutero porque redundaria numa restriccedilatildeo da onipotecircncia de Deus Lutero portanto acreditava na significaccedilatildeo dos terata tais como bezerros de oito patas etc que Deus poderia fazer aparecer a InteIValos Irregulares

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Isso porque se era rossiacutevel considerar a existecircncia humana como um meio mais do que um fim tanto menos poderiam os registros da atividade humana ser considerados como valores em si mesmos 3

No escolasticismo medieval natildeo haacute portanto nenhuma distinccedilatildeo baacutesica entre ciecircncia natural e o que chamamos de humanidades studia humaniora para citar de novo uma frase erasmiana O exerciacutecio de ambas na medida em que era desenvolvido em geral permaneceu no quadro do que era chamado de filoshysofia Do prisma humaniacutestico entretanto tornou-se razoaacutevel e ateacute inevitaacutevel distinguir dentro do campo da criaccedilatildeo entre a esfera da natureza e a esfera da cultura e definir a primeira com referecircncia agrave uacuteltima i eacute natureza como a totalidade do mundo acessiacutevel aos sentidos excetuando-se os registras deixados pelo homem

O homem eacute na verdade o uacutenico animal que deixa registros atraacutes de si pois eacute o uacutenico animal cujos proshydutos chamam agrave mente uma ideacuteia que se distingue da existecircncia material destes Outros animais empreshygam signos e ideacuteiam estruturas mas usam signos sem perceber a relaccedilatildeo da significaccedilatildeo 4 e ideacuteiam estrushyturas sem perceber a relaccedilatildeo da construccedilatildeo

3 Alguns historiadores parecem incapazes de reconhecer continuidades e distinccedilotildees ao mesmo tempo 1 inegaacutevel que o humanismo e todo o movimento renascentista natildeo surgiram de repente como Atenaacute da cabeccedila de Zeus Mas o fato de Lupus de Ferriecircres ter emendado textos claacutessicos de Hildebert de Lavardin ter um sentimen to profundo pelas ruinas romanas dos eruditos ingleses e franceses do seacuteculo XII terem revivido a filosofia e mitologia claacutessicas e de Marbod de Rennes ter escrito um belo poema pastoral sobre sua provincia natal natildeo significa que sua perspectiva fosse idecircntica agrave de Petrarca sem falarmos de Erasmo ou Ficino Nenhum homem do medievo poderia ver a civilizaccedilatildeo da Antiguumlidade como um fenocircmeno completo em si mesmo e historicamente desligado do mundo de sua eacutepoca tanto quanto sei o latim medieval natildeo possui equivalente para o termo humanista antiquitas ou sClCrosancta vetustas E assim como era impossivel para a Idade Meacutedia elaborar um sistema de perspectivas baseado na percepccedilatildeo de uma distacircncia f ixa entre o olho e o objeto ta mbeacutem era imprashyticaacutevel para essa eacutepoca desenvolver uma concepccedilatildeo de discishyplinas histoacutericas baseada na percepccedilatildeo de uma distacirc ncia fixa entre o p resente e o passado middotclaacutessico Ver E PANOFSKY e F SAXL Classical Mythology in Mediaeval Art em Studi es of the Metropolit an Museum IV 2 1933 p 228 e ss sobretudo a p 263 e ss e recen temente o interessante artigo de W S HECKSCHER Relics of Pagan Antiqulty ln Mediaeval Settings Journal 01 the Warburg I n stitute I 1937 p 204 e ss

4 Ver J MARITAIN Slgn and Symbol Journal of the Warshyburg Institute I p 1 e ss

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Perceber a relaccedilatildeo da significaccedilatildeo eacute separar a ideacuteia do conceito a ser expresso dos meios de expresshysatildeo E perceber a relaccedilatildeo de construccedilatildeo eacute separar a ideacuteia da funccedilatildeo a ser cumprida dos meios de cumshypri-Ia Um cachorro anuncia a aproximaccedilatildeo de um estranho por um latido diferente daquele que emite para dar a conhecer que qeseja sair Mas natildeo utilizaraacute este latido particular para veicular a ideacuteia de que um estranho apareceu durante a ausecircncia do dono da casa E muito menos iraacute um animal mesmo se estivesse do ponto de vista fiacutesico apto a tanto como os macacos indubitavelmente o estatildeo tentar alguma vez representar algo numa pintura Os castores controem diques Mas satildeo incapazes ao que sabemos de separarem as comshyplicadiacutessimas accedilotildees envolvidas neste trabalho a partir de um plano premeditado que poderia ser posto em desenho em vez de materializado em troncos e pedras

Os signos e estruturas do homem satildeo registros porque ou antes na medida em que expressam ideacuteias separadas dos no entanto realizadas pelos processos de assinalamento e construccedilatildeo Estes registros tecircm porshytanto a qualidade de emergir da corrente do tempo e eacute precisamente neste sentido que satildeo estudados pelo humanista Este eacute fundamentalmente um historiador

Tambeacutem o cientista trabalha com registros hushymanos sobretudo com as obras de seus predecessores Mas ele os trata natildeo como algo a ser investigado e sim como algo que o ajuda na investigaccedilatildeo Noutras palavras interessa-se pelos registros natildeo agrave medida que emergem da corrente do tempo mas agrave medida que satildeo absorvidos por ela Se um cientista moderno ler Newton ou Leonardo da Vinci no original ele o faz natildeo como cientista mas como homem interessado na histoacuteria da ciecircncia e portanto na civilizaccedilatildeo humana em geral Em outros termos ele o faz como humanista para quem as obras de Newton e Leonardo da Vinci possuem um significado autocircnomo e um valor durashydouro Do ponto de vista humaniacutestico os registros humanos natildeo envelhecem

Assim enquanto a ciecircncia tenta transformar a caoacutetica variedade dos fenocircmenos naturais no que se poderia chamar de cosmo da natureza as humanidades

tentam transformar a caoacutetica variedade dos registros humanos no que se poderia chamar de cosmo da cultura

Haacute apesar de todas essas diferenccedilas de temas e procedimento analogias extraordinaacuterias entre os proshyblemas metoacutedicos que o cientista de um lado e o humanista de outro precisam enfrentar 5

Em ambos os casos o processo de pesquisa pashyrece comeccedilar com a observaccedilatildeo Mas quer o obsershyvador de um fenocircmeno natural quer o examinador de um registro natildeo ficam soacute circunscritos aos limites do alcance de sua visatildeo e ao material disponiacutevel ao dirishygir a atenccedilatildeo a certos objetos obedecem conscienteshymente ou natildeo a um princiacutepio de seleccedilatildeo preacutevia ditado por uma teoria no caso do cientista e por um conceito geral de histoacuteria no do humanista Talvez seja vershydade que nada estaacute na mente a natildeo ser o que estava nos sentidos mas eacute pelo menos igualmente verdashydeiro que muita coisa estaacute nos sentidos sem nunca penetrar na mente Somos afetados principalmente por aquilo que permitimos que nos afete e assim como a ciecircncia natural involuntariamente seleciona aquilo que chama de fenocircmeno as humanidades seleshycionam involuntariamente o que chamam de fatos histoacutericos Desse modo as humanidades alargaram gradualmente seu cosmo cultural e em certa medida deslocaram o centro de seus interesses Mesmo aquele que instintivamente simpatiza com a definiccedilatildeo simshyplista de humanidades como latim e grego e consishydera essa definiccedilatildeo como essencialmente vaacutelida desde que usemos ideacuteias e expressotildees como por exemplo ideacuteia e expressatildeo - mesmo tal pessoa precisa admitir que ela se tornou um pouco estreita demais

Aleacutem do mais o mundo das humanidades eacute detershyminado por uma teoria cultural da relatividade comshyparaacutevel agrave dos fiacutesicos e visto que o mundo da cultura eacute bem menor que o da natureza a relatividade cultural

5 Ver E WIND Das Experiment und dte Metapnllstk Tuumlblnshygen 1934 e idem Some Polnts of Contact between Htstory and Natural Sclence Phtlosophll and HtBtOfJl Essalls Presented to Ernst CasstTer Oxford 1936 p 255 e ss (com uma discussatildeo multo Instrutiva sobre o relacionamento entre os fenOcircmenos os Instrumentos e o observador de um lado e os fatos histoacutericos os documentos e o historiador de outro)

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prevalece no acircmbito das dimensotildees terrestres e foi observada muito antes

Todo conceito histoacuterico baseia-se obviamente nas categorias do espaccedilo e tempo Os registros e tudo o que implicam tecircm que ser localizados e datashydos Mas acontece que esses dois atos satildeo na realishydade dois aspectos de uma e mesma coisa Se eu disser que uma pintura data de cerca de 1400 essa afirmaccedilatildeo natildeo teria o miacutenimo sentido ou importacircncia a menos que pudesse indicar tambeacutem onde foi produshyzida nessa data inversamente se eu atribuir uma pinshytura agrave escola florentina preciso ser capaz de dizer quando foi produzida por essa escola O cosmo da cultura como o cosmo da natureza eacute uma estrutura espaccedilo-temporal O ano de 1400 em Florenccedila eacute totalshymente diferente do ano de 1400 em Veneza para natildeo falarmos de Augsburgo Ruacutessia ou Constantinopla Dois fenocircmenos histoacutericos satildeo simultacircneos ou apresenshytam uma relaccedilatildeo temporal entre si apenas na medida em que eacute possiacutevel relacionaacute-los dentro de um quadro de referecircncia sem o qual o proacuteprio conceito de sishymultaneidade natildeo teria sentido na histoacuteria assim como na fiacutesica Se soubeacutessemos por uma certa concateshynaccedilatildeo de circunstacircncias que uma dada escultura negra foi executada em 1510 natildeo teria sentido dizer que se trata de uma obra contemporacircnea ao teto da Capela Sistina de Michelangelo 6

Concluindo a sucessatildeo de passos pelos quais o material eacute organizado em cosmo natural ou cultural eacute anaacuteloga e o mesmo eacute verdade com respeito aos problemas metodoloacutegicos que esse processo implica O primeiro passo eacute como jaacute foi mencionado a observashyccedilatildeo dos fenocircmenos naturais e o exame dos registros humanos A seguir cumpre descodificar os registros e interpretaacute-los assim como as mensagens da natushyreza recebidas pelo observador Por fi m os resulshytados precisam ser classificados e coordenados num sistema coerente que faccedila sentido

Agora jaacute vimos que mesmo a seleccedilatildeo do material para observaccedilatildeo e exame eacute predeterminada ateacute certo

6 Ver eg E PANOFSKY Ueber dle Reihen folge der vier Meister von Reims (Apecircn dice) em Jahrbuch fuumlr K unstw issensshychatt II 1927 p 77 e S5

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ponto por uma teoria ou por uma concepccedilatildeo histoacuterica geneacuterica Isso eacute ainda mais evidente dentro do proacuteprio processo onde cada passo rumo ao sistema que faccedila sentido pressupotildee os precedentes e os subsequumlentes

Quando o cientista observa um fenocircmeno usa instrumentos que se acham por seu turno sujeitos agraves leis da natureza que pretende explorar Quando um humanista examina um registro usa documentos que satildeo por sua vez produzidos no decurso do processo que pretende investigar

Suponhamos que eu descubra nos arquivos de uma cidadezinha do vale do Reno um contrato dashytado de 1471 e complementado pelos registros de pagamento segundo os quais o pintor local Johannes qui et Frost recebeu a incumbecircncia de executar para a Igreja de St James dessa cidade um retaacutebulo com a Natividade ao centro e Satildeo Pedro e Satildeo Paulo um de cada lado suponhamos ainda mais que eu encontre na Igreja de St James um retaacutebulo corresshypondendo a esse contrato Este seria o caso em que a documentaccedilatildeo eacute tatildeo boa e simples quanto se poderia querer encontrar men~or e mais simples do que se precisaacutessemos lidar com uma fonte indireta como uma carta uma descriccedilatildeo numa cronica biografia diaacuterio ou poema No entanto ainda assim muitos problemas se apresentariam

O documento pode ser um original uma coacutepia ou uma falsificaccedilatildeo Se for uma coacutepia pode ser deshyfeituosa e mesmo se for um original eacute possiacutevel que algumas das informaccedilotildees sejam incorretas O retaacutebulo por sua vez pode ser aquele aludido no contrato mas eacute possiacutevel tambeacutem que o monumento original tenha sido destruiacutedo durante os distuacuterbios iconoclaacutesticos de 1535 e substituiacutedo por outro retaacutebulo pintado com os mesmos temas mas executado por volta de 1550 por um pintor de Antueacuterpia

Para chegar a um certo grau de certeza teriacuteamos de conferir o documento com outros de data e orishygem similar e o retaacutebulo com outras pinturas executashydas no vale do Reno por volta de 1470 Mas aqui surgem duas dificuldades

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Primeiro conferir eacute obviamente impossiacutevel sem sabermos o que conferir cumpriria escolher certos aspectos ou criteacuterios como certas formas de escrita ou alguns termos teacutecnicos usados no contrato ou alguma peculiaridade formal ou iconograacutefica do retaacutebulo Mas jaacute que natildeo podemos analisar o que natildeo compreendemos nosso exame pressupotildee descodifishycaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo

Segundo o material com o qual aferimos nosso problemaacutetico caso natildeo se apresenta em si mais aushytenticado do que o caso em questatildeo Tomacircdo indivishydualmente qualquer outro monumento assinado e dashytado eacute tatildeo duvidoso quanto o encomendado a Johanshynes qui et Frost em 1471 (e por si mesmo evidente que uma assinatura aposta num quadro pode ser e muitas vezes eacute tatildeo discutiacutevel quanto um documento a ele relacionado) Apenas com base em todo um grupo ou classe de dados eacute que podemos decidir se nosso retaacutebulo foi do ponto de vista estiliacutestico e icoshynograacutefico possiacutevel no vale do Reno por volta de 1470 Mas a classificaccedilatildeo pressupotildee eacute oacutebvio a ideacuteia de um todo ao qual as classes pertencem - em outras palavras a concepccedilatildeo histoacuterica geral que tentamos edishyficar a partir dos nossos casos individuais

De qualquer lado que se olhe o comeccedilo de nossa investigaccedilatildeo parece sempre pressupor seu fim e os documentos que deveriam explicar os monumentos satildeo tatildeo enigmaacuteticos quanto os proacuteprios monumentos e bem possiacutevel que um termo teacutecnico do nosso contrato seja um ~ampa~ Agrave-yOacuteiHOV tatildeo-somente explicaacutevel por este determinado retaacutebulo e o que um artista diz a respeito de suas obras deve sempre ser interpretado agrave luz das proacuteprias obras Estamos aparentemente num ciacuterculo vicioso Na realidade eacute o que os filoacutesofos chamam de situaccedilatildeo orgacircnica 7 Duas pernas sem um corpo natildeo podem andar e um corpo sem as pernas tampouco poreacutem um homem anda e verdade que os monumentos e documentos individuais soacute podem ser examinados interpretados e classificados agrave luz de um conceito histoacuterico geral ao mesmo tempo que soacute se pode erigir esse conceito histoacuterico geral com base

7 Devo esse tenno ao Professor T M Greene

em monumentos e documentos individuais do mesmo modo a compreensatildeo dos fenocircmenos naturais e o emshyprego dos instrumentos cientiacuteficos dependem de uma teoria fiacutesica generalizada e vice-versa Essa situaccedilatildeo no entanto natildeo eacute de jeito algum um beco sem saiacuteda Cada descoberta de um fato histoacuterico desconhecido e toda nova interpretaccedilatildeo de um jaacute conhecido ou se encaixaraacute na concepccedilatildeo geral predominante enrishyquecendo-a e corroborando-a por esse meio ou entatildeo acarretaraacute uma sutil ou ateacute fundamental mudanccedila na concepccedilatildeo geral predominante lanccedilando assim novas luzes sobre tudo o que era conhecido antes Em ambos os casos o sistema que faz sentido opera como um organismo coerente poreacutem elaacutestico comshyparaacutevel a um animal vivo quando contraposto a seus membros individuais e o que eacute verdade nas relaccedilotildees entre monumentos documentos e um conceito histoacuteshyrico geral nas humanidades eacute igualmente verdadeiro nas relaccedilotildees entre fenocircmenos instrumentos e teoria nas ciecircncias naturais

III

Referi-me ao retaacutebulo de 1471 como monumenshyto e ao contrato como documento ou seja consideshyrei o retaacutebulo como o objeto da investigaccedilatildeo ou material primaacuterio e o contrato como um instrumento de investigaccedilatildeo ou material secundaacuterio Assim proshycedendo falei como um historiador de arte Para um paleoacutegrafo ou um historiador das leis o contrato seria o monumento ou material primaacuterio e ambos poshyderiam usar quadros para documentaccedilatildeo

A menos que um estudioso se interesse exclusivashymente pelo que eacute chamado de eventos (nesse caso consideraria todos os registros existentes como mateshyrial secundaacuterio por meio do qual poderia reconstruir os eventos) os monumentos de uns satildeo os doshycumentos de outros e vice-versa No trabalho praacuteshytico somos mesmo compelidos a anexar monumenshytos que de direito pertencem a nossos colegas Muitas obras de arte tecircm sido interpretadas por filoacuteshylogos ou por historiadores de medicina e muitos textos

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tecircm sido interpretados e soacute o poderiam ser por hisshytoriadores de arte

Um historiador de arte portanto eacute um humanista cujo material primaacuterio consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte Mas o que eacute uma obra de arte

Nem sempre a obra de arte eacute criada com o proshypoacutesito exclusivo de ser apreciada ou para usar uma expressatildeo mais acadecircmica de ser experimentada esteshyticamente A afirmaccedilatildeo de Poussin de que la fin de lart est la deacutelectation era inteiramente revolucioshynaacuteria 8 na eacutepoca pois escritores mais antigos sempre insistiam em que a arte por mais agradaacutevel que fosse tambeacutem era de algum modo uacutetil Mas a obra de arte tem sempre significaccedilatildeo esteacutetica (natildeo confundir com valor esteacutetico) quer sirva ou natildeo a um fim praacutetico e quer seja boa ou maacute o tipo de experiecircncia que ela requer eacute sempre esteacutetico

Pode-se experimentar esteticamente todo objeto seja ele natural ou feito pelo homem f o que fazeshymos para expressar isso da maneira mais simples quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem relashycionaacute-lo intelectual ou emocionalmente com nada fora do objeto mesmo Quando um homem observa uma aacutervore do ponto de vista de um carpinteiro ele a associaraacute aos vaacuterios empregos que poderaacute dar agrave mashydeira quando a olha como um ornitoacutelogo haacute de assoshyciaacute-la com as aves que aiacute poderatildeo fazer seu ninho Quando um homem numa corrida de cavalos acomshypanha com o olhar a montaria na qual apostou assoshyciaraacute o desempenho desta com seu proacuteprio desejo de que ela venccedila o paacutereo Soacute aquele que se abandona

8 A BLuNT Poussins Notes on Painting Journat of the WaTbuTg Institute I 1937 p 344 e SS diz (p 349) que a afirmashyccedilatildeo de Poussin La fin de l art est la deacutelectation era de certo modo medieval pois a teorta da delectatio como slmbolo ou sinal pelo qual a beleza eacute reconhecida eacute a chave de toda a esteacutetica de Satildeo Boaventura e eacute bem posslvel que Poussin tenha tirado dai provavelmente atraveacutes de uma versatildeo populashyrizada sua defin iccedilatildeo En tretanto mesmo se o teor da frase de Poussin (oi influenciado por uma fonte medieval haacute uma grande diferenccedila entre a afirmaccedilatildeo de que delectatio eacute uma qualidade caTacteristica de tudo o que eacute belo quer seja natural ou feito pelo hom em e a assertiva de que delectato eacute o fim (meta) (fin) da arte

simples e totalmente ao objeto de sua percepccedilatildeo poshyderaacute experimentaacute-lo esteticamente 9

Ora quando nos defrontamos com um objeto natural a decisatildeo de experimentaacute-lo ou natildeo esteticashymente eacute questatildeo exclusivamente pessoal Um objeto feIto pelo homem entretanto exige ou natildeo para ser experimentado desse modo pois tem o que os estudiosos chamam de intenccedilatildeo Se eu decidisse como bem poderia fazer experimentar esteticamente a luz vermelha de um semaacuteforo em vez de associaacute-la agrave ideacuteia de pisar nos freios agiria contra a intenccedilatildeo da luz de traacutefego

Os objetos feitos pelo homem que natildeo exigem a experiecircncia esteacutetica satildeo comumente chamados de praacuteticos e podem dividir-se em duas categorias veiacuteshyculos de comunicaccedilatildeo e ferramentas ou aparelhos O veiacuteculo ou meio de comunicaccedilatildeo obedece ao intuito de transmitir um conceito A ferramenta ou aparelho obedece ao intuito de preencher uma funccedilatildeo (funccedilatildeo essa que por sua vez pode ser a de produzir e transshymitir comunicaccedilotildees como eacute o caso da maacutequina de escrever ou da luz do semaacuteforo acima mencionada)

A maioria dos objetos que exigem experiecircncia esteacutetica ou seja obras de arte tambeacutem pertencem a essas duas categorias Um poema ou uma pintura hisshytoacuterica satildeo em certo sentido veiacuteculos de comunicaccedilatildeo o Panteatildeo e os casticcedilais de Milatildeo satildeo em certo sentidoo

aparelhos e os tuacutemulos de Lorenzo e Giuliano de Mediei esculpidos por Michelangelo satildeo em certo sentido ambas as coisas Mas tenho que dizer num certo sentido pois haacute essa diferenccedila no caso do que se pode chamar de um mero veiacuteculo de comunishycaccedilatildeo ou um mero aparelho a intenccedilatildeo acha-se definitivamente fixada na ideacuteia da obra ou seja na mensagem a ser transmitida ou na funccedilatildeo a ser preenshychida No caso de uma obra de arte o interesse na

9 Ver M GEIGER Beltrlige zur Phlinomenologle des aestheshytlschen Genusses em Jah1buch Uuml1 Philosophie I Parte 2 1922 p 567 e ss Tambeacutem E WIND Aesthetische1 und kunstwissensshychaftliche1 Gegenstand Dlss phil Hamburgo 1923 reeditado em parte como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme Zeit5ch1ift fuuml1 Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 438 e 55

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~deacuteia eacute equilibrado e pode ateacute ser eclipsado por um mteresse na forma

Entretanto o elemento forma estaacute presente em todo objeto sem exceccedilatildeo pois todo objeto consiste de mateacuteria e forma e natildeo haacute maneira de se determinar com precisatildeo cientiacutefica em que medida num caso dado esse elemento da forma eacute o que recebe a ecircnfase Portanto natildeo se pode e natildeo se deve tentar definir o momento preciso em que o veiacuteculo de comunicaccedilatildeo ou aparelho comeccedila a ser obra de arte Se escrevo a um amigo convidando-Q para jantar minha carta eacute em primeiro lugar uma comunicaccedilatildeo Poreacutem quanto mais eu deslocar a ecircnfase para a forma do meu escrito tanto mais ele se tornaraacute uma obra de caligrafia e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem (poderia ateacute chegar a convidaacute-lo por meio de um soneto) mais a carta se converteraacute em uma obra de literatura ou poesia

Assim a esfera em que o campo dos objetos praacuteticos termina e o da arte comeccedila depende da intenccedilatildeo de seus criadores Essa intenccedilatildeo natildeo pode ser absolutamente determinada Em primeiro lugar eacute impossiacutevel definir as intenccedilotildees per se com precisatildeo cientiacutefica Em segundo as intenccedilotildees dashyqueles que produzem os objetos satildeo condicionadas pelos padrotildees da eacutepoca e meio ambiente em que vivem O gosto claacutessico exigia que cartas particulares disshycursos legais e escudos de heroacuteis fossem artiacutesticos (resultando possivelmente no que se poderia denoshyminar falsa beleza) enquanto que o gosto moderno exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam funcionais (resultando possivelmente no que poderia ser chashymado de falsa eficiecircncia) 10 Enfim nossa avaliaccedilatildeo

10 Funcionalismo significa num sentido estrito natildeo a Introduccedilatildeo de um novo principio esteacutetico mas uma delimitaccedilatildeo ainda maior do campo da esteacutetica Ao preferlnnos o moderno ~apacete ~e accedilo ao escudD de Aquilts ou achannos que a Intenccedilatildeo de um dISCUrso legal deverIa estar definitivamente e~ocadQ no tema e natildeo deveria ser deslocado para a fonna ( maIs mateacuteria e menos arte como diz corretamente a Rainha Gertrudes) exigimos apenas que armas e discursos legais natildeo sejam tratados como obras de arte quer dizer esteticamente mas como objetos praacuteticos Leacute tecnicamente Entretanto passhysou-se a conceber o funcionalismo como um postulado em lugar de um Interdito As civilizaccedilotildees claacutessica e renascentista na crenccedila de Que uma coisa meramente uacutetil natildeo podia se~ bela (non pui) essere bellezza e utlllU como declara Leoshy

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dessas intenccedilotildees eacute inevitavelmente influenciada por nossa proacutepria atitude que por sua vez depende de nossas experiecircncias individuais bem como de nossa situaccedilatildeo histoacuterica Vimos todos com nossos proacuteprios olhos os utensiacutelios e fetiches das tribos africanas serem transferidos dos museus de etnologia para as exposishyccedilotildees de arte

Uma coisa entretanto eacute certa quanto mais a proporccedilatildeo de ecircnfase na ideacuteia e forma se aproxima de um estado de equiliacutebrio mais eloquumlentemente a obra revelaraacute o que se chama conteuacutedo Conteuacutedo em oposiccedilatildeo a tema pode ser descrito nas palavras de Peirce como aquilo que a obra denuncia mas natildeo ostenta g a atitude baacutesica de uma naccedilatildeo periacuteodo classe crenccedila filosoacutefica ou religiosa - tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra g oacutebvio que essa revelaccedilatildeo involuntaacuteria seraacute empanada na medida em que um desses dois elementos ideacuteia ou forma for voluntashyriamente enfatizado ou suprimido A maacutequina de fiar talvez seja a mais impressionante manifestaccedilatildeo de uma ideacuteia funcional e uma pintura abstrata talvez seja a mais expressiva manifestaccedilatildeo de forma pura mas ambas tecircm um miacutenimo de conteuacutedo

IV

Ao definir uma obra de arte como um objeto feito pelo homem que pede para ser experimentado

nardo da Vinci ver J P RIClITZR The Litna1l Work8 01 Leonardo da Vinci Londres 1883 n 1445) caracterizam-se pela tendecircncia para estender a atitude esteacutetica a criaccedilotildees que satildeo naturalmente praacuteticas noacutes estendemos a atitude teacutecnica is criaccedilotildees que satildeo naturalmente artisticas Isso tambeacutem eacute uma Infraccedilatildeo e no caso do aerodinacircmico a arte teve sua desshyforra Aerodinacircmica era originalmente um genulno principio funcional baseado nos resultados clentiflcos de pesquiSas sobre a resistecircncia do ar Seu campo legitimo era portanto a aacuterea dos velculos de alta velocidade e das estruturas expostas a pressotildees de vento de extraordinaacuteria intensidade Mas quando esse dispositivo especial e verdadeiramente teacutecnico passou a ser Interpretado como um principio geral e esteacutetico expressando o Ideal de eficiecircncia do seacuteculo XX (aerodlnamlze-se) e foi aplicado a poltronas e coquetelelras sentiu-se que o aerodlnashymismo cientifico original precisava ser embelezado e foi finalmente retransferldo para seu devido lugar numa forma totalmente natildeo-funcionaI Como resultado hoje temos menos casas e moblllas funclonalizadas por engenheiros que carros e trens desfunclonallzados por projettstas

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 3: A História Da Arte Como Disciplina

Erasmo de Roterdatilde o humanista par excellence eacute um caso tiacutepico A Igreja suspeitava e em uacuteltima anaacutelise rejeitava os escritos desse homem que dissera Talvez o espiacuterito de Cristo esteja muito mais difunshydido do que pensamos e haja muitos na comunidade dos santos que natildeo faccedilam parte de nosso calendaacuterio O aventureiro Ulrich von Hutten desprezava seu cetishycismo irocircnico e o caraacuteter nada heroacuteico de seu amor pela tranquumlilidade E Lutero que insistia em afirmar que nenhum homem tem poder para pensar algo de bom ou mau mas tudo lhe ocorre por absoluta necessishydade era incensado por uma crenccedila que se manifestou na frase famosa De que serve o homem como totashylidade [isto eacute o homem dotado com corpo e alma] se Deus trabalhasse nele como o escultor trabalha a argila e pudesse do mesmo modo trabalhar a pedra 2

II

O humanista portanto rejeita a autoridade mas respeita a tradiccedilatildeo Natildeo apenas a respeita mas a vecirc como algo real e objetivo que eacute preciso estudar e se necessano reintegrar nos vetera instauramus nova non prodimus com9 diz Erasmo

A Idade Meacutedia aceitou e desenvolveu mais do que estudou e restaurou a heranccedila do passado Copiou as obras de arte claacutessicas e usou Aristoacuteteles e Oviacutedio do mesmo modo que copiou e usou as obras dos conshytemporacircneos Natildeo fez nenhuma tentativa de interpreshytaacute-Ias de um ponto de vista arqueoloacutegico filosoacutefico ou criacutetico em suma de um ponto de vista histoacuterico

2 Para as citaccedilotildees de Lu tero e Erasmo de Roterdatilde ver a excelente monografia Humanitas Erasmiana de R PFEIFFER Studien der Bibliotek Warburg XXII 1931 1 significativo que Erasmo e Lutero tenham rejeitado a astronomia judicial ou tataUstica por razotildees totalmente diferentes Erasmo recusavashy-se a acreditar que o destino humano dependesse dos movishymentos inalteraacuteveis dos corpos celestes porque tal crenccedila imporshytaria na negaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio e responsabilidade humanos Lutero porque redundaria numa restriccedilatildeo da onipotecircncia de Deus Lutero portanto acreditava na significaccedilatildeo dos terata tais como bezerros de oito patas etc que Deus poderia fazer aparecer a InteIValos Irregulares

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Isso porque se era rossiacutevel considerar a existecircncia humana como um meio mais do que um fim tanto menos poderiam os registros da atividade humana ser considerados como valores em si mesmos 3

No escolasticismo medieval natildeo haacute portanto nenhuma distinccedilatildeo baacutesica entre ciecircncia natural e o que chamamos de humanidades studia humaniora para citar de novo uma frase erasmiana O exerciacutecio de ambas na medida em que era desenvolvido em geral permaneceu no quadro do que era chamado de filoshysofia Do prisma humaniacutestico entretanto tornou-se razoaacutevel e ateacute inevitaacutevel distinguir dentro do campo da criaccedilatildeo entre a esfera da natureza e a esfera da cultura e definir a primeira com referecircncia agrave uacuteltima i eacute natureza como a totalidade do mundo acessiacutevel aos sentidos excetuando-se os registras deixados pelo homem

O homem eacute na verdade o uacutenico animal que deixa registros atraacutes de si pois eacute o uacutenico animal cujos proshydutos chamam agrave mente uma ideacuteia que se distingue da existecircncia material destes Outros animais empreshygam signos e ideacuteiam estruturas mas usam signos sem perceber a relaccedilatildeo da significaccedilatildeo 4 e ideacuteiam estrushyturas sem perceber a relaccedilatildeo da construccedilatildeo

3 Alguns historiadores parecem incapazes de reconhecer continuidades e distinccedilotildees ao mesmo tempo 1 inegaacutevel que o humanismo e todo o movimento renascentista natildeo surgiram de repente como Atenaacute da cabeccedila de Zeus Mas o fato de Lupus de Ferriecircres ter emendado textos claacutessicos de Hildebert de Lavardin ter um sentimen to profundo pelas ruinas romanas dos eruditos ingleses e franceses do seacuteculo XII terem revivido a filosofia e mitologia claacutessicas e de Marbod de Rennes ter escrito um belo poema pastoral sobre sua provincia natal natildeo significa que sua perspectiva fosse idecircntica agrave de Petrarca sem falarmos de Erasmo ou Ficino Nenhum homem do medievo poderia ver a civilizaccedilatildeo da Antiguumlidade como um fenocircmeno completo em si mesmo e historicamente desligado do mundo de sua eacutepoca tanto quanto sei o latim medieval natildeo possui equivalente para o termo humanista antiquitas ou sClCrosancta vetustas E assim como era impossivel para a Idade Meacutedia elaborar um sistema de perspectivas baseado na percepccedilatildeo de uma distacircncia f ixa entre o olho e o objeto ta mbeacutem era imprashyticaacutevel para essa eacutepoca desenvolver uma concepccedilatildeo de discishyplinas histoacutericas baseada na percepccedilatildeo de uma distacirc ncia fixa entre o p resente e o passado middotclaacutessico Ver E PANOFSKY e F SAXL Classical Mythology in Mediaeval Art em Studi es of the Metropolit an Museum IV 2 1933 p 228 e ss sobretudo a p 263 e ss e recen temente o interessante artigo de W S HECKSCHER Relics of Pagan Antiqulty ln Mediaeval Settings Journal 01 the Warburg I n stitute I 1937 p 204 e ss

4 Ver J MARITAIN Slgn and Symbol Journal of the Warshyburg Institute I p 1 e ss

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Perceber a relaccedilatildeo da significaccedilatildeo eacute separar a ideacuteia do conceito a ser expresso dos meios de expresshysatildeo E perceber a relaccedilatildeo de construccedilatildeo eacute separar a ideacuteia da funccedilatildeo a ser cumprida dos meios de cumshypri-Ia Um cachorro anuncia a aproximaccedilatildeo de um estranho por um latido diferente daquele que emite para dar a conhecer que qeseja sair Mas natildeo utilizaraacute este latido particular para veicular a ideacuteia de que um estranho apareceu durante a ausecircncia do dono da casa E muito menos iraacute um animal mesmo se estivesse do ponto de vista fiacutesico apto a tanto como os macacos indubitavelmente o estatildeo tentar alguma vez representar algo numa pintura Os castores controem diques Mas satildeo incapazes ao que sabemos de separarem as comshyplicadiacutessimas accedilotildees envolvidas neste trabalho a partir de um plano premeditado que poderia ser posto em desenho em vez de materializado em troncos e pedras

Os signos e estruturas do homem satildeo registros porque ou antes na medida em que expressam ideacuteias separadas dos no entanto realizadas pelos processos de assinalamento e construccedilatildeo Estes registros tecircm porshytanto a qualidade de emergir da corrente do tempo e eacute precisamente neste sentido que satildeo estudados pelo humanista Este eacute fundamentalmente um historiador

Tambeacutem o cientista trabalha com registros hushymanos sobretudo com as obras de seus predecessores Mas ele os trata natildeo como algo a ser investigado e sim como algo que o ajuda na investigaccedilatildeo Noutras palavras interessa-se pelos registros natildeo agrave medida que emergem da corrente do tempo mas agrave medida que satildeo absorvidos por ela Se um cientista moderno ler Newton ou Leonardo da Vinci no original ele o faz natildeo como cientista mas como homem interessado na histoacuteria da ciecircncia e portanto na civilizaccedilatildeo humana em geral Em outros termos ele o faz como humanista para quem as obras de Newton e Leonardo da Vinci possuem um significado autocircnomo e um valor durashydouro Do ponto de vista humaniacutestico os registros humanos natildeo envelhecem

Assim enquanto a ciecircncia tenta transformar a caoacutetica variedade dos fenocircmenos naturais no que se poderia chamar de cosmo da natureza as humanidades

tentam transformar a caoacutetica variedade dos registros humanos no que se poderia chamar de cosmo da cultura

Haacute apesar de todas essas diferenccedilas de temas e procedimento analogias extraordinaacuterias entre os proshyblemas metoacutedicos que o cientista de um lado e o humanista de outro precisam enfrentar 5

Em ambos os casos o processo de pesquisa pashyrece comeccedilar com a observaccedilatildeo Mas quer o obsershyvador de um fenocircmeno natural quer o examinador de um registro natildeo ficam soacute circunscritos aos limites do alcance de sua visatildeo e ao material disponiacutevel ao dirishygir a atenccedilatildeo a certos objetos obedecem conscienteshymente ou natildeo a um princiacutepio de seleccedilatildeo preacutevia ditado por uma teoria no caso do cientista e por um conceito geral de histoacuteria no do humanista Talvez seja vershydade que nada estaacute na mente a natildeo ser o que estava nos sentidos mas eacute pelo menos igualmente verdashydeiro que muita coisa estaacute nos sentidos sem nunca penetrar na mente Somos afetados principalmente por aquilo que permitimos que nos afete e assim como a ciecircncia natural involuntariamente seleciona aquilo que chama de fenocircmeno as humanidades seleshycionam involuntariamente o que chamam de fatos histoacutericos Desse modo as humanidades alargaram gradualmente seu cosmo cultural e em certa medida deslocaram o centro de seus interesses Mesmo aquele que instintivamente simpatiza com a definiccedilatildeo simshyplista de humanidades como latim e grego e consishydera essa definiccedilatildeo como essencialmente vaacutelida desde que usemos ideacuteias e expressotildees como por exemplo ideacuteia e expressatildeo - mesmo tal pessoa precisa admitir que ela se tornou um pouco estreita demais

Aleacutem do mais o mundo das humanidades eacute detershyminado por uma teoria cultural da relatividade comshyparaacutevel agrave dos fiacutesicos e visto que o mundo da cultura eacute bem menor que o da natureza a relatividade cultural

5 Ver E WIND Das Experiment und dte Metapnllstk Tuumlblnshygen 1934 e idem Some Polnts of Contact between Htstory and Natural Sclence Phtlosophll and HtBtOfJl Essalls Presented to Ernst CasstTer Oxford 1936 p 255 e ss (com uma discussatildeo multo Instrutiva sobre o relacionamento entre os fenOcircmenos os Instrumentos e o observador de um lado e os fatos histoacutericos os documentos e o historiador de outro)

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prevalece no acircmbito das dimensotildees terrestres e foi observada muito antes

Todo conceito histoacuterico baseia-se obviamente nas categorias do espaccedilo e tempo Os registros e tudo o que implicam tecircm que ser localizados e datashydos Mas acontece que esses dois atos satildeo na realishydade dois aspectos de uma e mesma coisa Se eu disser que uma pintura data de cerca de 1400 essa afirmaccedilatildeo natildeo teria o miacutenimo sentido ou importacircncia a menos que pudesse indicar tambeacutem onde foi produshyzida nessa data inversamente se eu atribuir uma pinshytura agrave escola florentina preciso ser capaz de dizer quando foi produzida por essa escola O cosmo da cultura como o cosmo da natureza eacute uma estrutura espaccedilo-temporal O ano de 1400 em Florenccedila eacute totalshymente diferente do ano de 1400 em Veneza para natildeo falarmos de Augsburgo Ruacutessia ou Constantinopla Dois fenocircmenos histoacutericos satildeo simultacircneos ou apresenshytam uma relaccedilatildeo temporal entre si apenas na medida em que eacute possiacutevel relacionaacute-los dentro de um quadro de referecircncia sem o qual o proacuteprio conceito de sishymultaneidade natildeo teria sentido na histoacuteria assim como na fiacutesica Se soubeacutessemos por uma certa concateshynaccedilatildeo de circunstacircncias que uma dada escultura negra foi executada em 1510 natildeo teria sentido dizer que se trata de uma obra contemporacircnea ao teto da Capela Sistina de Michelangelo 6

Concluindo a sucessatildeo de passos pelos quais o material eacute organizado em cosmo natural ou cultural eacute anaacuteloga e o mesmo eacute verdade com respeito aos problemas metodoloacutegicos que esse processo implica O primeiro passo eacute como jaacute foi mencionado a observashyccedilatildeo dos fenocircmenos naturais e o exame dos registros humanos A seguir cumpre descodificar os registros e interpretaacute-los assim como as mensagens da natushyreza recebidas pelo observador Por fi m os resulshytados precisam ser classificados e coordenados num sistema coerente que faccedila sentido

Agora jaacute vimos que mesmo a seleccedilatildeo do material para observaccedilatildeo e exame eacute predeterminada ateacute certo

6 Ver eg E PANOFSKY Ueber dle Reihen folge der vier Meister von Reims (Apecircn dice) em Jahrbuch fuumlr K unstw issensshychatt II 1927 p 77 e S5

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ponto por uma teoria ou por uma concepccedilatildeo histoacuterica geneacuterica Isso eacute ainda mais evidente dentro do proacuteprio processo onde cada passo rumo ao sistema que faccedila sentido pressupotildee os precedentes e os subsequumlentes

Quando o cientista observa um fenocircmeno usa instrumentos que se acham por seu turno sujeitos agraves leis da natureza que pretende explorar Quando um humanista examina um registro usa documentos que satildeo por sua vez produzidos no decurso do processo que pretende investigar

Suponhamos que eu descubra nos arquivos de uma cidadezinha do vale do Reno um contrato dashytado de 1471 e complementado pelos registros de pagamento segundo os quais o pintor local Johannes qui et Frost recebeu a incumbecircncia de executar para a Igreja de St James dessa cidade um retaacutebulo com a Natividade ao centro e Satildeo Pedro e Satildeo Paulo um de cada lado suponhamos ainda mais que eu encontre na Igreja de St James um retaacutebulo corresshypondendo a esse contrato Este seria o caso em que a documentaccedilatildeo eacute tatildeo boa e simples quanto se poderia querer encontrar men~or e mais simples do que se precisaacutessemos lidar com uma fonte indireta como uma carta uma descriccedilatildeo numa cronica biografia diaacuterio ou poema No entanto ainda assim muitos problemas se apresentariam

O documento pode ser um original uma coacutepia ou uma falsificaccedilatildeo Se for uma coacutepia pode ser deshyfeituosa e mesmo se for um original eacute possiacutevel que algumas das informaccedilotildees sejam incorretas O retaacutebulo por sua vez pode ser aquele aludido no contrato mas eacute possiacutevel tambeacutem que o monumento original tenha sido destruiacutedo durante os distuacuterbios iconoclaacutesticos de 1535 e substituiacutedo por outro retaacutebulo pintado com os mesmos temas mas executado por volta de 1550 por um pintor de Antueacuterpia

Para chegar a um certo grau de certeza teriacuteamos de conferir o documento com outros de data e orishygem similar e o retaacutebulo com outras pinturas executashydas no vale do Reno por volta de 1470 Mas aqui surgem duas dificuldades

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Primeiro conferir eacute obviamente impossiacutevel sem sabermos o que conferir cumpriria escolher certos aspectos ou criteacuterios como certas formas de escrita ou alguns termos teacutecnicos usados no contrato ou alguma peculiaridade formal ou iconograacutefica do retaacutebulo Mas jaacute que natildeo podemos analisar o que natildeo compreendemos nosso exame pressupotildee descodifishycaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo

Segundo o material com o qual aferimos nosso problemaacutetico caso natildeo se apresenta em si mais aushytenticado do que o caso em questatildeo Tomacircdo indivishydualmente qualquer outro monumento assinado e dashytado eacute tatildeo duvidoso quanto o encomendado a Johanshynes qui et Frost em 1471 (e por si mesmo evidente que uma assinatura aposta num quadro pode ser e muitas vezes eacute tatildeo discutiacutevel quanto um documento a ele relacionado) Apenas com base em todo um grupo ou classe de dados eacute que podemos decidir se nosso retaacutebulo foi do ponto de vista estiliacutestico e icoshynograacutefico possiacutevel no vale do Reno por volta de 1470 Mas a classificaccedilatildeo pressupotildee eacute oacutebvio a ideacuteia de um todo ao qual as classes pertencem - em outras palavras a concepccedilatildeo histoacuterica geral que tentamos edishyficar a partir dos nossos casos individuais

De qualquer lado que se olhe o comeccedilo de nossa investigaccedilatildeo parece sempre pressupor seu fim e os documentos que deveriam explicar os monumentos satildeo tatildeo enigmaacuteticos quanto os proacuteprios monumentos e bem possiacutevel que um termo teacutecnico do nosso contrato seja um ~ampa~ Agrave-yOacuteiHOV tatildeo-somente explicaacutevel por este determinado retaacutebulo e o que um artista diz a respeito de suas obras deve sempre ser interpretado agrave luz das proacuteprias obras Estamos aparentemente num ciacuterculo vicioso Na realidade eacute o que os filoacutesofos chamam de situaccedilatildeo orgacircnica 7 Duas pernas sem um corpo natildeo podem andar e um corpo sem as pernas tampouco poreacutem um homem anda e verdade que os monumentos e documentos individuais soacute podem ser examinados interpretados e classificados agrave luz de um conceito histoacuterico geral ao mesmo tempo que soacute se pode erigir esse conceito histoacuterico geral com base

7 Devo esse tenno ao Professor T M Greene

em monumentos e documentos individuais do mesmo modo a compreensatildeo dos fenocircmenos naturais e o emshyprego dos instrumentos cientiacuteficos dependem de uma teoria fiacutesica generalizada e vice-versa Essa situaccedilatildeo no entanto natildeo eacute de jeito algum um beco sem saiacuteda Cada descoberta de um fato histoacuterico desconhecido e toda nova interpretaccedilatildeo de um jaacute conhecido ou se encaixaraacute na concepccedilatildeo geral predominante enrishyquecendo-a e corroborando-a por esse meio ou entatildeo acarretaraacute uma sutil ou ateacute fundamental mudanccedila na concepccedilatildeo geral predominante lanccedilando assim novas luzes sobre tudo o que era conhecido antes Em ambos os casos o sistema que faz sentido opera como um organismo coerente poreacutem elaacutestico comshyparaacutevel a um animal vivo quando contraposto a seus membros individuais e o que eacute verdade nas relaccedilotildees entre monumentos documentos e um conceito histoacuteshyrico geral nas humanidades eacute igualmente verdadeiro nas relaccedilotildees entre fenocircmenos instrumentos e teoria nas ciecircncias naturais

III

Referi-me ao retaacutebulo de 1471 como monumenshyto e ao contrato como documento ou seja consideshyrei o retaacutebulo como o objeto da investigaccedilatildeo ou material primaacuterio e o contrato como um instrumento de investigaccedilatildeo ou material secundaacuterio Assim proshycedendo falei como um historiador de arte Para um paleoacutegrafo ou um historiador das leis o contrato seria o monumento ou material primaacuterio e ambos poshyderiam usar quadros para documentaccedilatildeo

A menos que um estudioso se interesse exclusivashymente pelo que eacute chamado de eventos (nesse caso consideraria todos os registros existentes como mateshyrial secundaacuterio por meio do qual poderia reconstruir os eventos) os monumentos de uns satildeo os doshycumentos de outros e vice-versa No trabalho praacuteshytico somos mesmo compelidos a anexar monumenshytos que de direito pertencem a nossos colegas Muitas obras de arte tecircm sido interpretadas por filoacuteshylogos ou por historiadores de medicina e muitos textos

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tecircm sido interpretados e soacute o poderiam ser por hisshytoriadores de arte

Um historiador de arte portanto eacute um humanista cujo material primaacuterio consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte Mas o que eacute uma obra de arte

Nem sempre a obra de arte eacute criada com o proshypoacutesito exclusivo de ser apreciada ou para usar uma expressatildeo mais acadecircmica de ser experimentada esteshyticamente A afirmaccedilatildeo de Poussin de que la fin de lart est la deacutelectation era inteiramente revolucioshynaacuteria 8 na eacutepoca pois escritores mais antigos sempre insistiam em que a arte por mais agradaacutevel que fosse tambeacutem era de algum modo uacutetil Mas a obra de arte tem sempre significaccedilatildeo esteacutetica (natildeo confundir com valor esteacutetico) quer sirva ou natildeo a um fim praacutetico e quer seja boa ou maacute o tipo de experiecircncia que ela requer eacute sempre esteacutetico

Pode-se experimentar esteticamente todo objeto seja ele natural ou feito pelo homem f o que fazeshymos para expressar isso da maneira mais simples quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem relashycionaacute-lo intelectual ou emocionalmente com nada fora do objeto mesmo Quando um homem observa uma aacutervore do ponto de vista de um carpinteiro ele a associaraacute aos vaacuterios empregos que poderaacute dar agrave mashydeira quando a olha como um ornitoacutelogo haacute de assoshyciaacute-la com as aves que aiacute poderatildeo fazer seu ninho Quando um homem numa corrida de cavalos acomshypanha com o olhar a montaria na qual apostou assoshyciaraacute o desempenho desta com seu proacuteprio desejo de que ela venccedila o paacutereo Soacute aquele que se abandona

8 A BLuNT Poussins Notes on Painting Journat of the WaTbuTg Institute I 1937 p 344 e SS diz (p 349) que a afirmashyccedilatildeo de Poussin La fin de l art est la deacutelectation era de certo modo medieval pois a teorta da delectatio como slmbolo ou sinal pelo qual a beleza eacute reconhecida eacute a chave de toda a esteacutetica de Satildeo Boaventura e eacute bem posslvel que Poussin tenha tirado dai provavelmente atraveacutes de uma versatildeo populashyrizada sua defin iccedilatildeo En tretanto mesmo se o teor da frase de Poussin (oi influenciado por uma fonte medieval haacute uma grande diferenccedila entre a afirmaccedilatildeo de que delectatio eacute uma qualidade caTacteristica de tudo o que eacute belo quer seja natural ou feito pelo hom em e a assertiva de que delectato eacute o fim (meta) (fin) da arte

simples e totalmente ao objeto de sua percepccedilatildeo poshyderaacute experimentaacute-lo esteticamente 9

Ora quando nos defrontamos com um objeto natural a decisatildeo de experimentaacute-lo ou natildeo esteticashymente eacute questatildeo exclusivamente pessoal Um objeto feIto pelo homem entretanto exige ou natildeo para ser experimentado desse modo pois tem o que os estudiosos chamam de intenccedilatildeo Se eu decidisse como bem poderia fazer experimentar esteticamente a luz vermelha de um semaacuteforo em vez de associaacute-la agrave ideacuteia de pisar nos freios agiria contra a intenccedilatildeo da luz de traacutefego

Os objetos feitos pelo homem que natildeo exigem a experiecircncia esteacutetica satildeo comumente chamados de praacuteticos e podem dividir-se em duas categorias veiacuteshyculos de comunicaccedilatildeo e ferramentas ou aparelhos O veiacuteculo ou meio de comunicaccedilatildeo obedece ao intuito de transmitir um conceito A ferramenta ou aparelho obedece ao intuito de preencher uma funccedilatildeo (funccedilatildeo essa que por sua vez pode ser a de produzir e transshymitir comunicaccedilotildees como eacute o caso da maacutequina de escrever ou da luz do semaacuteforo acima mencionada)

A maioria dos objetos que exigem experiecircncia esteacutetica ou seja obras de arte tambeacutem pertencem a essas duas categorias Um poema ou uma pintura hisshytoacuterica satildeo em certo sentido veiacuteculos de comunicaccedilatildeo o Panteatildeo e os casticcedilais de Milatildeo satildeo em certo sentidoo

aparelhos e os tuacutemulos de Lorenzo e Giuliano de Mediei esculpidos por Michelangelo satildeo em certo sentido ambas as coisas Mas tenho que dizer num certo sentido pois haacute essa diferenccedila no caso do que se pode chamar de um mero veiacuteculo de comunishycaccedilatildeo ou um mero aparelho a intenccedilatildeo acha-se definitivamente fixada na ideacuteia da obra ou seja na mensagem a ser transmitida ou na funccedilatildeo a ser preenshychida No caso de uma obra de arte o interesse na

9 Ver M GEIGER Beltrlige zur Phlinomenologle des aestheshytlschen Genusses em Jah1buch Uuml1 Philosophie I Parte 2 1922 p 567 e ss Tambeacutem E WIND Aesthetische1 und kunstwissensshychaftliche1 Gegenstand Dlss phil Hamburgo 1923 reeditado em parte como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme Zeit5ch1ift fuuml1 Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 438 e 55

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~deacuteia eacute equilibrado e pode ateacute ser eclipsado por um mteresse na forma

Entretanto o elemento forma estaacute presente em todo objeto sem exceccedilatildeo pois todo objeto consiste de mateacuteria e forma e natildeo haacute maneira de se determinar com precisatildeo cientiacutefica em que medida num caso dado esse elemento da forma eacute o que recebe a ecircnfase Portanto natildeo se pode e natildeo se deve tentar definir o momento preciso em que o veiacuteculo de comunicaccedilatildeo ou aparelho comeccedila a ser obra de arte Se escrevo a um amigo convidando-Q para jantar minha carta eacute em primeiro lugar uma comunicaccedilatildeo Poreacutem quanto mais eu deslocar a ecircnfase para a forma do meu escrito tanto mais ele se tornaraacute uma obra de caligrafia e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem (poderia ateacute chegar a convidaacute-lo por meio de um soneto) mais a carta se converteraacute em uma obra de literatura ou poesia

Assim a esfera em que o campo dos objetos praacuteticos termina e o da arte comeccedila depende da intenccedilatildeo de seus criadores Essa intenccedilatildeo natildeo pode ser absolutamente determinada Em primeiro lugar eacute impossiacutevel definir as intenccedilotildees per se com precisatildeo cientiacutefica Em segundo as intenccedilotildees dashyqueles que produzem os objetos satildeo condicionadas pelos padrotildees da eacutepoca e meio ambiente em que vivem O gosto claacutessico exigia que cartas particulares disshycursos legais e escudos de heroacuteis fossem artiacutesticos (resultando possivelmente no que se poderia denoshyminar falsa beleza) enquanto que o gosto moderno exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam funcionais (resultando possivelmente no que poderia ser chashymado de falsa eficiecircncia) 10 Enfim nossa avaliaccedilatildeo

10 Funcionalismo significa num sentido estrito natildeo a Introduccedilatildeo de um novo principio esteacutetico mas uma delimitaccedilatildeo ainda maior do campo da esteacutetica Ao preferlnnos o moderno ~apacete ~e accedilo ao escudD de Aquilts ou achannos que a Intenccedilatildeo de um dISCUrso legal deverIa estar definitivamente e~ocadQ no tema e natildeo deveria ser deslocado para a fonna ( maIs mateacuteria e menos arte como diz corretamente a Rainha Gertrudes) exigimos apenas que armas e discursos legais natildeo sejam tratados como obras de arte quer dizer esteticamente mas como objetos praacuteticos Leacute tecnicamente Entretanto passhysou-se a conceber o funcionalismo como um postulado em lugar de um Interdito As civilizaccedilotildees claacutessica e renascentista na crenccedila de Que uma coisa meramente uacutetil natildeo podia se~ bela (non pui) essere bellezza e utlllU como declara Leoshy

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dessas intenccedilotildees eacute inevitavelmente influenciada por nossa proacutepria atitude que por sua vez depende de nossas experiecircncias individuais bem como de nossa situaccedilatildeo histoacuterica Vimos todos com nossos proacuteprios olhos os utensiacutelios e fetiches das tribos africanas serem transferidos dos museus de etnologia para as exposishyccedilotildees de arte

Uma coisa entretanto eacute certa quanto mais a proporccedilatildeo de ecircnfase na ideacuteia e forma se aproxima de um estado de equiliacutebrio mais eloquumlentemente a obra revelaraacute o que se chama conteuacutedo Conteuacutedo em oposiccedilatildeo a tema pode ser descrito nas palavras de Peirce como aquilo que a obra denuncia mas natildeo ostenta g a atitude baacutesica de uma naccedilatildeo periacuteodo classe crenccedila filosoacutefica ou religiosa - tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra g oacutebvio que essa revelaccedilatildeo involuntaacuteria seraacute empanada na medida em que um desses dois elementos ideacuteia ou forma for voluntashyriamente enfatizado ou suprimido A maacutequina de fiar talvez seja a mais impressionante manifestaccedilatildeo de uma ideacuteia funcional e uma pintura abstrata talvez seja a mais expressiva manifestaccedilatildeo de forma pura mas ambas tecircm um miacutenimo de conteuacutedo

IV

Ao definir uma obra de arte como um objeto feito pelo homem que pede para ser experimentado

nardo da Vinci ver J P RIClITZR The Litna1l Work8 01 Leonardo da Vinci Londres 1883 n 1445) caracterizam-se pela tendecircncia para estender a atitude esteacutetica a criaccedilotildees que satildeo naturalmente praacuteticas noacutes estendemos a atitude teacutecnica is criaccedilotildees que satildeo naturalmente artisticas Isso tambeacutem eacute uma Infraccedilatildeo e no caso do aerodinacircmico a arte teve sua desshyforra Aerodinacircmica era originalmente um genulno principio funcional baseado nos resultados clentiflcos de pesquiSas sobre a resistecircncia do ar Seu campo legitimo era portanto a aacuterea dos velculos de alta velocidade e das estruturas expostas a pressotildees de vento de extraordinaacuteria intensidade Mas quando esse dispositivo especial e verdadeiramente teacutecnico passou a ser Interpretado como um principio geral e esteacutetico expressando o Ideal de eficiecircncia do seacuteculo XX (aerodlnamlze-se) e foi aplicado a poltronas e coquetelelras sentiu-se que o aerodlnashymismo cientifico original precisava ser embelezado e foi finalmente retransferldo para seu devido lugar numa forma totalmente natildeo-funcionaI Como resultado hoje temos menos casas e moblllas funclonalizadas por engenheiros que carros e trens desfunclonallzados por projettstas

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 4: A História Da Arte Como Disciplina

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Perceber a relaccedilatildeo da significaccedilatildeo eacute separar a ideacuteia do conceito a ser expresso dos meios de expresshysatildeo E perceber a relaccedilatildeo de construccedilatildeo eacute separar a ideacuteia da funccedilatildeo a ser cumprida dos meios de cumshypri-Ia Um cachorro anuncia a aproximaccedilatildeo de um estranho por um latido diferente daquele que emite para dar a conhecer que qeseja sair Mas natildeo utilizaraacute este latido particular para veicular a ideacuteia de que um estranho apareceu durante a ausecircncia do dono da casa E muito menos iraacute um animal mesmo se estivesse do ponto de vista fiacutesico apto a tanto como os macacos indubitavelmente o estatildeo tentar alguma vez representar algo numa pintura Os castores controem diques Mas satildeo incapazes ao que sabemos de separarem as comshyplicadiacutessimas accedilotildees envolvidas neste trabalho a partir de um plano premeditado que poderia ser posto em desenho em vez de materializado em troncos e pedras

Os signos e estruturas do homem satildeo registros porque ou antes na medida em que expressam ideacuteias separadas dos no entanto realizadas pelos processos de assinalamento e construccedilatildeo Estes registros tecircm porshytanto a qualidade de emergir da corrente do tempo e eacute precisamente neste sentido que satildeo estudados pelo humanista Este eacute fundamentalmente um historiador

Tambeacutem o cientista trabalha com registros hushymanos sobretudo com as obras de seus predecessores Mas ele os trata natildeo como algo a ser investigado e sim como algo que o ajuda na investigaccedilatildeo Noutras palavras interessa-se pelos registros natildeo agrave medida que emergem da corrente do tempo mas agrave medida que satildeo absorvidos por ela Se um cientista moderno ler Newton ou Leonardo da Vinci no original ele o faz natildeo como cientista mas como homem interessado na histoacuteria da ciecircncia e portanto na civilizaccedilatildeo humana em geral Em outros termos ele o faz como humanista para quem as obras de Newton e Leonardo da Vinci possuem um significado autocircnomo e um valor durashydouro Do ponto de vista humaniacutestico os registros humanos natildeo envelhecem

Assim enquanto a ciecircncia tenta transformar a caoacutetica variedade dos fenocircmenos naturais no que se poderia chamar de cosmo da natureza as humanidades

tentam transformar a caoacutetica variedade dos registros humanos no que se poderia chamar de cosmo da cultura

Haacute apesar de todas essas diferenccedilas de temas e procedimento analogias extraordinaacuterias entre os proshyblemas metoacutedicos que o cientista de um lado e o humanista de outro precisam enfrentar 5

Em ambos os casos o processo de pesquisa pashyrece comeccedilar com a observaccedilatildeo Mas quer o obsershyvador de um fenocircmeno natural quer o examinador de um registro natildeo ficam soacute circunscritos aos limites do alcance de sua visatildeo e ao material disponiacutevel ao dirishygir a atenccedilatildeo a certos objetos obedecem conscienteshymente ou natildeo a um princiacutepio de seleccedilatildeo preacutevia ditado por uma teoria no caso do cientista e por um conceito geral de histoacuteria no do humanista Talvez seja vershydade que nada estaacute na mente a natildeo ser o que estava nos sentidos mas eacute pelo menos igualmente verdashydeiro que muita coisa estaacute nos sentidos sem nunca penetrar na mente Somos afetados principalmente por aquilo que permitimos que nos afete e assim como a ciecircncia natural involuntariamente seleciona aquilo que chama de fenocircmeno as humanidades seleshycionam involuntariamente o que chamam de fatos histoacutericos Desse modo as humanidades alargaram gradualmente seu cosmo cultural e em certa medida deslocaram o centro de seus interesses Mesmo aquele que instintivamente simpatiza com a definiccedilatildeo simshyplista de humanidades como latim e grego e consishydera essa definiccedilatildeo como essencialmente vaacutelida desde que usemos ideacuteias e expressotildees como por exemplo ideacuteia e expressatildeo - mesmo tal pessoa precisa admitir que ela se tornou um pouco estreita demais

Aleacutem do mais o mundo das humanidades eacute detershyminado por uma teoria cultural da relatividade comshyparaacutevel agrave dos fiacutesicos e visto que o mundo da cultura eacute bem menor que o da natureza a relatividade cultural

5 Ver E WIND Das Experiment und dte Metapnllstk Tuumlblnshygen 1934 e idem Some Polnts of Contact between Htstory and Natural Sclence Phtlosophll and HtBtOfJl Essalls Presented to Ernst CasstTer Oxford 1936 p 255 e ss (com uma discussatildeo multo Instrutiva sobre o relacionamento entre os fenOcircmenos os Instrumentos e o observador de um lado e os fatos histoacutericos os documentos e o historiador de outro)

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prevalece no acircmbito das dimensotildees terrestres e foi observada muito antes

Todo conceito histoacuterico baseia-se obviamente nas categorias do espaccedilo e tempo Os registros e tudo o que implicam tecircm que ser localizados e datashydos Mas acontece que esses dois atos satildeo na realishydade dois aspectos de uma e mesma coisa Se eu disser que uma pintura data de cerca de 1400 essa afirmaccedilatildeo natildeo teria o miacutenimo sentido ou importacircncia a menos que pudesse indicar tambeacutem onde foi produshyzida nessa data inversamente se eu atribuir uma pinshytura agrave escola florentina preciso ser capaz de dizer quando foi produzida por essa escola O cosmo da cultura como o cosmo da natureza eacute uma estrutura espaccedilo-temporal O ano de 1400 em Florenccedila eacute totalshymente diferente do ano de 1400 em Veneza para natildeo falarmos de Augsburgo Ruacutessia ou Constantinopla Dois fenocircmenos histoacutericos satildeo simultacircneos ou apresenshytam uma relaccedilatildeo temporal entre si apenas na medida em que eacute possiacutevel relacionaacute-los dentro de um quadro de referecircncia sem o qual o proacuteprio conceito de sishymultaneidade natildeo teria sentido na histoacuteria assim como na fiacutesica Se soubeacutessemos por uma certa concateshynaccedilatildeo de circunstacircncias que uma dada escultura negra foi executada em 1510 natildeo teria sentido dizer que se trata de uma obra contemporacircnea ao teto da Capela Sistina de Michelangelo 6

Concluindo a sucessatildeo de passos pelos quais o material eacute organizado em cosmo natural ou cultural eacute anaacuteloga e o mesmo eacute verdade com respeito aos problemas metodoloacutegicos que esse processo implica O primeiro passo eacute como jaacute foi mencionado a observashyccedilatildeo dos fenocircmenos naturais e o exame dos registros humanos A seguir cumpre descodificar os registros e interpretaacute-los assim como as mensagens da natushyreza recebidas pelo observador Por fi m os resulshytados precisam ser classificados e coordenados num sistema coerente que faccedila sentido

Agora jaacute vimos que mesmo a seleccedilatildeo do material para observaccedilatildeo e exame eacute predeterminada ateacute certo

6 Ver eg E PANOFSKY Ueber dle Reihen folge der vier Meister von Reims (Apecircn dice) em Jahrbuch fuumlr K unstw issensshychatt II 1927 p 77 e S5

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ponto por uma teoria ou por uma concepccedilatildeo histoacuterica geneacuterica Isso eacute ainda mais evidente dentro do proacuteprio processo onde cada passo rumo ao sistema que faccedila sentido pressupotildee os precedentes e os subsequumlentes

Quando o cientista observa um fenocircmeno usa instrumentos que se acham por seu turno sujeitos agraves leis da natureza que pretende explorar Quando um humanista examina um registro usa documentos que satildeo por sua vez produzidos no decurso do processo que pretende investigar

Suponhamos que eu descubra nos arquivos de uma cidadezinha do vale do Reno um contrato dashytado de 1471 e complementado pelos registros de pagamento segundo os quais o pintor local Johannes qui et Frost recebeu a incumbecircncia de executar para a Igreja de St James dessa cidade um retaacutebulo com a Natividade ao centro e Satildeo Pedro e Satildeo Paulo um de cada lado suponhamos ainda mais que eu encontre na Igreja de St James um retaacutebulo corresshypondendo a esse contrato Este seria o caso em que a documentaccedilatildeo eacute tatildeo boa e simples quanto se poderia querer encontrar men~or e mais simples do que se precisaacutessemos lidar com uma fonte indireta como uma carta uma descriccedilatildeo numa cronica biografia diaacuterio ou poema No entanto ainda assim muitos problemas se apresentariam

O documento pode ser um original uma coacutepia ou uma falsificaccedilatildeo Se for uma coacutepia pode ser deshyfeituosa e mesmo se for um original eacute possiacutevel que algumas das informaccedilotildees sejam incorretas O retaacutebulo por sua vez pode ser aquele aludido no contrato mas eacute possiacutevel tambeacutem que o monumento original tenha sido destruiacutedo durante os distuacuterbios iconoclaacutesticos de 1535 e substituiacutedo por outro retaacutebulo pintado com os mesmos temas mas executado por volta de 1550 por um pintor de Antueacuterpia

Para chegar a um certo grau de certeza teriacuteamos de conferir o documento com outros de data e orishygem similar e o retaacutebulo com outras pinturas executashydas no vale do Reno por volta de 1470 Mas aqui surgem duas dificuldades

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Primeiro conferir eacute obviamente impossiacutevel sem sabermos o que conferir cumpriria escolher certos aspectos ou criteacuterios como certas formas de escrita ou alguns termos teacutecnicos usados no contrato ou alguma peculiaridade formal ou iconograacutefica do retaacutebulo Mas jaacute que natildeo podemos analisar o que natildeo compreendemos nosso exame pressupotildee descodifishycaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo

Segundo o material com o qual aferimos nosso problemaacutetico caso natildeo se apresenta em si mais aushytenticado do que o caso em questatildeo Tomacircdo indivishydualmente qualquer outro monumento assinado e dashytado eacute tatildeo duvidoso quanto o encomendado a Johanshynes qui et Frost em 1471 (e por si mesmo evidente que uma assinatura aposta num quadro pode ser e muitas vezes eacute tatildeo discutiacutevel quanto um documento a ele relacionado) Apenas com base em todo um grupo ou classe de dados eacute que podemos decidir se nosso retaacutebulo foi do ponto de vista estiliacutestico e icoshynograacutefico possiacutevel no vale do Reno por volta de 1470 Mas a classificaccedilatildeo pressupotildee eacute oacutebvio a ideacuteia de um todo ao qual as classes pertencem - em outras palavras a concepccedilatildeo histoacuterica geral que tentamos edishyficar a partir dos nossos casos individuais

De qualquer lado que se olhe o comeccedilo de nossa investigaccedilatildeo parece sempre pressupor seu fim e os documentos que deveriam explicar os monumentos satildeo tatildeo enigmaacuteticos quanto os proacuteprios monumentos e bem possiacutevel que um termo teacutecnico do nosso contrato seja um ~ampa~ Agrave-yOacuteiHOV tatildeo-somente explicaacutevel por este determinado retaacutebulo e o que um artista diz a respeito de suas obras deve sempre ser interpretado agrave luz das proacuteprias obras Estamos aparentemente num ciacuterculo vicioso Na realidade eacute o que os filoacutesofos chamam de situaccedilatildeo orgacircnica 7 Duas pernas sem um corpo natildeo podem andar e um corpo sem as pernas tampouco poreacutem um homem anda e verdade que os monumentos e documentos individuais soacute podem ser examinados interpretados e classificados agrave luz de um conceito histoacuterico geral ao mesmo tempo que soacute se pode erigir esse conceito histoacuterico geral com base

7 Devo esse tenno ao Professor T M Greene

em monumentos e documentos individuais do mesmo modo a compreensatildeo dos fenocircmenos naturais e o emshyprego dos instrumentos cientiacuteficos dependem de uma teoria fiacutesica generalizada e vice-versa Essa situaccedilatildeo no entanto natildeo eacute de jeito algum um beco sem saiacuteda Cada descoberta de um fato histoacuterico desconhecido e toda nova interpretaccedilatildeo de um jaacute conhecido ou se encaixaraacute na concepccedilatildeo geral predominante enrishyquecendo-a e corroborando-a por esse meio ou entatildeo acarretaraacute uma sutil ou ateacute fundamental mudanccedila na concepccedilatildeo geral predominante lanccedilando assim novas luzes sobre tudo o que era conhecido antes Em ambos os casos o sistema que faz sentido opera como um organismo coerente poreacutem elaacutestico comshyparaacutevel a um animal vivo quando contraposto a seus membros individuais e o que eacute verdade nas relaccedilotildees entre monumentos documentos e um conceito histoacuteshyrico geral nas humanidades eacute igualmente verdadeiro nas relaccedilotildees entre fenocircmenos instrumentos e teoria nas ciecircncias naturais

III

Referi-me ao retaacutebulo de 1471 como monumenshyto e ao contrato como documento ou seja consideshyrei o retaacutebulo como o objeto da investigaccedilatildeo ou material primaacuterio e o contrato como um instrumento de investigaccedilatildeo ou material secundaacuterio Assim proshycedendo falei como um historiador de arte Para um paleoacutegrafo ou um historiador das leis o contrato seria o monumento ou material primaacuterio e ambos poshyderiam usar quadros para documentaccedilatildeo

A menos que um estudioso se interesse exclusivashymente pelo que eacute chamado de eventos (nesse caso consideraria todos os registros existentes como mateshyrial secundaacuterio por meio do qual poderia reconstruir os eventos) os monumentos de uns satildeo os doshycumentos de outros e vice-versa No trabalho praacuteshytico somos mesmo compelidos a anexar monumenshytos que de direito pertencem a nossos colegas Muitas obras de arte tecircm sido interpretadas por filoacuteshylogos ou por historiadores de medicina e muitos textos

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tecircm sido interpretados e soacute o poderiam ser por hisshytoriadores de arte

Um historiador de arte portanto eacute um humanista cujo material primaacuterio consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte Mas o que eacute uma obra de arte

Nem sempre a obra de arte eacute criada com o proshypoacutesito exclusivo de ser apreciada ou para usar uma expressatildeo mais acadecircmica de ser experimentada esteshyticamente A afirmaccedilatildeo de Poussin de que la fin de lart est la deacutelectation era inteiramente revolucioshynaacuteria 8 na eacutepoca pois escritores mais antigos sempre insistiam em que a arte por mais agradaacutevel que fosse tambeacutem era de algum modo uacutetil Mas a obra de arte tem sempre significaccedilatildeo esteacutetica (natildeo confundir com valor esteacutetico) quer sirva ou natildeo a um fim praacutetico e quer seja boa ou maacute o tipo de experiecircncia que ela requer eacute sempre esteacutetico

Pode-se experimentar esteticamente todo objeto seja ele natural ou feito pelo homem f o que fazeshymos para expressar isso da maneira mais simples quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem relashycionaacute-lo intelectual ou emocionalmente com nada fora do objeto mesmo Quando um homem observa uma aacutervore do ponto de vista de um carpinteiro ele a associaraacute aos vaacuterios empregos que poderaacute dar agrave mashydeira quando a olha como um ornitoacutelogo haacute de assoshyciaacute-la com as aves que aiacute poderatildeo fazer seu ninho Quando um homem numa corrida de cavalos acomshypanha com o olhar a montaria na qual apostou assoshyciaraacute o desempenho desta com seu proacuteprio desejo de que ela venccedila o paacutereo Soacute aquele que se abandona

8 A BLuNT Poussins Notes on Painting Journat of the WaTbuTg Institute I 1937 p 344 e SS diz (p 349) que a afirmashyccedilatildeo de Poussin La fin de l art est la deacutelectation era de certo modo medieval pois a teorta da delectatio como slmbolo ou sinal pelo qual a beleza eacute reconhecida eacute a chave de toda a esteacutetica de Satildeo Boaventura e eacute bem posslvel que Poussin tenha tirado dai provavelmente atraveacutes de uma versatildeo populashyrizada sua defin iccedilatildeo En tretanto mesmo se o teor da frase de Poussin (oi influenciado por uma fonte medieval haacute uma grande diferenccedila entre a afirmaccedilatildeo de que delectatio eacute uma qualidade caTacteristica de tudo o que eacute belo quer seja natural ou feito pelo hom em e a assertiva de que delectato eacute o fim (meta) (fin) da arte

simples e totalmente ao objeto de sua percepccedilatildeo poshyderaacute experimentaacute-lo esteticamente 9

Ora quando nos defrontamos com um objeto natural a decisatildeo de experimentaacute-lo ou natildeo esteticashymente eacute questatildeo exclusivamente pessoal Um objeto feIto pelo homem entretanto exige ou natildeo para ser experimentado desse modo pois tem o que os estudiosos chamam de intenccedilatildeo Se eu decidisse como bem poderia fazer experimentar esteticamente a luz vermelha de um semaacuteforo em vez de associaacute-la agrave ideacuteia de pisar nos freios agiria contra a intenccedilatildeo da luz de traacutefego

Os objetos feitos pelo homem que natildeo exigem a experiecircncia esteacutetica satildeo comumente chamados de praacuteticos e podem dividir-se em duas categorias veiacuteshyculos de comunicaccedilatildeo e ferramentas ou aparelhos O veiacuteculo ou meio de comunicaccedilatildeo obedece ao intuito de transmitir um conceito A ferramenta ou aparelho obedece ao intuito de preencher uma funccedilatildeo (funccedilatildeo essa que por sua vez pode ser a de produzir e transshymitir comunicaccedilotildees como eacute o caso da maacutequina de escrever ou da luz do semaacuteforo acima mencionada)

A maioria dos objetos que exigem experiecircncia esteacutetica ou seja obras de arte tambeacutem pertencem a essas duas categorias Um poema ou uma pintura hisshytoacuterica satildeo em certo sentido veiacuteculos de comunicaccedilatildeo o Panteatildeo e os casticcedilais de Milatildeo satildeo em certo sentidoo

aparelhos e os tuacutemulos de Lorenzo e Giuliano de Mediei esculpidos por Michelangelo satildeo em certo sentido ambas as coisas Mas tenho que dizer num certo sentido pois haacute essa diferenccedila no caso do que se pode chamar de um mero veiacuteculo de comunishycaccedilatildeo ou um mero aparelho a intenccedilatildeo acha-se definitivamente fixada na ideacuteia da obra ou seja na mensagem a ser transmitida ou na funccedilatildeo a ser preenshychida No caso de uma obra de arte o interesse na

9 Ver M GEIGER Beltrlige zur Phlinomenologle des aestheshytlschen Genusses em Jah1buch Uuml1 Philosophie I Parte 2 1922 p 567 e ss Tambeacutem E WIND Aesthetische1 und kunstwissensshychaftliche1 Gegenstand Dlss phil Hamburgo 1923 reeditado em parte como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme Zeit5ch1ift fuuml1 Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 438 e 55

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~deacuteia eacute equilibrado e pode ateacute ser eclipsado por um mteresse na forma

Entretanto o elemento forma estaacute presente em todo objeto sem exceccedilatildeo pois todo objeto consiste de mateacuteria e forma e natildeo haacute maneira de se determinar com precisatildeo cientiacutefica em que medida num caso dado esse elemento da forma eacute o que recebe a ecircnfase Portanto natildeo se pode e natildeo se deve tentar definir o momento preciso em que o veiacuteculo de comunicaccedilatildeo ou aparelho comeccedila a ser obra de arte Se escrevo a um amigo convidando-Q para jantar minha carta eacute em primeiro lugar uma comunicaccedilatildeo Poreacutem quanto mais eu deslocar a ecircnfase para a forma do meu escrito tanto mais ele se tornaraacute uma obra de caligrafia e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem (poderia ateacute chegar a convidaacute-lo por meio de um soneto) mais a carta se converteraacute em uma obra de literatura ou poesia

Assim a esfera em que o campo dos objetos praacuteticos termina e o da arte comeccedila depende da intenccedilatildeo de seus criadores Essa intenccedilatildeo natildeo pode ser absolutamente determinada Em primeiro lugar eacute impossiacutevel definir as intenccedilotildees per se com precisatildeo cientiacutefica Em segundo as intenccedilotildees dashyqueles que produzem os objetos satildeo condicionadas pelos padrotildees da eacutepoca e meio ambiente em que vivem O gosto claacutessico exigia que cartas particulares disshycursos legais e escudos de heroacuteis fossem artiacutesticos (resultando possivelmente no que se poderia denoshyminar falsa beleza) enquanto que o gosto moderno exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam funcionais (resultando possivelmente no que poderia ser chashymado de falsa eficiecircncia) 10 Enfim nossa avaliaccedilatildeo

10 Funcionalismo significa num sentido estrito natildeo a Introduccedilatildeo de um novo principio esteacutetico mas uma delimitaccedilatildeo ainda maior do campo da esteacutetica Ao preferlnnos o moderno ~apacete ~e accedilo ao escudD de Aquilts ou achannos que a Intenccedilatildeo de um dISCUrso legal deverIa estar definitivamente e~ocadQ no tema e natildeo deveria ser deslocado para a fonna ( maIs mateacuteria e menos arte como diz corretamente a Rainha Gertrudes) exigimos apenas que armas e discursos legais natildeo sejam tratados como obras de arte quer dizer esteticamente mas como objetos praacuteticos Leacute tecnicamente Entretanto passhysou-se a conceber o funcionalismo como um postulado em lugar de um Interdito As civilizaccedilotildees claacutessica e renascentista na crenccedila de Que uma coisa meramente uacutetil natildeo podia se~ bela (non pui) essere bellezza e utlllU como declara Leoshy

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dessas intenccedilotildees eacute inevitavelmente influenciada por nossa proacutepria atitude que por sua vez depende de nossas experiecircncias individuais bem como de nossa situaccedilatildeo histoacuterica Vimos todos com nossos proacuteprios olhos os utensiacutelios e fetiches das tribos africanas serem transferidos dos museus de etnologia para as exposishyccedilotildees de arte

Uma coisa entretanto eacute certa quanto mais a proporccedilatildeo de ecircnfase na ideacuteia e forma se aproxima de um estado de equiliacutebrio mais eloquumlentemente a obra revelaraacute o que se chama conteuacutedo Conteuacutedo em oposiccedilatildeo a tema pode ser descrito nas palavras de Peirce como aquilo que a obra denuncia mas natildeo ostenta g a atitude baacutesica de uma naccedilatildeo periacuteodo classe crenccedila filosoacutefica ou religiosa - tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra g oacutebvio que essa revelaccedilatildeo involuntaacuteria seraacute empanada na medida em que um desses dois elementos ideacuteia ou forma for voluntashyriamente enfatizado ou suprimido A maacutequina de fiar talvez seja a mais impressionante manifestaccedilatildeo de uma ideacuteia funcional e uma pintura abstrata talvez seja a mais expressiva manifestaccedilatildeo de forma pura mas ambas tecircm um miacutenimo de conteuacutedo

IV

Ao definir uma obra de arte como um objeto feito pelo homem que pede para ser experimentado

nardo da Vinci ver J P RIClITZR The Litna1l Work8 01 Leonardo da Vinci Londres 1883 n 1445) caracterizam-se pela tendecircncia para estender a atitude esteacutetica a criaccedilotildees que satildeo naturalmente praacuteticas noacutes estendemos a atitude teacutecnica is criaccedilotildees que satildeo naturalmente artisticas Isso tambeacutem eacute uma Infraccedilatildeo e no caso do aerodinacircmico a arte teve sua desshyforra Aerodinacircmica era originalmente um genulno principio funcional baseado nos resultados clentiflcos de pesquiSas sobre a resistecircncia do ar Seu campo legitimo era portanto a aacuterea dos velculos de alta velocidade e das estruturas expostas a pressotildees de vento de extraordinaacuteria intensidade Mas quando esse dispositivo especial e verdadeiramente teacutecnico passou a ser Interpretado como um principio geral e esteacutetico expressando o Ideal de eficiecircncia do seacuteculo XX (aerodlnamlze-se) e foi aplicado a poltronas e coquetelelras sentiu-se que o aerodlnashymismo cientifico original precisava ser embelezado e foi finalmente retransferldo para seu devido lugar numa forma totalmente natildeo-funcionaI Como resultado hoje temos menos casas e moblllas funclonalizadas por engenheiros que carros e trens desfunclonallzados por projettstas

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 5: A História Da Arte Como Disciplina

prevalece no acircmbito das dimensotildees terrestres e foi observada muito antes

Todo conceito histoacuterico baseia-se obviamente nas categorias do espaccedilo e tempo Os registros e tudo o que implicam tecircm que ser localizados e datashydos Mas acontece que esses dois atos satildeo na realishydade dois aspectos de uma e mesma coisa Se eu disser que uma pintura data de cerca de 1400 essa afirmaccedilatildeo natildeo teria o miacutenimo sentido ou importacircncia a menos que pudesse indicar tambeacutem onde foi produshyzida nessa data inversamente se eu atribuir uma pinshytura agrave escola florentina preciso ser capaz de dizer quando foi produzida por essa escola O cosmo da cultura como o cosmo da natureza eacute uma estrutura espaccedilo-temporal O ano de 1400 em Florenccedila eacute totalshymente diferente do ano de 1400 em Veneza para natildeo falarmos de Augsburgo Ruacutessia ou Constantinopla Dois fenocircmenos histoacutericos satildeo simultacircneos ou apresenshytam uma relaccedilatildeo temporal entre si apenas na medida em que eacute possiacutevel relacionaacute-los dentro de um quadro de referecircncia sem o qual o proacuteprio conceito de sishymultaneidade natildeo teria sentido na histoacuteria assim como na fiacutesica Se soubeacutessemos por uma certa concateshynaccedilatildeo de circunstacircncias que uma dada escultura negra foi executada em 1510 natildeo teria sentido dizer que se trata de uma obra contemporacircnea ao teto da Capela Sistina de Michelangelo 6

Concluindo a sucessatildeo de passos pelos quais o material eacute organizado em cosmo natural ou cultural eacute anaacuteloga e o mesmo eacute verdade com respeito aos problemas metodoloacutegicos que esse processo implica O primeiro passo eacute como jaacute foi mencionado a observashyccedilatildeo dos fenocircmenos naturais e o exame dos registros humanos A seguir cumpre descodificar os registros e interpretaacute-los assim como as mensagens da natushyreza recebidas pelo observador Por fi m os resulshytados precisam ser classificados e coordenados num sistema coerente que faccedila sentido

Agora jaacute vimos que mesmo a seleccedilatildeo do material para observaccedilatildeo e exame eacute predeterminada ateacute certo

6 Ver eg E PANOFSKY Ueber dle Reihen folge der vier Meister von Reims (Apecircn dice) em Jahrbuch fuumlr K unstw issensshychatt II 1927 p 77 e S5

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ponto por uma teoria ou por uma concepccedilatildeo histoacuterica geneacuterica Isso eacute ainda mais evidente dentro do proacuteprio processo onde cada passo rumo ao sistema que faccedila sentido pressupotildee os precedentes e os subsequumlentes

Quando o cientista observa um fenocircmeno usa instrumentos que se acham por seu turno sujeitos agraves leis da natureza que pretende explorar Quando um humanista examina um registro usa documentos que satildeo por sua vez produzidos no decurso do processo que pretende investigar

Suponhamos que eu descubra nos arquivos de uma cidadezinha do vale do Reno um contrato dashytado de 1471 e complementado pelos registros de pagamento segundo os quais o pintor local Johannes qui et Frost recebeu a incumbecircncia de executar para a Igreja de St James dessa cidade um retaacutebulo com a Natividade ao centro e Satildeo Pedro e Satildeo Paulo um de cada lado suponhamos ainda mais que eu encontre na Igreja de St James um retaacutebulo corresshypondendo a esse contrato Este seria o caso em que a documentaccedilatildeo eacute tatildeo boa e simples quanto se poderia querer encontrar men~or e mais simples do que se precisaacutessemos lidar com uma fonte indireta como uma carta uma descriccedilatildeo numa cronica biografia diaacuterio ou poema No entanto ainda assim muitos problemas se apresentariam

O documento pode ser um original uma coacutepia ou uma falsificaccedilatildeo Se for uma coacutepia pode ser deshyfeituosa e mesmo se for um original eacute possiacutevel que algumas das informaccedilotildees sejam incorretas O retaacutebulo por sua vez pode ser aquele aludido no contrato mas eacute possiacutevel tambeacutem que o monumento original tenha sido destruiacutedo durante os distuacuterbios iconoclaacutesticos de 1535 e substituiacutedo por outro retaacutebulo pintado com os mesmos temas mas executado por volta de 1550 por um pintor de Antueacuterpia

Para chegar a um certo grau de certeza teriacuteamos de conferir o documento com outros de data e orishygem similar e o retaacutebulo com outras pinturas executashydas no vale do Reno por volta de 1470 Mas aqui surgem duas dificuldades

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Primeiro conferir eacute obviamente impossiacutevel sem sabermos o que conferir cumpriria escolher certos aspectos ou criteacuterios como certas formas de escrita ou alguns termos teacutecnicos usados no contrato ou alguma peculiaridade formal ou iconograacutefica do retaacutebulo Mas jaacute que natildeo podemos analisar o que natildeo compreendemos nosso exame pressupotildee descodifishycaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo

Segundo o material com o qual aferimos nosso problemaacutetico caso natildeo se apresenta em si mais aushytenticado do que o caso em questatildeo Tomacircdo indivishydualmente qualquer outro monumento assinado e dashytado eacute tatildeo duvidoso quanto o encomendado a Johanshynes qui et Frost em 1471 (e por si mesmo evidente que uma assinatura aposta num quadro pode ser e muitas vezes eacute tatildeo discutiacutevel quanto um documento a ele relacionado) Apenas com base em todo um grupo ou classe de dados eacute que podemos decidir se nosso retaacutebulo foi do ponto de vista estiliacutestico e icoshynograacutefico possiacutevel no vale do Reno por volta de 1470 Mas a classificaccedilatildeo pressupotildee eacute oacutebvio a ideacuteia de um todo ao qual as classes pertencem - em outras palavras a concepccedilatildeo histoacuterica geral que tentamos edishyficar a partir dos nossos casos individuais

De qualquer lado que se olhe o comeccedilo de nossa investigaccedilatildeo parece sempre pressupor seu fim e os documentos que deveriam explicar os monumentos satildeo tatildeo enigmaacuteticos quanto os proacuteprios monumentos e bem possiacutevel que um termo teacutecnico do nosso contrato seja um ~ampa~ Agrave-yOacuteiHOV tatildeo-somente explicaacutevel por este determinado retaacutebulo e o que um artista diz a respeito de suas obras deve sempre ser interpretado agrave luz das proacuteprias obras Estamos aparentemente num ciacuterculo vicioso Na realidade eacute o que os filoacutesofos chamam de situaccedilatildeo orgacircnica 7 Duas pernas sem um corpo natildeo podem andar e um corpo sem as pernas tampouco poreacutem um homem anda e verdade que os monumentos e documentos individuais soacute podem ser examinados interpretados e classificados agrave luz de um conceito histoacuterico geral ao mesmo tempo que soacute se pode erigir esse conceito histoacuterico geral com base

7 Devo esse tenno ao Professor T M Greene

em monumentos e documentos individuais do mesmo modo a compreensatildeo dos fenocircmenos naturais e o emshyprego dos instrumentos cientiacuteficos dependem de uma teoria fiacutesica generalizada e vice-versa Essa situaccedilatildeo no entanto natildeo eacute de jeito algum um beco sem saiacuteda Cada descoberta de um fato histoacuterico desconhecido e toda nova interpretaccedilatildeo de um jaacute conhecido ou se encaixaraacute na concepccedilatildeo geral predominante enrishyquecendo-a e corroborando-a por esse meio ou entatildeo acarretaraacute uma sutil ou ateacute fundamental mudanccedila na concepccedilatildeo geral predominante lanccedilando assim novas luzes sobre tudo o que era conhecido antes Em ambos os casos o sistema que faz sentido opera como um organismo coerente poreacutem elaacutestico comshyparaacutevel a um animal vivo quando contraposto a seus membros individuais e o que eacute verdade nas relaccedilotildees entre monumentos documentos e um conceito histoacuteshyrico geral nas humanidades eacute igualmente verdadeiro nas relaccedilotildees entre fenocircmenos instrumentos e teoria nas ciecircncias naturais

III

Referi-me ao retaacutebulo de 1471 como monumenshyto e ao contrato como documento ou seja consideshyrei o retaacutebulo como o objeto da investigaccedilatildeo ou material primaacuterio e o contrato como um instrumento de investigaccedilatildeo ou material secundaacuterio Assim proshycedendo falei como um historiador de arte Para um paleoacutegrafo ou um historiador das leis o contrato seria o monumento ou material primaacuterio e ambos poshyderiam usar quadros para documentaccedilatildeo

A menos que um estudioso se interesse exclusivashymente pelo que eacute chamado de eventos (nesse caso consideraria todos os registros existentes como mateshyrial secundaacuterio por meio do qual poderia reconstruir os eventos) os monumentos de uns satildeo os doshycumentos de outros e vice-versa No trabalho praacuteshytico somos mesmo compelidos a anexar monumenshytos que de direito pertencem a nossos colegas Muitas obras de arte tecircm sido interpretadas por filoacuteshylogos ou por historiadores de medicina e muitos textos

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tecircm sido interpretados e soacute o poderiam ser por hisshytoriadores de arte

Um historiador de arte portanto eacute um humanista cujo material primaacuterio consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte Mas o que eacute uma obra de arte

Nem sempre a obra de arte eacute criada com o proshypoacutesito exclusivo de ser apreciada ou para usar uma expressatildeo mais acadecircmica de ser experimentada esteshyticamente A afirmaccedilatildeo de Poussin de que la fin de lart est la deacutelectation era inteiramente revolucioshynaacuteria 8 na eacutepoca pois escritores mais antigos sempre insistiam em que a arte por mais agradaacutevel que fosse tambeacutem era de algum modo uacutetil Mas a obra de arte tem sempre significaccedilatildeo esteacutetica (natildeo confundir com valor esteacutetico) quer sirva ou natildeo a um fim praacutetico e quer seja boa ou maacute o tipo de experiecircncia que ela requer eacute sempre esteacutetico

Pode-se experimentar esteticamente todo objeto seja ele natural ou feito pelo homem f o que fazeshymos para expressar isso da maneira mais simples quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem relashycionaacute-lo intelectual ou emocionalmente com nada fora do objeto mesmo Quando um homem observa uma aacutervore do ponto de vista de um carpinteiro ele a associaraacute aos vaacuterios empregos que poderaacute dar agrave mashydeira quando a olha como um ornitoacutelogo haacute de assoshyciaacute-la com as aves que aiacute poderatildeo fazer seu ninho Quando um homem numa corrida de cavalos acomshypanha com o olhar a montaria na qual apostou assoshyciaraacute o desempenho desta com seu proacuteprio desejo de que ela venccedila o paacutereo Soacute aquele que se abandona

8 A BLuNT Poussins Notes on Painting Journat of the WaTbuTg Institute I 1937 p 344 e SS diz (p 349) que a afirmashyccedilatildeo de Poussin La fin de l art est la deacutelectation era de certo modo medieval pois a teorta da delectatio como slmbolo ou sinal pelo qual a beleza eacute reconhecida eacute a chave de toda a esteacutetica de Satildeo Boaventura e eacute bem posslvel que Poussin tenha tirado dai provavelmente atraveacutes de uma versatildeo populashyrizada sua defin iccedilatildeo En tretanto mesmo se o teor da frase de Poussin (oi influenciado por uma fonte medieval haacute uma grande diferenccedila entre a afirmaccedilatildeo de que delectatio eacute uma qualidade caTacteristica de tudo o que eacute belo quer seja natural ou feito pelo hom em e a assertiva de que delectato eacute o fim (meta) (fin) da arte

simples e totalmente ao objeto de sua percepccedilatildeo poshyderaacute experimentaacute-lo esteticamente 9

Ora quando nos defrontamos com um objeto natural a decisatildeo de experimentaacute-lo ou natildeo esteticashymente eacute questatildeo exclusivamente pessoal Um objeto feIto pelo homem entretanto exige ou natildeo para ser experimentado desse modo pois tem o que os estudiosos chamam de intenccedilatildeo Se eu decidisse como bem poderia fazer experimentar esteticamente a luz vermelha de um semaacuteforo em vez de associaacute-la agrave ideacuteia de pisar nos freios agiria contra a intenccedilatildeo da luz de traacutefego

Os objetos feitos pelo homem que natildeo exigem a experiecircncia esteacutetica satildeo comumente chamados de praacuteticos e podem dividir-se em duas categorias veiacuteshyculos de comunicaccedilatildeo e ferramentas ou aparelhos O veiacuteculo ou meio de comunicaccedilatildeo obedece ao intuito de transmitir um conceito A ferramenta ou aparelho obedece ao intuito de preencher uma funccedilatildeo (funccedilatildeo essa que por sua vez pode ser a de produzir e transshymitir comunicaccedilotildees como eacute o caso da maacutequina de escrever ou da luz do semaacuteforo acima mencionada)

A maioria dos objetos que exigem experiecircncia esteacutetica ou seja obras de arte tambeacutem pertencem a essas duas categorias Um poema ou uma pintura hisshytoacuterica satildeo em certo sentido veiacuteculos de comunicaccedilatildeo o Panteatildeo e os casticcedilais de Milatildeo satildeo em certo sentidoo

aparelhos e os tuacutemulos de Lorenzo e Giuliano de Mediei esculpidos por Michelangelo satildeo em certo sentido ambas as coisas Mas tenho que dizer num certo sentido pois haacute essa diferenccedila no caso do que se pode chamar de um mero veiacuteculo de comunishycaccedilatildeo ou um mero aparelho a intenccedilatildeo acha-se definitivamente fixada na ideacuteia da obra ou seja na mensagem a ser transmitida ou na funccedilatildeo a ser preenshychida No caso de uma obra de arte o interesse na

9 Ver M GEIGER Beltrlige zur Phlinomenologle des aestheshytlschen Genusses em Jah1buch Uuml1 Philosophie I Parte 2 1922 p 567 e ss Tambeacutem E WIND Aesthetische1 und kunstwissensshychaftliche1 Gegenstand Dlss phil Hamburgo 1923 reeditado em parte como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme Zeit5ch1ift fuuml1 Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 438 e 55

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~deacuteia eacute equilibrado e pode ateacute ser eclipsado por um mteresse na forma

Entretanto o elemento forma estaacute presente em todo objeto sem exceccedilatildeo pois todo objeto consiste de mateacuteria e forma e natildeo haacute maneira de se determinar com precisatildeo cientiacutefica em que medida num caso dado esse elemento da forma eacute o que recebe a ecircnfase Portanto natildeo se pode e natildeo se deve tentar definir o momento preciso em que o veiacuteculo de comunicaccedilatildeo ou aparelho comeccedila a ser obra de arte Se escrevo a um amigo convidando-Q para jantar minha carta eacute em primeiro lugar uma comunicaccedilatildeo Poreacutem quanto mais eu deslocar a ecircnfase para a forma do meu escrito tanto mais ele se tornaraacute uma obra de caligrafia e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem (poderia ateacute chegar a convidaacute-lo por meio de um soneto) mais a carta se converteraacute em uma obra de literatura ou poesia

Assim a esfera em que o campo dos objetos praacuteticos termina e o da arte comeccedila depende da intenccedilatildeo de seus criadores Essa intenccedilatildeo natildeo pode ser absolutamente determinada Em primeiro lugar eacute impossiacutevel definir as intenccedilotildees per se com precisatildeo cientiacutefica Em segundo as intenccedilotildees dashyqueles que produzem os objetos satildeo condicionadas pelos padrotildees da eacutepoca e meio ambiente em que vivem O gosto claacutessico exigia que cartas particulares disshycursos legais e escudos de heroacuteis fossem artiacutesticos (resultando possivelmente no que se poderia denoshyminar falsa beleza) enquanto que o gosto moderno exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam funcionais (resultando possivelmente no que poderia ser chashymado de falsa eficiecircncia) 10 Enfim nossa avaliaccedilatildeo

10 Funcionalismo significa num sentido estrito natildeo a Introduccedilatildeo de um novo principio esteacutetico mas uma delimitaccedilatildeo ainda maior do campo da esteacutetica Ao preferlnnos o moderno ~apacete ~e accedilo ao escudD de Aquilts ou achannos que a Intenccedilatildeo de um dISCUrso legal deverIa estar definitivamente e~ocadQ no tema e natildeo deveria ser deslocado para a fonna ( maIs mateacuteria e menos arte como diz corretamente a Rainha Gertrudes) exigimos apenas que armas e discursos legais natildeo sejam tratados como obras de arte quer dizer esteticamente mas como objetos praacuteticos Leacute tecnicamente Entretanto passhysou-se a conceber o funcionalismo como um postulado em lugar de um Interdito As civilizaccedilotildees claacutessica e renascentista na crenccedila de Que uma coisa meramente uacutetil natildeo podia se~ bela (non pui) essere bellezza e utlllU como declara Leoshy

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dessas intenccedilotildees eacute inevitavelmente influenciada por nossa proacutepria atitude que por sua vez depende de nossas experiecircncias individuais bem como de nossa situaccedilatildeo histoacuterica Vimos todos com nossos proacuteprios olhos os utensiacutelios e fetiches das tribos africanas serem transferidos dos museus de etnologia para as exposishyccedilotildees de arte

Uma coisa entretanto eacute certa quanto mais a proporccedilatildeo de ecircnfase na ideacuteia e forma se aproxima de um estado de equiliacutebrio mais eloquumlentemente a obra revelaraacute o que se chama conteuacutedo Conteuacutedo em oposiccedilatildeo a tema pode ser descrito nas palavras de Peirce como aquilo que a obra denuncia mas natildeo ostenta g a atitude baacutesica de uma naccedilatildeo periacuteodo classe crenccedila filosoacutefica ou religiosa - tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra g oacutebvio que essa revelaccedilatildeo involuntaacuteria seraacute empanada na medida em que um desses dois elementos ideacuteia ou forma for voluntashyriamente enfatizado ou suprimido A maacutequina de fiar talvez seja a mais impressionante manifestaccedilatildeo de uma ideacuteia funcional e uma pintura abstrata talvez seja a mais expressiva manifestaccedilatildeo de forma pura mas ambas tecircm um miacutenimo de conteuacutedo

IV

Ao definir uma obra de arte como um objeto feito pelo homem que pede para ser experimentado

nardo da Vinci ver J P RIClITZR The Litna1l Work8 01 Leonardo da Vinci Londres 1883 n 1445) caracterizam-se pela tendecircncia para estender a atitude esteacutetica a criaccedilotildees que satildeo naturalmente praacuteticas noacutes estendemos a atitude teacutecnica is criaccedilotildees que satildeo naturalmente artisticas Isso tambeacutem eacute uma Infraccedilatildeo e no caso do aerodinacircmico a arte teve sua desshyforra Aerodinacircmica era originalmente um genulno principio funcional baseado nos resultados clentiflcos de pesquiSas sobre a resistecircncia do ar Seu campo legitimo era portanto a aacuterea dos velculos de alta velocidade e das estruturas expostas a pressotildees de vento de extraordinaacuteria intensidade Mas quando esse dispositivo especial e verdadeiramente teacutecnico passou a ser Interpretado como um principio geral e esteacutetico expressando o Ideal de eficiecircncia do seacuteculo XX (aerodlnamlze-se) e foi aplicado a poltronas e coquetelelras sentiu-se que o aerodlnashymismo cientifico original precisava ser embelezado e foi finalmente retransferldo para seu devido lugar numa forma totalmente natildeo-funcionaI Como resultado hoje temos menos casas e moblllas funclonalizadas por engenheiros que carros e trens desfunclonallzados por projettstas

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

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Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 6: A História Da Arte Como Disciplina

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Primeiro conferir eacute obviamente impossiacutevel sem sabermos o que conferir cumpriria escolher certos aspectos ou criteacuterios como certas formas de escrita ou alguns termos teacutecnicos usados no contrato ou alguma peculiaridade formal ou iconograacutefica do retaacutebulo Mas jaacute que natildeo podemos analisar o que natildeo compreendemos nosso exame pressupotildee descodifishycaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo

Segundo o material com o qual aferimos nosso problemaacutetico caso natildeo se apresenta em si mais aushytenticado do que o caso em questatildeo Tomacircdo indivishydualmente qualquer outro monumento assinado e dashytado eacute tatildeo duvidoso quanto o encomendado a Johanshynes qui et Frost em 1471 (e por si mesmo evidente que uma assinatura aposta num quadro pode ser e muitas vezes eacute tatildeo discutiacutevel quanto um documento a ele relacionado) Apenas com base em todo um grupo ou classe de dados eacute que podemos decidir se nosso retaacutebulo foi do ponto de vista estiliacutestico e icoshynograacutefico possiacutevel no vale do Reno por volta de 1470 Mas a classificaccedilatildeo pressupotildee eacute oacutebvio a ideacuteia de um todo ao qual as classes pertencem - em outras palavras a concepccedilatildeo histoacuterica geral que tentamos edishyficar a partir dos nossos casos individuais

De qualquer lado que se olhe o comeccedilo de nossa investigaccedilatildeo parece sempre pressupor seu fim e os documentos que deveriam explicar os monumentos satildeo tatildeo enigmaacuteticos quanto os proacuteprios monumentos e bem possiacutevel que um termo teacutecnico do nosso contrato seja um ~ampa~ Agrave-yOacuteiHOV tatildeo-somente explicaacutevel por este determinado retaacutebulo e o que um artista diz a respeito de suas obras deve sempre ser interpretado agrave luz das proacuteprias obras Estamos aparentemente num ciacuterculo vicioso Na realidade eacute o que os filoacutesofos chamam de situaccedilatildeo orgacircnica 7 Duas pernas sem um corpo natildeo podem andar e um corpo sem as pernas tampouco poreacutem um homem anda e verdade que os monumentos e documentos individuais soacute podem ser examinados interpretados e classificados agrave luz de um conceito histoacuterico geral ao mesmo tempo que soacute se pode erigir esse conceito histoacuterico geral com base

7 Devo esse tenno ao Professor T M Greene

em monumentos e documentos individuais do mesmo modo a compreensatildeo dos fenocircmenos naturais e o emshyprego dos instrumentos cientiacuteficos dependem de uma teoria fiacutesica generalizada e vice-versa Essa situaccedilatildeo no entanto natildeo eacute de jeito algum um beco sem saiacuteda Cada descoberta de um fato histoacuterico desconhecido e toda nova interpretaccedilatildeo de um jaacute conhecido ou se encaixaraacute na concepccedilatildeo geral predominante enrishyquecendo-a e corroborando-a por esse meio ou entatildeo acarretaraacute uma sutil ou ateacute fundamental mudanccedila na concepccedilatildeo geral predominante lanccedilando assim novas luzes sobre tudo o que era conhecido antes Em ambos os casos o sistema que faz sentido opera como um organismo coerente poreacutem elaacutestico comshyparaacutevel a um animal vivo quando contraposto a seus membros individuais e o que eacute verdade nas relaccedilotildees entre monumentos documentos e um conceito histoacuteshyrico geral nas humanidades eacute igualmente verdadeiro nas relaccedilotildees entre fenocircmenos instrumentos e teoria nas ciecircncias naturais

III

Referi-me ao retaacutebulo de 1471 como monumenshyto e ao contrato como documento ou seja consideshyrei o retaacutebulo como o objeto da investigaccedilatildeo ou material primaacuterio e o contrato como um instrumento de investigaccedilatildeo ou material secundaacuterio Assim proshycedendo falei como um historiador de arte Para um paleoacutegrafo ou um historiador das leis o contrato seria o monumento ou material primaacuterio e ambos poshyderiam usar quadros para documentaccedilatildeo

A menos que um estudioso se interesse exclusivashymente pelo que eacute chamado de eventos (nesse caso consideraria todos os registros existentes como mateshyrial secundaacuterio por meio do qual poderia reconstruir os eventos) os monumentos de uns satildeo os doshycumentos de outros e vice-versa No trabalho praacuteshytico somos mesmo compelidos a anexar monumenshytos que de direito pertencem a nossos colegas Muitas obras de arte tecircm sido interpretadas por filoacuteshylogos ou por historiadores de medicina e muitos textos

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tecircm sido interpretados e soacute o poderiam ser por hisshytoriadores de arte

Um historiador de arte portanto eacute um humanista cujo material primaacuterio consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte Mas o que eacute uma obra de arte

Nem sempre a obra de arte eacute criada com o proshypoacutesito exclusivo de ser apreciada ou para usar uma expressatildeo mais acadecircmica de ser experimentada esteshyticamente A afirmaccedilatildeo de Poussin de que la fin de lart est la deacutelectation era inteiramente revolucioshynaacuteria 8 na eacutepoca pois escritores mais antigos sempre insistiam em que a arte por mais agradaacutevel que fosse tambeacutem era de algum modo uacutetil Mas a obra de arte tem sempre significaccedilatildeo esteacutetica (natildeo confundir com valor esteacutetico) quer sirva ou natildeo a um fim praacutetico e quer seja boa ou maacute o tipo de experiecircncia que ela requer eacute sempre esteacutetico

Pode-se experimentar esteticamente todo objeto seja ele natural ou feito pelo homem f o que fazeshymos para expressar isso da maneira mais simples quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem relashycionaacute-lo intelectual ou emocionalmente com nada fora do objeto mesmo Quando um homem observa uma aacutervore do ponto de vista de um carpinteiro ele a associaraacute aos vaacuterios empregos que poderaacute dar agrave mashydeira quando a olha como um ornitoacutelogo haacute de assoshyciaacute-la com as aves que aiacute poderatildeo fazer seu ninho Quando um homem numa corrida de cavalos acomshypanha com o olhar a montaria na qual apostou assoshyciaraacute o desempenho desta com seu proacuteprio desejo de que ela venccedila o paacutereo Soacute aquele que se abandona

8 A BLuNT Poussins Notes on Painting Journat of the WaTbuTg Institute I 1937 p 344 e SS diz (p 349) que a afirmashyccedilatildeo de Poussin La fin de l art est la deacutelectation era de certo modo medieval pois a teorta da delectatio como slmbolo ou sinal pelo qual a beleza eacute reconhecida eacute a chave de toda a esteacutetica de Satildeo Boaventura e eacute bem posslvel que Poussin tenha tirado dai provavelmente atraveacutes de uma versatildeo populashyrizada sua defin iccedilatildeo En tretanto mesmo se o teor da frase de Poussin (oi influenciado por uma fonte medieval haacute uma grande diferenccedila entre a afirmaccedilatildeo de que delectatio eacute uma qualidade caTacteristica de tudo o que eacute belo quer seja natural ou feito pelo hom em e a assertiva de que delectato eacute o fim (meta) (fin) da arte

simples e totalmente ao objeto de sua percepccedilatildeo poshyderaacute experimentaacute-lo esteticamente 9

Ora quando nos defrontamos com um objeto natural a decisatildeo de experimentaacute-lo ou natildeo esteticashymente eacute questatildeo exclusivamente pessoal Um objeto feIto pelo homem entretanto exige ou natildeo para ser experimentado desse modo pois tem o que os estudiosos chamam de intenccedilatildeo Se eu decidisse como bem poderia fazer experimentar esteticamente a luz vermelha de um semaacuteforo em vez de associaacute-la agrave ideacuteia de pisar nos freios agiria contra a intenccedilatildeo da luz de traacutefego

Os objetos feitos pelo homem que natildeo exigem a experiecircncia esteacutetica satildeo comumente chamados de praacuteticos e podem dividir-se em duas categorias veiacuteshyculos de comunicaccedilatildeo e ferramentas ou aparelhos O veiacuteculo ou meio de comunicaccedilatildeo obedece ao intuito de transmitir um conceito A ferramenta ou aparelho obedece ao intuito de preencher uma funccedilatildeo (funccedilatildeo essa que por sua vez pode ser a de produzir e transshymitir comunicaccedilotildees como eacute o caso da maacutequina de escrever ou da luz do semaacuteforo acima mencionada)

A maioria dos objetos que exigem experiecircncia esteacutetica ou seja obras de arte tambeacutem pertencem a essas duas categorias Um poema ou uma pintura hisshytoacuterica satildeo em certo sentido veiacuteculos de comunicaccedilatildeo o Panteatildeo e os casticcedilais de Milatildeo satildeo em certo sentidoo

aparelhos e os tuacutemulos de Lorenzo e Giuliano de Mediei esculpidos por Michelangelo satildeo em certo sentido ambas as coisas Mas tenho que dizer num certo sentido pois haacute essa diferenccedila no caso do que se pode chamar de um mero veiacuteculo de comunishycaccedilatildeo ou um mero aparelho a intenccedilatildeo acha-se definitivamente fixada na ideacuteia da obra ou seja na mensagem a ser transmitida ou na funccedilatildeo a ser preenshychida No caso de uma obra de arte o interesse na

9 Ver M GEIGER Beltrlige zur Phlinomenologle des aestheshytlschen Genusses em Jah1buch Uuml1 Philosophie I Parte 2 1922 p 567 e ss Tambeacutem E WIND Aesthetische1 und kunstwissensshychaftliche1 Gegenstand Dlss phil Hamburgo 1923 reeditado em parte como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme Zeit5ch1ift fuuml1 Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 438 e 55

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~deacuteia eacute equilibrado e pode ateacute ser eclipsado por um mteresse na forma

Entretanto o elemento forma estaacute presente em todo objeto sem exceccedilatildeo pois todo objeto consiste de mateacuteria e forma e natildeo haacute maneira de se determinar com precisatildeo cientiacutefica em que medida num caso dado esse elemento da forma eacute o que recebe a ecircnfase Portanto natildeo se pode e natildeo se deve tentar definir o momento preciso em que o veiacuteculo de comunicaccedilatildeo ou aparelho comeccedila a ser obra de arte Se escrevo a um amigo convidando-Q para jantar minha carta eacute em primeiro lugar uma comunicaccedilatildeo Poreacutem quanto mais eu deslocar a ecircnfase para a forma do meu escrito tanto mais ele se tornaraacute uma obra de caligrafia e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem (poderia ateacute chegar a convidaacute-lo por meio de um soneto) mais a carta se converteraacute em uma obra de literatura ou poesia

Assim a esfera em que o campo dos objetos praacuteticos termina e o da arte comeccedila depende da intenccedilatildeo de seus criadores Essa intenccedilatildeo natildeo pode ser absolutamente determinada Em primeiro lugar eacute impossiacutevel definir as intenccedilotildees per se com precisatildeo cientiacutefica Em segundo as intenccedilotildees dashyqueles que produzem os objetos satildeo condicionadas pelos padrotildees da eacutepoca e meio ambiente em que vivem O gosto claacutessico exigia que cartas particulares disshycursos legais e escudos de heroacuteis fossem artiacutesticos (resultando possivelmente no que se poderia denoshyminar falsa beleza) enquanto que o gosto moderno exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam funcionais (resultando possivelmente no que poderia ser chashymado de falsa eficiecircncia) 10 Enfim nossa avaliaccedilatildeo

10 Funcionalismo significa num sentido estrito natildeo a Introduccedilatildeo de um novo principio esteacutetico mas uma delimitaccedilatildeo ainda maior do campo da esteacutetica Ao preferlnnos o moderno ~apacete ~e accedilo ao escudD de Aquilts ou achannos que a Intenccedilatildeo de um dISCUrso legal deverIa estar definitivamente e~ocadQ no tema e natildeo deveria ser deslocado para a fonna ( maIs mateacuteria e menos arte como diz corretamente a Rainha Gertrudes) exigimos apenas que armas e discursos legais natildeo sejam tratados como obras de arte quer dizer esteticamente mas como objetos praacuteticos Leacute tecnicamente Entretanto passhysou-se a conceber o funcionalismo como um postulado em lugar de um Interdito As civilizaccedilotildees claacutessica e renascentista na crenccedila de Que uma coisa meramente uacutetil natildeo podia se~ bela (non pui) essere bellezza e utlllU como declara Leoshy

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dessas intenccedilotildees eacute inevitavelmente influenciada por nossa proacutepria atitude que por sua vez depende de nossas experiecircncias individuais bem como de nossa situaccedilatildeo histoacuterica Vimos todos com nossos proacuteprios olhos os utensiacutelios e fetiches das tribos africanas serem transferidos dos museus de etnologia para as exposishyccedilotildees de arte

Uma coisa entretanto eacute certa quanto mais a proporccedilatildeo de ecircnfase na ideacuteia e forma se aproxima de um estado de equiliacutebrio mais eloquumlentemente a obra revelaraacute o que se chama conteuacutedo Conteuacutedo em oposiccedilatildeo a tema pode ser descrito nas palavras de Peirce como aquilo que a obra denuncia mas natildeo ostenta g a atitude baacutesica de uma naccedilatildeo periacuteodo classe crenccedila filosoacutefica ou religiosa - tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra g oacutebvio que essa revelaccedilatildeo involuntaacuteria seraacute empanada na medida em que um desses dois elementos ideacuteia ou forma for voluntashyriamente enfatizado ou suprimido A maacutequina de fiar talvez seja a mais impressionante manifestaccedilatildeo de uma ideacuteia funcional e uma pintura abstrata talvez seja a mais expressiva manifestaccedilatildeo de forma pura mas ambas tecircm um miacutenimo de conteuacutedo

IV

Ao definir uma obra de arte como um objeto feito pelo homem que pede para ser experimentado

nardo da Vinci ver J P RIClITZR The Litna1l Work8 01 Leonardo da Vinci Londres 1883 n 1445) caracterizam-se pela tendecircncia para estender a atitude esteacutetica a criaccedilotildees que satildeo naturalmente praacuteticas noacutes estendemos a atitude teacutecnica is criaccedilotildees que satildeo naturalmente artisticas Isso tambeacutem eacute uma Infraccedilatildeo e no caso do aerodinacircmico a arte teve sua desshyforra Aerodinacircmica era originalmente um genulno principio funcional baseado nos resultados clentiflcos de pesquiSas sobre a resistecircncia do ar Seu campo legitimo era portanto a aacuterea dos velculos de alta velocidade e das estruturas expostas a pressotildees de vento de extraordinaacuteria intensidade Mas quando esse dispositivo especial e verdadeiramente teacutecnico passou a ser Interpretado como um principio geral e esteacutetico expressando o Ideal de eficiecircncia do seacuteculo XX (aerodlnamlze-se) e foi aplicado a poltronas e coquetelelras sentiu-se que o aerodlnashymismo cientifico original precisava ser embelezado e foi finalmente retransferldo para seu devido lugar numa forma totalmente natildeo-funcionaI Como resultado hoje temos menos casas e moblllas funclonalizadas por engenheiros que carros e trens desfunclonallzados por projettstas

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 7: A História Da Arte Como Disciplina

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tecircm sido interpretados e soacute o poderiam ser por hisshytoriadores de arte

Um historiador de arte portanto eacute um humanista cujo material primaacuterio consiste nos registros que nos chegaram sob a forma de obras de arte Mas o que eacute uma obra de arte

Nem sempre a obra de arte eacute criada com o proshypoacutesito exclusivo de ser apreciada ou para usar uma expressatildeo mais acadecircmica de ser experimentada esteshyticamente A afirmaccedilatildeo de Poussin de que la fin de lart est la deacutelectation era inteiramente revolucioshynaacuteria 8 na eacutepoca pois escritores mais antigos sempre insistiam em que a arte por mais agradaacutevel que fosse tambeacutem era de algum modo uacutetil Mas a obra de arte tem sempre significaccedilatildeo esteacutetica (natildeo confundir com valor esteacutetico) quer sirva ou natildeo a um fim praacutetico e quer seja boa ou maacute o tipo de experiecircncia que ela requer eacute sempre esteacutetico

Pode-se experimentar esteticamente todo objeto seja ele natural ou feito pelo homem f o que fazeshymos para expressar isso da maneira mais simples quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem relashycionaacute-lo intelectual ou emocionalmente com nada fora do objeto mesmo Quando um homem observa uma aacutervore do ponto de vista de um carpinteiro ele a associaraacute aos vaacuterios empregos que poderaacute dar agrave mashydeira quando a olha como um ornitoacutelogo haacute de assoshyciaacute-la com as aves que aiacute poderatildeo fazer seu ninho Quando um homem numa corrida de cavalos acomshypanha com o olhar a montaria na qual apostou assoshyciaraacute o desempenho desta com seu proacuteprio desejo de que ela venccedila o paacutereo Soacute aquele que se abandona

8 A BLuNT Poussins Notes on Painting Journat of the WaTbuTg Institute I 1937 p 344 e SS diz (p 349) que a afirmashyccedilatildeo de Poussin La fin de l art est la deacutelectation era de certo modo medieval pois a teorta da delectatio como slmbolo ou sinal pelo qual a beleza eacute reconhecida eacute a chave de toda a esteacutetica de Satildeo Boaventura e eacute bem posslvel que Poussin tenha tirado dai provavelmente atraveacutes de uma versatildeo populashyrizada sua defin iccedilatildeo En tretanto mesmo se o teor da frase de Poussin (oi influenciado por uma fonte medieval haacute uma grande diferenccedila entre a afirmaccedilatildeo de que delectatio eacute uma qualidade caTacteristica de tudo o que eacute belo quer seja natural ou feito pelo hom em e a assertiva de que delectato eacute o fim (meta) (fin) da arte

simples e totalmente ao objeto de sua percepccedilatildeo poshyderaacute experimentaacute-lo esteticamente 9

Ora quando nos defrontamos com um objeto natural a decisatildeo de experimentaacute-lo ou natildeo esteticashymente eacute questatildeo exclusivamente pessoal Um objeto feIto pelo homem entretanto exige ou natildeo para ser experimentado desse modo pois tem o que os estudiosos chamam de intenccedilatildeo Se eu decidisse como bem poderia fazer experimentar esteticamente a luz vermelha de um semaacuteforo em vez de associaacute-la agrave ideacuteia de pisar nos freios agiria contra a intenccedilatildeo da luz de traacutefego

Os objetos feitos pelo homem que natildeo exigem a experiecircncia esteacutetica satildeo comumente chamados de praacuteticos e podem dividir-se em duas categorias veiacuteshyculos de comunicaccedilatildeo e ferramentas ou aparelhos O veiacuteculo ou meio de comunicaccedilatildeo obedece ao intuito de transmitir um conceito A ferramenta ou aparelho obedece ao intuito de preencher uma funccedilatildeo (funccedilatildeo essa que por sua vez pode ser a de produzir e transshymitir comunicaccedilotildees como eacute o caso da maacutequina de escrever ou da luz do semaacuteforo acima mencionada)

A maioria dos objetos que exigem experiecircncia esteacutetica ou seja obras de arte tambeacutem pertencem a essas duas categorias Um poema ou uma pintura hisshytoacuterica satildeo em certo sentido veiacuteculos de comunicaccedilatildeo o Panteatildeo e os casticcedilais de Milatildeo satildeo em certo sentidoo

aparelhos e os tuacutemulos de Lorenzo e Giuliano de Mediei esculpidos por Michelangelo satildeo em certo sentido ambas as coisas Mas tenho que dizer num certo sentido pois haacute essa diferenccedila no caso do que se pode chamar de um mero veiacuteculo de comunishycaccedilatildeo ou um mero aparelho a intenccedilatildeo acha-se definitivamente fixada na ideacuteia da obra ou seja na mensagem a ser transmitida ou na funccedilatildeo a ser preenshychida No caso de uma obra de arte o interesse na

9 Ver M GEIGER Beltrlige zur Phlinomenologle des aestheshytlschen Genusses em Jah1buch Uuml1 Philosophie I Parte 2 1922 p 567 e ss Tambeacutem E WIND Aesthetische1 und kunstwissensshychaftliche1 Gegenstand Dlss phil Hamburgo 1923 reeditado em parte como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme Zeit5ch1ift fuuml1 Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 438 e 55

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~deacuteia eacute equilibrado e pode ateacute ser eclipsado por um mteresse na forma

Entretanto o elemento forma estaacute presente em todo objeto sem exceccedilatildeo pois todo objeto consiste de mateacuteria e forma e natildeo haacute maneira de se determinar com precisatildeo cientiacutefica em que medida num caso dado esse elemento da forma eacute o que recebe a ecircnfase Portanto natildeo se pode e natildeo se deve tentar definir o momento preciso em que o veiacuteculo de comunicaccedilatildeo ou aparelho comeccedila a ser obra de arte Se escrevo a um amigo convidando-Q para jantar minha carta eacute em primeiro lugar uma comunicaccedilatildeo Poreacutem quanto mais eu deslocar a ecircnfase para a forma do meu escrito tanto mais ele se tornaraacute uma obra de caligrafia e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem (poderia ateacute chegar a convidaacute-lo por meio de um soneto) mais a carta se converteraacute em uma obra de literatura ou poesia

Assim a esfera em que o campo dos objetos praacuteticos termina e o da arte comeccedila depende da intenccedilatildeo de seus criadores Essa intenccedilatildeo natildeo pode ser absolutamente determinada Em primeiro lugar eacute impossiacutevel definir as intenccedilotildees per se com precisatildeo cientiacutefica Em segundo as intenccedilotildees dashyqueles que produzem os objetos satildeo condicionadas pelos padrotildees da eacutepoca e meio ambiente em que vivem O gosto claacutessico exigia que cartas particulares disshycursos legais e escudos de heroacuteis fossem artiacutesticos (resultando possivelmente no que se poderia denoshyminar falsa beleza) enquanto que o gosto moderno exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam funcionais (resultando possivelmente no que poderia ser chashymado de falsa eficiecircncia) 10 Enfim nossa avaliaccedilatildeo

10 Funcionalismo significa num sentido estrito natildeo a Introduccedilatildeo de um novo principio esteacutetico mas uma delimitaccedilatildeo ainda maior do campo da esteacutetica Ao preferlnnos o moderno ~apacete ~e accedilo ao escudD de Aquilts ou achannos que a Intenccedilatildeo de um dISCUrso legal deverIa estar definitivamente e~ocadQ no tema e natildeo deveria ser deslocado para a fonna ( maIs mateacuteria e menos arte como diz corretamente a Rainha Gertrudes) exigimos apenas que armas e discursos legais natildeo sejam tratados como obras de arte quer dizer esteticamente mas como objetos praacuteticos Leacute tecnicamente Entretanto passhysou-se a conceber o funcionalismo como um postulado em lugar de um Interdito As civilizaccedilotildees claacutessica e renascentista na crenccedila de Que uma coisa meramente uacutetil natildeo podia se~ bela (non pui) essere bellezza e utlllU como declara Leoshy

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dessas intenccedilotildees eacute inevitavelmente influenciada por nossa proacutepria atitude que por sua vez depende de nossas experiecircncias individuais bem como de nossa situaccedilatildeo histoacuterica Vimos todos com nossos proacuteprios olhos os utensiacutelios e fetiches das tribos africanas serem transferidos dos museus de etnologia para as exposishyccedilotildees de arte

Uma coisa entretanto eacute certa quanto mais a proporccedilatildeo de ecircnfase na ideacuteia e forma se aproxima de um estado de equiliacutebrio mais eloquumlentemente a obra revelaraacute o que se chama conteuacutedo Conteuacutedo em oposiccedilatildeo a tema pode ser descrito nas palavras de Peirce como aquilo que a obra denuncia mas natildeo ostenta g a atitude baacutesica de uma naccedilatildeo periacuteodo classe crenccedila filosoacutefica ou religiosa - tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra g oacutebvio que essa revelaccedilatildeo involuntaacuteria seraacute empanada na medida em que um desses dois elementos ideacuteia ou forma for voluntashyriamente enfatizado ou suprimido A maacutequina de fiar talvez seja a mais impressionante manifestaccedilatildeo de uma ideacuteia funcional e uma pintura abstrata talvez seja a mais expressiva manifestaccedilatildeo de forma pura mas ambas tecircm um miacutenimo de conteuacutedo

IV

Ao definir uma obra de arte como um objeto feito pelo homem que pede para ser experimentado

nardo da Vinci ver J P RIClITZR The Litna1l Work8 01 Leonardo da Vinci Londres 1883 n 1445) caracterizam-se pela tendecircncia para estender a atitude esteacutetica a criaccedilotildees que satildeo naturalmente praacuteticas noacutes estendemos a atitude teacutecnica is criaccedilotildees que satildeo naturalmente artisticas Isso tambeacutem eacute uma Infraccedilatildeo e no caso do aerodinacircmico a arte teve sua desshyforra Aerodinacircmica era originalmente um genulno principio funcional baseado nos resultados clentiflcos de pesquiSas sobre a resistecircncia do ar Seu campo legitimo era portanto a aacuterea dos velculos de alta velocidade e das estruturas expostas a pressotildees de vento de extraordinaacuteria intensidade Mas quando esse dispositivo especial e verdadeiramente teacutecnico passou a ser Interpretado como um principio geral e esteacutetico expressando o Ideal de eficiecircncia do seacuteculo XX (aerodlnamlze-se) e foi aplicado a poltronas e coquetelelras sentiu-se que o aerodlnashymismo cientifico original precisava ser embelezado e foi finalmente retransferldo para seu devido lugar numa forma totalmente natildeo-funcionaI Como resultado hoje temos menos casas e moblllas funclonalizadas por engenheiros que carros e trens desfunclonallzados por projettstas

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 8: A História Da Arte Como Disciplina

~deacuteia eacute equilibrado e pode ateacute ser eclipsado por um mteresse na forma

Entretanto o elemento forma estaacute presente em todo objeto sem exceccedilatildeo pois todo objeto consiste de mateacuteria e forma e natildeo haacute maneira de se determinar com precisatildeo cientiacutefica em que medida num caso dado esse elemento da forma eacute o que recebe a ecircnfase Portanto natildeo se pode e natildeo se deve tentar definir o momento preciso em que o veiacuteculo de comunicaccedilatildeo ou aparelho comeccedila a ser obra de arte Se escrevo a um amigo convidando-Q para jantar minha carta eacute em primeiro lugar uma comunicaccedilatildeo Poreacutem quanto mais eu deslocar a ecircnfase para a forma do meu escrito tanto mais ele se tornaraacute uma obra de caligrafia e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem (poderia ateacute chegar a convidaacute-lo por meio de um soneto) mais a carta se converteraacute em uma obra de literatura ou poesia

Assim a esfera em que o campo dos objetos praacuteticos termina e o da arte comeccedila depende da intenccedilatildeo de seus criadores Essa intenccedilatildeo natildeo pode ser absolutamente determinada Em primeiro lugar eacute impossiacutevel definir as intenccedilotildees per se com precisatildeo cientiacutefica Em segundo as intenccedilotildees dashyqueles que produzem os objetos satildeo condicionadas pelos padrotildees da eacutepoca e meio ambiente em que vivem O gosto claacutessico exigia que cartas particulares disshycursos legais e escudos de heroacuteis fossem artiacutesticos (resultando possivelmente no que se poderia denoshyminar falsa beleza) enquanto que o gosto moderno exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam funcionais (resultando possivelmente no que poderia ser chashymado de falsa eficiecircncia) 10 Enfim nossa avaliaccedilatildeo

10 Funcionalismo significa num sentido estrito natildeo a Introduccedilatildeo de um novo principio esteacutetico mas uma delimitaccedilatildeo ainda maior do campo da esteacutetica Ao preferlnnos o moderno ~apacete ~e accedilo ao escudD de Aquilts ou achannos que a Intenccedilatildeo de um dISCUrso legal deverIa estar definitivamente e~ocadQ no tema e natildeo deveria ser deslocado para a fonna ( maIs mateacuteria e menos arte como diz corretamente a Rainha Gertrudes) exigimos apenas que armas e discursos legais natildeo sejam tratados como obras de arte quer dizer esteticamente mas como objetos praacuteticos Leacute tecnicamente Entretanto passhysou-se a conceber o funcionalismo como um postulado em lugar de um Interdito As civilizaccedilotildees claacutessica e renascentista na crenccedila de Que uma coisa meramente uacutetil natildeo podia se~ bela (non pui) essere bellezza e utlllU como declara Leoshy

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dessas intenccedilotildees eacute inevitavelmente influenciada por nossa proacutepria atitude que por sua vez depende de nossas experiecircncias individuais bem como de nossa situaccedilatildeo histoacuterica Vimos todos com nossos proacuteprios olhos os utensiacutelios e fetiches das tribos africanas serem transferidos dos museus de etnologia para as exposishyccedilotildees de arte

Uma coisa entretanto eacute certa quanto mais a proporccedilatildeo de ecircnfase na ideacuteia e forma se aproxima de um estado de equiliacutebrio mais eloquumlentemente a obra revelaraacute o que se chama conteuacutedo Conteuacutedo em oposiccedilatildeo a tema pode ser descrito nas palavras de Peirce como aquilo que a obra denuncia mas natildeo ostenta g a atitude baacutesica de uma naccedilatildeo periacuteodo classe crenccedila filosoacutefica ou religiosa - tudo isso qualificado inconscientemente por uma personalidade e condensado numa obra g oacutebvio que essa revelaccedilatildeo involuntaacuteria seraacute empanada na medida em que um desses dois elementos ideacuteia ou forma for voluntashyriamente enfatizado ou suprimido A maacutequina de fiar talvez seja a mais impressionante manifestaccedilatildeo de uma ideacuteia funcional e uma pintura abstrata talvez seja a mais expressiva manifestaccedilatildeo de forma pura mas ambas tecircm um miacutenimo de conteuacutedo

IV

Ao definir uma obra de arte como um objeto feito pelo homem que pede para ser experimentado

nardo da Vinci ver J P RIClITZR The Litna1l Work8 01 Leonardo da Vinci Londres 1883 n 1445) caracterizam-se pela tendecircncia para estender a atitude esteacutetica a criaccedilotildees que satildeo naturalmente praacuteticas noacutes estendemos a atitude teacutecnica is criaccedilotildees que satildeo naturalmente artisticas Isso tambeacutem eacute uma Infraccedilatildeo e no caso do aerodinacircmico a arte teve sua desshyforra Aerodinacircmica era originalmente um genulno principio funcional baseado nos resultados clentiflcos de pesquiSas sobre a resistecircncia do ar Seu campo legitimo era portanto a aacuterea dos velculos de alta velocidade e das estruturas expostas a pressotildees de vento de extraordinaacuteria intensidade Mas quando esse dispositivo especial e verdadeiramente teacutecnico passou a ser Interpretado como um principio geral e esteacutetico expressando o Ideal de eficiecircncia do seacuteculo XX (aerodlnamlze-se) e foi aplicado a poltronas e coquetelelras sentiu-se que o aerodlnashymismo cientifico original precisava ser embelezado e foi finalmente retransferldo para seu devido lugar numa forma totalmente natildeo-funcionaI Como resultado hoje temos menos casas e moblllas funclonalizadas por engenheiros que carros e trens desfunclonallzados por projettstas

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 9: A História Da Arte Como Disciplina

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tica intuitiva incluindo a percepccedilatildeo e a apreciaccedilatildeo da esteticamente encontramos pela primeira vez a difeshy

renccedila baacutesica entre humanidades e ciecircncias naturais O cientista trabalhando como o faz com fenocircmenos nashyturais pode analisaacute-los de pronto

O humanista trabalhando como o faz com as accedilotildees e criaccedilotildees humanas tem que se empenhar em um processo mental de caraacuteter sinteacutetico e subjetivo precisa refazer as accedilotildees e recriar as criaccedilotildees mentalshymente De fato eacute por esse processo que os objetos reais das humanidades nascem Pois eacute oacutebvio que os historiadores de filosofia ou escultura se preocupam com livros e estaacutetuas natildeo na medida em que estes existem materialmente e sim na medida em que esses tecircm um significado E eacute natildeo menos oacutebvio que este significado soacute eacute apreensiacutevel pela reproduccedilatildeo e portanto no sentido quase literal pela realizaccedilatildeo dos pensashymentos expressos nos livros e das concepccedilotildees artiacutesticas que se manifestam nas estaacutetuas

Assim o historiador de arte submete seu mateshyrial a uma anaacutelise arqueoloacutegica racional por vezes tatildeo meticulosamente exata extensa e intricada quanto uma pesquisa de fiacutesica ou astronomia Mas ele consshytitui seu material por meio de uma recriaccedilatildeo 11 esteacuteshy

11 Todavia quando falamos de recriaccedilatildeo eacute importante enfatizar o prefixo re As obras de arte satildeo ao m esmo tempo manifestaccedilotildees de in tenccedilotildees a rtiacutesticas e objetos natu rais agraves vezes diflceis de isolar de seu ambiente f lsico e sem pre suje itas ao processo fisico do envelh ecimento Assim ao ex perim en tar uma obra de arte esteticamente perpetramos dois a tos totalshymente diversos que entretanto se f undem psicologicam ente um com o outro numa uacutenica Erlebnis construlmos nosso objeto esteacute shytico recriando a obra de arte de acordo com a intenccedilatildeo de seu autor e cr iando livremente um conjun to de valores esteacuteticos comparaacuteveis aos que atribuimos a uma aacutervore ou a um potildershydo-sol Quando nos abandonam os agrave impressatildeo das descoradas esculturas de Chartres natildeo podem os deixar de apreciar sua bela maturidade e paacutetlna como valoc esteacutetico mas esse valor que implica tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar de luzes e cores com o o deleite mais sentimental devido agrave Idade e au tenticidade nada tem a ver Com o valor ob jetivo ou artlstico com que os autores Investiram as esculturas Do ponto de vista do entalhador de pedra goacutetico o p rocesso de envelhecimento natildeo era SOacute Irrelevante com o positivam ente indeshysejaacutevel tentou proteger suas estaacutetuas com uma dematildeo de cor que se conservada em seu frescor origin al p rov avelmente estrashygaria boa parte de nosso prazer esteacutetico Justifica-se in teirashymente que o h istoriador de arte como pessoa particular natildeo destrua a unidade psicoloacutegica do Alters-und-Echthetts-Erlebnis e Kunst -Erlebnis Mas como profissional tem qu e separar tanto quanto possiacutevel a experiecircncia recrlativa dos valores intenshycionais dados agrave estaacutetua pelo artista da experiecircncia criativa dos valores acidentais dados a um pedaccedilo de pedra antiga pela accedilatildeo da natureza Muitas vezes essa separaccedilatildeo natildeo eacute tatildeo faacutecil quanto se supotildee

qualidade do mesmo modo que uma pessoa coshymum o faz quando ele ou ela vecirc um quadro ou escuta uma sinfonia

Como poreacutem eacute possiacutevel erigir a histoacuteria da arte numa disciplina de estudo respeitada se seus proacuteprios objetos nascem de um processo irracional e subjetivo

Natildeo se pode responder agrave pergunta eacute claro tendo em vista os meacutetodos cientiacuteficos que tecircm sido ou podem ser introduzidos na histoacuteria da arte Artifiacutecios como anaacutelise quiacutemica dos materiais raios X raios ultravioleshyta raios infravermelhos e macrofotografia satildeo muito uacuteteis mas seu emprego nada tem a ver com o problema metodoloacutegico baacutesico Uma afirmaccedilatildeo segundo a qual os pigmentos usados numa miniatura pretensamente medieval natildeo foram inventados antes do seacuteculo XIX pode resolver uma questatildeo de histoacuteria da arte mas natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo de histoacuteria da arte Baseada como eacute na anaacutelise quiacutemica e tambeacutem na histoacuteria da quiacutemica diz respeito agrave miniatura natildeo qua obra de arte mas qua objeto fiacutesico e pode do mesmo modo referir-se a um testamento forjado O uSQ de raios X e macrofoshytografias por outro lado natildeo difere sob o aspecto metoacutedico do uso de oacuteculos ou de lentes de aumento Esses artifiacutecios permitem ao historiador de arte ver mais do que poderia fazecirc-lo sem eles poreacutem aquilo que vecirc precisa ser interpretado estilisticamente como aquilo que percebe a olho nu

A verdadeira resposta estaacute no fato de a recriaccedilatildeo esteacutetica intuitiva e a pesquisa arqueoloacutegica serem intershyligadas de modo a formar o que jaacute chamamos antes de situaccedilatildeo orgacircnica Natildeo eacute verdade que o historiador de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma siacutentese recriativa para sOacute depois comeccedilar a investigaccedilatildeo arqueoloacutegica - como se primeiro comprasse o bilhete para depois entrar no trem Na realidade os dois processos natildeo sucedem um ao outro mas se interpeshynetram a siacutentese recriativa serve de base para a invesshytigaccedilatildeo arqueoloacutegica e esta por sua vez serve de base para o processo recriativo ambas se qualificam e se retificam mutuamente

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 10: A História Da Arte Como Disciplina

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Quem quer que se defronte com uma obra de arte seja recriando-a esteticamente seja investigando-a racionalmente eacute afetada por seus trecircs componentes forma materializada ideacuteia (ou seja tema nas artes plaacutesticas) e conteuacutedo A teoria pseudo-impressionista segundo a qual forma e cor nos falam de forma e cor e isso eacute tudo eacute simplesmente incorreta Na expeshyriecircncia esteacutetica realiza-se a unidade desses trecircs eleshymentos e todos trecircs entram no que chamamos de gozo esteacutetico da arte

A experiecircncia recriativa de uma obra de arte deshypende portanto natildeo apenas da sensibilidade natural e do preparo visual do espectador mas tambeacutem de sua bagagem cultural Natildeo haacute espectador totalmente ingecircnuo O observador ingecircnuo da Idade Meacutedia tinha muito que aprender e algo a esquecer ateacute que pudesse apreciar a estatuaacuteria e arquitetura claacutessicas e o observador ingecircnuo do periacuteodo poacutes-renascentista tinha muito a esquecer e algo a aprender ateacute que pudesse apreciar a arte medieval para natildeo falarmos da primitiva Assim o observador ingecircnuo natildeo goza apenas mas tambeacutem inconscientemente avalia e intershypreta a obra de arte e ningueacutem pode culpaacute-lo se o faz sem se importar em saber se sua apreciaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo estatildeo certas ou erradas e sem compreenshyder que sua proacutepria bagagem cultural contribui na verdade para o objeto de sua experiecircncia

O observador ingecircnuo difere do historiador de arte pois o uacuteltimo estaacute cocircnscio da situaccedilatildeo Sabe que sua bagagem cultural tal como eacute natildeo harmonizaria com a de outras pessoas de outros paiacuteses e de outros periacuteodos Tenta portanto ajustar-se instruindo-se o maacuteximo possiacutevel sobre as circunstacircncias em que os objetos de seus estudos foram criados Natildeo apenas coligiraacute e verificaraacute toda informaccedilatildeo fatual existente quanto a meio condiccedilatildeo idade autoria destino etc mas compararaacute tambeacutem a obra com outras de mesma classe e examinaraacute escritos que reflitam os padrotildees esteacuteticos de seu paiacutes e eacutepoca a fim de conseshyguir uma apreciaccedilatildeo mais objetiva de sua qualidade Leraacute velhos livros de teologia e mitologia para poder identificar o assunto tratado e tentaraacute ulteriormente

determinar seu lugar histoacuterico e separar a contribuiccedilatildeo individual de seu autor da contribuiccedilatildeo de seus anteshypassados e contemporacircneos Estudaraacute os princiacutepios formais que controlam a representaccedilatildeo do mundo vishysiacutevel ou em arquitetura o manejo do que se pode chamar de caracteriacutesticas estruturais e assim construir a histoacuteria dos motivos Observaraacute a interligaccedilatildeo entre as influecircncias das fontes literaacuterias e os efeitos de dependecircncia muacutetua das tradiccedilotildees representacionais a fim de estabelecer a histoacuteria das foacutermulas iconograacuteshyficas ou tipos E faraacute o maacuteximo possiacutevel para se familiarizar com as atitudes religiosas sociais e filoshysoacuteficas de outras eacutepocas e paiacuteses de modo a corrigir sua proacutepria apreciaccedilatildeo subjetiva do conteuacutedo 12 Mas ao fazer tudo isso sua percepccedilatildeo esteacutetica como tal mudaraacute nessa conformidade e cada vez mais se adapshytaraacute agrave intenccedilatildeo original das obras Assim o que o historiador de arte faz em oposiccedilatildeo ao apreciador de arte ingecircnuo natildeo eacute erigir uma superestrutura racioshynal em bases irracionais mas desenvolver suas expeshyriecircncias recriativas de forma a afeiccediloaacute-las ao resultado de sua pesquisa arqueoloacutegica ao mesmo tempo que afere continuamente os resultados de sua pesquisa arqueoloacutegica com a evidecircncia de suas experiecircncias reshycriativas 13

12 Para os termos teacutecnicos usados neste paraacutegrafo ver The Introduction to E Panofsky Studies in Iconolo1ll reedishytado aqui nas pp 45-85

13 O mesmo eacute vaacutelido por certo para a h 5toacuteria da liteshyratura e outras formas de expressatildeo artlstlca Segundo Dionysius Thrax ( ATs GTammatica ed Uhlig XXX 1883 p 5 e 55 citado em GILBERT MURRAY Religio GTammatici Tlte Religion ot a Man of LetteTs Boston e Nova York 1918 p 15) ~pallf1aTIK~ (hlstoacuteshyria da literatura como dirlamos) eacute uma t~TT( pla (conheCImento baseado na experiecircncia) daquilo que foi dito pelos poetas e escritores de prosa Ele a divide em seis partes sendo posslvel encontrar para cada uma delas um paralelo na histoacuteria da arte

1) OacutevaacuteyV()CTl Ccedil lVTP I 6~ccedil KaTcr rrpoOcgtotildeiacuteav (leitura teacutecnica em voz alta segu ndo ltl prosoacutedia ) isso eacute na verdade a recriaccedilatildeo esteacuteshytica sinteacutetica de uma obra de literatura e comparaacutevel fi realishyzaccedilatildeo visual de uma obra de arte shy

2) t~TIacuteY lcr l ccedil KaTagrave TOUCcedil l vvrraacutepxoVTaccedil TTOIlTIKoUCcedil TOOacuteTTOuccedil (explanaccedilatildeo das ficuras de linguagem que apareccedilam) seria comshyparaacuteve l fi histoacuteria das loacutermulas iconograacuteficas ou tipos

3) yNlcrcreacuteiN TE Kal CTTOpl~lV TTPOacuteXE lpOCcedil aacuteTlOacuteOtildeocrICcedil (interpretaccedilatildeo Imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos ) idenshytificaccedilatildeo do tema iconograacutefico

4) h Ullo)oyiacuteaccedil EUacutePlOICcedil (descoberta das etimologias) derivashyccedilatildeo dos motivos

5) CrvaAgraveoyiacuteaccedil lK)oYlcrlOacutelt (explanaccedilatildeo das formas gramaticais) anaacutelise da estrutura da composiccedilatildeo

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Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 11: A História Da Arte Como Disciplina

Leonardo da Vinci disse Duas fraquezas apoiando-se uma contra a outra resultam numa forccedila 14 As metades de um arco sozinhas natildeo conshyseguem se manter em peacute Do mesmo modo a pesquisa arqueoloacutegica eacute cega e vazia sem a recriaccedilatildeo esteacutetica ao passo que esta eacute irracional extravial)do-se muitas vezes sem a pesquisa arqueoloacutegica Mas apoiando-se uma contra a outra as duas podem suportar um sisshytema que faccedila sentido ou seja uma sinopse histoacuterica

Como jaacute afirmei antes ningueacutem pode ser condeshynado por desfrutar obras de arte ingenuamente ~ por apreciaacute-las e interpretaacute-las segundo suas luzes sem se importar com nada mais Mas o humanista veraacute com suspeita aquilo que se pode chamar de apreciashytivismo Aquele que ensina pessoas inocentes a compreender a arte sem preocupaccedilatildeo com liacutenguas claacutesshysicas meacutetodos histoacutericos cansativos e velhos e empoeishyrados documentos priva a ingenuidade de todo o seu encanto sem corrigir-lhe os erros

6) KpiacuteOICcedil lTol~~aacuteTV Oacute 6 KaacuteAgraveAgraveICTTOacuteV EacuteCTTI 1fOacuteVTV TWV Eacutev -rij TEacuteXVl] (cntlca lt teraacutena cUJa parte mais bela eacute a camp reemlida pela rpa~~irrIK~ ) apreciaccedilatildeo criacutetica das abras de arte

A expressatilde o apreciaccedilatildeo critica d as abras de arte suscita uma questatildeo interessante Se a h istoacuteria da arte admite u m a escala de valares assim cama a histoacuteria da literatura a u a histoacuteria palltica admitem uma gradaccedilatildeo par gran deza au exceshylecircncia cama justificaremas a fato de as meacutetadas aqui expastas natildeo permitirem ao que parece uma diferenciaccedilatildeo entre prishymeira segunda e terceira categaria de abras de a r te Ora uma escala de valares eacute em parte um prablema de reaccedilotildees pessaais e em parte um prablema de tradiccedilatildeo Esses dais padrotildees das quais a segunda eacute camparativamente a mais abjetiva precisam ser cantinuamente revistas e cada investigaccedilatildeo par mais espeshycializada que seja cant r ibui para esse pracessa Par essa mesma razatildeo a histariadar de arte natildeo pade fazer uma distinccedilatildeo a priori entre seu meacutetada de abardar uma abra-prima e uma obra de arte mediacuteacre au inferiar - assim cam a u m estushydante de literatura claacutessica eacute abrigada a investigar as trageacutedias de Soacutefacles da mesma maneira que a naUsa as de Secircneca l verdade que as meacutetadas da histoacuteria da arte mastraratildea sua efeti shyvidade qua meacutetados quando aplicadas ta nta agrave Melencotia de Duumlrer coma a um entalhe anoacutenimo e desim portan te Mas quando uma obra-prima eacute comparada e vinculada a outras tantas obras de menor im partacircn cia quantas as q ue se afigushyram no decurso da investigaccedilatildeo com o comparaacuteveis e vinculaacuteveis a ela a originalidade de sua uumllVenccedilatildeo a superioridade de su a compasiccedilatildeo e teacutecnica e todas as demais caracteristicas que a fazem grande saltam aos olhos imediatamente - natildeo apesar mas par causa do fato de todo o grupo ter sido submetido a um mesmo e uacutenica meacutetodo de anaacutelise e interpretaccedilatildeo

14 I codice atlantico di Leanarda da Vinci neUa Biblioshyteca Ambrosiana di Milano Milatildeo ed G Piumati 1894-1903 fo 244 v

bull Appr eciationism no ariginal natildeo haacute termo em portuguecircs para essa ideacuteia (N da T)

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o apreciativismo natildeo deve ser confundido com o conhecimento do entendido e a teoria da arte O connoisseur eacute o colecionador curador de museu ou perito que deliberadamente limita sua contribuiccedilatildeo ao estudo da mateacuteria ao trabalho de identificar obras de arte com respeito agrave data origem e autoria e avaliaacute-Ias no tocante agrave qualidade e estado A diferenccedila existente entre ele e o historiador de arte natildeo eacute tanto uma quesshytatildeo de princiacutepio como de ecircnfase e clareza comparaacutevel agrave diferenccedila existente entre o diagnosticado r (ou cliacuteshynico) e o pesquisador na aacuterea da medicina O connoisshyseur tende a salientar o aspecto recriativo do ~omplexo processo que tentei descrever e considera a tarefa de erigir uma concepccedilatildeo histoacuterica como secundaacuteria o hisshytoriador de arte num sentido mais estreito ou acadecircshymico tende a reverter essas tocircnicas Ora o simples diagnoacutestico de cacircncer se correto implica tudo o que o pesquisador poderia nos dizer sobre a doenccedila e preshytende portanto que eacute verificaacutevel por uma anaacutelise cienshytiacutefica subsequumlente similarmente o diagnoacutestico Remshy brandt cerca de 1650 se correto impica (LIdo o que o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores formais do quadro sobre a interpretaccedilatildeo do tema sobre o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do seacuteculo XVII sobre a maneira como expressa a persoshynalidade de Rembrandt e esse diagnoacutestico tambeacutem pretende sobreviver agrave criacutetica do historiador de arte no sentido mais estrito O connoisseur poderia portanshyto ser definido como um historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte como um connoisseur loquaz Na verdade os melhores representantes de ambos os tipos contribuiacuteram enormemente para o que eles proacuteshyprios natildeo consideram assunto proacuteprio 15

bull A palavra connoisseuT de origem francesa tem uso cor ren te em nossa lin gua por natildeo ter equivalente exata em portuguecircs Tan to peri to t eacutecnico conhecedor ou entendido natildeo expressam bem a ideacuteia d o termo (N da T)

15 Ver M J FRlEDLANDER Der Kenner BerUm 1919 e E WIND Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand lac cito FriedUinder corretamente afirma que um bom histariashydor de arte eacute au pelo menas vem a ser um Kenner wider WiUen In versamen te u m bom connoisseur pode ser chamado de histor iador de arte magreacute ui

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Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

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E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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Page 12: A História Da Arte Como Disciplina

Por outro lado a teoria da arte - em oposiccedilatildeo agrave filosofia da arte ou esteacutetica - eacute para a histoacuteria da arte o que a poesia e a retoacuterica satildeo para a histoacuteria da literatura

Devido ao fato de os objetos da histoacuteria da arte virem agrave existecircncia graccedilas a um processo de siacutentese esteacutetica recreativa o historiador de arte encontra-se diante de uma peculiar dificuldade quando tenta cashyracterizar o que se poderia denominar de estrutura estiliacutestica das obras com as quais se ocupa Jaacute que tem que descrever essas obras natildeo como corpos fiacutesicos ou substitutos de corpos fiacutesicos mas como objetos de uma experiecircncia interior seria inuacutetil - mesmo que fosse possiacutevel - expressar formas cores e caracteriacutesshyticas de construccedilatildeo em termos de foacutermulas geomeacutetricas comprimento de ondas e equaccedilotildees estatiacutesticas ou desshycrever as posturas de uma figura humana atraveacutes de uma anaacutelise anatocircmica Por outro lado jaacute que a expeshyriecircncia interior de um historiador de arte natildeo eacute livre nem subjetiva mas lhe foi esboccedilada pelas atividades propositais de um artista natildeo deve ele cingir-se a desshycrever suas impressotildees pessoais a respeito da obra de arte como um poeta poderia descrever suas impressotildees sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol

Os objetos da histoacuteria da arte portanto soacute podem ser caracterizados numa terminologia que eacute tatildeo reshyconstrutiva quanto a experiecircncia do historiador de arte eacute recreativa precisa descrever as peculiaridades estishyliacutesticas natildeo como dados mensuraacuteveis ou pelo menos determinaacuteveis nem como estiacutemulos de reaccedilotildees subjeshytivas mas como aquilo que presta testemunho das intenccedilotildees artiacutesticas Ora as intenccedilotildees soacute podem ser formuladas em termos de alternativas eacute mister supor uma situaccedilatildeo na qual o fazedor da obra dispunha de mais de uma possibilidade de atuaccedilatildeo ou seja em que ele se viu frente a frente com um problema da escolha entre diversos modos de ecircnfase Assim evishydencia-se que os termos usadoacutes pelo historiador de arte interpretam as peculiaridades estiliacutesticas das obras como soluccedilotildees especiacuteficas de problemas artiacutesticos geneacutericos Natildeo eacute esse apenas o caso de nossa moshydema terminologia mas tambeacutem o de expressotildees como

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rilievo sfumato etc que aparecem em escritos do seacuteculo XVI

Quando chamamos uma figura de um quadro da Renascenccedila itali3na de plaacutestica enquanto descreveshymos uma outra de um quadro chinecircs como tendo volume mas natildeo massa (devido agrave ausecircncia de modeshylagem) interpretamos essas figuras como duas soluccedilotildees diferentes de um mesmo problema que poderiacuteamos forshymular como unidades volumeacutetricas (corpos) versus expansatildeo ilimitada (espaccedilo) Ao distinguir entre o uso da linha como contorno e para citar Balzac o uso da linha como Ie moyen par lequel lhomme se rend compte de leffet de Ia lumiere sur les objets referimo-nos ao mesmo problema embora dando ecircnshyfase especial a um outro linha versus aacutereas de cor Se refletirmos sobre o assunto veremos que haacute um nuacutemero limitado desses problemas primaacuterios intershyrelacionados uns com os outros o que de um lado gera uma infinidade de questotildees secundaacuterias e terciaacuterias e de outro pode em uacuteltima anaacutelise derivar de uma antiacutetese baacutesica diferenciaccedilatildeo versus continuidade 16

Formular e sistematizar os problemas artiacutesticos - que natildeo satildeo eacute claro limitados agrave esfera dos valores puramente formais mas incluem a estrutura estiliacutestica do tema e do conteuacutedo tambeacutem - e assim armar um sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (Noshyccedilotildees fundamentais da Teoria da Arte) eacute o objetivo da Teoria da Arte e natildeo da Histoacuteria da Arte Mas aqui encontramos pela terceira vez o que decidimos chamar de situaccedilatildeo orgacircnica O historiador de arte como jaacute vimos natildeo pode descrever o objeto de sua expeshyriecircncia recriativa sem reconstruir as intenccedilotildees artiacutesticas em termos que subentendam conceitos teoacutericos geneacuterishycos Ao fazer isso ele consciente ou inconscientemenshyte contribuiraacute para o desenvolvimento da teoria da

bull o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito da luz sobre os objetos Em francecircs no original (N da T)

16 Ver ~ PANOFSKY Ueber das Verhaacuteltnis der Kunstgesshychichte zur Kunsttheorie Zeitschrift fuumlr Aesthetik und angeshymeine Kunstwissenschaft XVIII 1925 p 129 e 5S e E WIND Zur Systematik der kunstlerischen Probleme ibidem p 438 e 55

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

v

E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

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Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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arte que sem a exemplificaccedilatildeo histoacuterica continuaria a ser apenas um paacutelido esquema de universais abstratos O teoacuterico da arte por outro lado quer aborde o assunto a partir do ponto de vista da episshytemologia neoclaacutessica da Criacutetica de Kant ou da Gesshytaltpsychologie 17 natildeo pode armar um sistema de conshyceitos geneacutericos sem se referir a obras de arte que nasceram em condiccedilotildees histoacutericas especiacuteficas mas ao proceder assim ele consciente ou inconscientemente contribuiraacute para o desenvolvimento da histoacuteria da arte que sem orientaccedilatildeo teoacuterica seria um aglomerado de particulares natildeo formulados

Quando chamamos o connoisseur de historiador de arte lacocircnico e o historiador de arte de connoisseur loquaz a relaccedilatildeo entre o historiador de arte e o teoacuterico de arte pode comparar-se agrave de dois vizinhos que tenham o direito de caccedilar na mesma zona sendo que um eacute o dono do revoacutelver e o outro de toda a municcedilatildeo Ambas as partes fariam melhor se percebessem a neshycessidade de sua associaccedilatildeo Jaacute foi dito que se a teoria natildeo fo r recebida agrave porta de uma disciplina emshypiacuterica entra como um fantasma pela chamineacute e potildee a mobiacutelia da casa de pernas para o ar Mas natildeo eacute menos verdade que se a histoacuteria natildeo for recebida agrave porta de uma disciplina teoacuterica que trate do mesmo conjunto de fenocircmenos infiltrar-se-aacute no poratildeo como um bando de ratos roendo todo o trabalho de base

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E coisa certa que a histoacuteria da arte mereccedila um lugar entre as humanidades Mas para que se rvem as humanidades como tais Satildeo admitidamente disciplishynas natildeo-praacuteticas que tratam do passado Pode-se pershyguntar por que motivo devemos empenhar-nos em investigaccedilotildees natildeo-praacuteticas e interessar-nos pelo passado

A resposta agrave primeira pergunta eacute porque nos interessamos pela realidade Tanto as humanidades quanto as ciecircncias naturais assim como a matemaacutetica

17 Cf H SEDLMAYR Zu e iner stregen K unstwissen schaft Kunstwissenschafttiche FOTschu ngen I 1931 p 7 e ss

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e a fi losofia tecircm a perspectiva natildeo-praacutetica daquilo que os antigos chamavam de vuumla contemplativa em oposishyccedilatildeo a vila activa Mas eacute a vida contemplativa menos real ou para ser mais preciso eacute sua contribuiccedilatildeo para o que chamamos de realidade menos importante do que a da vida ativa

O homem que aceita uma ceacutedula de um doacutelar em troca de vinte e cinco maccedilatildes pratica um ato de feacute e submete-se a uma doutrina teoacuterica tal como proshycedia o homem medieval que pagava por sua indulshygecircncia O homem que eacute atropelado por um automoacutevel eacute atropelado pela matemaacutetica fiacutesica e quiacutemica Pois quem leva uma vida contemplativa natildeo pode deixar de influenciar a ativa como natildeo pode impedir a vida ativa de influenciar seu pensamento Teorias filosoacuteshyficas e psicoloacutegicas doutrinas histoacutericas e toda a espeacuteshycie de especulaccedilotildees e descobertas tecircm mudado e conshytinuam mudando a vida de muitos milhotildees de pessoas Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria ou conhecimento participa embora de modo modesto do processo de moldagem da realidade - fato este de que talvez os inimigos do humanismo estejam mais cientes do que os amigos 18 Eacute impossiacutevel conceber nosso mundo em termos de accedilatildeo apenas Soacute em Deus haacute Coincidecircncia de Accedilatildeo e Pensamento como dishyziam os escolaacutesticos Nossa realidade soacute pode ser enshytendida como uma interpenetraccedilatildeo desses dois fatores

Mas ainda assim por que deveriacuteamos nos inteshyressar pelo passado A resposta eacute a mesma porque nos interessamos pela realidade Natildeo haacute nada menos

18 N u ma ca rta d irigida ao New Statesman and Nation XIII 19 de junh o d e 1937 um tal senhor Pat Sloa n defende a exoneraccedilatildeo de catedraacuteticos e professores na Uniatildeo Sovieacutetica afirm ando que u m catedraacutetico que advoga uma filosofia preacuteshy-cienti fica a ntiquada em detrimento de uma c ientiacutefica pode ser uma f orccedila reac io naacute r ia tatildeo poderosa quanto um soldado num exeacuter cito de ocupaccedilatildeo Verificamos que por advoga r ele preshytende t am beacutem sign ificar a mera transmissatildeo do que chama de f ilosofia preacute-cienti fica pois continua assim Quantos espishyr itos hoje na Inglaterra estatilde o sendo impedidos de jamais entrar em contacto com O Ma r x ismo pelo sim ples processo de sobreshycarregaacute- los ao m aacutex imo com obras de P latatildeo e outros filoacutesofos Nestas circunstacircncias tais obras n atildeo tecircm um papel neutro mas antimar xista e os marx istas recon hecem este fato Natilde o eacute preciso dize r q u e nestas circunstacircncias as obras de Platatildeo e outros f loacutesofos tam b eacutem tecircm u m papel antifascista e os fasshycistas po r su a vez r econhecem este fato

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

I

Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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real que o presente Uma hora atraacutes essa conferecircncia pertencia ao futuro Dentro de quatro minutos pershytenceraacute ao passado Quando disse que o homem atroshypelado por um automoacutevel o eacute na verdade pela mateshymaacutetica fiacutesica e quiacutemica poderia tambeacutem ter afirmado que o atropelamento se deve a Euclides Arquimedes e Lavoisier

Para apreendermos a realidade temos que nos apartar do presente A filosofia e a matemaacutetica o fazem construindo sistemas num meio que por defishyniccedilatildeo natildeo estaacute sujeito ao tempo As ciecircncias naturais e as humanidades conseguem-no criando aquelas estrushyturas espaccedilo-temporais que chamei de cosmo da nashytureza e cosmo da cultura E aqui tocamos no ponto que talvez seja a diferenccedila mais fundamental entre ciecircncias naturais e humanidades A ciecircncia nashytural observa os processos forccedilosamente temporais da natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas quais se revelam A observaccedilatildeo fiacutesica s6 eacute possiacutevel quando algo acontece ou seja quando uma mudanccedila ocorre ou eacute levada a ocorrer por meio de experiecircncias E satildeo essas mudanccedilas que no fim satildeo simbolizadas pelas foacutermulas matemaacuteticas As humanidades por outro lado natildeo se defrontam com a tarefa de prender o que de outro modo fugiria mas de avivar o que de outro modo estaria morto Em vez de tratarem de fenocircmenos temporais e fazerem o tempo parar peshynetram numa aacuterea em que o tempo parou de moto proacuteprio e tentam reativaacute-lo Fitando esses registros congelados estacionaacuterios que segundo disse emershygem de uma corrente do tempo as humanidades tenshytam capturar os processos em cujo decurso esses regisshytros foram produzidos e se tornaram o que satildeo 19

19 Para as humanidades reviver o passado natildeo eacute um ideal romacircntico mas uma necessidade metodoloacutegica Soacute podem expresshysar o fato de os registros A B e C serem ligados uns aos outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia estar familiarizado com os registros B e C ou com registros do tipo de B e C ou com um r egistro X que seria a fonte de B e C ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor de B tinha que conhecer C etc J tatildeo inevitaacutevel que as humashynidades raciocinem e se expressem em termos de influecircncias Imhas de evoluccedilatildeo etc como eacute inevitaacutevel que as ciecircncias naturais pensem e se expr imam em termos de equaccedilotildees m ateshymaacuteticas

Dotando assim os registros estaacuteticos com vida dinacircmica em vez de reduzir os fatos transitoacuterios a leis estaacuteticas as humanidades natildeo contradizem mas comshyplementam as ciecircncias naturais Na verdade ambas se pressupotildeem e exigem uma agrave outra Ciecircncia - aqui tomada na verdadeira acepccedilatildeo do termo ou seja uma busca serena e autodependente do conhecimento e natildeo algo que sirva subservientemente a fins praacuteticos shye humanidades satildeo irmatildes suscitadas como satildeo pelo movimento que foi corretamente chamado de descoshyberta (ou numa perspectiva histoacuterica mais ampla reshydescoberta) do mundo e do homem E assim como nasceram e renasceram juntas morreratildeo e ressurgiratildeo juntas se o destino permitir Se a civilizaccedilatildeo antroshypocraacutetica da Renascenccedila estaacute dirigida como parece estar para uma Idade Meacutedia agraves avessas - uma satanocracia em oposiccedilatildeo agrave teocracia medieval - natildeo soacute as humanidades mas tambeacutem as ciecircncias naturais como as conhecemos desapareceratildeo e nada restaraacute exceto o que serve agraves injunccedilotildees do subumano Mas nem mesmo isso haacute de significar o fim do humanismo Prometeu pocircde ser acorrentado e torturado poreacutem o fogo aceso por sua tocha natildeo pocircde ser extinto

Existe uma diferenccedila sutil em latim entre scientia e eruditio e em inglecircs entre knowledge (conhecimento) e learniacuteng (estudo) Scientia e conhecimento denotanshydo mais uma possessatildeo mental que um processo mental identificam-se com as ciecircncias naturais eruditio e esshytudo denotando mais um processo que uma possessatildeo com as humanidades A meta ideal da ciecircncia seria algo como mestria domiacutenio e a das humanidades algo como sabedoria

Marsiacutelio Ficino escreveu ao filho de Poggio Bracshyciolini A histoacuteria eacute necessaacuteria natildeo apenas para tornar a vida agradaacutevel mas tambeacutem para lhe dar uma signishyficaccedilatildeo moral O que eacute mortal em si mesmo consegue a imortalidade atraveacutes da histoacuteria o que eacute ausente torna-se presente velhas coisas rejuvenescem e um jovem logo iguala a maturidade dos velhos Se um homem de setenta anos eacute considerado saacutebio devido agrave sua experiecircncia quatildeo mais saacutebio aquele cuja vida abranshy

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

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Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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ge o espaccedilo de mil ou trecircs mil anos Pois na verdade pode-se dizer que um homem viveu tantos milecircnios quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento de histoacuteria 20

20 MARsIacuteLIO F ICINO Carta a Giacomo Bracciolini (M ar shysiii Ficini Opera omni a L ey den 1676 l p 658) res ipsa [sei historia l est ad vitam non modo ob1ectandam verumshytamen moribus inst itu endam summopere necessaria Si quidem per se m ortalia sunt immorta litatem ab historia consequuntur quae absentia per eam praesentia f iunt vetera iuvenescunt iuvenes cito maturitatem senis adaequant A c si se nex septuashyginta annorum ob ipsar u m rerum experientiam prudens habetur quanto prudentior q u i a n norum mille et t rium milium implet aetatem Tot vera annor um m ilia vixisse quisque v idetu r quot annorum acta didicit ab h is toria

1 ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA UMA INTRODUCcedilAtildeO AO ESTUDO DA ARTE DA RENASCENCcedilA

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Iconografia eacute o ramo da histoacuteria da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contrashyposiccedilatildeo agrave sua forma Tentemos portanto definir a distinccedilatildeo entre tema ou significado de um lado e forshyma de outro

Quando na rua um conhecido me cumprimenta tirando o chapeacuteu o que vejo de um ponto de vista formal eacute apenas a mudanccedila de alguns detalhes dentro da configuraccedilatildeo que faz parte do padratildeo geral de

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