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Estudo e inquietações sobre a identidade cultural brasileira
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGSDepartamento de Arte Dramática – DAD
A identidade das identidades:um panorama geral sobre a identidade cultural moderna
Eriam Roberto SchoenardieOrientador: Daniel Fraga
Em tempos de relações instáveis e informações múltiplas, falar da identidade como
conceito formador de um conjunto de propriedades particulares sobre determinado grupo
social é um tanto arriscado. Vivemos uma era em que conceitos biológicos e racistas do
século XIX já não são mais suficientes, uma era que é resultado direto do futurismo proposto
pelas máquinas do início do século XX. É uma época caracterizada pela teoria da informação,
que possibilita a intensificação dos contatos humanos, tornando-os múltiplos e permissivos a
interações produtivas em um ritmo acelerado. À nível singular, o que temos em questão é um
indivíduo fragmentado, que está além de qualquer concepção acerca de uma identidade fixa.
A cultura, por si só, já provém dos contatos entre povos e costumes diferenciados, o
que a torna essencialmente híbrida, ou seja, formada por diversas vias referenciais. E é com
consciência nesse dinamismo que devemos analisar qualquer obra de arte da
contemporaneidade, pois ela provém de inúmeras relações diretas e/ou indiretas do sujeito
com as estruturas sociais que o cercam, em uma época de multiplicidade de identidades
passíveis a nossa identificação, ao menos temporariamente. O teatro, neste âmbito, vem como
um quadro expositivo muito rico para uma análise a respeito não só da identidade heterogênea
moderna que se modifica initerruptamente, mas também da tão sonhada identidade nacional.
Porém, definir o que é relevante para a solidificação de uma cultura é uma tarefa
complexa e arriscada. Segundo Nelson Werneck Sodré, as noções do nacional estão
intimamente ligadas ao popular. Bem, sendo assim, não existe uma identidade brasileira em
termos teatrais, pois uma arte que é acessada por somente 1% da população nacional está
longe de poder caracterizar-se como “popular”. Nesse caso a identidade brasileira das últimas
cinco décadas é nada mais nada menos que a telenovela, pois muito da memória coletiva
teatral foi perdida com a explosão midiática do rádio, televisão e cinema, veículos que
acabaram se tornando uma tradição dominante.
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Analisando historicamente, é como se a memória do indivíduo que se volta para o
futuro, só pudesse ser alimentada pela memória de um coletivo que proveio do passado, em
um processo ligado ao espelhamento de padrões. No caso do teatro, a mencionada expansão
da mídia fez com que tal coletivo se delimitasse, a vivência na área passou a ser mínima e
assim sua permanência no contexto social deixou de estar assegurada. Uma vez que a
memória nacional se faz exatamente reflexo do presente, os indivíduos dessa época ignoraram
esse referencial para suas projeções individuais, e tudo que sobraram foram os poucos
profissionais que tinham a arte dramática ligada a suas particularidades naturais.
É importante destacar desde agora que trato identidade da mesma forma que o
antropólogo francês Lévi-Strauss, que dizia esta não passava de uma entidade abstrata sem
existência real. Afinal, esse conceito é ao mesmo tempo intrínseco e irrelevante, pois uma
determinada identidade sempre carregará ecos de outras origens e significados que impedem
que ela possa ser considerada como unificada. Idealmente, seria um sistema de representação
cultural característico de uma nação, inserindo o indivíduo como membro de algo mais amplo.
Porém, o que abala essa teoria é o fato de que lidamos com elementos resultantes não só de
nosso interior nacional, mas principalmente da nossa busca por uma completude de símbolos
e representações exteriores a nossa realidade.
Na atualidade, fala-se muito que tais contatos com o além de nossas fronteiras são
responsáveis por uma descentralização em relação aos centros hegemônicos, que repercute em
certa mesclagem entre sociedades diferentes e que está intimamente ligada ao avanço dos
meios digitais de comunicação. Mas será mesmo que, à nível cultural, essa descentralização é
verdadeira? Na minha opinião, Paris, Berlin ou Londres continuam exercendo mais
influência sobre o Brasil do que vice-versa. Essa sim poderia ser uma conduta associada a
nossa identidade nacional, a demasiada dependência perante as culturas ditas “superiores”. É
uma característica histórica da formação do Brasil que está além do controle do homem
moderno.
Vejamos por exemplo o campo da religião em território brasileiro. Os negros que
vieram escravizados para trabalhar em nossas terras seguiam o candomblé. Já os portugueses,
eram católicos fervorosos. Resultado: hoje o Brasil é o maior país católico do mundo, no qual
cerca de 70% da população se diz de tal religião. Esse simples exemplo ilustra, na verdade, o
conceito de culturas atávicas, aquelas que procuram se expandir e se sobrepor às outras
culturas com que se deparam no seu curso histórico. Por séculos, essa foi a ligação do Brasil
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não só com Portugal, mas com toda a Europa. São essas cicatrizes, essas propensões, que hoje
fazem de nós uma quase colônia americana.
O Brasil de hoje não está simplesmente disposto a se mesclar. Na verdade, ele
precisa disso como forma de complementação de sua identidade, que carece de uma mitologia
fundadora. Há, contudo, uma escassa resistência que poderia comprovar o contrário,
originária da era Anchieta, quando o teatro catequético montado junto aos índios sofreu
diversas influências destes nativos, que mesmo submetidos à direção dos jesuítas,
conseguiram deixar muitas de seus aspectos (estéticos, jamais ideológicos) nos autos
encenados. Essa escassa herança que nos foi deixada, transmutou-se em elementos
encontrados em produções nacionais até nossos dias, como é o caso do emblemático Teatro
Oficina de Zé Celso. Entretanto, mesmo que característico, tal conjunto de sentidos não me
parece suficiente para a formação da pretensa identidade nacional.
É inevitável considerar o Brasil como uma nação que sempre foi vítima de
perceptíveis contaminações com outras culturas. Ora, até mesmo no maior período de
libertação nacional e estruturação de uma cultura própria, este que foi o nosso Romantismo, o
país continuou a importar dramas franceses e óperas italianas. E mesmo adaptando todas estas
obras e tentando fazer com que o povo se familiarize com as mesmas, essas correntes não se
perpetuaram por um motivo sumário: elas não estavam ligadas ao cotidiano do indivíduo
nacional. Prova disso é a vida toda que o empresário Renato Viana dedicou a difundir os
conceitos teatrais modernistas que via no exterior, mas que nunca conseguiu perpetuar em
recinto nacional.
Entrementes, seguindo os já mencionados fluxos de informação da atualidade, o que
exigisse-se do público agora é o desenvolvimento de um gosto crítico pelo híbrido, um gosto
que se desloque continuamente em favor às novas propostas que estarão sempre surgindo
nessa tempestade referencial. A Cia. de Atores, grupo nacional com mais de 25 anos de
formação, parece ilustrar com perfeição o que quero destacar. Ao longo de sua história, esse
grupo foi sempre se apropriando do estudo multicultural aplicado à cena, o que faz de seu
trabalho um exemplo de excelência em termos de renovação de identidade particular. Por
exemplo, mesmo com o seu país de origem não sendo de forma alguma referência em
tecnologia, a Cia dos Atores se apoia em tais recursos cênicos como base da construção de
espetáculos com uma identidade bastante própria, que vai além da nacionalidade.
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Foto André H. Oliveira. Ensaio.Hamlet,de William Shakespeare, direção de Enrique Diaz, 2011.
Um
trabalho como esse vai contra a própria padronização nacional. Afinal, vamos e convenhamos,
é fácil pensar na identidade do teatro alemão como uma unidade, ou do teatro italiano,
levando em conta suas raízes classicistas. Mas pensar em um sistema unificador em um país
com a dimensão espacial do Brasil, considerando as gritantes diferenças sociais entre cada
região, é um equívoco imenso. A identidade nacional deve primeiramente preservar a
diferença cultural, e se existe um fator que é de nossa identidade nacional, esse fator é a
diversidade. Este é sim o país da pluralidade, seja pela sua miscigenação colonial ou pela sua
receptividade ao aceitar influências exteriores. E é então que chegamos ao cerne da questão:
será mesmo necessária a consolidação de uma identidade nacional? Talvez seja melhor pensar
nesse conceito como ele o é em nossa realidade, um misto de tradição e mutabilidade que
resulta em uma riqueza expressiva se não influente para outras culturas, ao menos bastante
significativa para a nossa.
Acho que nossa principal preocupação não deve ser nos apropriarmos de elementos
avulsos e presentes em outras culturas, mas sim os usar de forma errada. Em tempos de um
capitalismo voraz e vertiginoso, tudo pode ser transformado em mercadoria de consumo geral,
inclusive a arte. É perante esse escambo pseudointelectual que, na minha opinião, devemos ter
xenofobia. Uma produção feita aos moldes da plasticidade norte-americana, com o intuito
apenas de conquistar o público como uma cópia nacional do que é feito no exterior; isso sim é
preocupante, pois comprova uma tendência uniformizadora, normalmente amplamente
difundida pela mídia, que converge em uma alienante padronização dos produtos culturais
dirigidos à grande massa.4
Foto Robert Schwenck. Xanadu,de Douglas Carter Beane, direção de Miguel Falabella, 2012.
Contudo, se não colocamos nada de particular em nosso produto, é sinal que não
temos nada que valha a pena ser visto ou escutado. Seria a nossa nação estéril de qualquer
forma de expressão que mereça ser mostrada? Com certeza a resposta para essa pergunta é
negativa. Logo, a cultura brasileira, mesmo que heterogênea, precisa neutralizar as
informações provenientes das fontes que se apropria, aprendendo a dar uma nova roupagem a
esses elementos, deixando-os mais próximos a nossa pátria. Sob uma estética totalmente
cinematográfica que chega a remeter a filmes de Quentin Tarantino, a peça paulista Petróleo
quebra essa escolha ao inserir no texto da montagem um discurso que Delúbio Soares fez no
seu desligamento ao Partido dos Trabalhadores (PT). Assim, por não se calcar nem só no
entretenimento, nem só na política, é que os contrastes acabam ressaltando-se e fazendo com
que, em algumas apresentações, pessoas que não concordam com aquela ideologia imposta
em cena levantem-se e se retirem do teatro. Esse é o verdadeiro caráter da arte, seja ela
brasileira, russa ou somaliana.
Certa vez, ao assistir o DVD “Grupo Galpão em Londres – Romeu & Julieta no
Globe Theatre”, fiquei me questionando: e se o mundo visse mais do Brasil, do que o Brasil
vê do mundo? Tal transnacionalidade seria enriquecedora para ambas as partes, certamente,
pois como sabemos por experiência própria, a incorporação de culturas distintas leva a uma
dinamização do sistema que acaba sempre por confluir em novas agregações culturais.
Contudo, é bastante pretencioso pensarmos em uma imposição fixa frente aos grandes pólos
culturais do mundo, quando na verdade nos alimentamos exatamente dessas tendências
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exteriores em nosso território. Tal teoria não é só extremamente difícil, é também
desacreditada por nós mesmos.
No próprio âmbito acadêmico, por exemplo, vejo uma fórmula muito clara na
montagem de nossos projetos, para que estes “agradem” o público. Desde que entrei no
Departamento do Arte Dramática (DAD) da UFRGS, foram pouquíssimas as produções feitas
por alunos que usavam algo da chamada identidade nacional. E isso por quê? Porque esse tipo
de teatro parece não agradar nem mesmo o brasileiro, quem dirá a classe mais culta e
familiarizada com outros panoramas artísticos. Contudo, esse intimismo é mais uma
apropriação inconsciente da identidade alheia durante o contato entre culturas, do que
necessariamente uma repulsa do brasileiro quanto ao seu sistema de sentidos.
Considero que não há problema em não ser brasileiro na forma como você
desenvolve sua arte. O problema está em não termos uma ideologia condizente com a
sociedade em que estamos inseridos. Para fins de exemplificação, me aproprio de uma das
produções que, assim como Petrólio, também compôs a programação do 7º Festival Palco
Giratório: o espetáculo Adeus à carne, de Michel Melamed. Aqui, vemos claramente a
harmonização de conceitos carnavalescos ligados ao desfile das escolas de samba para uma
criação imagética de caráter bastante internacional, que nos remete até mesmo ao teatro
difundido por Robert Wilson. Contudo, todo esse suntuosismo alegórico não está em cena
gratuitamente, apenas para agradar aos olhos, mas sim para a discussão subversiva de visões
pessimistas (porém reais) de nosso próprio país.
Foto André Mantelli. Adeus à carne,criação e direção de Michel Melamed, 2012.
Na imagem, vemos uma sátira bastante clara acerca da figura das rainhas da bateria, que estariam ligadas a artificialidade e até mesmo dor que os pingos de cera remetem.
Por fim, considero como fantasiosa a proposta de reconhecimento de uma identidade
nacional única, que englobe todas as variações culturais de um povo como o nosso. Afinal, da
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mesma forma como inexiste o conceitual "sujeito cartesiano" e sua identidade subjetiva
imutável por toda a vida, é difícil conceber, pelo menos se tratando de Brasil, uma
padronização cultural que abrange todas as classes, gêneros e raças de pessoas que há séculos
vem se desprendendo da influência de identidades mestras, ao passo que firmam seu
individualismo egocentrista. Certa ideia vem sincronicamente ao encontro da teoria de
sistemas mundiais, fundamentada pelo sociólogo Immanuel Wallerstein em escritos nos quais
afirma-se que
“os nacionalismos do mundo moderno são a expressão ambígua [de um desejo] por... assimilação no universal (...) e, simultaneamente, por (...) adesão ao particular, à reinvenção das diferenças. Na verdade, trata-se de um universalismo através do particularismo e de um particularismo através do universalismo” (WALLERSTEIN: 1984, págs. 166-7).
Podemos dizer que são apenas as diferenças que unificam a identidade cultural de um
país, excluindo completamente a noção de totalitarismo. E embora estejamos indo contra a
organização estrutural a qual nos prendemos por grande parte de nossa história, é
extremamente importante que pensemos estas diferenças como ferramentas de manutenção de
um sistema de contribuições internas, que seriam formadoras de uma grande "identidade das
identidades", a qual apresentaria intensos fluxos de trocas inclusivas que culminariam em uma
lógica de eterna expansão cultural.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABDALA JUNIOR, Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.
WALLERSTEIN, Immanuel. The Politics of the World-Economy. The States, the Movements and the Civilizations. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. In: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
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