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A Inquietude Dinâmica

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Trabalho de faculdade da autoria de Luís Soares sobre a relação entre "O Trabalhador" de Ernst Junger e "Neuromancer" de William Gibson. Ou sobre a hipótese de uma ética heróica do ciberspaço.

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Page 1: A Inquietude Dinâmica

A Inquietude Dinâmica

Teoria da Cultura e Formas de Sociabilidade

Luis Soares - Mestrado - Ciências da Comunicação

Março 1996

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Intenção de esclarecer

“This is your pilot.

You have no pilot.”

Laurie Anderson1

Este é um trabalho sobre o ciberespaço.

O prefixo “ciber” entrou no vocabulário científico pela prosa de Norbert Wiener2

logo após a segunda guerra mundial. Iniciava-se uma revolução que o faria emergir do

mundo secreto da ciência da informação para o universo pop da ficção científica pela

mão de William Gibson, em “Neuromancer”3. Hoje, o prefixo, esquecida a sua

radicação no governo, no controlo4, partiu para uma banalização mediática que fez

nascer listas intermináveis de novos termos como cyberpunk, cibercafé, ciberfestival,

cibernet, ciberdemocracia, ciberfundamentalistas, etc..

Para lá do “tema da moda” em que se transformaram as novas tecnologias,

interessa hoje, em que parecemos estar no próprio instante da revolução, perceber como

podemos falar da tecnologia sem a recusar com o pânico típico do fim do milénio e sem

ver nela um novo leviatã, capaz de resolver as contradições do modernismo criando uma

comunidade de indivíduos perante computadores ligados em rede.

Neste contexto, a obra de Junger, o século do seu pensamento, século do cinema,

século da terceira vaga, século de duas guerras mundiais e ainda da guerra fria, motores

fundamentais do desenvolvimento tecnológico no nosso século, apresenta-nos uma

visão fascinante de um século mobilizado inteiramente pela técnica. O nosso trabalho

centrar-se-á em confrontar esta visão longa e lúcida com o momento, em que o

ciberespaço nasceu enquanto visão de um futuro anunciado pelo presente. E a visão de

Gibson revelar-se-á rica de significado neste olhar à luz de algumas das obras de Junger,

nomeadamente “Der Arbeiter”5 de 1932 e “Der Waldgang”6, de 1951.

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A questão central das tecnologias da informação em geral é, hoje, a criação de

estruturas de aceleração processual de procedimentos de alto nível (como a computação

gráfica e a chamada inteligência artificial) cada vez mais complexos e distribuídos. Nos

projectos da Advanced Research Projects Agency do Departamento da Defesa dos EUA,

inventora da mais avançada e versátil rede mundial (a Internet), as palavras que

aparecem mais frequentemente são: “rede, [processamento] paralelo e tempo real”7.

Hoje é impossível considerar computadores isoladamente, a informática funciona num

outro nível, local, internacional ou mesmo global. Os supercomputadores perdem

sentido. Os micro e minicomputadores ligados em rede tomam o centro do palco8.

Simultaneamente, a viragem de toda a indústria do entretenimento para este novo

conjunto mediático leva a um outro caminho de desenvolvimento tecnológico, orientado

para a intensificação da experiência da interface homem-máquina. Por intensificação

entendemos a conjunção sinestésica de elementos de percepção de forma a fazer

desaparecer, perante o utilizador, a estranheza causada pela tecnologia, como dispositivo

estranho ao corpo, aumentando o envolvimento do indivíduo com a máquina. É o caso

do multimedia, forma primitiva, e da condução da realidade virtual às suas

consequências últimas9.

O Aleph de Borges nunca esteve tão próximo, tão ao nosso alcance, tão perto e,

contudo... Como se a Internet realizasse a possibilidade de um todo aqui e todo agora, à

simples distância de um clic. Esse ponto imaginário, em que o absoluto se revela como

todo o tempo e todo o espaço aparece semelhante ao instante final de “Neuromancer”,

em que a matrix adquire um novo nível de consciência, enquanto totalidade,

estabelecendo contacto: “There’s others. I found one already”10. Ao mesmo tempo

parecemos estar perante o momento limite do processo em que, da multiplicação das

máquinas nasce um meio maior, nasce a “necessidade”, citando Junger.

Paul Virilio fala-nos de uma passagem “de l’espace de la matière au temps de la

lumière”11. A tese de Paul Virilio aponta para os efeitos radicais e catastróficos da

transformação de uma civilização do espaço e da deslocação numa civilização do tempo

instantâneo, em que, muito em sintonia com a visão de Negroponte, se bem que em tom

disfórico, o homem seria um cidadão-terminal12. Um e outro limitam-se a ter uma visão

simplista em que a tecnologia está subordinada à concepção instrumentalista. O homem

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altera-se usando a tecnologia, mas a natureza profunda da técnica não é nunca posta em

causa. Esta concepção não explica os fenómenos contemporâneos. Junger tem a visão da

técnica como fenómeno total e radical, onde a figura do trabalhador anuncia um herói.

Gibson percebe a deslocação neste contexto do eu (“self”) e compreende a

impossibilidade de posicionar o seu herói num espaço que não seja o da técnica, de

fronteiras muito mais indefinidas do que poderiam pretender Negroponte como Virilio.

E, em qualquer caso, o termo virtual parte de uma grave ilusão quanto à natureza da

tecnologia e quanto ao seu lugar na actualidade, ao dar-lhe um cunho asséptico e

inofensivo. O ciberespaço de Gibson é uma alucinação; a técnica, como Junger a vê, é

uma força da necessidade. Em ambos os casos estamos perante fenómenos em tudo

distantes da pureza matemática do mundo virtual, como no-lo querem apresentar hoje.

Laurie Anderson tem razão, como em muitas coisas, na facilidade com que faz as

perguntas13. Tem razão, por exemplo, ao dizer que a Realidade Virtual tem pouco lixo

(no sentido literal do termo) lá dentro para lhe poder agradar. E o tempo, a obsessão

pelo movimento, pela velocidade, pelas suas manifestações, pela inconstância, marca do

século, é um dos melhores pontos de vista possíveis sobre a tecnologia. A inefabilidade

com que as novas tecnologias desmultiplicam o tempo é a sua marca mais forte.

O tempo do digital, do virtual, não existe como condição kantiana da experiência,

é criado no próprio acto da experimentação, pelo movimento e pela ilusão da

multiplicação e reversibilidade desse tempo. O nosso tempo é de uma natureza

diferente. Não podemos parar, não podemos fazer pausa. O nosso tempo está a gravar,

no sentido mais literal e doloroso do termo. Está a gravar como no retrato de Dorian

Gray14, está a gravar como na descida do Maelstrom15.

O tempo, nosso, a gravar, linear nesse sentido, tornou-se essencialmente diferente

do tempo criado pela tecnologia, amplo e alterável. E a sensação profunda da tecnologia

como um destino, a figura do trabalhador, o Case de William Gibson são visões

originais dos momentos desse choque dos tempos diferentes.

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Neuromancer

“Cyberspace. A consensual hallucination experienced daily by billions of legitimate

operators, in every nation, by children being taught mathematical concepts... A graphic

representation of data abstracted from the banks of every computer in the human

system. Unthinkable complexity. Lines of light ranged in the nonspace of the mind,

clusters and constellations of data. Like city lights, receding...”

William Gibson16

William Gibson tornou-se famoso para o mundo ao aplicar pela primeira vez o

termo “Ciberespaço”. A palavra surgiu antes, em “Burning Chrome”, mas a sua

consagração ocorre num romance de ficção científica que é, ainda hoje, expoente

máximo de um subgénero a que foi dado o nome de cyberpunk 17: “Neuromancer”. A

história de “Neuromancer” pode resumir-se rapidamente.

Case, herói de 24 anos, fez da sua profissão ser espião e ladrão ao serviço de

outros grande ladrões no ciberespaço, viciou-se. É um caso particular de vício no

trabalho, já que a dimensão alucinatória da ligação ao ciberespaço lhe dá um lado em

tudo semelhante à droga. No início da história vamos, aliás, encontrar Case

compensando o seu síndrome de abstinência por via de drogas reais e não virtuais. O

vício de Case é usado para o envolver numa trama romanesca em que, como herói à

maneira de Chandler, serve e serve-se de uma manifestação de um sistema mais ou

menos odioso, corporizado numa família aristocrática que dá nome a uma mega-

empresa (a Tessier-Ashpool), na verdade gerida por sistemas de inteligência artificial. A

história inclui uma personagem feminina, Molly, em tudo dependente da de Case, como

veremos. No fim o herói sobrevive, mas, ao bom estilo do romance negro, permanece

um solitário.

O que é curioso no romance de Gibson, como em quase todas as suas obras, é a

forma como ele descreve uma sociedade mobilizada inteiramente pela técnica e a situa

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num futuro indeterminado. Mesmo a forma característica como a história é construída,

que encontramos reproduzida em todo o cyberpunk, é indissociável da tecnologia, ela

sim, questão central da obra de Gibson. E toda essa tecnologia é, sem margem para

dúvidas, uma tecnologia da mediação. As naves e estações espaciais têm lugar menor na

escrita, o lugar central é ocupado por uma parafernália tecnológica preocupada, de

alguma forma, em literalizar a expressão de McLuhan “Os Media como Extensões do

Homem.”. Ora, Ernest Junger, em “Der Arbeiter” coloca-nos essencialmente perante as

mesmas questões.

Junger parece, exactamente, antecipar o pensamento de McLuhan quando afirma

“todas essas coisas [a constância da arquitectura, do modo de viver, da economia]

estão ligadas a uma constância dos meios semelhante ao que era verdade em relação

ao machado, ao arco, à vela ou ao arado”18. Que melhor descrição de um

condicionamento cultural e social pelos meios tecnológicos? Junger continua e descreve

uma paisagem da técnica confusa e desordenada, sem monumentos nem arquivos,

apenas marcas da mobilização. As cidades de Gibson, como as de Junger, são

gigantescas oficinas de formas. A vontade técnica de configuração institui uma estética

fundamental dos extremos: uma nova paisagem mais construtiva e mais perigosa. A

descrição desta inquietude dinâmica, dessa oficina permanente, é sem dúvida das que

mais se ajusta ao processo de mobilização da sociedade pela técnica, a que assistimos ao

longo do século XX. É por isso que o livro de Gibson, de 1984 (ano ele próprio cheio de

simbolismos19), pode ser lido à luz da escrita jungeriana de 1932. Ainda mais porque, ao

contrário do que poderíamos supor a uma primeiro olhar, “Neuromancer” não descreve

um qualquer futuro vagamente atingível.

Esse futuro é agora, é o presente, para grande desgosto do próprio Gibson, que

pensava apenas em descrever um apocalipse futuro de que o presente fugisse. Isto é:

“Neuromancer” não é um romance sobre um futuro pós-terceira guerra mundial, em que

um herói romântico resiste a um sistema dominador. “Neuromancer” é um romance

sobre choques: o choque entre o ser individual e a máquina; o choque entre a

consciência do corpo e a inconsciência da mente; o choque entre o tempo inexorável e

os lugares cristalizados do regresso do tempo: o sonho, a memória, o ciberespaço. Esses

choques são nossos contemporâneos.

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Os lugares de William Gibson não têm fronteiras. Por um processo contínuo de

sucessão de confrontos e continuidades, as suas personagens não estabelecem separação

entre os seus corpos e as tecnologias que os servem, entre o real e o ciberespaço, entre o

ser e o não ser. Case pode viver as sensações do corpo de Molly que as usa para

comunicar com Case. Molly pode usar o seu corpo como dispositivo de realização de

um programa de satisfação sexual de clientes. Homens, como máquinas, são controlados

por programas, como pessoas. Construtos de personalidade encarnam existências reais

num espaço irreal. Os espaços físicos, os cenários da acção, fazem parte desta colagem

pop de máquinas e pessoas, de lixo e de vida, da eficiência limpa do “gelo” que protege

os dados mais secretos até Chiba City, espécie de cliché amalgamado de todos as

evidências de decadência das cidades contemporâneas. Aliás, a dimensão urbana dos

cenários de Gibson atinge o seu extremo em “Virtual Light”20, na imagem de uma

Golden Gate Bridge transformada em aldeia pós-apocalíptica fundada por anarquistas.

De qualquer forma as personagens de Gibson circulam sempre entre um mundo de

hotéis de luxo e palácios de poder, por um lado, e as margens obscuras de uma

civilização expulsando o seu excesso humano para as margens. As mesmas cidades de

extremos que Junger descreve como oficinas de formas em “Der Arbeiter”.

O mundo de ficção científica de “Star Trek”, por exemplo, é um mundo definido

em termos essencialmente abstractos e modernistas, em que as personagens principais

têm como função principal realizar uma espécie de contrato social intergaláctico.

Mesmo os espaços são definidos por formas não agressivas, arredondadas. O lado da

técnica é apenas povoado de pequenos “gadgets” que o enriquecem de pormenor realista

e permitem manobras de marketing e fanatismo nas raias do ridículo. Em “Star Wars”,

por exemplo, a estrutura clássica dos contos de fadas é a única dimensão profunda que

podemos encontrar num mundo que se limita a transformar espadas em sabres de luz e

cavalos em naves espaciais. Algumas das personagens vestem mesmo como se

estivessem no filme errado: a princesa Leia parece saída de uma produção Disney, Han

Solo usa um colete de cowboy21, Obi Wan Kenobi enverga um hábito de monge,

símbolos primários do seu lugar na história.

O movimento cyberpunk alterou radicalmente as regras do jogo. Uma breve

etimologia do termo revela facilmente que estamos perante histórias de heróis marginais

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confrontados com um sistema dominado pelas novas tecnologias da informação e

controlo. Partindo de alguns casos específicos da literatura de ficção científica, a

descrição do movimento associou-lhe os livros de autores como Bruce Sterling ou

William Burroughs, os filmes de Ridley Scott (em particular “Blade Runner”22) ou a

série de televisão “Max Headroom”. O mesmo conjunto breve de características aplica-

se a esta série de casos. Contudo, o que se torna verdadeiramente interessante é a

utilização ficcional da tecnologia em todos estes casos e a forma como ela se associa ao

que são hoje as novas tecnologias.

Afirma o próprio William Gibson “My hunch was that I was trying to come up

with some kind of metaphor that would express my deepest ambivalence about media in

the twentieth century. And it was my satisfaction that I sort of managed to do it, and

then these boff-its come in and say "God damn, that's a good idea! Let's plug it all in!"

But, you know, it just leaves me thinking, "What??" You know, that is actually stranger

than having people do theses about your work, is to have people build this demented

shit that you dreamed up, when you were trying to make some sort of point about

industrial society. It's just a strange thing.”23

Mais, portanto, do que o facto de estar a descrever um presente dominado pela

técnica, o que assusta Gibson é o facto de alguém poder tomar literalmente o mundo que

ele descreve e querer realizá-lo de facto. Derrick de Kerckhove chega mesmo a analisar

as condições tecnológicas necessárias a uma realização do ciberespaço pela

convergência das redes globais e da realidade virtual24. O que é verdadeiramente

interessante, na visão de Gibson, é o facto de ele descrever um presente em realização

sob a forma de um futuro, tal como Junger fizera 50 anos antes.

O mundo de Gibson é um mundo onde a totalidade unitária da técnica se sobrepôs

já à simples soma dos dispositivos. Esse é também o presente. Gibson descreve este

presente no seu ciberespaço que é ainda uma metáfora, a paisagem dos dados como uma

cidade nocturna, uma arquitectura de dados, “the roads and crossroads scribed on the

face of a microchip”25. O ciberespaço de Gibson é tanto uma realidade que excede a

soma dos dispositivos que a compõem como hoje a internet. A teoria dos sistemas, 20

anos depois da teoria da informação, central ao pensamento nesta área, anunciava-o já,

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afirmando-se destinada a estudar “what is somewhat vaguely named wholeness i. e.,

problems of organization, phenomena not resolvable into local events”26.

Como afirma Junger, 50 anos antes de Gibson o mostrar. No espaço técnico a

definição unívoca e calculada dos meios integra-os num lugar definido, faz nascer

sistemas globais, fazendo do arsenal técnico um único e grande instrumento. E a palavra

instrumento não nos remete sequer para uma visão instrumentalista da técnica, pois

enquadra-se na definição que Junger faz da figura do trabalhador neste contexto.

Passemos ao campo dos heróis.

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Todos somos meros aprendizes

“No Trabalhador expande-se o princípio activo, na tentativa de penetrar e dominar o

Universo de uma nova maneira, de conseguir vislumbrar aspectos próximos e

longínquos que nenhum olhar ainda viu, de dispor de forças que ainda ninguém

desencadeou.”

Ernst Junger27

Um dos aspectos curiosos do cyberpunk em geral e de “Neuromancer” em

particular é a definição dos heróis e do seu campo de actuação. A heroicidade é aliás

questão cara a Junger. Para além da técnica, o cenário mundial de Gibson define-se pela

continuação ficionada de trends que encontramos no presente.

É assim que encontramos um planeta desfeito e refeito em termos políticos,

fraccionado em unidades, que vão da micro-comunidade religiosa até zonas mais ou

menos indefinidas, centradas numa urbanização generalizada. Os Estados Unidos,

enquanto tal, por exemplo, nunca chegam a aparecer. Em “Virtual Light” há mesmo

uma Califórnia do Norte e uma Califórnia do Sul. Em termos económicos, dominam as

mega-empresas globais, omnipresentes e impenetráveis, símbolo do poder existente de

facto, perante a ausência de uma real definição do poder político. No mesmo contexto

não encontramos polícias e criminosos, mas sim empresas de segurança mais ou menos

legais perante a ordem estabelecida, indo até ao extremo dos Yakuza, seita secreta

japonesa. O mundo do poder é, de qualquer forma, um mundo da organização e do

controlo realizados tecnologicamente e aqui torna-se interessante o confronto com a

visão jungeriana.

Junger, em 1932, vê o mundo técnico como um espaço provisional de

possibilidades limitadas sem destino à duração, mas sim à substituição permanente.

Neste contexto a duração tende para zero e a vida constitui-se como tensão permanente

de ultrapassagem de si própria. A figura do trabalhador leva o seu pensamento mais

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longe. Fundindo mundo técnico e orgânico numa construção orgânica, Junger afirma o

destino da técnica como mobilização da matéria pela figura do trabalhador, simultânea à

mobilização do ser humano por essa figura. O ponto de chegada deste percurso da

multiplicidade à unidade é o da perfeição, encerramento da mobilização total em que

nos encontramos imersos. Junger descreve-a como a passagem do espaço dinâmico e

revolucionário ao espaço estático e sumamente ordenado. Mas Junger avisa, estamos

perante um tempo de mártires desconhecidos, a que se exige um realismo heróico que

“não se deixa quebrantar nem pela perspectiva da sua aniquilação completa e da

inutilidade dos seus esforços”28.

O mundo de Gibson é, como o descrevemos, um mundo de ordem e controlo, um

mundo em que a técnica arquitectou um espaço supremo de controlo e organização, o

ciberespaço. É, aparentemente, o espaço estático e sumamente ordenado que Junger

prevê como ponto omega da técnica. O processo narrativo de Gibson, a definição das

suas personagens revelam uma realidade diferente.

O espaço estático e ordenado de Junger é, em “Neuromancer”, apresentado em

oposição a um universo marginal em que se inserem os seus heróis, sem deixar lugar

para uma caracterização de qualquer classe social fora desta oposição ordem-margem.

Esta é aliás uma visão cara ao próprio Junger que descreve a sociedade ocidental

precisamente nestes termos, quer oponha trabalhadores e burgueses em 1932,

recontextualizando as visões, por exemplo, marxistas, que fala de uma nova ditadura do

consenso em “O Passo da Floresta”29, mais tarde.

A figura do Trabalhador, para Junger, é a figura de um herói e o seu espaço

ordenado, a sua “perfeição” nascerá da mobilização da matéria pelas mãos do

trabalhador, significado último da técnica. O mundo de Gibson não é resultado deste

processo. Os seus heróis estão na mesma posição em que Junger descrevia o trabalhador

na sua obra. O ciberespaço de Gibson é resultado de uma sociedade inteiramente

mobilizada pela técnica mas não é menos um mundo do controlo, da ditadura de um

consenso, o mundo dos noventa e oito por cento. E os seus heróis continuam a ser os

mártires desconhecidos do tempo.

O que é verdadeiramente interessante neste posicionamento dos heróis de Gibson

é, para além de não haver uma oposição clara herói (bem) - sistema (mal), traço

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característico de ficções detectivescas que lhe servem de inspiração, o facto da

tecnologia, omnipresente, não estar claramente associada a nenhum dos campos. A

tecnologia apresenta-se como o modo global de funcionamento dos sistemas,

instrumento de controlo e de domínio, mas os heróis de Gibson parecem encarnar outra

figura que não a da simples utilização do sistema contra o próprio sistema.

A questão continua a ser: haverá lugar em “Neuromancer” para descobrir a

encarnação da figura do trabalhador?

Case não é um herói defendendo um conjunto de valores ou um sistema ou sequer

a oposição a um sistema. Em última análise, a sua acção permite que o sistema se realize

na sua perfeição. Não está na margem por querer, não está no centro por o desejar. Case

é um herói que vive da adrenalina, da intensidade da sua experiência da técnica. O

momento máximo dessa intensidade é o da morte cerebral, o instante em que está

“flatlined”, morto para o mundo mas vivo em sonhos, memórias, alucinações mais

fundas do que alguma vez poderia ser a do ciberespaço. Case é um herói descentrado do

seu próprio corpo, descentrado da sua própria mente, vive da sua carne, como sente pela

carne de Molly, como deixa actuando no ciberespaço um construto do que foi o seu

professor, em última análise, uma parte do seu conhecimento. Neste contexto não fazem

sentido binómios tradicionais como corpo-mente e consciente-inconsciente. A

dissiminação da técnica pelos dispositivos do sucedâneo cria n Cases, capazes de

intesificar e ampliar a sua experiência a limites que estão para além do seu próprio

corpo, para além da sua própria fronteira entre consciente e inconsciente. Diz Wendy

Wahl: “In this way, the mind/body separation is encoded via technologies of the body,

and it's furthered by the structure of the novel: whenever Case jacks in to the matrix,

Gibson begins a new paragraph, highlighting the separation between the body and the

mind/matrix. Case doesn't seem to have a body unless he is inside Molly, either in sex or

in sim/stim. In the first case, Case's visual description recalls images of the matrix and,

in the second, he perceives Molly's bodily sensations electronically. Molly is the body.

Case can jack out at any time.”30

Case nunca arrisca o seu corpo. Molly fá-lo por ele e ele sente-o pela tecnologia.

Mas Case é destemido. O seu heroismo é o realismo heróico inquebrantável de Junger.

Que melhor descrição da sua personagem que a de construção orgânica: a mobilização

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da matéria pela figura do trabalhador fundida com a mobilização do ser humano por

essa figura, tarefas incompletas e inseparáveis unindo mundo técnico e orgânico. “O

tipo tem necessidade, para ser eficaz, dos meios que lhe são peculiares e, por outro lado,

nesses meios esconde-se uma linguagem que não pode ser usada por ninguém sem ser o

tipo”31. O tipo é o do ser humano mobilizado pela figura do trabalhador.

E não pode já haver dúvida de que os instantes finais de “Neuromancer”

anunciam o grau em que a irradiação da figura afecta de um modo especial os olhos

perecíveis. Assim é todo o sonho final de Case, assim é a realização de “Neuromancer”

na sua fusão com Wintermute.

Junger como Gibson caem num romantismo da técnica em tudo questionável. Não

há em Case uma realização enquanto ser humano, mas também Junger não propõe tal

caminho. A tarefa do trabalhador está circunscrita pelo momento em que “o sangue

troça do espírito, uma vez acabados os belos discursos”32. Gibson radicaliza a questão

de forma igualmente violenta, ao fazer, das suas tecnologias, tecnologias da mediação

corpo-mente, consciente-inconsciente, tecnologias da religação do homem consigo

mesmo. Ambos destroem quaisquer categorias tradicionais de confronto ou pensamento

destes pares. E contudo…

No final, na perfeição de Junger, na Matrix autoconsciente de Gibson realiza-se

uma unidade suprema e estática, uma unidade de natureza teológica. Case encarna a

figura do trabalhador. “A meta em que convergem os esforços consiste no domínio

planetário como símbolo supremo da nova figura.”33. Junger como Gibson roçam uma

teologia da técnica, como realização suprema do domínio sobre o humano.

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Stop, Pause, We’re in Record

“Case had always taken it for granted that the real bosses, the kingpins in any given

industry, would be both more and less than people. (…) He’d always imagined it as a

gradual and willing acommodation of the machine, the system, the parent organism.”

William Gibson34

É a traição suprema de Gibson ao cyberpunk, a todos aqueles que hoje se arrogam

essa ideologia do ciberespaço sem fronteiras. Case não defende ideologia nenhuma.

Case realiza a necessidade da técnica enquanto todo absoluto.

Não pode concluir-se, em qualquer dos casos, uma defesa ou uma recusa da

técnica, do seu papel na nossa sociedade. Os tecnófilos viram e verão ainda caminhos a

seguir. Os tecnófobos viram e continuarão a ver as provas da inumanidade absoluta da

técnica. Positivo ou negativo o efeito é apocalíptico: em ambos, os casos estamos

perante uma aceleração indeterminada em direcção a um ponto, topo da pirâmide de

Junger, climax da narrativa de Gibson. Um ponto que se revelará como realização de um

caos. O tom é de catástrofe. A tentativa é desesperada de virar o anjo do progresso

voando de costas para o futuro. A tentativa é a de que no fim, mais uma vez, esteja

Deus. Não há resposta. O nosso tempo está ainda a gravar. Sempre. Não há conclusão,

apenas visões.

Diz Junger:

“Como quer que seja é útil olhar bem nos olhos as catástrofes e também o modo

como podemos ficar enredados nelas.”35. E acrescenta “Na verdade, tudo o que hoje em

dia se desdobra em potência técnica é um vislumbre fugaz dos tesouros do ser. Se fosse

dado ao ser humano neles penetrar, nem que fosse por um instante incomensurável,

então ganharia segurança; não só o elemento temporal perderia o carácter ameaçador,

como dar-lhe-ia a impressão de ser carregado de sentido.”36

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O pensamento sobre a tecnologia tem que se mover no tempo do humano. O olhar

sobre a técnica e o olhar sobre os olhares sobre a técnica têm de sobreviver ao

maelstrom. Essa é a única conclusão deste trabalho.

É possível pensar a técnica fora da necessidade?

Podemos parar?

Podemos fazer pausa?

Está a gravar.

“Car toutes les manières de mesurer le temps sont nécessairement des séries qui

mènent au néant et à l’ombre, sont de nature dévorante. Toute horloge s’arrête, toute

aiguille retombe, toute cloche est réduite au silence”37.

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Notas

1 Laurie Anderson, contou, na sua conferência durante o Milia 96 uma pequena história de um sonho de um avião em queda. O

piloto informava os passageiros de que não tinham piloto. 2 In “Cybernetics”, Norbert Wiener, MIT Press, Cambridge, 1980 (original 1948) 3 In “Neuromancer”, William Gibson, Ace Books, Nova Iorque, 1984 4 O subtítulo da obra de Wiener é precisamente “do controlo e da comunicação no homem e na máquina” 5 Foi usada a versão espanhola: “El Trabajador”, Ernst Junger, Tusquets Editores, Barcelona, 1990 (original 1932) 6 Foi usada a versão porutuguesa: “O Passo da Floresta”, Ernst Junger, Livros Cotovia, Lisboa, 1995 (original 1951) 7 In “Next Tech”, Steve G. Steinberg, in “Wired” in nº 4.01, São Francisco, 1996 (p. 152) 8 Este processo de multiplicação das partes para o nascimento de uma unidade, característico dos dispositivos tecnológicos, está

na base de um grande número de visões modernistas da técnica. É como se finalmente fosse possível criar uma comunidade global feita de indivíduos. In “L’Intelligence Colective”, Pierre Levy, La Découverte, Paris, 1993

9 Podemos descrever essas consequências últimas como estimulação directa dos receptores sensoriais no cérebro criando a ilusão perfeita de uma realidade inexistente. Veremos como esta descrição se adequa a “Neuromancer” mais adiante.

10 Op. cit. (p. 270) 11 In “La Vitesse de Liberation”, Paul Virilio, Galilée, Paris, 1995 (p.30) 12 Ibidem (p. 33) 13 “So here are the questions: Is Time Long or is it Wide? Stop. Pause. We’re in record” in “Same Time Tomorrow” incluída no

album “Bright Red”, Laurie Anderson, 1994 14 In ftp://uiarchive.cso.uiuc.edu/pub/etext/gutenberg/etext94/dgray10.txt 15 In gopher://gopher.vt.edu:10010/02/134/63 16 Op. cit. (p. 51) 17 Mais informação sobre o cyberpunk está disponível na internet no newsgroup “alt.cyberpunk”. In ainda “Mondo 2000 - A

User’s Guide to the New Edge”, Rudy Rucker, R. U. Sirius e Queen Mu, Thames and Hudson, London, 1993 18 In “El Trabajador”, Ernst Junger, Tusquets Editores, Barcelona, 1990 (p. 161) 19 Basta lembrar o romance de Orwell e, chegados a esse ano, a generalização do computador pessoal, inventado em 81 e o

lançamento do primeiro computador pessoal com uma interface inteiramente gráfica, o Apple Macintosh. Gibson estava a pensar sobretudo nas consolas de jogos, como o próprio afirma. As consolas de jogos são, ainda, de qualquer forma a mais interactiva e sensorialmente intensa manifestação das novas tecnologias.

20 In “Virtual Light”, William Gibson, Penguin Books, Londres, 1994 (original 1993) 21 Case em “Neuromancer” é descrito como “interface cowboy”, mas, como veremos adiante, o seu estatuto de herói é diferente

pela sua relação com o domínio da técnica. A figura do trabalhador será ajuda fundamental para compreender esta diferença. 22 Informação sobre “Blade Runner” está disponível online em http://madison.tdsnet.com/~xtian/blade_runner.html 23 In “Queen Victoria's Personal Spook, Psychic Legbreakers, Snakes and Catfood: An Interview with William Gibson and

Tom Maddox”, Darren Wershler-Henry. Entrevista originalmente publicada na revista “Virus 23”, nº 0, Outono 1989 e disponível online em gopher://english.hss.cmu.edu:70/00ftp%3AEnglish.Server%3ACyber%3AGibson%3AGibson-Maddox

24 In “The Skin of Culture”, Derrick de Kerckhove, Sommerville House, Toronto, 1995 25 Op. cit. (p. 262) 26 In “General System Theory”, Ludwig von Bertallanffy, George Braziller, Nova Iorque, 1968 (p. 37) 27 In “O Passo da Floresta”, Ernst Junger, Livros Cotovia, Lisboa, 1995 (p. 32) 28 In “El Trabajador”, Ernst Junger, Tusquets Editores, Barcelona, 1990 (p. 166) 29 In “O Passo da Floresta”, Ernst Junger, Livros Cotovia, Lisboa, 1995 30 In “Bodies and Technologies: Dora, Neuromancer and Strategies of Resistance”, Wendy Wahl In “Postmodern Culture”,

Vol. 3, No. 2, Janeiro, 1993. Disponível online em http://jefferson.village.virginia.edu/pmc/issue.193/wahl.193 31 In “El Trabajador”, Ernst Junger, Tusquets Editores, Barcelona, 1990 (p. 165) 32 Ibidem (p. 26) 33 Ibidem (p.274) 34 In “Neuromancer”, William Gibson, Ace Books, Nova Iorque, 1984 (p. 203) 35 In “O Passo da Floresta”, Ernst Junger, Livros Cotovia, Lisboa, 1995 (p. 42) 36 Ibidem (p. 43) 37 In “Le Traité du Sablier”, Ernst Junger, Christian Bourgois Editeurs, 1970 (original 1954), (p. 188)

Page 17: A Inquietude Dinâmica

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