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2490 A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA INTERNACIONAL EM CONFORMIDADE COM SEU CONTEXTO: UMA PROPOSTA PARA A APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS THE INTERPRETATION OF INTERNATIONAL RULES ACCORDING TO THEIR CONTEXT: A PROPOSAL FOR THE APPLIICATION OF INTERNATIONAL LAW BY BRAZILIAN COURTS André Lipp Pinto Basto Lupi Luiz Magno Pinto Bastos Júnior RESUMO O objetivo deste artigo consiste na formulação de uma teoria normativa para interpretação do Direito Internacional pelos tribunais brasileiros. Segundo esta tese, as normas de Direito Internacional, mesmo quando aplicadas por tribunais nacionais, devem ser interpretadas em conformidade com o seu contexto de criação e os desenvolvimentos posteriores neste âmbito. Para tanto, defende-se que o recurso ao contexto consiste em um topos argumentativo que deve concorrer, no plano da argumentação jurídica, com outros topói consagrados no Direito nacional. A partir da análise de algumas decisões do STF e do STJ, pretende-se evidenciar algumas razões que militam em favor da adoção da tese formulada e assinalar situações em que sua aplicação foi ou poderia ter sido levada a efeito pelos tribunais superiores. PALAVRAS-CHAVES: INTERPRETAÇÃO CONFORME O CONTEXTO; INTERPRETAÇÃO DA NORMA INTERNACIONAL; JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES ABSTRACT This article formulates a normative theory for the interpretation of International Law by Brazilian Courts. Our main argument is that International Law rules, even when applied by national courts, must take the context of its creation and the successive developments in this domain into consideration. We sustain here that recourse to contextual interpretation is an argumentative "topos" that must be weighted against other "topoi" that are familiar to Municipal Law. To make a better proof, decisions of the highest Brazilian Courts are analyzed to show how the interpretation defended here could Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA INTERNACIONAL … · ao conflito entre normas convencionais e normas internas. Um destes problemas de extrema relevância refere-se à interpretação

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A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA INTERNACIONAL EM CONFORMIDADE COM SEU CONTEXTO: UMA PROPOSTA PARA A

APLICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

THE INTERPRETATION OF INTERNATIONAL RULES ACCORDING TO THEIR CONTEXT: A PROPOSAL FOR THE APPLIICATION OF

INTERNATIONAL LAW BY BRAZILIAN COURTS

André Lipp Pinto Basto Lupi Luiz Magno Pinto Bastos Júnior

RESUMO

O objetivo deste artigo consiste na formulação de uma teoria normativa para interpretação do Direito Internacional pelos tribunais brasileiros. Segundo esta tese, as normas de Direito Internacional, mesmo quando aplicadas por tribunais nacionais, devem ser interpretadas em conformidade com o seu contexto de criação e os desenvolvimentos posteriores neste âmbito. Para tanto, defende-se que o recurso ao contexto consiste em um topos argumentativo que deve concorrer, no plano da argumentação jurídica, com outros topói consagrados no Direito nacional. A partir da análise de algumas decisões do STF e do STJ, pretende-se evidenciar algumas razões que militam em favor da adoção da tese formulada e assinalar situações em que sua aplicação foi ou poderia ter sido levada a efeito pelos tribunais superiores.

PALAVRAS-CHAVES: INTERPRETAÇÃO CONFORME O CONTEXTO; INTERPRETAÇÃO DA NORMA INTERNACIONAL; JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

ABSTRACT

This article formulates a normative theory for the interpretation of International Law by Brazilian Courts. Our main argument is that International Law rules, even when applied by national courts, must take the context of its creation and the successive developments in this domain into consideration. We sustain here that recourse to contextual interpretation is an argumentative "topos" that must be weighted against other "topoi" that are familiar to Municipal Law. To make a better proof, decisions of the highest Brazilian Courts are analyzed to show how the interpretation defended here could

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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determine the results of those processes and to shed some light on the reasons that endorse its adoption by courts.

KEYWORDS: CONTEXTUAL INTERPRETATION; INTERNATIONAL LAW INTERPRETATION; DECISIONS OF HIGHER COURTS OF JUSTICE.

1 INTRODUÇÃO

A aplicação do Direito Internacional pelas cortes brasileiras tem se intensificado nos últimos anos. A expansão ratione materiae das normas de Direito Internacional e o aprofundamento dos compromissos trazidos em tratados recentes provocam a crescente inclusão de temas de Direito Internacional no cotidiano dos tribunais.

Considerando a importância das manifestações judiciárias de um Estado para a representação de sua posição oficial relativa aos temas enfrentados, assim como as implicações possíveis decorrentes da também crescente participação brasileira em foros internacionais, justifica-se a rediscussão das relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno.

No Brasil, os debates doutrinários sobre a matéria permaneceram no âmbito dos critérios para solução de antinomias, discutindo-se questões de hierarquia, posterioridade e especialidade, para preferir as normas de um tratado ou as da legislação interna, quando conflitantes. Do ponto de vista teórico, abandonou-se, com maior ou menor hesitação, o debate sobre monismo e dualismo, buscando uma abordagem mais pragmática. Estabeleceu-se, mais pela atividade jurisprudencial do que legislativa, - nunca é demais ressaltar o papel das cortes na definição da posição brasileira na matéria -, que os tratados obedecem no Brasil a uma hierarquia móvel, variável segundo o conteúdo. Assim, tratados sobre direitos humanos podem alcançar o status de Emendas Constitucionais (artigo 5º, §3º da CFRB), tratados sobre matéria tributária sobrevivem a legislação contrária posterior (artigo 98 do CTN) e tratados de extradição aplicam-se com primazia sobre a legislação, por conta do princípio da especialidade. Nos demais casos, os tratados estão em posição de igualdade hierárquica com a legislação ordinária interna, aplicando-se a norma mais recente.

Sem desmerecer a investigação mencionada, é preciso avançar na temática, introduzindo outros problemas de interpretação do Direito Internacional, não limitados ao conflito entre normas convencionais e normas internas. Um destes problemas de extrema relevância refere-se à interpretação das normas internacionais pelas cortes brasileiras. A hipótese aqui levantada é a de que inexiste um procedimento argumentativo definido para esta interpretação, o que normalmente implica a desconsideração do contexto de criação daquelas normas.

Neste artigo pretende-se apresentar uma teoria normativa para interpretação do Direito Internacional pelos tribunais brasileiros. Esta teoria foi elaborada a partir de uma análise jurisprudencial que corrobora a hipótese apresentada e aponta suas conseqüências indesejáveis. A tese principal aqui sustentada consiste na afirmação de que as normas

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de Direito Internacional, mesmo quando aplicadas por tribunais nacionais, devem ser interpretadas em conformidade com o seu contexto de criação e os desenvolvimentos posteriores neste âmbito.

Para tanto, o artigo inicia com uma breve explicação da forma pela qual esta regra de interpretação é enunciada no Direito Internacional. Em seguida, serão analisadas algumas decisões do STF e do STJ que aplicam normas internacionais. Este exame não se faz para criticá-las em razão dos resultados das decisões, mas para suscitar, a partir de casos concretos, as possibilidades interpretativas que se abririam se a regra de interpretação aqui formulada fosse levada em conta.

Ao final, pretende-se evidenciar algumas razões que militam em favor da adoção da tese formulada no que tange às obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro, bem como assinalar situações em que esta preocupação foi exitosamente levada a efeito pelo próprio STF.

Antes de adentrar nas discussões aqui propostas, impõe-se fazer uma ressalva preliminar muito importante: a tese proposta não depende da aceitação do monismo como explicação preferencial das relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno, justamente porque, como será visto, a questão principal não é a de hierarquização da norma internacional. Não se discute se ela deve ser aplicada; quer-se apenas defender que, quando os tribunais decidem que uma norma internacional é aplicável, devem interpretá-la em conformidade com seu contexto de criação.

2 A MÁXIMA DA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS INTERNACIONAIS EM CONFORMIDADE COM SEU CONTEXTO

De origem consuetudinária, as normas sobre tratados foram codificadas pela Comissão de Direito Internacional (CDI), que abordou essa temática praticamente desde a sua instalação, dada sua importância. Depois de quase duas décadas de debates, a Conferência de Viena adotou em 1969 a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (CVDT), cujo texto compreende normas sobre conclusão, validade, aplicação e extinção de tratados.

No que tange à interpretação dos tratados, a CVDT estabelece, em seus artigos 31 e 32: “Artigo 31. Regra geral de interpretação. 1º Um tratado deve ser interpretado de boa fé, de conformidade com o sentido comum que deve ser atribuído aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objeto e finalidade. 2º Para os fins de interpretação de um tratado, o contexto compreenderá, além do texto, inclusive seu preâmbulo e anexos: a) qualquer acordo concernente ao tratado e que foi ajustado entre todas as partes a respeito da conclusão do tratado; b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou várias partes por ocasião da conclusão do tratado e aceito pelas outras partes como instrumento relativo ao tratado. 3º Será levado em conta, juntamente com o contexto: a) qualquer acordo posterior ajustado entre as partes concernente à interpretação do tratado ou à aplicação de suas disposições; b) qualquer prática posterior na aplicação do tratado pela qual fique estabelecido o acordo das partes relativo à sua interpretação; c) qualquer regra pertinente de Direito Internacional aplicável nas relações entre as partes. 4º Será atribuído um sentido especial a um termo se fica estabelecido que essa era a intenção

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das partes. Artigo 32. Meios suplementares de interpretação. Pode-se recorrer aos meios suplementares de interpretação, inclusive aos trabalhos preparatórios do tratado e às circunstâncias de sua conclusão, a fim de confirmar o sentido quando a interpretação de conformidade com o artigo 31: a) deixa o sentido ambíguo ou obscuro; ou b) leva a uma conseqüência que é manifestamente absurda ou desarrazoada.”

Tais dispositivos servem como evidência de que há no Direito Internacional uma regra que é também aplicável no Direito interno, qual seja, a de que uma norma deva ser interpretada de acordo com o seu contexto. Eles também indicam que o contexto de uma norma internacional é o conjunto de normas internacionais e práticas relevantes dos Estados concernentes à matéria por ela tratada (em especial, no artigo 31.2, caput, e no artigo 31.3.a e b). Neste conjunto, por força do artigo 31.3.c, incluem-se a jurisprudência e a doutrina internacionais, como fontes auxiliares do Direito Internacional Público, com função de determinação das regras constantes das fontes principais (tratados, costume e princípios gerais de Direito), tudo conforme o artigo 38 do Estatuto da CIJ, apresentado como um dos dispositivos mais citados no Direito Internacional.

Apesar de ainda não ter sido a CVDT ratificada pelo Brasil, suas normas devem ser consideradas aplicáveis no direito interno.

A obrigatoriedade dos artigos concernentes à interpretação deflui do caráter costumeiro das regras ali codificadas, condição reconhecida em diversas manifestações de autoridades brasileiras, bem como por tribunais internacionais. A título de exemplo, pode-se mencionar a própria Mensagem que fez chegar o Projeto submetido ao Poder Legislativo para aprovação da CVDT, na qual o Ministro Celso Lafer refere-se ao documento como “o repositório mais completo e orgânico das normas geralmente consagradas nesta matéria, e ponto de referência natural no tratamento do assunto, mesmo para os Estados que dela não são partes”; outra evidência da aceitação destas regras pelo Brasil é a invocação das mesmas em litígios internacionais. A lista de decisões internacionais que aplicam as normas citadas como revelações do costume internacional é infindável, pelo que devem bastar os exemplos do Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC), da Corte Internacional de Justiça (CIJ) e do sistema de solução de controvérsias do Mercosul.

Apesar da possibilidade de afirmação da obrigatoriedade no direito nacional das regras de interpretação constantes na CVDT, defende-se aqui que, não obstante sua utilidade, este argumento não se afigura essencial à sustentação da tese postulada. Ou seja, é possível fundar o dever de interpretar as normas de Direito Internacional em conformidade com o seu contexto de criação e os desenvolvimentos posteriores neste âmbito, com base nas seguintes assertivas:

(a) a interpretação contextual da norma afigura-se como uma máxima de interpretação consagrada pela Teoria Geral do Direito e, aplicá-la às normas de Direito Internacional, nada mais significa do que transplantar para este plano os modelos de interpretação do Direito;

(b) a proposição de uma regra de interpretação, não obstante o caráter normativo da teoria, pertence ao gênero dos conselhos, não ao dos comandos; o recurso a elementos contextuais da norma internacional consiste em um topos argumentativo que deve

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concorrer, no plano da argumentação jurídica, com outros topói consagrados no Direito nacional.

(c) a preocupação com a interpretação dada à norma internacional no DIP, não somente pode enriquecer o entrecruzamento de idéias no processo de determinação concreta do sentido da norma, como pode também evitar a tomada de decisões internas contestadas em instâncias e foros internacionais.

A fim de demonstrar a aplicabilidade desta tese a partir da análise da experiência brasileira, serão considerados alguns julgados que envolvem a aplicabilidade de normas internacionais a fim de evidenciar de que maneira o processo de argumentação empreendido pelas cortes poderia ser enriquecido se esta preocupação metódica fosse observada.

3 INTERPRETAÇÃO DE NORMA INTERNACIONAL PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES: ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

3.1 OS CASOS DA CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE RELAÇÕES CONSULARES

3.1.1 A definição de crime grave para aplicação da inviolabilidade pessoal do cônsul

Como é consabido, a Convenção de Viena sobre Relações Consulares (CVRC), do mesmo modo que a CVDT, é fruto do trabalho de codificação da CDI. Ratificada e promulgada pelo Brasil, rege o exercício das funções dos cônsules estrangeiros no País, bem como limites para a interferência das autoridades brasileiras sobre essas funções e os funcionários consulares estrangeiros.

Em caso recente (HC n. 81.158-2), o STF teve de deparar-se com a difícil situação de Arie Scher, cônsul de Israel envolvido com o crime do artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A questão principal levada ao Supremo era a interpretação do artigo 41.2 da Convenção, cujo dispositivo impede o exercício da jurisdição penal sobre um cônsul e a decretação de sua prisão provisória, salvo em caso de crime grave. A exceção concernente à gravidade do crime dividiu os Ministros.

O Relator, Min. Ilmar Galvão, considerava que o crime do artigo 241 do ECA não era grave, pois admitia a transação penal na forma da Lei dos Juizados Especiais Criminais (artigo 89, da Lei 9.099/95). Do lado oposto, a Min. Ellen Gracie, para quem o crime era grave, pois feria interesses de uma criança, pessoa tutelada com os maiores cuidados pela legislação brasileira e por tratados internacionais, principalmente a Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo artigo 9o repudia qualquer forma de exploração de menores. A Ministra ainda encontra apoio à sua tese no agravante do artigo 61, II, h (crime contra criança) do Código Penal e no artigo 227 da Constituição Federal. Outros critérios de qualificação foram levantados nos autos. A Procuradoria Geral da República enquadrou o crime como grave, porquanto apenado com a reclusão. O Ministério Público concluiu da mesma forma, mas com base na restrição da imunidade às funções consulares.

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A decisão final do STF foi a de indeferimento do pedido de habeas corpus, acolhendo a tese de que o crime do artigo 241 deveria ser entendido como “crime grave”, para os efeitos do artigo 41 da CVRC.

O acórdão levanta questões importantes sobre o tema deste trabalho. Onde deveria o tribunal brasileiro ter buscado a referência para enquadrar um crime determinado como “crime grave” para efeito de aplicação de uma Convenção Internacional? De um modo geral, as opiniões veiculadas fundaram-se em critérios oriundos do Direito interno brasileiro: a Lei dos Juizados Especiais, o Código Penal, uma interpretação extensiva da Constituição Federal, dentre outros.

Todavia, outros recursos interpretativos estavam disponíveis, mormente a análise da prática dos demais Estados signatários da Convenção e o contexto da própria Convenção, seus trabalhos preparatórios e sua aplicação por órgãos internacionais. As vantagens desses recursos serão exploradas mais adiante. Por ora, basta considerar que seu uso poderia introduzir novas variáveis para a interpretação feita pelo STF no caso.

O recurso aos trabalhos preparatórios da Convenção poderia ser útil ao Tribunal brasileiro. Esta é uma técnica de interpretação autorizada pelo artigo 32 da CVDT. A CDI mantém o registro de todas as suas reuniões e debates, assim como geralmente há registros das Conferências de Estados que aprovam as Convenções elaboradas pela Comissão. Na leitura das primeiras propostas do texto da Convenção, vê-se que a expressão não era “crime grave”, mas “crime contra a vida ou a liberdade pessoal”. A substituição dos termos ocorreu depois de numerosas contribuições dos Estados para o trabalho da Comissão. As locuções preferidas eram “ofensa grave” ou “crime grave”, porém vários membros da CDI preocuparam-se com a falta de precisão da expressão. Para remediá-la, sugeriram parâmetros como a punição com pena de prisão maior do que cinco anos, o que corresponderia à prática dos Estados na matéria. A variedade dos sistemas penais, que inclusive poderiam conter punições mais severas do que a prisão, tal como o trabalho forçado, fizeram a CDI manter a expressão “crime grave” sem qualificação. Assim, os trabalhos preparatórios poderiam justificar a remissão aos sistemas nacionais para qualificação do crime grave, além de indicar parâmetros admissíveis no sistema penal brasileiro para preencher o conteúdo da norma internacional, dentre os quais o bem protegido (vida ou liberdade pessoal) e a severidade da punição (pena máxima superior a cinco anos de prisão).

Outra possibilidade, coerente também com os trabalhos preparatórios da Convenção, além de consistente com o contexto de aplicação da norma em questão, seria recorrer ao Direito Comparado. Sua utilidade aqui não se restringe à importação de conceitos, já que a Convenção aplica-se também no Brasil. O fundamento da análise da legislação estrangeira é a reciprocidade, a ver que tratamento seria dispensado a brasileiros em situação semelhante. A lógica da reciprocidade sempre foi a regente da matéria das imunidades. A título ilustrativo, pode-se dizer que um cônsul brasileiro no Canadá, tendo cometido crime com a mesma pena, manteria sua imunidade de jurisdição. A legislação canadense considera grave, para o efeito do artigo 41 da CVRC o crime apenado com cinco anos ou mais de reclusão. O mesmo não aconteceria nos EUA. A legislação estadunidense contém na Seção 4304b do United States Code, a definição do que se considera crimes graves para efeitos de infrações cometidas por diplomatas (incluindo cônsules). Ela inclui “felonies”, crimes violentos (especificados no artigo 16 da Seção 18 do USC), crimes cuja sanção seja pena de reclusão maior do que um ano e

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crimes de trânsito (dirigir embriagado ou sob o efeito de drogas, intoxicado ou de forma imprudente).

3.1.2 O direito de proteção consular

Em outro caso de aplicação da mesma Convenção, o STF deparou-se com o instigante tema do direito de proteção consular, amparado pelo artigo 36 daquele tratado. Este direito consiste na possibilidade que tem um Estado estrangeiro de, por meio de suas repartições consulares, oferecer assistência a um nacional seu que tenha sido detido.

A situação conhecida pelo STJ (RO 4582-5/RJ) e depois pelo STF (HC 74333-RJ) relativa a essa matéria surgiu no caso do cidadão alemão Olaf Henrik Unkel, que foi preso em flagrante e condenado a cinco anos de reclusão e 89 dias-multa pela infração ao artigo 12 da Lei n. 6.368/76, na cidade do Rio de Janeiro. Mantida a prisão pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, recorreu ao STJ, alegando ser cidadão estrangeiro e não ter tido intérprete, nem direito de comunicação com o consulado durante o inquérito. No auto de flagrante, constava que o cidadão falava português e dispensava a comunicação com os familiares e com o consulado, fatos por ele contestados no recurso.

Várias questões de fato envolvidas no processo são controversas, entre elas o conhecimento ou não da língua portuguesa por parte do detido, que teve nomeado intérprete apenas durante o inquérito judicial. Ao Tribunal, alegou-se que a falta da assistência consular e de tradutor prejudicou a defesa do estrangeiro, requerendo, por conseguinte, a anulação do feito desde o auto de flagrante. O STJ ateve-se a questões factuais, que evidenciam a autoria e sugerem haver pouca credibilidade nas alegações do réu, porque ele já viveria no Brasil há quatro anos, seria casado com uma brasileira e tinha filho brasileiro, além de ter sido encontrado pela polícia sozinho, de madrugada, em um bar, fatos que indicariam que ele deveria ter conhecimento do idioma nacional. Por estes motivos, o STJ considera que a falta de intérprete não deve ter prejudicado a defesa do réu e julga contrariamente à sua pretensão.

Já no STF, a lista de preliminares levantadas pela defesa do cidadão alemão é maior. O Tribunal nega-as, uma a uma. Porém, em certa passagem do relatório, lê-se “ademais, depondo em Juízo, alguns policiais afirmaram haver sido o fato comunicado ao Consulado Alemão, o que foi negado pela referida repartição consular (fls. 69/70)”. O acórdão chama a atenção por referir-se expressamente à falta de notificação ao consulado da prisão do réu e deste fato não tirar nenhuma conseqüência, não obstante ele indicar uma clara violação ao artigo 36 da CVRC. Este artigo determina que as autoridades policiais, ao deterem um cidadão estrangeiro, têm o dever de lhe informar sobre o direito de proteção consular e notificar o consulado da ocorrência, se assim solicitar o estrangeiro.

Em favor da decisão tomada, poder-se-ia alegar que: 1) o artigo 36 não cria direitos individuais, posto estar contido numa Convenção que regula as ações dos Estados entre si; 2) não há prazo certo assinalado para a notificação, motivo pelo qual não há nulidade do processo, posto que a notificação ainda poderia ser feita; 3) a assistência consular não tem efeito prático sobre o processo judicial, limitando-se ao direito de o cônsul visitar o preso, e então não teria havido prejuízo à defesa do réu, motivo pelo qual não

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haveria a nulidade, em conformidade com a súmula n. 523 do STF. Contudo, é de se indagar se as justificativas arroladas são conformes ao Direito Internacional.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na sua Opinião Consultiva n. 16/99, considerou que a CVRC criou um direito individual do cidadão estrangeiro à assistência do consulado do seu país de origem, e mais, que este direito enquadra-se no rol dos direitos humanos protegidos pela Corte. A CIJ, mais cautelosa, esquivou-se de afirmar o caráter de direito fundamental ou de direito humano do direito à proteção consular, mas sustentou a existência de um direito individual decorrente do artigo 36, que havia sido violado no caso LaGrand. O recurso aos trabalhos da CDI pode corroborar a posição da CIDH. Ao menos dois membros da CDI alegaram tratar-se de um “direito humano fundamental”, sem contestação ou reparo dos demais.

Perante a CIDH, o México ressaltou a finalidade do direito de proteção consular e a importância de sua garantia pelos Estados. Segundo a exposição mexicana, “sua experiência nesta matéria lhe permite afirmar que os primeiros momentos da detenção marcam de maneira determinante a sorte do réu; nada pode suprir uma oportuna intervenção consular nestes momentos, porque é quando o réu requer maior assistência e orientação, em razão de que em muitas ocasiões não conhece o idioma do país em que se encontra, ignora seus direitos constitucionais no Estado receptor, não sabe se tem a possibilidade de obter assistência judiciária gratuita e não conhece o devido processo legal”.

Observa-se no trecho acima transcrito que a assistência compreende as visitas ao detido, auxílio para obtenção de assistência jurídica, intérprete e eventuais intervenções relativas à saúde, além da comunicação do detido com seus familiares no Estado de origem. Interpretação semelhante foi dada pela CIJ, numa passagem de Avena: “No que respeita o objeto e a finalidade da Convenção, a Corte observa que o artigo 36 atribui aos funcionários consulares a liberdade de comunicar-se com os nacionais do Estado que os envia, de ter acesso a eles, de visitá-los, de falar com eles e providenciar-lhes assistência jurídica.” Esta interpretação abrangente é consistente com a concepção da CDI ao propor o artigo em questão.

É preciso salientar, por respeito aos fatos do caso brasileiro sob comento, que a defesa solicitou novo interrogatório, ante a falta de intérprete, o que lhe foi deferido. Segundo consta do relatório, porém, a defesa desistiu do novo interrogatório, confirmando as declarações anteriores.

No conflito suscitado pelo México contra os EUA (caso Avena), reclamava o demandante que a notificação não fora realizada certas vezes e, quando feita, não seguira o preceito do art. 36, que requer que a notificação seja feita “sem demora”. Neste particular, o México apresenta os casos de Esquivel e Juárez, dois nacionais seus presos nos EUA. A notificação ao consulado mexicano no primeiro caso levou dezoito meses e, no segundo, quarenta horas. O México sustenta que em ambos os casos houve violação, porque “sem demora” significa que a autoridade tem o dever de notificar imediatamente o consulado. Os EUA contestaram questões de fato, levantando também o problema de detidos com dupla nacionalidade. A CIJ decidiu que o prazo deve ser computado a partir do momento em que se sabe da nacionalidade estrangeira do detido. Quanto à extensão do prazo, a CIJ recorreu aos trabalhos preparatórios e afastou qualquer conexão entre os interrogatórios e a notificação. Assim, o pleito mexicano de

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nulidade dos interrogatórios anteriores à notificação consular foi rejeitado. Porém, mesmo no caso de Juárez, a CIJ encontrou violação do artigo 36, posto que sua nacionalidade mexicana já era conhecida no momento de sua prisão.

É possível verificar, a partir dos argumentos acima expostos, que a decisão do STF poderia levar em conta a norma internacional que concede o direito de proteção consular e interpretá-la de acordo com seu contexto. A ênfase da análise aqui empreendida não é, repita-se, no resultado final da decisão, se deve ou não ser anulado o processo criminal movido contra o cidadão alemão que pode não ter tido o direito de se comunicar com seu consulado, ou se deve o cônsul de Israel ter deferido seu habeas corpus, mas no caminho argumentativo das razões da decisão.

3.2 A TÉCNICA E A FORMA SEGUNDO O DIREITO INTERNACIONAL – O TEMA DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO

Sabe-se que o Direito Internacional é um conjunto normativo aplicável, sobretudo, às relações entre Estados soberanos. A soberania é um atributo ou elemento do Estado, tido geralmente como essencial para afirmação de sua personalidade jurídica. Dessa característica da ordem internacional decorre o princípio da igualdade jurídica dos Estados, reconhecido pela Carta da ONU, artigo 2.1. Um de seus corolários é o princípio par in parem non habet imperium. Em outras palavras, como o Estado é soberano e esta soberania lhe confere igualdade perante as demais entidades dotadas desse mesmo atributo, não pode ser submetido contra sua vontade aos poderes dessas outras entidades. Esta lógica confere ao Estado imunidade absoluta de jurisdição perante os tribunais dos outros Estados.

O princípio da imunidade de jurisdição tem caráter costumeiro. Não se tem conhecimento de que tenha sido inserido expressamente na legislação brasileira. Embora a CDI tenha concluído um projeto sobre a matéria, a Convenção que regula o assunto ainda não entrou em vigor. Aqui cabe, pois, uma breve nota sobre o costume como fonte do Direito Internacional.

Apesar do intenso trabalho de codificação do costume e sua transformação em lex scripta decorrente da adoção dos tratados e convenções frutos do trabalho de codificação, e muito embora os tratados tenham se tornado o veículo preferencial dos Estados para a externalização das normas do Direito Internacional, o costume permanece importante, pois é fonte de Direito Internacional Geral, ao contrário dos tratados, cujos efeitos são, via de regra, inter pars.

Fonte característica do Direito Internacional e pouco utilizada nos países da tradição romano-germânica, o costume se identifica contemporaneamente por uma técnica específica, consistente na busca de precedentes que indiquem haver uma “prática geral” acompanhada pela “convicção de sua obrigatoriedade”. Os atos indicativos da prática dos Estados são buscados nos atos oficiais da diplomacia, mas também em seus atos internos, executivos, legislativos e judiciários. Atos das Organizações Internacionais também contam. Reunidos esses atos, deve-se averiguar se o conjunto revela uma prática constante, uniforme e dispersa (geral).

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Esta nota sobre o costume é útil para o caso que se analisará em seguida, porque sua importância para o presente trabalho relaciona-se ao emprego das técnicas próprias do Direito Internacional, de modo a identificar “corretamente”, segundo padrões próprios do Direito Internacional, o conteúdo de suas normas.

A imunidade de jurisdição é um tema relativamente recorrente nos tribunais pátrios. Um importante paradigma para análise da jurisprudência brasileira encontra-se no caso Síria vs. Egito, em que o primeiro Estado reivindicava a posse de um imóvel no Rio de Janeiro. Processo interessante do ponto de vista jurídico, envolvia a sucessão de Estados ocorrida entre os dois litigantes, que haviam criado a República Árabe Unida em 1958 e a desfizeram em 1961. Depois da dissolução, o imóvel havia ficado na posse do então Embaixador da RAU, que era egípcio, que nele fixou a Embaixada do Egito, não obstante o imóvel pertencer à Síria antes da união dos dois Estados. A análise desta difícil questão levantada perante a Justiça brasileira foi preterida por uma preliminar, pois, quando citado, o Egito sustentou, por via diplomática, sua imunidade à jurisdição brasileira. A questão dividiu o Tribunal, mas a posição majoritária reconheceu o princípio costumeiro da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro.

A norma componente da ratio decidendi daquele acórdão vinha sofrendo alterações na prática dos Estados. Perturbados pelo exercício de atividades empresariais e outras pouco afeitas àquilo que os Estados ocidentais capitalistas consideravam caracteristicamente estatal, estes criaram leis internas restringindo a imunidade conferida a Estados estrangeiros, afastando-a em certas hipóteses, dentre as quais os contratos comerciais, questões imobiliárias e aspectos trabalhistas, quando envolvido pessoal local.

Estas mudanças foram incorporadas à jurisprudência do STF no caso Genny de Oliveira vs. República Democrática Alemã, quando, pela primeira vez, a Corte Suprema afastou a imunidade de um Estado estrangeiro. Os votos revelam motivos distintos para a decisão. O Relator do processo, Min. Sydney Sanches, baseava-se na interpretação literal do artigo 114 da CFRB. Dizia que a redação dada ao artigo eliminara expressamente a imunidade de jurisdição em matéria trabalhista, ao atribuir competência à Justiça do Trabalho para processar e julgar: “I – as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo (...)”. O Min. Rezek concordou quanto à decisão de dar prosseguimento ao feito, porém por motivo distinto. Com cuidado, diferenciou as imunidades pessoais conferidas pelas convenções sobre relações diplomáticas e consulares daquelas do próprio Estado estrangeiro, mencionou a jurisprudência anterior do STF que reconhecia na imunidade absoluta uma “antiga e sólida regra costumeira do Direito das Gentes”, distinguiu a noção de competência, - que é, a seu ver, a matéria tratada pelo artigo 114 da CFRB -, da noção de jurisdição e partiu para a análise das mudanças na referida regra costumeira. Segundo o voto, a regra modificara-se para admitir a exclusão da imunidade quando os atos em questão eram atos de gestão, e não atos de império, característicos das entidades estatais. Para comprovar a mudança no costume, trouxe à baila precedentes da prática dos Estados, notadamente a Convenção Européia de 1972, a lei estadunidade de 1976 e a inglesa de 1978, nos quais aponta a assunção da relativização da imunidade, especialmente para contratos de trabalho firmados com o pessoal local.

Assumida a relativização da imunidade pelo STF, em tudo consistente com o contexto internacional da norma aplicada e com a técnica própria de identificação das normas

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costumeiras, os tribunais pátrios começaram a aplicá-la. O precedente de Genny de Oliveira esclareceu a questão em matéria trabalhista. Os tribunais nacionais seguem-no firmemente. O STJ, por exemplo, decidiu que a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro não alcança litígios de ordem trabalhista decorrentes de relação laboral prestada em território nacional e tendo por reclamante cidadã nacional.

A distinção entre atos de gestão e de império torna-se, ela própria, absoluta. Assim, os tribunais passaram excluir outros atos do alcance da imunidade. Em primeiro lugar, são os atos comerciais. Disto é exemplo o seguinte trecho de uma decisão do STJ: “Crédito correspondente ao fornecimento de materiais (vidros) para a construção da Chancelaria daquele país em Brasília. Assunto marcadamente rotineiro e de natureza comercial, que não isenta a recorrente de ser demandada, quanto ao ponto, perante a Justiça brasileira”.

Da exclusão em matéria trabalhista e comercial, alonga-se a regra para excluir a imunidade em matéria tributária, porque, segundo o Tribunal, qualquer pessoa pode adquirir um débito tributário. Assim, não há jus imperii e por isso se pode promover a ação.

Na mesma esteira: “O Estado pratica ato "jure gestiones" quando adquire bens imóveis ou móveis. O Egrégio Supremo Tribunal Federal, mudando de entendimento, passou a sustentar a imunidade relativa. Também o Colendo Superior Tribunal de Justiça afasta a imunidade absoluta, adotando a imunidade relativa do Estado Estrangeiro. Não se pode alegar imunidade absoluta de soberania para não pagar impostos e taxas cobrados em decorrência de serviços específicos prestados ao Estado Estrangeiro.”

A conclusão transcrita deu-se no âmbito de uma execução fiscal movida pelo Município do Rio de Janeiro contra o Consulado do Japão, para cobrança de IPTU e taxas de coleta de lixo, iluminação pública e limpeza pública. Na justificativa da decisão, repara-se o esforço para apresentar a doutrina nacional e estrangeira que aceita a distinção entre atos de império e de gestão, para afirmar que a imunidade só alcança os primeiros. Inclusive os atos internacionais referidos no voto do Min. Rezek em Genny de Oliveira são mencionados pelo Ministro Relator e o próprio voto é parcialmente transcrito. Ele cita então alguns precedentes do STJ que corroboram a idéia de imunidade relativa e, por conclusão, aplica-a ao caso sub judice.

Embora a decisão seja discutível sob vários pontos de vista, para os fins deste trabalho, o que cumpre notar nessa progressão rumo à corrosão da imunidade do Estado estrangeiro é a perda do referencial original, a forma e a técnica próprias do Direito Internacional para identificação da norma costumeira e seu contexto. Com efeito, quando examinada a prática dos Estados, vê-se que os dois primeiros casos de exclusão são aceitos por leis internas e Convenções internacionais. A CDI recentemente terminou seu projeto de artigos sobre a matéria e Conferência auspiciada pela ONU aprovou-o em 2005. Os dispositivos da Convenção expressamente admitem a relativização da imunidade e sua exclusão em matéria trabalhista e comercial. Projetos da Organização dos Estados Americanos e da International Law Association contêm disposições no mesmo sentido. As leis inglesa, canadense e estadunidense são exemplos de leis internas que admitem essas relativizações. Em todos os casos, há certas condições, derivadas do exame da nacionalidade do reclamante, de seu domicílio e do lugar de execução do contrato.

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A exclusão em matéria tributária, porém, já requer maior cuidado. O Tribunal não a justificou na decisão antes citada, que se apóia exclusivamente na sua interpretação da distinção entre atos de império e de gestão. O acórdão não segue a trilha das decisões que o inspiraram e não analisa os precedentes da prática dos Estados, onde encontraria referências importantes para sua fundamentação. O projeto de Convenção Interamericana ressalva a possibilidade de submeter um Estado estrangeiro à jurisdição nacional por questões tributárias se os tributos incidirem sobre a propriedade estrangeira usada para fins comerciais (artigos 5 e 6, d). A lei inglesa permite o exercício da jurisdição sobre o Estado estrangeiro em matéria de tributos sobre valor agregado, aduaneiros e sobre atividade agrícola, assim como tributos decorrentes do exercício de atividade comercial (artigo 11).

4 ANÁLISE CONCLUSIVA

Segundo a proposta deste artigo, todas as decisões acima discutidas seriam (e algumas efetivamente foram) beneficiadas pela regra de interpretação aqui formulada, pela qual uma norma internacional deve ser interpretada de acordo com seu contexto, incluindo: outros textos normativos com os quais se relaciona; a evolução da interpretação da norma no âmbito internacional, sobretudo pela jurisprudência das cortes internacionais e pela prática dos Estados; e a técnica específica de sua identificação, notadamente no caso de normas costumeiras.

No primeiro caso, a definição de crime grave, para o efeito de aplicar ou não a regra da inviolabilidade pessoal do cônsul, seria mais segura se entre as referências discutidas houvessem figurado os parâmetros levantados nos trabalhos preparatórios da Convenção e na prática dos demais Estados. Trata-se de um enriquecimento favorecido pelos artigos 31 e 32 da CVDT.

No segundo caso, o direito de proteção consular teria sido valorizado, exigindo a consideração de sua violação pelas autoridades policiais. O recurso à jurisprudência internacional permite verificar que a interpretação dada pela Corte brasileira, à época, não corresponde à interpretação majoritária de acordo com o Direito Internacional. Embora essa jurisprudência seja posterior ao julgamento brasileiro, ela confirma as interpretações e comentários da CDI, dotados de autoridade por força do artigo 32 da CVDT, aos quais o Tribunal brasileiro poderia ter recorrido.

No tema da imunidade de jurisdição, o recurso adequado à técnica do Direito Internacional para identificação das normas costumeiras permitiu ao Judiciário brasileiro afirmar e depois rever a norma da imunidade absoluta do Estado estrangeiro. Contudo, em julgado posterior, o desprezo a essa mesma técnica levou a uma decisão discutível (a restrição da imunidade de jurisdição em matéria tributária), sem apoio na prática dos Estados.

A interpretação em conformidade com o Direito Internacional tem como benefícios a maior uniformidade de interpretação (eis que mantém o mesmo referente), a compatibilização com a interpretação que deve ser dada por outros tribunais de outros países em caso de interesse do Brasil (o que garante a reciprocidade das obrigações) e a consistência da conduta brasileira frente às obrigações assumidas no plano internacional.

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Em primeiro lugar, a homogeneização da interpretação de um tratado contribui para ampliar a segurança jurídica das relações por ele amparadas, o que é conseqüente com os objetivos dos Estados ao firmar tais convenções. Assim, interpretar a norma internacional levando em conta o seu contexto, na forma aqui exposta, permitirá às várias cortes nacionais encarregadas de aplicá-la valer-se de uma linguagem comum, em acordo com o objeto e a finalidade do tratado.

Na medida em que uma interpretação mais consistente com o contexto da norma internacional seja desenvolvida, há, pois, uma tendência maior de não se distanciar da interpretação feita por outros tribunais nacionais; os tribunais brasileiros, japoneses e israelenses, por exemplo, poderiam chegar a conclusões menos díspares sobre as obrigações internacionais de seus respectivos Estados. Como resultado, promove-se um incremento da reciprocidade de tratamento dos outros Estados e de seus nacionais, algo coerente com a lógica regente de largas áreas das relações internacionais.

Por outro lado, a interpretação em conformidade com o Direito Internacional evita situações indesejadas nas relações exteriores do País, pois a interpretação pelas cortes nacionais de normas internacionais é considerada, pelo Direito Internacional, como manifestação do Estado. Disto decorrem algumas conseqüências dentre as quais se destacam: a constituição da prática do Estado para efeitos da formação do costume internacional e a possibilidade de responsabilização internacional do Estado em casos de descompasso com as obrigações assumidas perante a comunidade internacional. Assim, as interpretações dadas pelos tribunais brasileiros, quando desconformes ao Direito Internacional, ensejam o risco de formação de uma prática e de uma opinio juris divergente daquela defendida pelo Brasil nas suas relações internacionais. Trata-se de um prejuízo político e jurídico, pois o Direito Internacional, pelos princípios da aquiescência e do estoppel, valoriza a coerência das ações dos Estados, no que respeita à sua legitimidade para invocar certas regras a seu favor. Em outras palavras, isso quer dizer que a conduta de um Estado pode ser usada contra si por mostrar que ele tolerou certas atitudes (aquiescência) que noutro momento gostaria de ver condenadas, ou por indicar que ele não fora coerente com a aplicação da regra que quer ver afirmada (estoppel).

Outro risco decorrente da interpretação sem atenção ao contexto é o de ser prolatada decisão jurisdicional contrária ao País que o responsabilize por um ato considerado ilícito à luz do Direito Internacional. Para permanecer no âmbito das temáticas já abordadas no texto, basta mencionar a responsabilização dos EUA nos casos Breard, LaGrand e Avena, frente à CIJ, por conta das interpretações do artigo 36 da CVRC feitas pelo Judiciário estadunidense que, segundo a CIJ, não deram plena aplicação aos direitos ali previstos (mesmo que o Poder Executivo estadunidense tenha seguidamente envidado esforços para dar-lhes maior eficácia).

Em duas decisões recentes, o próprio STF valeu-se exemplarmente do recurso à regra hermenêutica aqui defendida: o pedido de Extradição formulado pela Itália contra Marcel Vand den Berg (Ext. 954 – Itália, decisão monocrática) e o caso Ellwanger (HC 82424-RS).

O primeiro caso refere-se a pedido de extradição formulado pela Itália contra cidadão belga que, à época, já se encontrava preso no Brasil por crime cometido em território nacional. Em decisão monocrática, o Min. Joaquim Barbosa manifestou-se sobre a

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aplicabilidade, no curso de processo de extradição, do direito de assistência consular ao extraditando, quando se tratar de extraditando de nacionalidade diferente daquela do Estado demandante. Na decisão, com a finalidade de definir a finalidade e o alcance da proteção consular, recorreu à jurisprudência internacional e às lições do Direito Internacional, para estender a referida garantia à hipótese de prisão decorrente de pedido de extradição e para definir o alcance dos benefícios alcançados pela referida norma internacional.

O segundo caso, dotado de maior notoriedade e marcado por posicionamentos polêmicos, refere-se ao julgamento do habeas corpus impetrado em favor de Siegfried Ellwanger Castan contra decisão do STJ que manteve sua condenação pelo crime de racismo, por ter publicado e editado obras literárias que veiculavam conteúdo anti-semita. A discussão no caso gravitou em torno de duas questões centrais: (a) a prática de conduta de teor anti-semita enseja a tipificação do crime de racismo (inclusive com o gravame de imprescritibilidade)?; (b) a publicação de livros associados à propaganda anti-semita encontra-se protegida pela cláusula constitucional da liberdade de expressão artística e científica? O caso em questão não se refere, diretamente, à discussão acerca da aplicabilidade de uma norma de Direito Internacional, mas trata sobre a definição do conteúdo e da extensão de direitos fundamentais e de deveres expressamente consagrados no texto constitucional brasileiro (liberdade de expressão artística e científica e a cláusula de imprescritibilidade do crime de racismo).

Ocorre que, em se tratando de normas definidoras de direitos humanos, as normas de Direito Internacional e as normas de direito interno articulam-se e se inter-relacionam, de acordo com os mecanismos próprios definidos no ordenamento jurídico de cada país, tendo em vista a proteção dos direitos e garantias por elas consagrados. Em diferentes trechos do julgamento, os magistrados referem-se tanto a diplomas internacionais (Convenção Internacional para a eliminação de todas as formas de discriminação racial, de 1965) quanto à experiência de outros países que reconheceram como crime de racismo a adoção de condutas anti-semitas, impondo, inclusive, restrições ao exercício da liberdade de expressão.

Esta decisão, para os fins desta pesquisa, é muito reveladora sobre a utilidade da regra de interpretação apregoada. E mais, evidencia a preocupação do STF de levar em conta os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, ao menos em matéria de direitos humanos, como ressaltou Celso Lafer, que emitiu importante parece no caso em tela: “na interpretação, em matéria de direitos humanos, do Direito Interno e o Direito Internacional não são estanques. Interagem com vistas a reforçar a imperatividade do Direito Constitucionalmente garantido.”

Neste sentido, colhe-se do voto do Min. Celso de Melo: “ser necessário levar em conta o compromisso que o Brasil assumiu ao subscrever a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, cabendo ao intérprete extrair, das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, a sua máxima eficácia, sobretudo na proteção aos direitos fundamentais”. Concluindo, adiante, que “em matéria de direitos humanos, a interpretação jurídica deve considerar, necessariamente, as regras e cláusulas do direito interno e do direito internacional.”

A abertura dos tribunais nacionais à interpretação conforme o contexto internacional evoca, por certo, uma dimensão axiológica. O cosmopolitismo subjacente à proposta

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favorece o diálogo com o externo e contém uma inerente perspectiva de alteridade, características afinadas à defesa da paz e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, princípios inseridos no artigo 4º da Constituição Federal, cuja promoção é encargo de todos os brasileiros.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O STF expressamente refugou a importância da discussão doutrinária entre monistas e dualistas como um norte para a solução de antinomias entre o Direito Internacional e o Direito interno brasileiro. STF. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1480, do Distrito Federal. Tribunal Pleno Relator Min. Celso de Mello. Julgamento de 04 de setembro de 1997. DJ, 18.05.2001, p. 429. No corpo do acórdão, consta a seguinte afirmação: “É na Constituição da República - e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas - que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro.”

Este é o texto do dispositivo: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” Sua inserção no âmbito da EC 45/04 deve-se à acesa controvérsia suscitada, sobretudo, pelos casos de prisão civil do depositário infiel, deferida com fulcro Decreto-Lei n. 911/69 ou no artigo 652 do Código Civil e respaldada pelo artigo 5º, inciso LXVII, da CFRB, porém contrária aos textos do Pacto de São José da Costa Rica, art. 7º, e do Pacto dos Direitos Políticos e Civis, art. 11. Os tribunais chegaram a posições diferentes. O STF entendeu majoritariamente ser lícita a prisão, enquanto o STJ considerou-a ilícita, por motivos distintos da ratio decidendi do STF. Sobre o tema, ver: LUPI, André L. P. B. O problema do depositário infiel persiste: reflexões acerca da interpretação do art. 5º, par. 3º da Constituição Federal. In: Lier Pires Ferreira Júnior; Paulo Borges. (Org.). Direitos Humanos & Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2006. p. 377-389. STF. Habeas Corpus n. 72.131-RJ. Relator para o acórdão Min. Moreira Alves. Diário da Justiça, 01.08.2003, STJ. Corte Especial. Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 149.518-GO. Relator Min. Ruy Rosado de Aguiar. 05.05.1999. DJ, 28.02.2000.

“Artigo 98. Os tratados e convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhe sobrevenha.” Nesse sentido, a súmula 71 do STJ (“O bacalhau importado de país signatário do GATT é isento do ICM”) e outras decisões do STJ, v.g.: Agravo Regimental no Recurso Especial 109210-RJ. Segunda Turma. Relatora Min. Laurita Vaz. DJ, 14.04.2003. p. 207.

STF. Habeas Corpus n. 58.727-DF. Relator Min. SOARES MUNOZ. Tribunal Pleno. DJ, 03.04.1981. p. 2854. A ementa do acórdão registra o entendimento prevalecente na

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matéria: “Extradição. Prazo da prisão. Conflito entre a lei e o tratado. Na colisão entre a lei e o tratado, prevalece este, porque contém normas específicas.”

Cf. LUPI, André L. P. B. A aplicação dos tratados de direitos humanos no Brasil a partir da Emenda Constitucional n. 45. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 847, p. 11-24, 2006.

A Comissão de Direito Internacional é composta atualmente por 34 juristas e tem sede em Genebra. Foi criada pela Resolução 174 (II) da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 21.11.1947, com a função de contribuir para o desenvolvimento progressivo e a codificação do Direito Internacional, de acordo com o artigo 13.1 da Carta da ONU.

CONVENÇÃO DE VIENA sobre Direito dos Tratados de 1969. In: SALIBA, Aziz Tuffi. Legislação de Direito Internacional. São Paulo: Rideel, 2006. p. 808-829.

A afirmação contém um tom de obviedade para os juristas. Mesmo assim, pode-se citar, v.g., Alf Ross, para quem “o significado preciso de uma palavra numa situação específica é sempre em função da unidade total ou entidade: a expressão como tal, o contexto e a situação.” ROSS, Alf. Direito e Justiça. Bauru: Edipro, 2003. p. 164 (cf., tb., p. 139-151). Para uma discussão profunda e atualizada da matéria no Direito Internacional, vide CARVALHO, Evandro Menezes de. Organização Mundial do Comércio: cultura jurídica, tradução e interpretação. Curitiba: Juruá, 2006. Na jurisprudência da Corte Permanente de Justiça Internacional, antecessora da Corte Internacional de Justiça, o realce ao contexto como recurso de interpretação de um tratado encontra-se marcado em COUR PERMANENTE DE JUSTICE INTERNATIONALE. Compétence de l'OIT pour la réglementation internationale des conditions du travail des personnes employées dans l'agriculture. Avis Consultatif No. 2¸ du 12 aoùt, 1922. Série B, n. 2, 1922.

Este é o texto do artigo 38 do Estatuto: “1. A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe sejam submetidas, aplicará: a) as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b) o costume internacional como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito; c) os princípios gerais do direito, reconhecidos pelas nações civilizadas; d) sob ressalva da disposição do art. 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diversas nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito. 2. A presente disposição não prejudicará a faculdade da Corte de decidir uma questão ex aequo et bono, se as partes com isto concordarem.”

RANGEL, Vicente Marotta. Direito e Relações Internacionais. 7. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 86.

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Mensagem n. 116/1992. Submete à consideração do Congresso Nacional o texto da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969. Diário da Câmara, 8. 12.1995. p. 8401-8402. (Sem grifo no original).

WORLD TRADE ORGANIZATION. European Communities - Customs Classification of Frozen Boneless Chicken Cuts. Report of the Appellate Body. WT/DS269/AB/R.

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12.09.2005. Vide, tb. LUPI, André L. P. B. Soberania, OMC e Mercosul. São Paulo: Aduaneiras, 2001. p. 178-196.

WORLD TRADE ORGANIZATION. United States – Standards for Reformuled and Conventional Gasoline. Appellation Body Report. WT/DS2/AB/R. 29.04.1996. p. 18-20. O Órgão de Apelação cita casos de outras Cortes Internacionais e doutrina do Recueil des Cours para confirmar sua afirmação de que o artigo 31 da Convenção de Viena atingiu o status de costume internacional.

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Kasikili/Sedudu Island. Reports 1999, p. 1.045, §49.

MERCOSUL. Laudo do Tribunal Arbitral Ad Hoc constituído para decidir sobre a reclamação feita pela República Federativa do Brasil à República Argentina, sobre a “Aplicação de medidas de salvaguarda sobre produtos têxteis (Res. 861/99) do Ministério de Economia e Obras e Serviços Públicos”. Colônia, 10 de março de 2000. p. 13.

A Convenção de Viena sobre Relações Consulares está em vigor no Brasil desde 19.03.1967, por força do Decreto 61.078, de 26.06.1967. Para uma exposição mais detalhada do assunto das imunidades, vide SOARES, Guido. Órgãos dos Estados nas Relações Internacionais: Formas da Diplomacia e as Imunidades. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus n. 81.158-2, do Rio de Janeiro. Primeira Turma. Relatora para o acórdão Min. Ellen Gracie. Julgamento de 14 de maio de 2002. DJ, 19.12.2002. p. 91.

Dispõe o artigo 241: “Fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos.” BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 16/07/1990, p. 13563. O dispositivo foi alterado pela Lei 10.764/2003, para aumentar a pena, que passou a ser: “reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa”.

“Artigo 41. Inviolabilidade pessoal dos funcionários consulares. 1. Os funcionários consulares não poderão ser detidos ou presos preventivamente, exceto em caso de crime grave e em decorrência de decisão de autoridade judiciária competente. 2. Exceto no caso previsto no parágrafo 1 do presente artigo, os funcionários consulares não podem ser presos nem submetidos a qualquer outra forma de limitação de sua liberdade pessoal, senão em decorrência de sentença judiciária definitiva.”

BRASIL. Decreto n. 99.710, de 22 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança.

Este raciocínio de exclusão da imunidade pela restrição às funções é de uso freqüente na prática dos tribunais. Vide, p. ex., TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1A REGIÃO. Apelação Criminal n. 91.01.04099-5. Bahia. Relator Juiz Adhemar Macie. 20.05.1991. Publicado no DJ em 17.06.1991.

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INTERNATIONAL LAW COMMISSION. Consular Intercourse and Immunities. Provisional draft articles submitted by Jarouslav Zourek, Special Rapporteur. Doc. A/CN.4/L/86. Yearbook of the ILC, 1960, v. II, p. 32-42. [Doravante somente YILC].

Esta foi a proposta da Iugoslávia, por exemplo. YILC, 1961, v. II, p. 68.

Na sessão seguinte, o projeto da Comissão já usava a expressão “crime grave”. ILC. Draft articles on Consular Relations, with commentaries. YILC, 1961, v. II, p. 115. Para os debates sobre o artigo vide, no mesmo volume, p. 111-118 e 246.

Para uma análise geral sobre o uso de elementos do direito comparado pela jurisdição constitucional, cf. BASTOS JR, Luiz Magno. Limits and possibilities of the use of foreign materials by courts, in constitutional adjudication: Redefining the role of comparativism in theories of constitutional interpretation. In : VII World Congress of the International Association of Constitutional Law, 2007. Atenas, Grécia. Disponível em : http://www.enelsyn.gr/.

A regra de reciprocidade é basilar nas relações diplomáticas e consulares. Cf. FAUCHILLE, Paulo. Traité de Droit International Public. Paris: Arthur Rousseau, 1926, vol. 1, §753 a 755, p. 125-127. Vide, ainda, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus n. 49.183. Rel. Min. Osvaldo Trigueiro, 27.10.1971. Negou-se o Supremo Tribunal a exercer a jurisdição em razão dos artigos 58.1 (inviolabilidade da correspondência oficial) e 58.2 (imunidade de jurisdição) da CVRC. A qualificação do documento em exame como “correspondência oficial” foi o problema ali enfrentado. No voto do Relator, Min. Osvaldo Trigueiro, encontra-se a preocupação referida: “Em condições idênticas, certamente não desejaria o Govêrno brasileiro que uma querela dêsse gênero, entre seus funcionários, fôsse objeto de apreciação pela Justiça da Rússia, do Japão ou do Paraguai, em evidente detrimento do bom nome do nosso país.” (fls. 691-692)

Disponível na internet. <http://faluncanada.net/legal/constitutional_rights_feb05.doc>.

Disponível na internet. <www.dca.state.ga.us/research/law/Chap8-5.html>.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso ordinário n. 4582-5 (95.023670-2), do Rio de Janeiro. Sexta turma. Relator Min. Adhemar Maciel. Julgamento de 19 de setembro de 1995.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus n. 74.333, do Rio de Janeiro. Segunda Turma. Relator Min. Maurício Corrêa. Julgamento de 26 de novembro de 1996. fls. 3. DJ, 21.02.1997, p. 2826.

Este é o teor do artigo 36: “Comunicação com os nacionais do Estado que envia. 1. A fim de facilitar o exercício das funções consulares relativas aos nacionais do Estado que envia: a) os funcionários consulares terão liberdade de se comunicar com os nacionais do Estado que envia e visitá-los. Os nacionais do Estado que envia terão a mesma liberdade de se comunicarem com os funcionários consulares e de visitá-los; b) se o interessado lhes solicitar, as autoridades competentes do Estado receptor deverão, sem tardar, informar à repartição consular competente quando, em sua jurisdição, um nacional do Estado que envia fôr preso, encarcerado, posto em prisão preventiva ou

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detido de qualquer outra maneira. Qualquer comunicação endereçada à repartição consular pela pessoa detida, encarcerada ou presa preventivamente deve igualmente ser transmitida sem tardar pelas referidas autoridades. Estas deverão imediatamente informar o interessado de seus direitos nos têrmos do presente subparágrafo;

c) os funcionários consulares terão direito de visitar o nacional do Estado que envia, o qual estiver detido, encarcerado ou preso preventivamente, conversar e corresponder-se com êle, e providenciar sua defesa perante os tribunais. Terão igualmente o direito de visitar qualquer nacional do Estado que envia encarcerado, preso ou detido em sua jurisdição em virtude de execução de uma sentença, todavia, os funcionário consulares deverão abster-se de intervir em favor de um nacional encarcerado, preso ou detido preventivamente, sempre que o interessado a isso se opuser expressamente. 2. As prerrogativas a que se refere o parágrafo 1 do presente artigo serão exercidas de acôrdo com as leis e regulamentos do Estado receptor, devendo, contudo, entender-se que tais leis e regulamentos não poderão impedir o pleno efeito dos direitos reconhecidos pelo presente artigo.”

Súmula 523: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu.”

CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. El derecho a la información sobre la asistencia consular en el marco de las garantías del debido proceso legal. Opinión Consultiva OC-16/99 de 1 de octubre de 1999, solicitada por los Estados Unidos Mexicanos. p. 50, §§ 85-87.

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. LaGrand Case (Germany vs. USA). Judgement of 27 June 2001, § 77-78. O caso envolve o exercício de proteção diplomática pela Alemanha endossando o pleito de dois nacionais presos por um assalto a banco com morte de um funcionário. Ambos foram condenados à morte sem ter havido notificação ao consulado de seu país de origem.

YILC, 1961, v. I, p. 245. Foi o estadunidense Edmonds que utilizou a expressão “very fundamental human right”. O mexicano Padilla Nervo referiu-se ao direito de proteção consular como um “fundamental right”.

CIDH, OC 16/99, doc. cit., p. 26. (tradução nossa). Vide, tb., ARAÚJO, Nádia de. A influência das opiniões consultivas da corte interamericana de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Revista do CEJ. Brasília, n. 29, p. 64-69. abril/junho 2005. p. 67.

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Avena and other Mexican Nationals (Mexico vs. USA). Judgement of . §85, p. 48. No original: “As for the object and purpose of the Convention, the Court observes that Article 36 provides for consular officers to be free to communicate with nationals of the sending State, to have access to them, to visit and to speak with them and to arrange for their legal representation.”

ILC. Draft articles on Consular Relations, with commentaries. In: YILC, 1961, v. II, p. 112. Vide também os debates, YILC, 1961, v. I, p. 35.

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Doc. cit., fls. 541. A falta de intérprete foi considerada preclusa pelo TJRJ, em decorrência do Habeas Corpus antes julgado. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Apelação Criminal n. 1995.050.00539. Segunda Câmara Criminal. Rel. Des. Álvaro Mayrink da Costa. Julgamento de 16 de dezembro de 1997. Da mesma Corte, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Habeas Corpus n. 026/95 (1995.059.00026). Segunda Câmara Criminal. Rel. Des. Oscar Silvares. Julgamento de 7 de fevereiro de 1995. fls. 7035. A afirmação de preclusão foi repetida pelo STF. Doc. cit., fls. 543.

Sobre os trabalhos da CDI, vide YILC, 1961, v. I, p. 34, onde se discute a proposta da Holanda de fixar um prazo máximo de um mês. A fixação de um prazo foi rechaçada porque poderia permitir uma extensão indevida em todos os casos, quando na verdade trata-se de questão urgente. A CIJ também discute as posições dos delegados na Conferência que adotou a CVRC. A Opinião da CIDH é mais severa neste ponto. Ela considera que a finalidade do artigo 36 é garantir a efetividade da defesa e, por conseguinte, “la Corte interpreta que se debe hacer la notificación al momento de privar de la libertad al inculpado y en todo caso antes de que éste rinda su primera declaración ante la autoridad”. Doc. cit., p. 54, § 106.

ICJ, Avena, doc. cit., p. 42-40, §§ 58-89.

UNITED NATIONS Convention on Jurisdictional Immunities of States and their Property. In: UNITED NATIONS, General Assembly. Resolution n. 58/508. 16 December 2004. Disponível em: <www.un.org>. A Convenção, que teve 28 signatários, recebeu quatro ratificações até o momento. Outras vinte e seis são necessárias para sua entrada em vigor, segundo o art. 30. Idem, ibidem.

Os termos constam do artigo 38.1.b do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

Para uma descrição detalhada e uma análise crítica das teorias sobre o costume no Direito Internacional, vide LUPI, André L. P. B. A indeterminação da prática no costume: uma crítica dos métodos em Direito Internacional. Tese de doutorado. Orientador: Celso Lafer. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

STF. Ação Cível Originária n. 298, do Distrito Federal. Tribunal Pleno. Relator Min. Soares Munoz. Julgamento de 14 de abril de 1982. DJ, 17.12.1982. p. 13201. Uma crítica da decisão está em MAGALHÃES, José Carlos de. O Supremo Tribunal Federal e o Direito Internacional: uma análise crítica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 150-172.

STF. Apelação Cível n. 9696. de São Paulo. Tribunal Pleno. Relator Min. Sydney Sanches. Julgamento de 31de maio de 1989. DJ, 12.10.1990. p. 11045.

STJ. Recurso Ordinário n. 2002/0096286-5. RO 23/PA. Quarta Turma. Relator Min. Aldir Passarinho Junior. Julgamento de 28 de outubro de 2003. DJ, 19.12.2003, p. 464. I. No mesmo sentido: STJ. Recurso Ordinário n. 2003⁄0235440-6. RO 33⁄RJ. Terceira Turma. Julgamento de 02 de junho de 2005. Relatora Min. Nancy Andrighi.

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STJ. Agravo de Instrumento n. 1989/0010770-4. Ag 757/DF. Quarta Turma. Relator Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Julgamento de 21 de agosto de 1990. DJ, 01.10.1990, p. 10448.

STJ. Recurso Ordinário n. 1998/0001667-8. RO 7/RJ. Segunda Turma. Relator Min. Francisco Peçanha Martins. Julgamento de 01 de junho de 1999. DJ, 06.12.1999, p. 73.

STJ. Recurso Ordinário n. 1997/0088768-5. RO 6/RJ. Primeira turma. Relator Ministro Garcia Vieira. Julgamento de 23 de março de 1999. DJ, 10.05.1999, p. 103.

A distinção entre atos de gestão e atos de império é, desde muito, tema recorrente nos tratados de Direito Administrativo e remonta ao movimento desencadeado pelos tribunais administrativos franceses de suplantação da tese da irresponsabilidade absoluta do Estado pelos atos por seus agentes praticados. Segundo esta doutrina, somente os danos decorrentes de condutas administrativas reconhecidas como atos de gestão seriam indenizáveis. Para os fins do presente trabalho, frise-se dois aspectos: (a) a necessidade de distinção entre atos de gestão e atos de império, para fins de caracterização da responsabilidade civil do Estado, deu lugar à teoria da responsabilidade objetiva do Estado, apresentando-se hoje pouco útil tendo em vista as radicais transformações por que passam os institutos do Direito Administrativo; (b) esta distinção foi concebida para ampliar a responsabilização do Estado, portanto, é dotada de uma intrínseca vis expansiva que parece entrar em rota de colisão com a lógica de relativização (de caráter restritivo) da imunidade de jurisdição. Para uma breve ilustração da distinção entre atos de gestão e atos de império, no direito administrativo, cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

Uma das questões importantes refere-se à destinação do imóvel, pois sendo repartição consular, seu tratamento fiscal dependeria da CVRC, cujo artigo 32 determina: “1. Os locais consulares e a residência do chefe da repartição consular de carreira de que fôr proprietário o Estado que envia ou pessoa que atue em seu nome estarão isentos de quaisquer impostos e taxas nacionais, regionais e municipais, excetuadas as taxas cobradas em pagamento de serviços especificos prestados.” Num exame preliminar, tem-se a impressão de que a ação poderia prosseguir quanto às taxas cobradas pelo Município, excluindo-se apenas a cobrança do IPTU. O serviço de informações processuais da Justiça Federal registra a composição administrativa do débito e a conseqüente sentença de extinção do processo (Disponível em: <www.jfrj.gov.br>). O Japão não veio a Juízo responder pelo processo, sequer para alegar sua imunidade.

Um dos traços distintivos entre as tradições civilistas e do common law consiste na forma como os juristas e magistrados identificam a força vinculante dos precedentes na práxis judicial (stare decisis). Entre nós, busca-se identificar a parte dispositiva das decisões que, nos tribunais superiores, é cristalizada na forma de Súmulas e Ementas; identificar a força vinculante do precedente consiste em extrair destes documentos as regras aplicáveis aos demais casos (busca-se nas decisões anteriores a mesma estrutura normativa dos códigos). Por seu turno, nos países de tradição do common law, não obstante a parte dispositiva da decisão apresentar os elementos dispositivos (holdings), o que vincula as instâncias inferiores é a ratio decidendi utilizada pela corte para que aquele resultado fosse alcançado. Nas decisões narradas nesta seção, pôde-se constatar que a identificação do “ato de gestão” como critério para a relativização da imunidade

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de jurisdição, desconectou-se do contexto em que foi originariamente aplicada e passou a constituir uma nova norma replicada nas hipóteses subseqüentes.

ORGANIZATION OF AMERICAN STATES. Inter-american Draft Convention on Jurisdictional Immunity of States. International Legal Materials, v. 22, p. 292-297, 1983; INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION. Draft Articles for a Convention on State Immunity. International Legal Materials, v. 22, p. 287-291, 1983.

CANADA. Act to Provide for Immunity in Canadian Courts. International Legal Materials, v. 21, p. 798-801, 1982; UNITED STATES OF AMERICA. Foreign Immunities Act. International Legal Materials, v. 15, p. 1388-1392, 1976; UNITED KINGDOM. State Immunity Act. International Legal Materials, v. 17, p. 1123-1129, 1978.

Ambos os documentos estão referidos nas notas anteriores.

O Projeto de Artigos sobre Responsabilidade Internacional dos Estados afirma, no artigo 4º, que todo ato do Estado, seja executivo, legislativo ou judiciário, pode ensejar a responsabilidade do Estado. O artigo 12 dispõe que há uma violação internacional quando um ato de Estado não está em conformidade com o que é requerido pelas obrigações internacionais deste Estado, não importando sua origem ou sua natureza. Em repetição ao que já determina o artigo 27 da CVDT, o artigo 32 exclui o Direito interno do Estado como justificativa para o descumprimento de suas obrigações internacionais. ILC. Responsibility of States for International Wrongful Acts. In: UNITED NATIONS, General Assembly. Resolution 56/83. 12 December 2001. Disponível em: <www.un.org>.

STF. Extradição n. 954, da Itália. Relator Min. Joaquim Barbosa. Julgamento de 07 de junho de 2006. DJ, 19.06.2006. p. 9.

Trata-se, na espécie, de habeas corpus impetrado em favor de condenado como incurso no art. 20 da Lei n.º 7.716/89 (com as alterações dadas pela Lei n.º 8.081/90), tendo em vista a prática do delito de discriminação contra os judeus, por ter, na qualidade de escritor e sócio de editora, publicado, distribuído e vendido ao público obras anti-semitas, delito este ao qual foi atribuída a imprescritibilidade prevista no art. 5º, XLII, da CF.

Há autores que defendem a hipótese de que as normas de direitos humanos configuram um caso especial de normas de Direito Internacional. CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2003. v. 1.

Para uma abordagem sobre os diferentes aspectos da aplicação de tratados de direitos humanos pelos tribunais locais no contexto latino-americano, cf. ABREGÚ, Martín ; COURTIS, Christian (Orgs.). La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales. Buenos Aires : Editores del Puerto, 2004.

LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 82. Para o exame dessa questão no parecer mencionado, vide, no mesmo volume, p. 59-72.

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Doc. cit., fls. 620.

Idem, fls. 634.

A lista não inclui os documentos e decisões judiciais, citados ao longo do texto em forma completa.