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bachelard
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Dados Internacionais de Catal�o na Publica�o (CIP) (Ornara Brasileira do Livro, SP. Brasil)
2•ed.
Bachelard, Gaston, 1884· 1962. A intuição do instante I Gaston Bachelard ; tradução
Antonio de Padua Danesi. - 2• ed.- Campinas, SP : Verus Editora, 2010.
Titulo original: L'intuition de rinstant Bibliografia ISBN 97B·85·7686-010·5
I. Instante (Filosofia) 2. Tempo • Percepção I. Titulo.
07·0720
lndices para catalogo sistemático: 1. Instante : Intuição : Filosofia 11 5
CDD·115
GASTON BACHELARD
A intuição do instante
2• edição
Tradução
Antonio de Padua Danesi
VERUS
� w
SAPIENTIA
Título original L'int11ition dr l'instant
Editora Rai'ssa Castro
Coordenadora Editorial Ana Paula Gomes
Copidesque Ana Paula Gomes
Revisio Carlos Eduardo Sigrist
Diagramaçio Daiane Avelino
Capa e Projeto gráfico André S. Tavares da Silva
Copyright O Editions STOCK, 1931, 1992, 1993
Todos os direitos reservados, no Brasil, por Verus Editora. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permis.•io escrita da editora.
Vmus EDITORA LTDA. Rua Benedicto Aristides Ribeiro, 55 Jd. Santa Genebra 11 - 13084-753 Campinas/SP - Brasil Fone/Fax: (19) 3249-0001 [email protected] www. vcruscditor;� .com.br
Sumário
Prefacio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1
CAPÍTULO 1
O instante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
CAPÍTULO 2
O problema do hábito e o tempo descontínuo . . . . . . . . . . 57
CAPÍTULO 3 A ideia do progresso e a intuição do tempo descontínuo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
ANEXO
Instante poético e instante metafisico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Prefácio
O título or iginal desta obra de Bachelard é L'intuition de l'instant
- Etude sur la Siloe de Gaston Roupnel. O historiador francês Gaston Roupnel ( 1872- 1946) notabilizou-se por seu estudo da história social da França, pr incipalmente por sua Histoire de la cam
pagne française, na qual já está presente uma abordagem regional e estrutural que o aproxima da Ecole des Annales. A proposta de uma histór ia total , como preconizada por Roupnel, tem por contrapartida a menor estrutura de tempo possível em história , o instante. A contraposição entre a história como totalidade e o instante como fragmento mínimo resolve-se, para Roupnel, numa metafisica. O delineamento dessa metafisica ser ia o objetivo de Siloe no conjunto de sua obra .
Entretanto, o problema do instante e de como ele é conhecido, ou seja , o problema da intuição, não deve ser qualificado, na filosofia francesa, apenas como recorrente, mas também como fundante.
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A I NTUIÇAO DO I NSTANTE
É certo que a passagem mais conhecida da intuição na filosofia francesa é o cogito de Descartes ( 1 596- 1650) , que propõe a intuição como o fundamento do conhecimento - pois não posso duvidar de que sou. Entretanto, ainda na cr istandade, Hugo de São Vítor ( 1096- 1 1 4 1 ) j á havia colocado a intuição como contraposição entre uma totalidade e o instante, uma vez que a contemplatio era a intuição do olhar contemplativo e conhecimento último sobre a totalidade - e infinitude - divina. A conjunção entre o instante e a eterrridade. A contemplatio era o último passo do conhecimento, precedido pela cognitio - que se refer ia à observação sensível e à imaginação - e pela medita
tio - que se referia a uma reflexão racional cujo ápice era o reconhecimento do divino. Se usássemos os olhos de Hugo de São Vítor para ler Descartes, julgaríamos que o cogito, embora dito como intuição, é, ainda, meditatio .A contempla tio exige sempre uma metafísica mais profunda e radical, porém sempre unitiva , isto é, que conceba o mundo não como ruptura, mas como continuidade e, mesmo, ascensão da observação sensível à contemplação de Deus.
Roupnel faz a proposta de uma tal metafísica, contudo sua finalidade não é o conhecimento de Deus, mas da histór ia como totalidade. Quando desviamos da contemplação divina para a histór ia o enfoque da intuição, surpreendemo-nos com o fato de que a tradição, os valores e as práticas culturais consistiram sempre em instantes e repetições, que se constituíram em hábitos, os quais, por fim, receberam o significado de valores . Tal como na visão unitiva de Hugo de São Vítor, a singular idade do instante e a totalidade da histór ia encontram-se e pr incipiam sua conjunção na intuição do instante, ou seja , a intuição não é um ato único ou distinto, como a sentença cartesiana, mas um ato uno, de consciência e mundo, própr io de uma metafísica monis-
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PREFACIO
ta como Roupnel quer propor, em que o mundo é o sempre-presente e, de um modo radical, o instante.
Outro caminho de unidade entre consciência e totalidade foi proposto por Henri Bergson ( 1859- 1 941 ) , notadamente em sua obra mais conhecida, A evolução criadora. Porém já em seu trabalho inicial, Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, encontrará como dado imediato o tempo psicológico, por ele nomeado de duração psicológica, sendo o instante a conjunção entre a duração compactada - ou seja, ainda não expressa - e a duração distendida - expressa em palavras, números e símbolos. Desse modo, o instante bergsoniano é uma escolha em que, da heterogeneidade do emaranhado de significados possíveis, a consciência elegesse uma expressão homogênea, compreensível, contável, compatível com o tempo externo e mecânico compartilhado pelas pessoas, permitindo propor um significado único ou principal ao instante. O instante, assim, é a síntese da contraposição entre a totalidade heterogênea da consciência e a expressão homogênea de um significado.
A metafisica de Siloe chama Bachelard a esse debate sobre a intuição e o instante, enfrentando as diferenç�s e críticas em relação a Bergson e Roupnel.A caminho da caracterização da intuição metafisica e da intuição poética, Bachelard se aproximará do matemático e também filósofo Henri Poincaré, para quem a intuição era , mais que um ponto de partida explicativo, a centelha da criação e da invenção, necessária tanto à ciência quanto à po€sia .
PAULO DETARSO GOMES
9
lntrodução
Quando uma alma sensível e culta se lembra de seus esforços para desenhar, de acordo com seu próprio destino intelectual , as grandes linhas da Razão, quando estuda, pela memória, a história de sua própria cultura , ela se dá conta de que, na base das certezas íntimas, fica sempre a lembrança de uma ignorância essencial. No reino do próprio conhecimento há, assim , um erro original : o de ter uma origem; o de faltar à glória de ser in temporal; o de não despertar a si mesmo para permanecer como si mesmo, mas esperar do mundo obscuro a lição de luz.
Em que água lustrai encontraremos não somente a renovação do frescor racional, mas também o direito ao eterno retorno do ato da Raião? Que Siloé, marcando-nos com o signo da Razão pura , porá ordem o bastante em nosso espírito para nos permitir compreender a ordem suprema das coisas? Que graça divina nos dará o poder de outorgar o princípio do ser e o princípio do pensamento e, começando-nos verdadeiramente,
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A I NTU IÇIIO DO INSTA NTE
num pensamento novo, de retomar em nós, para nós, em nosso próprio espírito, a tarefa do Criador? É essa fonte de Juvência intelectual que Roupnel procura , como bom feiticeiro, em todos os donúnios do espírito e do coração. Atrás dele, incapazes nós mesmos de manejar a varinha de aveleira , sem dúvida não reencontraremos todas as águas vivas, não sentiremos todas as correntes subterrâneas de uma obra profunda . Pelo menos, gostaríamos de dizer em que pontos de Siloe recebemos os impulsos mais eficazes e que temas inteiramente novos Roupnel traz para o filósofo que quer meditar os problemas da duração e do instante, do hábito e da vida .
Primeiro, essa obra tem um foco secreto. Não sabemos o que é que faz o calor e a claridade. Não podemos fixar a hora em que o mistério se tornou claro o bastante para se enunciar como um problema . Mas que diferença faz? Quer ela venha do sofrimento, quer venha da alegria, todo homem tem na vida essa hora de luz, a hora em que ele compreende subitamente sua própria mensagem, a hora em que o conhecimento, iluminando a paixão, desvenda ao mesmo tempo as regras e a monotonia do Destino, o momento verdadeiramente sintético em que o malogro decisivo, propiciando a consciência do irracional , se torna ainda assim o sucesso do pensamento. É aí que se situa o diferencial do conhecimento, o fluxo newtoniana que nos permite perceber como o espírito surge da ignorância, a inflexão do gênio humano na curva descri ta pelo progresso da vida . A coragem intelectual consiste em manter vivo e ativo esse instante do conhecimento nascente, em fazer dele a fonte inexaurível de nossa intuição e em desenhar, com a histór ia subjetiva de nossos erros e equívocos, o modelo objetivo de uma vida melhor e mais clara . Ao longo de todo o livro de Roupnel , sentimos o valor dessa ação persistente de uma intuição filosófica
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INTRODUÇAO
oculta . Se o autor não nos mostra sua fonte primeira, nem por isso nos podemos enganar a respeito da unidade e da profundidade de sua intuição. O lirismo que conduz esse drama filosófico que é Siloe constitui o signo de sua intimidade, porque, como escreve Renan , " o que se diz de si é sempre poesia" . 1 Esse lirismo, porque inteiramente espontâneo, encerra uma força de persuasão que certamente jamais conseguiríamos transportar para nosso estudo. Seria necessário reviver todo o livro, seguilo linha a linha para compreender quanto o caráter estético lhe acrescenta de clareza . Aliás, para ler bem Siloe, deve-se ter presente que se está diante da obra de um poeta, de um psicólogo, de um historiador que ainda se nega a ser um filósofo no momento mesmo em que sua meditação solitária lhe entrega a mais bela das recompensas filosóficas - a de voltar a alma e o espírito para uma intuição original .
Nossa tarefa principal nos estudos que se seguem será esclarecer essa intuição nova e mostrar seu interesse metafísico.
Antes de iniciar nossa exposição, algumas observações serão úteis para justificar o método que escolhemos.
Nosso objetivo não é resumir o livro de Roupnel . Siloe é um livro rico em pensamento e em fatos. Melhor seria desenvolvê-lo que resumi-lo. Enquanto os romances de Roupnel são animados por uma verdadeira alegria do verbo, por uma existência numerosa de palavras e ritmos, é notável que ele tenha encontrado em seu Siloe a frase condensada , colhida no âmago da intuição. Desde logo nos pareceu que, aqui, explicar seria explicitar. Retomamos, pois, as intuições de Siloe tão perto quanto possível de sua fonte e empenhamo-nos em seguir em nós mesmos a animação que essas intuições poderiam dar à medi-
1 Souvrrrirs d'rf!{allcr rt de jermessr, Prefacio 111.
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A I NTUIÇAO DO I N STANTE
tação filosófica. Fizemos dela , durante vários meses, a moldura e o :�rcabouço de nossas construções. Aliás, uma intuição não se prova, se vivencia . E se vivencia multiplicando-se ou mesmo modificando-se as condições de seu uso. Samuel Butler diz com razão : "Se uma verdade não é sólida o bastante para suportar que a desnaturemos e a maltratemos, não é de uma espécie bem robusta" . 2 Pelas deformações que impusemos às teses de Roupnel, poder-se-á talvez medir sua verdadeira força . Servimo-nos, pois, com toda a liberdade, das intuiç�es de Siloe e, finalmente, mais que uma exposição objetiva , o que apresentamos aqui é nossa experiência do livro.
Todavia, se nossos arabescos deformam em demasia o traçado de Roupnel, sempre se poderá restituir a unidade retornando-se à fonte misteriosa do l ivro. Aí se encontrará , como buscaremos mostrar, sempre a mesma intuição. Aliás, Roupnel nos diz3 que o título estranho de sua obra só tem verdadeira inteligência para ele mesmo. Não será isso convidar o leitor a colocar também, no limiar de sua leitura , sua própria Siloé, o misterioso refúgio de sua personalidade? Recebe-se, então, da obra uma lição estranhamente emocionante e pessoal que lhe confirma a unidade num novo plano. Digamos numa palavra : Siloe é uma lição de solidão. Eis por que sua intimidade é tão profunda, eis por que ela conserva, acima da dispersão de seus capítulos - apesar do jogo não raro demasiado grande de nossos comentários -, a unidade de sua força íntima.
Tomemos portanto, desde já, as intuições diretivas sem nos limitarmos a seguir a ordem do livro. São essas intuições que nos darão as chaves mais convenientes para abrir as múltiplas perspectivas em que a obra se desenvolve.
2 La l'ie 1'1 l'llabitudr, p. 17, trad . Larbaud .
.l Si/oi', p. 8.
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C A P ÍT U LO
O instante
O virgíneo, o vivaz e o belo hoje.
MALLARME
Teremos perdido até a memória de nosso encontro ...
Mas nos reencontraremos,
para tiOS separarmos e nos encontrarmos de novo,
Ali onde os mortos se reencontram: nos lábios dos vivos.
SAMUEL BUTLER
A ideia metafísica decisiva do livro de Roupnel é esta : O tempo
só tem uma realidade, a do Instante. Noutras palavras , o tempo é uma realidade encerrada no instante e suspensa entre dois nadas . O tempo poderá sem dúvida renascer, mas primeiro terá
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A I NTUIÇAO DO I N STANTE
de morrer. Não poderá transportar seu ser de um instante para outro, a fim de f.12er dele uma duração. O instante é já a solidão . . . É a solidão em seu valor metafisico mais despojado. Mas uma solidão de ordem mais sentimental confirma o trágico isolamento do instante : por uma espécie de violência criadora , o tempo l imitado ao instante nos isola não apenas dos outros, mas também de nós mesmos,já que rompe nosso passado mais dileto.
Já no limiar de sua meditação - e a meditação do tempo é a tarefa preliminar a qualquer metafisi� -, eis, portanto, o filósofo diante da afirmação de que o tempo se apresenta como o instante solitário, como a consciência de uma solidão.Veremos mais adiante como se reformarão o fantasma do passado ou a ilusão do futuro ; mas, antes de tudo, para bem compreender a obra que vamos explicar, será necessário penetrar-se da total igualdade do instante presente e do real . Como poderia o que é real escapar à marca do instante presente? Mas, reciprocamente, como o instante presente deixaria de imprimir-se no real? Se meu ser só toma consciência de si mesmo no instante presente, como não ver que o instante presente é o único domínio no qual se vivencia a realidade? Se tivéssemos de eliminar nosso ser em seguida, seria necessário partir de nós mesmos para provar o ser. Tomemos, pois, de início, nosso pensamento e o sentiremos apagar-se incessantemente contra o instante que passa , sem lembrança do que acaba de nos deixar, sem esperar tampouco, porque sem consciência, pelo que o instante subsequente nos entregará . "É do presente, e só do presente, que temos consciência" , diz-nos Roupnel . "O instante que acaba de nos escapar é a mesma morte imensa a que pertencem os mundos abolidos e os firmamentos extintos. E o mesmo desconhecido temível contém, nas mesmas trevas do futuro, tanto o instante que se
1 6
O INSTANTE
aproxima de nós como os Mundos e os Céus que ainda se ignoram." 1
E Roupnel acrescenta u m argumento que vamos contestar com o único intuito de acentuar ainda mais seu pensamento: "Não há grau nessa morte que é tanto o futuro quanto o passado" . Para reforçar o isolamento do instante, quase diríamos que há graus na morte e que o que está mais morto que a morte é o que acaba de desaparecer . . . De fato, a meditação do instante nos convence de que o esquecimento é ainda mais nítido porque destrói um passado mais próximo, da mesma sorte que a incerteza é ainda mais emocionante porque colocada no eixo do pensamento que vai vir, no sonho que solicitamos, mas que sentimos já ser enganador. Do passado mais distante, por efeito de uma permanência totalmente formal que teremos de estudar, um fantasma algo coerente e sólido poderá talvez retornar e viver, mas o instante que acaba de soar, não o poderemos conservar com sua individualidade, como um ser completo. É necessária a memória de muitos instantes para fazer uma lembrança completa . Como o luto mais cruel é a consciência do
futuro traído e, ·quando sobrevém o instante lancinante em que um ente querido fecha os olhos, imediatamente se sente com que novidade hostil o instante seguinte "assalta" nosso coração.
Esse caráter dramático do instante é talvez suscetível de fazer pressentir sua realidade. O que gostaríamos de sublinhar é que, nessa ruptura do ser, a ideia do descontínuo se impõe de forma inconteste. Objetar-se-á talvez que esses instantes dramáticos separam duas durações mais monótonas . Mas chamamos de monótona e regular toda evolução que não examinamos com atenção apaixonada . Se nosso coração fosse amplo o bastante para amar a vida em seus pormenores, veríamos que todos os
I Sih>i', p. I 08.
1 7
A I NTU IÇAO DO I N STANTE
instantes são a um tempo doadores e espoliadores e que uma novidade recente ou trágica, sempre repentina, não cessa de ilustrar a descontinuidade essencial do Tempo.
11
Porém essa consagração do instante como elemento temporal primordial só pode, evidentemente, ser definitiva se for primeiro confrontada com as noções de ins�ante e de duração. Desde logo, apesar de Siloe não apresentar nenhum traço polêmico, o leitor não pode deixar de evocar as teses bergsonianas . V isto que neste trabalho nos propomos a tarefa de confiar todos os pensamentos de um leitor atento, cumpre-nos enunciar todas as objeções que nascem de nossas lembranças dos temas bergsonianos. Aliás, é talvez opondo a tese de Roupnel à de Bergson que compreenderemos melhor a intuição que apresentamos aqui .
Eis , então, o plano que vamos cumprir nas páginas que se seguem.
Lembraremos a essência da teoria da duração e desenvolveremos o mais claramente possível os dois termos da oposição:
1) A filosofia de Bergson é uma filosofia da duração. 2) A filosofia de Roupnel é uma filosofia do instante.
Em seguida, buscaremos indicar os esforços de conciliação que tentamos operar pessoalmente, mas não daremos nossa adesão à doutrina intermediária que nos reteve por um momento. Se a delineamos, é porque ela acode muito naturalmente, segundo parece, ao espírito de um leitor eclético e porque pode retardar sua decisão.
Enfim, após uma exposição de nossos próprios debates, veremos que, a nosso ver, a posição mais clara, mais prudente, a que-
1 8
O INSTANTE
la que corresponde à consciência mais direta do tempo, é ainda a teoria roupneliana.
Examinemos, pois, para começar, a posição bergsoniana . De acordo com Bergson , temos uma experiência íntima e
direta da duração. Essa duração é mesmo um dado imediato da consciência . Decerto ela pode ser subsequentemente elaborada, objetivada, deformada . Os físicos, por exemplo, com todas as suas abstrações, fazem dela um tempo uniforme e sem vida, sem termo nem descontinuidade. Entregam, então, o tempo inteiramente desumanizado aos matemáticos. Penetrando no pensamento desses profetas do abstrato, o tempo reduz-se a uma simples variável geométrica, a variável por excelência, doravante mais apropriada para a análise do possível que para o exame do real . De fato, a continuidade é, para o matemático, mais o esquema da possibilidade pura que o caráter de uma realidade.
Então, para Bergson, o que é o instante? Nada mais que um corte artificial que ajuda o pensamento esquemático do geômetra . A inteligência, em sua inaptidão para seguir o vital , imobiliza o tempo num presente sempre factício. Esse presente é um mero nada que não consegue sequer separar realmente o passado e o futuro. Parece, com efeito, que o passado leva suas forças para o futuro, e parece também que o futuro é necessário para dar passagem às forças do passado e que um único e mesmo impulso vital solidariza a duração. O pensamento, fragmento da vida, não deve ditar suas regras à vida . Totalmente imersa em sua contemplação do ser estático, do ser espacial , a inteligência deve empenhar-se em não desconhecer a realidade do futuro. Finalmente, a filosofia bergsoniana reúne de forma indissolúvel o passado e o futuro. Assim, é preciso tomar o tempo em seu bloco para tomá-lo em sua realidade. O tempo está na própria
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A I NTUIÇAO DO INSTANTE
fonte do impulso vital . A vida pode receber ilustrações instantâneas, mas é a duração que explica verdadeiramente a vida .
Evocada a intuição bergsoniana, vejamos de que lado, contra ela, as dificuldades vão se acumular.
Eis, em primeiro lugar, uma repercussão da crí tica bergsoniana à realidade do instante.
Com efeito, se o instante é uma falsa cesura, o passado e o futuro hão de ser bem difíceis de distinguir, porque são sempre artificialmente separados. Cumpt'e, então, tomar a duração como uma unidade indestrutível . Daí todas as consequências da filosofia bergsoniana: em cada um de nossos atos, no menor de nossos gestos, poder-se-ia apreender o caráter acabado do que se esboça, o fim no começo, o ser e todo o seu devi r no impulso do germe.
Mas admitamos que se possa misturar definitivamente passado e futuro. Nessa hipótese, uma dificuldade nos parece apresentar-se para quem quer levar até o fim o emprego da intuição bergsoniana .Tendo triunfado ao provar a irrealidade do instante, como falaremos do começo de um ato? Que potência sobrenatural , situada fora da duração, fará então o favor de marcar com um signo decisivo uma hora fecunda que, para durar, deve, apesar de tudo, começar? Como essa doutrina dos começos, cuja importância veremos na filosofia roupneliana, há de permanecer obscura numa filosofia oposta que nega o valor do instantâneo? Sem dúvida , para tomar a vida por seu meio, em seu crescimento, em sua ascensão, tem-se toda a possibilidade, com Bergson, de mostrar que as palavras antes e depois encerram apenas um sentido de ponto de referência , já que entre o passado e o futuro se segue uma evolução que em seu sucesso geral se afigura contínua . Mas, se passarmos ao domínio das mutações bruscas, em que o ato criador se inscreve abruptamente,
20
O INSTANTE
como não compreender que uma nova era se abre sempre por um absoluto? Ora, toda evolução, na medida em que é decisiva , é pontuada por instantes criadores .
Esse conhecimento do instante criador, onde o encontraremos mais seguramente que no fluxo de nossa consciência? Não é aí que o impulso vital se mostra mais ativo? Por que tentar remontar a alguma potência surda e escondida que falhou mais ou menos em seu próprio impulso, que não o concluiu , que nem sequer o continuou, enquanto se desenrolam sob nossos olhos, no presente ativo, os mil acidentes de nossa própria cultura, as mil tentativas de nos renovar e de nos criar? Voltemos, pois, ao ponto de partida idealista, concordemos em tomar como campo de experiência nosso próprio espírito em seu esforço de conhecimento. O conhecimento é, por excelência, uma obra temporal . Tentemos, então, apartar nosso espírito dos laços da carne, das prisões materiais . Tão logo o liberamos, e na proporção em que o liberamos, percebemos que ele recebe mil incidentes, que a linha de seu sonho se quebra em mil segmentos suspensos a núl picos. O espírito, em sua obra de conhecimento, apresenta-se como uma fila de instantes nitidamente separados. É escrevendo a história que o psicólogo, artificialmente, como todo historiador, coloca nela o vínculo da duração. No fundo de nós mesmos, ali onde a gratuidade tem um sentido tão claro, não percebemos a causalidade que daria força à duração, e é um problema complicado e indireto procurar as causas em um espírito no qual só nascem ideias.
Em suma, não importa o que se pense da duração em si , apreendida na intuição bergsoniana, a qual não temos a pretensão de haver examinado por inteiro numas poucas páginas - é necessário pelo menos, ao lado da duração, conceder uma realidade decisiva ao i11sta11te.
2 1
A I NTUIÇÃO DO I N STANTE
Teremos, aliás, a oportunidade de retomar o debate contra a teoria de uma duração tomada como dado imediato da consciência. Para isso mostraremos, utilizando as intuições de Roupnel, como se pode construir a duração com instantes sem duração, o que dará a prova - de um modo inteiramente positivo, queremos crer - do caráter metafisico primordial do instante e, por conseguinte, do caráter indireto e mediato da duração.
Mas retomemos desde logo um2 exposição positiva . Aliás, o método bergsoniano nos autoriza doravante a lançar mão do exame psicológico. Devemos então concluir com Roupnei: "A Ideia que temos do presente é de uma plenitude e de uma evidência positiva singulares. Instalamo-nos nele com nossa personalidade completa . Somente ali, por ele e nele, é que temos 2 sensação de existência . E há uma identidade absoluta entre o sentimento do presente e o sentimento da vida" . 2
Será necessário, por conseguinte, do ponto de vista da própria vida , buscar compreender o passado pelo presente, longe de um empenho incessante de explicar o presente pelo passado. Por certo, depois disso a sensação da duração deverá ser esclarecida . Vamos tomá-la , por ora, como um fato: a duração é uma sensação como as outras, tão complexa quanto as outras . E não façamos nenhuma cerimônia ao sublinhar seu caráter aparentemente contraditório: a duração é feita de instantes sem duração, como a reta é feita de pontos sem dimensão. No fundo, para se contradizerem, é preciso que as entidades atuem na mesma zona do ser. Se estabelecermos que a duração é um dado relativo e secundário, sempre mais ou menos factício, como poderia a ilusão que temos sobre ela contradizer nossa experiência
2 Ibidem.
22
O INSTANTE
imediata do instante? Todas essas ressalvas são feitas aqui para que não nos acusem de círculo vicioso formal quando tomamos as palavras no sentido vago, sem nos atermos ao sentido técnico. Tomadas essas precauções, podemos dizer com Roupnel :
Nossos atos de atenção são episódios sensoriais extraídos daquela
continuidade denominada duração. Mas a trama contínua, ali on
de nosso espírito borda desenhos descontínuos de atos, não pas
sa da construção laboriosa e artificial de nosso espírito. Nada nos
autoriza a afirmar a duração. Tudo em nós lhe contradiz o sen
tido e lhe arruína a lógica. E, aliás, nosso instinto é mais bem es
clarecido sobre isso do que nossa razão. O sentimento que temos
do passado é o de uma negação e de uma destruição. O crédito
que nosso espírito concede a uma pretensa duração que já não
seria, e na qual ele já não seria, é um crédito sem provisão.3
Convém sublinhar, de passagem, o lugar do ato de atenção na experiência do instante. É que, de fato, não existe verdadeiramente evidência senão na vontade, na consciência que se empenha em decidir um ato.
A ação que se desenvolve por trás do ato entra já no domínio das consequências lógica ou fisicamente passivas . E há aí um matiz importante que distingue a filosofia de Roupnel da de Bergson: a filosofia bergsoniana é uma filosofia da ação; a filosofia
roupneliana é uma filosofia do ato. Para Bergson, uma ação é sempre um desenrolar contínuo que se situa entre a decisão e o objetivo - ambos mais ou menos esquemáticos -, uma duração sempre original e real . Para um partidário de Roupnel, um ato é antes de tudo uma decisão instantânea, e é essa decisão que
· ' Op. cit., p. I 09.
23
A I NTU IÇAO DO I N STA NTE
encerra toda a carga de originalidade. Falando mais fisicamente, o fato de a impulsão em mecânica apresentar-se sempre como a composição de duas ordens infinitesimais diferentes leva-nos a comprimir até o limite puntiforme o instante que decide e abala . Uma percussão, por exemplo, explica-se por uma força infinitamente grande que se desenvolve num tempo infinitamente curto. Seria possível, aliás , analisar o desenrolar consecutivo a uma decisão em termos de decisões subalternas. Ver-se-ia que um movimento variado - o único q�. com toda razão, Bergson considera real - continua seguindo os mesmos princípios que o fazem começar. Mas a observação das descontinuidades do desenrolar torna-se cada vez mais difícil, à medida que a ação que segue o ato é confiada a automatismos orgânicos menos conscientes. Eis por que nos cabe remontar, para sentir o instante, aos atos claros da consciência .
Quando chegarmos às últimas páginas deste ensaio, teremos necessidade, para entender as relações do tempo e do progresso, de voltar a essa concepção atual e ativa da experiência do instante. Veremos então que a vida não pode ser compreendida numa contemplação passiva; compreendê-la é mais que vivê-la, é efetivamente impulsioná-la . Ela não corre ao longo de uma encosta , no eixo de um tempo objetivo que a receberia como um canal . É uma forma imposta à fila dos instantes do tempo, mas é sempre num instante que ela encontra sua realidade primeira . Assim, se nos voltarmos para o núcleo da evidência psicológica, em que a sensação já não é senão o reflexo ou a resposta sempre complexa do ato voluntário sempre simples, quando a atenção reduz a vida a um único elemento, a um elemento isolado, perceberemos que o instante é o caráter verdadeiramente específico do tempo. Quanto mais profundamente penetra nossa meditação do tempo, mais ela se reduz. Só a preguiça é duradoura
24
O INSTANTE
-o ato é instantâneo. Como não dizer então que, reciprocamente, o instantâneo é o ato?Tomemos uma ideia pobre, reduzamo-la a um instante - ela ilumina o espírito. Ao contrário, o repouso do ser é já o nada .
Como, pois, não ver que a natureza do ato, por um singular encontro verbal, é ser atual? E como não ver, em seguida, que a vida é o descontínuo dos atos? É essa intuição que Roupnel nos apresenta em termos particularmente claros:
Pode-se dizer que a duração é a vida . Sem dúvida . Mas é preciso
ao menos situar a vida no âmbito do descontínuo que a contém
e na forma agressiva que a manifesta . Ela já não é aquela conti
nuidade fluida de fenômenos orgânicos que se escoavam uns nos
outros, confundindo-se na unidade funcional . O ser, estranho lu
gar de lembranças materiais, não passa de um hábito em si mesmo.
O que pode haver de permanente no ser é a expressão não de
uma causa imóvel e constante, mas de uma justaposição de resul
tados fugidios e incessantes, cada um dos quais com sua base so
litária e cuja l igadura , que nada mais é que um hábito, compõe
um indivíduo.�
Sem dúvida , ao escrever a epopeia da evolução, Bergson devia negligenciar os acidentes . Roupnel, como historiador minucioso, não podia ignorar que cada ação, por simples que seja , rompe necessariamente a continuidade do devir vital . Se observarmos a história da vida em seus pormenores, veremos que ela é uma história como as outras, cheia de repetições desnecessárias, anacronismos, esboços, fracassos e recomeças . Entre os acidentes, Bergson reteve apenas os atos revolucionários nos quais o
• Ibidem.
2 5
A INTU IÇAO DO INSTANTE
impulso vital se cindia, nos quais a árvore genealógica se partia em ramos divergentes. Para traçar tal afresco, não havia necessidade de desenhar os detalhes - vale dizer, não havia necessidade de desenhar os objetos . Ele devia resultar, portanto, nessa tela impressionante que é o livro L'évolution créatríce [ed . bras. : A evolução criadora, Martins Fontes, 2005]. Essa intuição ilustrada é mais a imagem de uma alma que o retrato das coisas.
Porém o filósofo que pretende descrever a h�stória das coisas, dos seres vivos e do espírito, átorvo por átomo, célula por célula , pensamento por pensamento, deve conseguir separar os fatos uns dos outros, porque fatos são fatos, porque fatos são atos, porque os atos, se não terminam, se terminam mal, devem contudo, necessariamente, começar no absoluto do nascimento. É preciso, pois, descrever a história eficaz com os começos; é preciso, seguindo Roupnel, instaurar uma doutrina do aciden
te como princípio.
Numa evolução verdadeiramente criadora, existe apenas uma lei geral, segundo a qual um acidente está na raiz de qualquer tentativa de evolução.
Assim, nessas consequências relativas à evolução da vida , como em sua primeira forma intuitiva, vemos que a intuição temporal de Roupnel é exatamente o inverso da intuição bergsoniana .Antes de ir mais longe, resumamos com um duplo esquema a oposição das duas doutrinas:
• Para Bergson, a verdadeira realidade do tempo é sua duração; o instante é apenas uma abstração, desprovida de realidade. Ele é imposto do exterior pela inteligência, que só compreende o devir demarcando estados imóveis. Representaríamos, então, bastante bem o tempo bergsoniano por uma reta preta sobre a qual tivéssemos colocado, para sim-
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O INSTANTE
balizar o instante como um nada, como um vazio fictício, um ponto branco.
• Para Roupnel, a verdadeira realidade do tempo é o instante; a duração é apenas uma construção, desprovida de realidade absoluta . Ela é feita do exterior, pela memória , potência de imaginação por excelência, que quer sonhar e reviver, mas não compreender. Representaríamos, então, bastante bem o tempo roupnelíano por uma reta branca, inteiramente em potência, em possibilidade, na qual de repente, como um acidente imprevisível , viesse inscrever-se um ponto preto, símbolo de uma realidade opaca.
Note-se, aliás, que essa disposição linear dos instantes contínua sendo, tanto para Roupnel como para Bergson, um artifício da imaginação. Bergson vê, nessa duração que se desenrola no espaço, um meio indireto para medir o tempo. Mas o comprimento de um tempo não representa o valor de uma duração, e seria necessário remontar do tempo extensível à duração íntensíva . Aínda aqui , a tese descontínua adapta-se sem dificuldade: analisa-se a intensidade pelo número de Ín<:tantes em que a vontade se aclara e se retesa, tão facilmente quanto o enriquecimento gradual e fluente do eu . 5
Abramos agora um parêntese antes de esclarecer um pouco mais o ponto de vista de Siloe.
111
Dizíamos mais acima que, entre as duas intuições precedentes, havíamos hesitado longamente, buscando mesmo, nas vias da
' Cf.llergson, Essai sur ft•s douuérs immédiatt•s de /,t C<IIISCÍetrct•, p. 82 [ed . port .: Er�
saio sobre <IS d.tdtlS Íllll'diatos da ((l/ISCÍCIICÍa, Edições 70, 1988[.
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A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE
conciliação, reunir sob um mesmo esquema as vantagens de ambas as doutrinas. Esse ideal eclético acabou por revelar-se insatisfatório. Entretanto, como nos propusemos estudar em nós mesmos as reações intuitivas emanadas das intuições mestras, devemos ao leitor a confidência pormenorizada de nosso fracasso.
Queríamos inicialmente conferir uma dimensão ao instante, fazer dele uma espécie de átomo temporal que conservasse em si mesmo certa duração. Dizíamos que um acontecimento isolado devia ter uma breve história lógica com referência a si mesmo, no absoluto de sua evolução interna. Compreendíamos que seu começo podia ser relativo a um acidente de origem externa, mas para brilhar, e depois para declinar e morrer, pedíamos que se atribuísse ao ser, por isolado que fosse, sua parcela de tempo. Admitíamos que o ideal da vida fosse a vida ardente do eremero, mas reivindicávamos para o eremero, da aurora ao voo nupcial, seu tesouro de vida íntima. Queríamos sempre, portanto, que a duração fosse uma riqueza profunda e imediata do ser. Essa foi nossa primeira posição no que concerne ao imtante,
que seria então um pequeno fragmento do contínuo bergsomano.
Eis o que apreendíamos, em seguida, do tempo roupneliano. Imaginávamos que os átomos temporais não podiam tocar-se, ou, antes, que não podiam fundir-se um no outro. O que impediria sempre essa fusão seria a imprescri tível novidade dos instantes, da qual a doutrina do acidente colhida em Siloc nos convencera . Numa doutrina da substância, que aliás não está longe de ser tautológica, transferir-se-ão sem dificuldade, de um instante para outro, as qualidades e as lembranças; o permanente nunca há de explicar o devir. Se, pois, a novidade é essencial ao devir, tem-se tudo a ganhar atribuindo-se essa novidade ao próprio Tempo: não é o ser que é novo num tempo uniforme,
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O INSTANTE
é o instante que, renovando-se, remete o ser à liberdade ou à
oportunidade inicial do devir. Aliás, por seu ataque, o instante impõe-se prontamente, inteiramente; ele é o fator da síntese do ser. Nessa teoria , o instante salvaguarda necessariamente, portanto, sua individualidade. O problema de saber se os átomos temporais se tocavam ou se eram separados por um nada parecia-nos secundário. Ou melhor, dado que aceitávamos a constituição dos átomos temporais, éramos levados a pensá-los isoladamente e, para a clareza metafisica da intuição, nos dávamos conta de que um vazio era necessário - quer ele exista de fato, quer não - para imaginar corretamente o átomo temporal . Parecia-nos, então, vantajoso condensar o tempo ao redor de mí
cleos de ação nos quais o ser se reencontrava em parte, colhendo do mistério de Siloé o que se requer de invenção e de energia para tornar-se e progredir.
Enfim, aproximando as duas doutrinas, chegávamos a um bergsonismo fragmentado, a um impulso vital que se fracionava em impulsões, a um pluralismo temporal que, aceitando durações diversas, tempos individuais, nos parecia apresentar meios de análise tão flexíveis quanto ricos.
Porém é muito raro que as intuições metafisicas construídas num ideal eclético tenham força duradoura . Uma intuição fecunda deve dar primeiro a prova de sua unidade. Não tardamos a nos aperceber de que, por nossa conciliação, havíamos reunido as dificuldades das duas doutrinas. Era preciso escolher, não ao cabo de nossos desenvolvimentos, mas na base mesma das intuições.
Agora , portanto, vamos dizer como passamos da atomização
do tempo, em que nos detivéramos, à aritmetização temporal absoluta , tal qual Roupnel a afirma peremptoriamente.
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A I NTU IÇÃO DO INSTANTE
Primeiro, o que nos havia seduzido, o que nos levara ao impasse em que acabamos de entrar, fora uma falsa concepção da ordem das entidades metafisicas : sem perder o contato com a tese bergsoniana, gostaríamos de colocar a duração no próprio espaço do tempo. Tomávamos essa duração, sem discussão, como a única qualidade do tempo, como um sinônimo do tempo. Reconheçamos: isso não passa de um postulado. Não precisamos ajuizar seu valor senão em função da clareza e do alcance da construção que esse postulado favoreoe. Mas sempre temos o direito, a priori, de partir de um postulado diferente e tentar uma construção nova na qual a duração seja deduzida, e não postulada .
Porém essa consideração a priori não bastaria, naturalmente, para nos reconduzir à intuição de Roupnel. A favor da concepção da duração bergsoniana, com efeito, havia ainda todas as provas que Bergson reuniu sobre a objetividade da duração. Sem dúvida , Bergson instava-nos a sentir a duração em nós, numa experiência íntima e pessoal . Mas não parava aí . Ele nos mostrava objetivamente que éramos solidários de um único impulso, arrastados todos por uma mesma vaga . Se nosso tédio ou nossa impaciência alongava a hora, se a alegria abreviava o dia, a vida impessoal , a vida dos outros nos reconduzia à justa apreciação da Duração. Bastava colocarmo-nos diante de uma experiência simples - um torrão de açúcar que se dissolve num copo de água - para compreendermos que, a nosso sentimento da duração, correspondia uma duração objetiva e absoluta . O bergsonismo pretendia aqui , portanto, alcançar o donúnio da medida , sempre conservando a evidência da intuição íntima . Tínhamos em nossa alma uma comunicação imediata com a qualidade temporal do ser, com a essência de seu devir, mas o reino da quantidade do tempo, por indiretos que sejam nossos meios de estu-
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O INSTANTE
dá-lo, era a salvaguarda da objetividade do devir.Tudo, portanto, parecia salvaguardar a prirnitividade da Duração: a evidência intuitiva e as provas discursivas.
Eis, agora , como nossa própria confiança na tese bergsoniana se abalou .
Despertamos de nossos sonhos dogmáticos pela crítica einsteiniana da duração objetiva .
Bem depressa nos pareceu evidente que essa crítica destruiu o absoluto daquilo que dura, ao mesmo tempo em que conservava , como veremos, o absoluto daquilo que é - vale dizer, o absoluto do instante.
O que o pensamento de Einstein chama de relatividade é o lapso de tempo, é o "comprimento" do tempo. Esse comprimento se revela relativo a seu método de medição. Diz-se que, fazendo uma viagem de ida e volta no espaço a uma velocidade alta o bastante, reencontraríamos a Terra envelhecida alguns séculos, ao passo que teríamos marcado apenas algumas horas no relógio que levamos na viagem. Bem menos longa seria a viagem necessária para ajustar à nossa impaciência o tempo que Bergson postula como fixo e necessário para dissolver o torrão de açúcar no copo de água .
Aliás, cabe sublinhar desde logo que não se trata aqui de jogos vãos de cálculo.A relatividade do lapso de tempo para sistemas em movimento é, doravante, um dado científico. Se pensássemos ter o direito de recusar a esse respeito a lição da ciência, teríamos de permitir-nos duvidar da intervenção das condições fisicas na experiência da dissolução do açúcar e da interferência efetiva do tempo nas variáveis experimentais . Por exemplo, todos concordam que essa experiência de dissolução põe em jogo a temperatura? Pois bem, para a ciência moderna, ela põe igual-
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A I NTUIÇAO DO I NSTA NTE
mente em jogo a relatividade do tempo. Não se leva a ciência parcialmente em conta, é preciso tomá-la por inteiro.
Assim, pois, subitamente, com a relatividade, tudo que dizia respeito às provas externas de uma Duração única, princípio claro de ordenação dos acontecimentos, se via arruinado. O Metafísico devia debruçar-se sobre seu tempo local, fechar-se em sua própria duração íntima . O mundo não oferecia -ao menos imediatamente - garantia de convergência para nossas durações individuais, vividas na intilll.idade da consciência.
Eis, porém, o que merece agora ser observado: o instante, es
tabelecido com bastante precisão, permanece, na doutrina de Einstein,
um absoluto. Para conferir-lhe esse valor de absoluto, basta considerar o instante em seu estado sintético, como um ponto do espaço-tempo. Noutras palavras, é preciso tomar o ser como uma síntese apoiada simultaneamente no espaço e no tempo. Ele é o ponto de encontro do lugar e do presente: hic et IHittc,
não aqui e amanhã nem ali e hoje. Nessas duas últimas fórmulas, o ponto se dilataria num eixo das durações ou num eixo do espaço; essas fórmulas, subtraindo-se por um lado a uma síntese precisa, ensejariam um estudo inteiramente relativo da duração e do espaço. Mas, desde que se concorde em soldar e fundir os dois advérbios, eis que o verbo ser recebe enfim sua potência de absoluto.
Neste exato lugar e neste exato momento, eis onde a simultaneidade é clara, evidente, precisa; eis onde a sucessão se ordena sem esmorecimento e sem obscuridade. A pretensão de tomar como clara em si a simultaneidade de dois acontecimentos localizados em pontos diferentes do espaço é refutada pela doutrina de Einstein . Seria necessária, para estabelecer essa simultaneidade, uma experiência na qual pudéssemos fundar-nos sobre o éter fixo. O fracasso de Michelson proíbe-nos a esperança de realizar essa experiência . Cumpre, pois, difinir illdiretamettte a si-
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O INSTANTE
multaneidade em dois lugares diversos e, por consequência, ajustar a medida da duração que separa instantes diferentes a essa definição sempre relativa da simultaneidade. Não há concomitância assegurada que não se acompanhe de uma coincidência .
Voltamos, assim, à nossa incursão no donúnio do fenômeno com essa convicção de que a duração só se aglomera de modo artificial , numa atmosfera de convenções e definições prévias, e de que sua unidade vem somente da generalidade e da preguiça de nosso exame.Ao contrário, o instante revela-se suscetível de precisão e objetividade; sentimos nele a marca da fixidez e do absoluto.
Vamos, então, fazer do instante o centro de condensação ao redor do qual colocaríamos uma duração evanescente, exatamente o que falta de contínuo para pôr um átomo de tempo isolado em relevo sobre o nada e para dar à cavidade do Nada suas duas figuras falazes, conforme se olhe em direção ao passado ou se volte na direção do futuro?
Essa foi - antes de adotar enfim, sem compromisso algum, o ponto de vista claramente distinto de Roupnel - nossa última tentativa .
Digamos, pois, a razão que consumou nossa conversão.
Quando ainda tínhamos fé na duração bergsoniana e, para estudá-la, nos empenhávamos em depurá-la e, por conseguinte, em despojá-la do dado, nossos esforços deparavam sempre com o mesmo obstáculo : nunca conseguíamos vencer o caráter de pródiga heterogeneidade da duração. Naturalmente, acusávamos apenas nossa inaptidão para meditar, para nos desprender do acidental e da novidade que nos assaltavam. Nunca conseguíamos perder-nos o suficiente para tornar a nos achar, nunca lográvamos alcançar e seguir esse fluxo uniforme no qual a duração desenrolava uma história sem histórias, uma incidência sem in-
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cidentes. Teríamos preferido um devir que fosse um voa num céu límpido, voa que não deslocasse nada, ao qual nada se opusesse, o impulso no vazio - em suma, o devir em sua pureza e simplicidade, o devi r em sua solidão. Quantas vezes procuramos no devir elementos tão claros e tão coerentes quanto aqueles que Spinoza colhia na meditação do ser!
Mas, ante nossa impotência para encontrar em nós mesmos essas grandes linhas uniformes, esses grandes traços simples pelos quais o impulso vital deve desenhar o devir, éramos levados, naturalmente, a buscar a homogeneidade da duração limitando-nos a fragmentos cada vez menos extensos. Mas era sempre o mesmo fracasso: a duração não se limitava a durar, ela vivia ! Por pequeno que fosse o fragmento considerado, um exame microscópico bastava para ler nele uma multiplicidade de acontecimentos: sempre os bordados, jamais o pano; sempre as sombras e reflexos no espelho movediço do rio,jamais o fluxo límpido. A duração, como a substância, só nos envia fantasmas . Duração e substância desempenham mesmo, uma em relação à outra, numa recíproca desesperadora, a fabula do enganador enganado : o devir é o fenômeno da substância, a substância é o fenômeno do devir.
Por que, então, não aceitar, como metafisicamente mais prudente, igualar o tempo ao acidente, o que equivale a igualar o tempo a seu fenômeno? O tempo só se observa pelos instantes; a duração - veremos como - só é sentida pelos instantes. Ela é uma poeira de instantes, ou melhor, um grupo de pontos que umfenômetw de perspectiva solidariza de forma mais ou menos estreita . 1'
" Guyau já dizia, de um ponto de vista, é verdade, mais psicológico que o nos
so:" A ideia do tempo [ . . . J se reduz a um efeito de perspectiva" (LA J!Cuesc de
l'idée du temps, Prefacio).
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O INSTANTE
Porque se percebe bem que agora é preciso descer até os pontos temporais sem nenhuma dimensão individual . A linha que reúne os pontos e esquematiza a duração não passa de uma função panorâmica e retrospectiva , cujo caráter subjetivo indireto e secundário mostraremos a seguir.
Sem querer desenvolver longamente provas psicológicas, indiquemos simplesmente o caráter psicológico do problema.Apercebamo-nos, pois, de que a experiência imediata do tempo não é a experiência tão fugaz, tão dificil, tão complexa da duração, mas a experiência displicente do instante, apreendido sempre como imóvel . Tudo quanto é simples, tudo quanto é forte em nós, tudo quanto é duradouro mesmo, é o dom de um instante.
Para combater desde já no terreno mais dificil, sublinhemos, por exemplo, que a lembrança da duração está entre as lembranças menos duradouras . Lembramo-nos de ter sido - não, porém, de ter durado. A distância no tempo deforma a perspectiva do comprimento, porque a duração depende sempre de um ponto de vista . Aliás, o que é a lembrança pura da filosofia bergsoniana senão uma imagem tomada em seu isolamento? Se tivéssemos tempo, numa obra mais longa, para estudar o problema da localização temporal das lembranças, não teríamos dificuldade em mostrar como elas se situam mal, como encontram artificialmente uma ordem em nossa história íntima . Todo o excelente livro de Halbwachs sobre "os quadros sociais da memória" nos provaria que nossa meditação não dispõe de uma trama psicológica sólida , esqueleto da duração morta, em que pudéssemos, naturalmente, psicologicamente, na solidão de nossa própria consciência, fixar o lugar da lembrança evocada . No fundo, temos necessidade de aprender e reaprender nossa própria cronologia , e para este estudo recorremos aos quadros sinóticos, verdadeiros resumos das coincidências mais acidentais. É assim
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A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE
que, no mais humilde dos corações, vem inscrever-se a história dos reis. Conheceriamos mal nossa própria história , ou pelo menos nossa própria história estaria cheia de anacronismos, se fôssemos menos atentos à História contemporânea . É pela eleição tão insignificante quanto a de um presidente da República que localizamos com rapidez e precisão uma dada lembrança íntima - não será isso a prova de que não conservamos o menor vestígio das durações defuntas? A memória, guardiã do tempo, guarda apenas o instante; ela não cdhserva nada, absolutamente nada, de nossa sensação complicada e factícia que é a duração.
A psicologia da vontade e da atenção - essa vontade da inteligência - prepara-nos igualmente para admitir como hipótese de trabalho a concepção roupneliana do instante sem duração. Nessa psicologia, é já bem certo que a duração só pode intervir indiretamente; vê-se com toda facilidade que ela não é uma condição primordial : com a duração, pode-se talvez medir a espera , mas não a própria atenção, que recebe todo seu valor de intensidade num único instante.
Esse problema da atenção apresentou-se naturalmente no mesmo nível das meditações que desenvolvemos a propósito da duração. De fato, visto que pessoalmente não podíamos fixar por muito tempo nossa atenção nesse nada ideal que representa o eu despojado, devíamos ser tentados a fragmentar a duração ao ritmo de nossos atos de atenção. Ainda aqui, diante do mínimo de imprevisto, tentando reencontrar o reino da intimidade nua e crua, perceberiamos de repente que essa atenção em nós mesmos trazia, por seu próprio funcionamento, aquelas deliciosas e frágeis novidades de um pensamento sem história, de um pensamento sem pensamentos. Esse pensamento inteiramente encerrado no cogito cartesiano não dura . Ele só tem a evidência de seu caráter instantâneo; só toma uma consciência clara de si
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mesmo porque é vazio e solitário. Então ele aguarda, numa duração que é apenas um nada de pensamento e, por conseguinte, um nada efetivo, o ataque do mundo. O mundo lhe traz um conhecimento, e é ainda num instante fecundo que a consciência atenta será enriquecida por um conhecimento objetivo.
Aliás, como a atenção tem a necessidade e o poder de se retomar, ela está, em essência, inteiramente em suas retomadas. A atenção é também uma série de começos, é feita dos renascimentos do espírito que regressa à consciência quando o tempo marca instantes. Além disso, se levássemos nosso exame àquele estreito domínio em que a atenção se torna decisão, veríamos o que há de fulgurante numa vontade em que vêm convergir a evidência dos motivos e a alegria do ato. Seria então que poderíamos falar de condições propriamente instantâneas . Essas condições são rigorosamente preliminares, ou melhor, pré-iniciais, por serem anteriores ao que os geômetras chamam de condições iniciais do movimento. E é nisso que elas são metafisicamente, e não abstratamente, instantâneas. Contemplando o gato de tocaia, vereis o instante do mal inscrever-se no real , ao passo que um bergsoniano sempre vem a considerac a trajetória do mal, por estrito que seja o exame que ele faz da duração. Sem dúvida , o salto, ao se desencadear, desenrola uma duração de acordo com as leis físicas e fisiológicas, leis que regulam conjuntos complexos. Houve porém, antes do processo complicado do impulso, o instante simples e criminoso da decisão.
De resto, se voltarmos essa atenção para o espetáculo que nos cerca, se, em vez de atenção ao pensamento íntimo, nós a tomarmos como atenção à vida , perceberemos imediatamente que ela nasce sempre de uma coincidência . A coincidência é o mínimo de novidade necessário para fixar nosso espírito. Não poderíamos dar atenção a um processo de desenvolvimento no
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qual a duração fosse o único princípio de ordenação e diferenciação dos acontecimentos. Requer-se o novo para que o pensamento intervenha, requer-se o novo para que a consciência se afirme e a vida progrida. Ora, em princípio a novidade é, evidentemente, sempre instantânea .
Por fim, o que permitiria analisar melhor a psicologia da vontade, da evidência, da atenção, é o ponto do espaço-tempo. Infelizmente, para que essa análise se tornasse clara e comprobatória, seria preciso que a linguageftl filosófica, ou mesmo a linguagem comum, tivesse assimilado as doutrinas da Relatividade. Sente-se desde logo que essa assimilação começou , mas está longe de ter acabado. Acreditamos, contudo, que é nesse caminho que se poderá realizar a fusão do atomismo espacial com o atomismo temporal . Quanto mais íntima for essa fusão, tanto mais se compreenderá o mérito da tese de Roupnel . É assim que se apreenderá melhor seu caráter concreto. O complexo espaço-tempo-consciência é o atomismo de tripla essência, é a mônada afirmada em sua tripla solidão, sem comunicação com as coisas, sem comunicação com o passado, sem comunicação com as almas alheias .
Mas todos esses pressupostos vão parecer tanto mais frágeis quanto têm contra si muitos dos hábitos de pensamento e expressão. Percebemos muito bem, aliás, que a convicção não será suplantada repentinamente e que o terreno psicológico pode afigurar-se, para muitos lei tores, pouco propício a essas investigações metafísicas.
Que é que esperávamos ao acumular todas essas razões? Simplesmente mostrar que, se necessário, aceitaríamos o combate nos terrenos mais desfavoráveis. Mas a posição metafísica do problema é, no fim das contas, mais forte. É para lá que vamos agora
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dirigir nossos esforços. Tomemos, pois, a tese em toda sua nitidez. A intuição temporal de Roupnel afirma :
1 ) o caráter absolutamente descontínuo do tempo; 2) o caráter absolutamente puntiforme do instante.
A tese de Roupnel realiza, portanto, a aritmetização mais completa e mais franca do tempo. A duração não passa de um número cuja unidade é o instante.
Para mais clareza , enunciemos de novo, como corolário, a negação do caráter realmente temporal e imedjato da duração. Roupnel diz que "o Espaço e o Tempo só nos parecem infinitos quando não existem".7 Bacon já observara que "nada é mais vasto que as coisas vazias" . Inspirando-nos nessas fórmulas, podemos dizer - sem deformar, queremos crer, o pensamento de Roupnel - que somente o nada é realmeute contíuuo.
IV
Ao escrever essa fórmula, bem sabemos que réplica vamos suscitar. Dir-nos-ão que o nada do tempo é precisamente o intervalo que separa os instantes verdadeiramente marcados por acontecimentos. Se necessário admitirão, para melhor nos derrotar, que os acontecimentos têm nascimento instantâneo, que são mesmo, se necessário, instantâneos, mas reivindicarão um intervalo dotado de existência real para distinguir os instantes. Quererão fazer-nos dizer que esse intervalo é verdadeiramente o tempo, o tempo vazio, o tempo sem acontecimentos, o tempo que dura, a duração que se prolonga, que se mede. Nós, porém,
7 Silor, p. 1 26 .
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A I NTU IÇÃO DO I N STANTE
nos obstinaremos em afirmar que o tempo nada é se nada acontece, que a Eternidade antes da criação não tem sentido; que o nada não se mede, que ele não pode ter uma grandeza .
Sem dúvida , nossa intuição do tempo totalmente aritmetizado opõe-se a uma tese comum, e por isso pode chocar-se com as ideias comuns, mas convém que nossa intuição seja julgada em si mesma . Ela pode parecer pobre, mas convém reconhecer que até aqui, em seus desenvolvimentos, ela é coerente consigo mesma .
Aliás, se introduzirmos um princípio que estabeleça um sucedâneo da medição do tempo, teremos, quero crer, virado uma curva - a última, sem dúvida , onde a crítica nos espera .
Formulemos essa crítica tão brutalmente quanto possível . Em sua tese, dir-nos-ão, você não pode aceitar uma medida
do tempo, tampouco uma divisão do tempo em partes alíquotas; no entanto você diz, como todo mundo, que a hora dura sessenta minutos, que o minuto vale sessenta segundos. Acredita , pois, na duração. Não pode falar sem empregar todos os advérbios, todas as palavras que evocam o que dura , o que passa , o que espera . Em sua discussão, você é forçado mesmo a dizer: muito tempo, durante, enquanto. A duração está na gramática, na morfologia, tanto quanto na sintaxe.
Sim, as palavras estão aí, antes do pensamento, antes de nosso esforço para renovar um pensamento. Temos de nos servir delas como são. Mas a função do filósofo não será a de deformar o sentido das palavras o suficiente para extrair o abstrato do concreto, para permitir ao pensamento evadir-se das coisas? Não deve ele, como o poeta, "dar um sentido mais puro às palavras da tribo" {Mallarmé) ? E , se quiserem refletir no fato de que todas as palavras que traduzem os caracteres temporais estão implicadas em metáforas, já que tomam uma parte de seu
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radical em aspectos espaciais, perceberão que no terreno polêmico não estaríamos desarmados e nos isentarão, sem dúvida, dessa acusação de círculo vicioso verbal.
Mas o problema da medida permanece, e é evidentemente aí que a crítica deve parecer decisiva ; uma vez que se mede a duração, é porque ela tem uma grandeza . Traz, portanto, o signo claro de sua realidade.
Vejamos, então, se esse signo é realmente imediato. Tentemos mostrar como, a nosso ver, deveria colocar-se, na intuição roupneliana, a apreciação da duração.
Que é, pois, que confere ao tempo sua aparência de continuidade? É o fato de podermos, segundo parece, impondo um corte onde quisermos, designar um fenômeno que ilustra o instante arbitrariamente designado. Teríamos assim a certeza de que nosso ato de conhecimento está entregue a uma plena liberdade de exame. Noutras palavras, pretendemos colocar nossos atos de liberdade numa linha contínua, pois a qualquer momento
podemos experimentar a eficácia de nossos atos. De tudo isso temos certeza , mas de nada mais que isso.
Vamos exprimir o mesmo pensamento numa linguagem algo diferente, que à primeira vista , aliás, deve parecer sinônima da primeira expressão. Diremos assim: todas as vezes que quisermos,
poderemos experimentar a eficácia de nossos atos.
Eis, agora , uma objeção. Será que o primeiro modo de nos exprimir não supõe tacitamente a continuidade de nosso ser, e não será essa continuidade suposta como evidente que transportamos para a conta da duração? Mas que garantia temos, então, da continuidade assim atribuída a nós mesmos? Bastaria que o ritmo de nosso ser desconexo correspondesse a um ritmo do Cosmos para que nosso exame tivesse êxito a cada passo ; ou ,
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mais simplesmente, para provar a arbitrariedade de nosso corte, bastaria que nossa ocasião de ação íntima correspondesse a uma ocasião do universo, em suma, que uma coincidência se afirmasse num ponto do espaço-tempo-consciência.Assim, e tal é nosso argumento maior, todas as vezes nos parece, pois, na tese do tempo descontínuo, o sinônimo exato da palavra sempre tomada na tese do tempo contínuo. Se nos permitirem essa tradução, toda a linguagem do contínuo nos será entregue. pelo uso des-sa chave. �
A vida , aliás, coloca à nossa disposição uma riqueza tão prodigiosa de instantes que, em face da percepção que temos deles, ela parece bem indefinida. Apercebemo-nos de que poderíamos gastar muito mais, donde a crença de que poderíamos gastar sem contar. É aí que reside nossa impressão de continuidade íntima .
Quando compreendemos a importância de uma concomitância que se exprime por um acordo de instantes, a interpretação do sincronismo torna-se evidente na hipótese do descontínuo roupneliano, e também aqui se deve traçar um paralelo entre as intuições dt: Bergson e as de Roupnel :
Dois fenômenos serão sincrônicos, dirá o filósofo bergsoniano, se estiverem sempre de acordo. Trata-se de ajustar os devires e as ações.
Dois fenômenos serão sincrônicos, dirá o filósofo roupneliano, se, todas as vezes em que o primeiro estiver presente, o segundo estiver igualmente. Trata-se de ajustar as retomadas e os atos.
Qual é a fórmula mais prudente? Dizer, com Bergson, que o sincronismo corresponde a dois
desenvolvimentos paralelos é ultrapassar um pouco as provas objetivas, é estender o domínio de nossa verificação. Recusamos essa extrapolação metafisica que afirma um contínuo em si,
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O INSTANTE
embora estejamos, sempre, somente diante do descontínuo de nossa experiência . O sincronismo aparece, então, sempre numa numeração concordante dos instantes eficazes,jamais como medida , de algum tipo geométrico, de uma duração contínua .
Neste ponto, é provável que nos interrompam com outra objeção : mesmo admitindo que o fenômeno de conjunto seja suscetível de exame sobre o exato esquema temporal da tomada cinematográfica, você não pode ignorar, dir-nos-ão, que na realidade uma divisão do tempo permanece sempre possível, ou mesmo desejável , se quisermos seguir o desenvolvimento do fenômeno em todas as suas sinuosidades; e citar-nos-ão um ultracinematógrafo que descreve o devir por dez milésimos de segundo. Por que, então, seríamos interrompidos na divisão do tempo?
A razão pela qual nossos adversários postulam uma divisão sem termo é que eles sempre colocam seu exame no nível de uma vida de conjunto, resumida na curva do impulso vital . Como vivemos uma duração que parece contínua a um exame macroscópico, somos levados, pelo exame dos detalhes, a considerar a duração em frações sempre menores das unidades que escolhemos.
Mas o problema mudaria de sentido se considerássemos a construção real do tempo a partir dos instantes, em vez da divisão do tempo, sempre factícia, a partir da duração. Veríamos então que o tempo, longe de dividir-se no esquema do fracionamento de um contínuo, se multiplica no esquema das correspondências numéricas .
Aliás, a palavra_fração já é ambígua . A nosso ver, seria preciso evocar aqui a teoria da fração tal como Couturat a resumiu. Uma fração é o agrupamento de dois números inteiros no qual o de-
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nominador não divide verdadeiramente o numerador. Entre os partidários do contínuo temporal e nós, sob esse aspecto aritmético do problema , a diferença é a seguinte: nossos adversários partem do numerador, que tomam como uma quantidade homogênea e contínua - e sobretudo como uma quantidade dada imediatamente - para as necessidades da análise; dividem esse "dado" pelo denominador, que desse modo é entregue à arbitrariedade do exame, arbitrariedade tanto maior quanto mais fino é o exame; eles poderiam mesmo rêtear "dissolver" a duração se levassem longe demais a análise infinitesimal .
Nós, ao contrário, partimos do denominador, que é a marca da riqueza de instantes do fenômeno, base da comparação; ele é conhecido naturalmente com mais finura - sustentamos, com efeito, que seria absurdo ter menos finura no aparelho de medição que no fenômeno a medir. Com base nisso, perguntamos então quantas vezes, a esse fenômeno fina mente escandido, corresponde uma atualização de um fenômeno mais indolente; os êxitos do sincronismo nos dão, enfim, o numerador da fração.
As duas frações assim constituídas podem ter o mesmo valor. Mas não são construídas da mesma maneira .
Entendemos decerto a objeção tácita : para fixar a conta dos êxitos, não será necessário que um misterioso maestro marque o compasso fora e acima dos dois ritmos comparados? Noutras palavras, não é de temer, dir-nos-ão, que sua análise utilize tacitamente a palavra enquanto, que você não pronunciou? Toda a dificuldade da tese roupneliana está , com efeito, em evitar as palavras tiradas da psicologia usual da duração. Mas, ainda uma vez, se quisermos exercitar-nos em meditação indo do fenômeno rico em instantes para o fenômeno pobre em instantes - do denominador para o numerador -, e não o inverso, perceberemos
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O INSTANTE
que se pode prescindir não só das palavras que suscitam a ideia de duração, o que seria apenas um sucesso verbal, mas, enfim, da ideia da própria duração, o que prova que nesse donúnio, no qual reinava como senhora, ela só pode ser empregada como serva .
Mas, para maior clareza, tracemos um esquema da correspondência; depois, sobre esse esquema, façamos as duas leituras, aquela em linguagem de duração e aquela em linguagem de instantes, sempre permanece11do, para essa dupla leitura, na tese roup
neliana.
Suponhamos que o fenômeno macroscópico seja representado pela primeira linha de pontos:
1 )
Colocamos esses pontos sem nos preocuparmos com o intervalo porque, para nós, não é aí que a duração assume seu sentido, ou seu esquema, visto que para nós o intervalo contínuo é o nada , e o nada, naturalmente, não tem mais "comprimento" que duração.
Suponhamos que o fenômeno mais finamente escandido seja representado, sempre com as mesmas ressalvas, pela segunda linha de pontos:
2)
Comparemos os dois esquemas . Se lermos, à maneira dos partidários do contínuo, de cima
para baixo - leitura roupneliana , porém -, diremos que, enquan
to o fenômeno 1 se produz uma vez, o fenômeno 2 se produz três vezes. Apelaremos para uma duração que domina as séries,
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A I NTU IÇAO DO INSTANTE
duração na qual nossa palavra enquanto assume sentido, o qual se esclarecerá em donúnios cada vez mais grosseiros, como aqueles do minuto, da hora , do dia . . .
Se, a o contrário, lermos o sincronismo à maneira dos partidários absolutos do descontínuo, de baixo para cima, diremos que, uma vez em cada três, aos fenômenos de aparições numerosas (fenômenos que são os mais próximos do tempo real) corresponde um fenômeno de tempo macroscópico.
As duas leituras são no fundo equivalentes, mas a primeira é um pouco figurada demais, e a segunda está mais próxima do texto primitivo.
Esclareçamos nosso pensamento por uma metáfora . Na orquestra do mundo, há instrumentos que se calam com frequência, mas é falso dizer que sempre há um instrumento tocando. O mundo é regulado por um compasso musical imposto pela cadência dos instantes. Se pudéssemos ouvir todos os instantes da realidade, compreenderíamos que não é a colcheia que é feita com fragmentos da mínima, mas é a núnima que repete a colcheia. É dessa repetição que nasce a impressão de continuidade.
Compreende-se, pois, que a riqueza relativa em instantes nos prepara uma espécie de medida relativa do tempo. Para poder fazer a conta exata de nossa fortuna temporal, medir, em suma, tudo que se repete em nós mesmos, seria preciso viver efetivamente todos os instantes do Tempo. É nessa totalidade que se obteria o verdadeiro desdobramento do tempo descontínuo, e é na monotonia da repetição que se reencontraria a impressão da duração vazia e, por conseguinte, pura . Fundado numa comparação numérica com a totalidade dos instantes, o conceito de riqueza temporal de uma vida ou de um fenômeno particulares assumiria, então, sentido absoluto, segundo a maneira pela qual essa riqueza é utilizada, ou, antes, segundo a maneira pela qual ela
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O INSTANTE
não alcança sua realização. Mas, como essa base absoluta nos é
recusada , devemos contentar-nos com balanços relativos. Eis, portanto, que se prepara uma concepção da duração
-riqueza que deve prestar os mesmos serviços que a duração--extensão. Pode-se ver que ela leva em conta não apenas os fatos, mas também, e sobretudo, as ilusões - o que, psicologicamente falando, é de uma importância decisiva, porque a vida do espírito é ilusão antes de ser pensamento. Compreendemos também que nossas ilusões constantes, incessantemente reencontradas ,já não são ilusão pura e que, ao meditar em nosso erro, nos aproximamos da verdade. La Fontaine tem razão quando nos fala das ilusões "que nunca nos enganam ao nos mentirem sempre".
O duro rigor das metafisicas científicas pode então se descontrair, e podemos retornar às margens de Siloé, onde se reconciliam, completando-se, o espírito e o coração. O que f.1Z
o caráter afetivo da duração, a alegria ou a dor de ser, é a proporção ou a desproporção das horas de vida utilizadas como hora de pensamento ou como hora de simpatia. A matéria descura de ser, a vida descura de viver, o coração descura de amar. É dormindo que perdemos o paraíso. Sigamos agora a perspectiva de nossa indolência: o átomo irradia e existe com frequência, utiliza um grande número de instantes, porém não utiliza todos os instantes .Já a célula viva é mais avara de seus esforços, utiliza somente uma fração das possibilidades temporais que lhe são entregues pelos átomos que a constituem. Quanto ao pensamento, é por lampejos irregulares que ele utiliza a vida . Três filtragens através das quais muito poucos instantes vêm à consciência ! Sentimos então um surdo sofrimento quando saímos em busca dos insta11 tes perdidos. Lembramo-nos daquelas horas ricas que se marcam ao compasso dos mil sons dos sinos de Páscoa, desses sinos da ressurreição cujas batidas não se contam por-
47
A INTU IÇAO DO INSTANTE
que todas elas contam, porque cada qual tem um eco em nossa alma desperta . E essa lembrança de alegria é já um remorso quando comparamos, a essas horas de vida total, as horas intelectualmente lentas porque relativamente pobres, as horas mortas porque vazias - vazias de desígnio, como dizia Carlyle do fundo de sua tristeza -, as horas hostis intermináveis porque nada dão.
E sonhamos com uma hora divina que daria tudo. Não a hora plena, mas a hora completa . A hora em que todos os instantes do tempo seriam utilizados pela m:Héria, a hora em que todos os instantes realizados na matéria seriam utilizados pela vida, a hora em que todos os instantes vividos seriam sentidos, amados, pensados. A hora , por conseguinte, em que a relatividade da consciência seria apagada, porque a consciência seria a exata medida do tempo completo.
Finalmente, o tempo objetivo é o tempo máximo; é aquele que contém todos os instantes. Ele é feito do conjunto denso dos atos do Criador.
v
Restaria agora explicar o caráter vetorial da duração, indicar o que faz a direção do tempo, em quê uma perspectiva de instantes desaparecidos pode chamar-se passado, em quê uma perspectiva de espera pode chamar-se futuro.
Se pudemos compreender a significação primordial da intuição proposta por Roupnel, devemos estar prontos para admitir que o passado e o futuro - como a duração - correspondem a impressões essencialmente segundas e indiretas. Passado e futuro não tocam a essência do ser, e muito menos a essência primeira do Tempo. Para Roupnel, convém repetir, o Tempo é o instante, e é o instante presente que tem toda a carga tempo-
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O INSTANTE
ral . O passado é tão vazio quanto o futuro. O futuro está tão morto quanto o passado. O instante não contém uma duração em seu seio, não impele uma força num sentido ou noutro. Ele não tem duas faces, é inteiro e único. Por mais que lhe meditemos a essência, não encontraremos nele a raiz de uma dualidade suficiente e necessária para pensar uma direção.
Aliás, quando se quer, sob a inspiração de Roupnel, exercitar-se na meditação do Instante, percebe-se que o presente não passa, porque só se sai de um instante para reencontrar outro; a consciência é consciência do instante, e a consciência do instante é consciência - duas fórmulas tão vizinhas que nos colocam na mais próxima das recíprocas e afirmam uma assimilação da consciência pura e da realidade temporal . Uma vez encerrada numa meditação solitária, a consciência tem a imobilidade do instante isolado.
É encerrado no isolamento do instante que o tempo pode receber uma homogeneidade pobre, mas pura . Essa homogeneidade do instante, de resto, nada prova contra a anisotropia que resulta dos agrupamentos que permitem reencontrar a individualidade das durações, tão bem assinalada por Bergson . Noutras palavras, como n o próprio instante nada h á que nos permita postular uma duração, pois já não há nada que possa explicar imediatamente a razão de nossa experiência - que, no entanto, é real - daquilo que chamamos de passado e futuro, cumpre-nos tentar construir a perspectiva dos instantes que designa apenas o passado e o futuro.
Ora, quando se escuta a sinfonia dos instantes, sentem-se as frases que morrem, as frases que tombam e são arrastadas em direção ao passado. Mas essa fuga para o passado, pelo fato mesmo de ser uma aparência segunda, é toda relativa . Um ritmo extingue-se relativamente a outra partitura da sinfonia que con-
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A I NTU IÇAO DO INSTANTE
tinua. Poderíamos representar bastante bem esse decréscimo relativo pelo seguinte esquema :
Três por cinco torna-se dois por cinco, depois um por cinco, depois é o silêncio de um ente q'\e nos deixa , enquanto em derredor o mundo continua a ressoar.
Com esse esquema, compreende-se o que existe de potencial e ao mesmo tempo relativo no que chamamos, sem lhe especificar os limites, de hora presente. Um ritmo que continua inalterado é um presente que tem uma duração; esse presente que dura compõe-se de múltiplos instantes que, de um ponto de vista particular, apresentam perfeita monotonia. É de tais monotonias que são feitos os sentimentos duradouros que determinam a individualidade de uma alma particular. A unificação pode estabelecer-se em meio a circunstâncias bem diversas . Para quem continua a amar, um amor defunto é ao mesmo tempo presente e passado ; é presente para o coração fiel, é passado para o coração sofrido. É, pois, sofrimento e reconforto para o coração que aceita ao mesmo tempo o sofrimento e a recordação. Chega-se mesmo a dizer que um amor permanente, signo de uma alma duradoura , é algo diverso de sofrimento e felicidade e que, transcendendo a contradição afetiva , um sentimento que dura assume um sentido metafisico. Uma alma amante experimenta efetivamente a solidariedade dos instantes repetidos com regularidade. Reciprocamente, um ritmo uniforme de instantes é umaforma a priori de simpatia.
Um esquema inverso ao primeiro esquema nos representaria um ritmo que nasce e nos daria os elementos da medida re-
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O INSTANTE
!ativa de seu progresso. O ouvido musical escuta o destino da melodia, sabe como terminará a frase começada . Nós pré-ouvimos o futuro do som como prevemos o futuro de uma trajetória . Voltamos todas as nossas forças para o futuro imediato, e é essa tensão que faz nossa duração atual. Como diz Guyau, é nossa intenção que ordena verdadeiramente o futuro como uma perspectiva da qual somos o centro de projeção. "É preciso desejar, é preciso querer, é preciso estender a mão e caminhar para criar o futuro. O futuro não é aquilo que vem em nossa direção ,
mas aquilo em direção ao qual nos dirigimos."K O sentido e o alc:mce do futuro estão inscritos no próprio presente.
Assim, construímos tanto no tempo como no espaço. Há
aqui uma persistência metafórica que teremos de esclarecer. Reconheceremos então que a lembrança do passado e a previsão do futuro se fundam em hábitos . E, como o passado não passa de uma lembrança e o futuro nada mais é que uma previsão, afirmaremos que passado e futuro são apenas, no fundo, hábitos . Esses hábitos estão longe de ser imediatos e precoces. Enfim, os caracteres que fazem com que o Tempo nos pareça durar, como aqueles que fazem com que o Tempo se delineie segundo as perspectivas do passado e do futuro, não são, a nosso ver, propriedades de primeiro aspecto. O filósofo deve reconstruí-los apoiando-se unicamente na realidade temporal dada imediatamente ao Pensamento, na realidade do Instante.
Veremos que é nesse ponto que se condensam todas as dificuldades de Siloe. Mas essas dificuldades podem provir das ideias preconcebidas do leitor. Se segurarmos fortemente as duas pontas da corrente que vamos fixar, compreenderemos melhor, em seguida, o encadeamento dos argumentos. Eis, portanto, nossas
• Guyau , op. cit., p. 33.
5 1
A INTU IÇAO DO INSTANTE
duas conclusões, aparentemente contrárias, que teremos de conciliar:
1) A duração não tem força direta; o tempo real só existe verdadeiramente pelo instante isolado, está inteiramente no atual, no ato, no presente.
2) Entretanto, o ser é um lugar de ressonância para os ritmos dos instantes e, como tal, poder-s�-ia dizer que ele tem um passado como se diz que um eco tem uma voz. Mas esse passado não passa de um hábito presente, e esse estado presente do passado é ainda uma metáfora. Com efeito, para nós o hábito não está inscrito numa matéria, num espaço. Só pode tratar-se de um hábito todo sonoro que permanece, queremos crer, essencialmente relativo. O hábito que, para nós, é pensamento é demasiado aéreo para ser registrado, demasiado imaterial para dormir na matéria. É um jogo que continua, uma frase musical que deve recomeçar porque faz parte de uma sinfonia na qual desempenha um papel . Pelo menos é assim que tentaremos solidarizar, pelo hábito, o passado e o futuro. Naturalmente, do lado do futuro, o ritmo é menos sólido. Entre os dois nadas, ontem e amanhã, não há simetria. O futuro não passa de um prelúdio, de uma frase musical que avança e é ensaiada . Uma única frase. O Mundo só se prolonga por uma curtíssima preparação. Na sinfonia que se cria, o futuro só é assegurado por uns poucos compassos. Humanamente, a dissimetria do passado e do futuro é radical . Em nós, o passado é uma voz que encontrou um eco. Damos assim uma força ao que já não passa de uma forma, ou melhor, damos uma forma única à pluralidade de formas. Por essa síntese, o passado assume então o peso da realidade. Porém o futuro, por tenso que seja nosso desejo,
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O INSTANTE
é uma perspectiva sem profundidade. Não tem verdadeiramente nenhum vínculo sólido com o real . Daí dizermos que ele está no seio de Deus.
Tudo isso se esclarecerá , talvez, se pudermos resumir o segundo tema da filosofia roupneliana . Falamos do hábito. Roupnel o estuda em primeiro lugar. Se subvertemos a ordem de nosso exame, foi porque a negação absoluta da realidade do passado é o postulado tenúvel que cumpre admitir a princípio para bem avaliar a dificuldade que há em assimilar as ideias correntes sobre o hábito. Em suma, no capítulo seguinte nos perguntaremos como se pode conciliar a psicologia usual do hábito com uma tese que não reconhece no passado uma ação direta e imediata sobre o instante presente.
VI
Todavia , antes de iniciar esse capítulo, poderíamos, se tal fosse nosso objeto, procurar no donúnio da ciência contemporânea razões para fortalecer a intuição do tempo descontínuo. Roupnel não deixou de traçar um paralelo entre sua tese e a descrição moderna dos fenômenos de radiação na hipótese dos qum1 ta . �
No fundo, a contabilidade da energia atômica é feita empregando-se mais a aritmética que a geometria . Essa contabilidade se exprime mais com frequências que com durações, e a linguagem em quantas vezes suplanta pouco a pouco a linguagem em quanto tempo.
Aliás, no momento em que escrevia , Roupnel não podia prever toda a extensão que assumiriam as teses da descontinui-
• Cf. Si/"e, p. 1 2 1 .
53
A I NTU IÇAO DO I NSTANTE
dade temporal , tais como foram apresentadas no Congresso do Instituto Solvay, em 1 927 . Se lermos também os trabalhos modernos sobre as estatísticas atômicas, veremos que há hesitação em fixar o elemento fundamental dessas estatísticas. Que é que se deve recensear: elétrons, quanta, grupos de energia? Onde colocar a raiz da individualidade? Não é absurdo remontar a uma realidade temporal em si mesma para encontrar o elemento mobilizado pelo acaso. Assim, um c�nceito estatístico dos instantes fecundos, tomados cada qual em seu isolamento e em sua independência, é concebível .
Haveria igualmente interessantes paralelos a traçar entre o problema da existência positiva do átomo e sua manifestação sempre instantânea . Em certos aspectos, interpretaríamos bastante bem os fenômenos de radiação dizendo que o átomo só existe no momento em que muda . Se acrescentarmos que essa mudança se dá de maneira brusca, tenderemos a admitir que todo o real se condensa no instante; deveríamos medir sua energia utilizando não velocidades, mas impulsões .
Por outro lado, mostrando-se a importância do instante no acontecimento, far-se-ia ver tudo quanto há de frágil na objeção, sempre evocada, do caráter dito real do "intervalo" que separa dois instantes. Para as concepções estatísticas do tempo, o intervalo entre dois instantes é apenas um intervalo de probabilidade; quanto mais seu nada se alonga, maior é a chance de que um instante venha terminá-lo. É essa acentuação da chance que lhe mede a grandeza. A duração vazia, a duração pura tem somente, então, uma grandeza de probabilidade. O átomo, quando deixa de irradiar, passa a uma existência energética de todo em todo virtual ; não despende mais nada, a velocidade de seus elétrons não usa nenhuma energia; não economiza tampouco, nesse estado virtual, um potencial que ele poderia libe-
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O INSTANTE
rar após um longo repouso. Na verdade, ele é apenas um brinquedo abandonado; menos ainda, é apenas uma regra de jogo inteiramente formal que organiza meras possibilidades . A existência retornará ao átomo com a chance; noutras palavras, o átomo receberá o dom de um instante fecundo, mas o receberá por acaso, como uma novidade essencial, de acordo com as leis do cálculo das probabilidades, porque é preciso que cedo ou tarde o Universo tenha, em todas as suas partes , a partilha da realidade temporal, porque o possível é uma tentação que o real sempre acaba por aceitar.
Aliás, o acaso obriga sem vincular a uma necessidade absoluta. Compreende-se, então, que o tempo que não tem efetivamente uma ação real possa causar a ilusão de uma ação fatal . Se muitas vezes um átomo permanece inativo enquanto os átomos vizinhos irradiam, a vez de agir torna-se cada vez mais provável para esse átomo há tempos adormecido e isolado. O repouso aumenta a probabilidade da ação, ele não prepara realmente a
ação. A duração não age "à maneira de uma causa " ,10 mas à ma
neira de um acaso. Aqui , ainda , o princípio de causalidade exprime
-se melhor na linguagem da numeração dos atos que tw linguagem da
geometria das ações que duram.
Mas todas essas provas científicas estão fora da presente investigação. Se fõssemos desenvolvê-las, desviaríamos o leitor do objetivo visado. O que queremos empreender aqui , com efeito, é apenas uma tarefa de libertação pela intuição. Como a intuição do contínuo nos oprime com frequência , é indubitavelmente útil interpretar as coisas com a intuição inversa . Não importa o que se pense da força de nossas demonstrações, é inegável o
1" Uergso n , op. cit . , p. 1 17.
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A INTUIÇAO DO INSTANTE
interesse que existe em multiplicar as intuições diferentes na base da filosofia e da ciência. Nós mesmos ficamos surpresos, lendo o livro de Roupnel, com a lição de independência intuitiva que se recebia ao se desenvolver uma intuição difici l . É pela dialética das intuições que se pode lançar mão das intuições sem risco de ser por elas ofuscado. A intuição do tempo descontínuo, tomada no aspecto fi losófico, ajuda o leitor que quer seguir, nos mais variados domínios �s ciências fisicas, a introdução das teses da descontinuidade. É o tempo que é mais dificil de pensar sob forma descontínua. É, pois, a meditação dessa descontinuidade temporal realizada pelo Instante isolado que nos abrirá os caminhos mais diretos para uma pedagogia do descontínuo.
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C A P I T U L O 2
O probl em a d o h ábito e o tempo descontinu o
Toda alma é uma melodia que convém renovar.
MAllARMÉ
À primeira vista , como indicávamos, o problema do hábito parece insolúvel com base na tese temporal que acabamos de desenvolver. De fato, negamos a persistência real do passado; mostramos que o passado estava inteiramente morto quando o instante novo afirmava o real . E eis que, em conformidade com a ideia que se costuma fazer do hábito, seremos obrigados a resti tuir ao hábito - esse legado de um passado defunto - a força que confere ao ser uma figura estável sob o devir movente. Pode-se, pois, recear que estejamos enredados num impasse. Vamos ver como, seguindo Roupnel com confiança nesse terreno di-
57
A I NTU IÇÃO DO IN STANTE
fiei! , poderemos reencontrar as grandes vias das intuições filosóficas fecundas.
O próprio Roupnel indica o caráter de sua tarefa : "Cumpre-nos agora investir o átomo das realidades que subtraímos ao Espaço e ao Tempo e tirar partido dos despojos arrancados a esses dois espoliadores do Templo" . 1 É que, com efeito, o ataque dirigido à realidade atribuída ao espaço contínuo não é menos vivo que o ataque que desfechamos contra a realidade atribuída à duração, tomada como um cbntínuo imediato. Para Roupnel, o átomo tem propriedades espaciais da mesma sorte e tão indiretamente quanto tem propriedades químicas. Noutras palavras, o átomo não se substantifica tomando um pedaço de espaço que seria assim o vigamento do real - o que ele faz é
apenas se expor no espaço. O plano do átomo só faz organizar pontos separados, como seu devir organiza instantes isolados. O espaço já não é senão o tempo que traz verdadeiramente as forças de solidariedade do ser. O alhures não age mais sobre o aqui do que o outrora age sobre o agora.
O ser que é visto de fora está duplamente bloqueado na solidão do instante e do ponto. A essa solidão fisica redobrada se acrescenta, como dissemos, a solidão da consciência quando se tenta apreender o ser por dentro. Como não ver aí um fortalecimento das intuições leibnizianas? Leibniz negava a solidariedade direta e ativa dos seres distribuídos no espaço. Por outro lado, a harmonia preestabelecida supunha, no seio de cada mônada, uma verdadeira continuidade, realizada pela ação de um tempo universal e absoluto ao longo do qual se ilustrava a perfeita concordância de todas as mônadas. Encontra-se em Síloe
uma negação suplementar, a da solidariedade direta do ser pre-
1 Silor, p. 1 27 .
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O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO
sente com o ser passado. Mas, ainda uma vez, se essa solidariedade dos instantes do tempo não é nem direta nem dada, se, noutros termos, não é a duração que liga imediatamente os instantes reunidos em grupos segundo certos princípios, torna-se mais necessário que nunca mostrar como uma solidariedade não direta, não temporal, se manifesta no devi r do ser. Em suma, temos de encontrar um princípio para substituir a hipótese da harmonia preestabelecida . É a isso que tendem, a nosso ver, as teses roupnelianas a respeito do hábito.
Nosso problema será então mostrar, em primeiro lugar, que o hábito ainda é concebível, mesmo quando o separamos de seu apoio num passado postulado, de forma gratuita e errônea, como diretamente eficaz. Em seguida teremos de mostrar que esse hábito, definido agora na intuição dos instantes isolados, explica ao mesmo tempo a permanência do ser e seu progresso.
Mas antes abramos um parêntese.
Se nossa posição é dificil, a de nossos adversários é, ao contrário, de espantosa facilidade.Vejamos, por exemplo, como tudo é simples para o pensamento realista , para o pensamento que "realiza" tudo. Primeiro, o ser é a substância, a substância que é ao mesmo tempo, pela graça das definições, o suporte das qualidades e o suporte do devir. O passado deixa um traço na matéria; coloca, pois, um reflexo no presente; está , portanto, sempre vivo materialmente. Se se fala do germe, o futuro aparece como preparado materialmente com a mesma facilidade com que a célula cerebral conserva a lembrança . Quanto ao hábito, é escusado explicá-lo, visto que é ele que explica tudo. Basta dizer que o cérebro é a reserva dos esquemas motores para compreender que o hábito é um mecanismo colocado à disposição do ser pelos esforços antigos. O hábito diferenciará , pois, a ma-
59
A INTUIÇAO DO INSTANTE
téria do ser, a ponto de organizar a solidariedade do passado e do futuro. No fundo, qual é a palavra-força que esclarece toda essa psicologia realista? É a palavra que traduz uma inscrição. Quando se diz que o passado ou o hábito estão inscritos na matéria, tudo está explicado - a questão deixou de existir.
Devemos ser mais exigentes para conosco. Uma inscrição, a nosso ver, não explica nada . Formulemos inicialmente nossas objeções contra a ação material do instante presente sobre os instantes futuros, como aqueles que Ô germe seria suscetível de exercer na transmissão das formas vitais . Como observa Roupnel, é sem dúvida
uma conveniência de linguagem particularmente facil investir o
germen de todas as promessas que o indivíduo realizará e depo
sitar nele o patrimônio reunido dos hábitos que realizarão no ser
suas formas e funções. Mas, quando dizemos que o total desses
hábitos está contido no germen, temos de nos entender quanto ao
sentido da expressão, ou, antes, quanto ao valor da imagem. Nada
seria mais perigoso que imaginar o germen como um continente
cujo conteúdo seria um conjunto de propriedades. Essa associação
do abstrato e do concreto é impossível e, de resto, não explica
nada . 2
É curioso aproximar dessa crítica uma objeção metafisica apresentada por Koyré em sua análise do pensamento místico:
J Gostaríamos de insistir, contudo, na concepção do germe que se
� reencontra, oculta ou expressa, em toda doutrina organicista . A
i ideia do germe é, com efeito, um mysterium. Ela concentra , por
z Op. c it . , p. 34.
60
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO
assim dizer, todas as particularidades do pensamento organicis
ta . É uma verdadeira união dos contrários, ou mesmo dos con
traditórios. O germe é, poderíamos dizer, o que não é . Ele já é
o que ainda não é, o que apenas será . E o é porque, do contrário,
não poderia vir a sê-lo. Não o é porque, do contrário, como vi
ria a sê-lo? O germe é, ao mesmo tempo, a matéria que evolui e
a potência que a faz evoluir. O germe age sobre si mesmo. É uma
causa sui - se não a de seu ser, pelo menos a de seu desenvolvi
mento. Parece que o entendimento não é capaz de apreender es
se conceito : o círculo orgânico da vida, para a lógica l inear, trans
forma-se necessariamente num círculo vicioso.3
A razão dessa confusão cheia de contradições provém, sem dúvida , de se haverem unido duas definições diferentes da substância que deve conter ao mesmo tempo o ser e o devir, o instante real e a duração-pensamento, o concreto e o construído, ou , para dizê-lo melhor com Roupnel , o concreto e o abstrato.
Se na geração dos seres vivos - ainda que se possa conceber um plano normativo - não se consegue compreender claramente a ação do instante presente sobre os instantes futuros , quão mais prudente se deveria ser quando se postula a inscrição de mil acontecimentos confusos e baralhados do passado na matéria encarregada de atualizar o tempo desaparecido !
Em primeiro lugar, por que a célula nervosa registraria certos acontecimentos e não outros? De maneira mais precisa , se não há uma ação normativa ou estética, como pode o hábito conservar uma regra e uma forma? No fundo, é sempre o mesmo debate. Os partidários da duração não deixam de multipli-
·' A . Koyré, Boclrmr, p. 1 3 1 .
6 1
A I NTUIÇAO DO I NSTANTE
car e prolongar as ações temporais. Querem beneficiar-se, a um tempo, da continuidade gradual da ação e da descontinuidade de uma ação que permaneceria latente e aguardaria, ao longo da duração, o instante propício para renascer. Segundo eles, é tanto durando quanto se repetindo que um hábito se reforça . Os partidários do tempo descontínuo são antes impressionados pela novidade dos instantes fecundos que conferem ao hábito sua flexibilidade e sua eficácia; é sobretudo pelo ataque do hábito que eles gostariam de explicar süa função e sua persistência, assim como é o ataque do arco do violino que determina o som que se segue. O hábito só pode utilizar a energia se esta se sucede segundo um ritmo particular. É talvez nesse sentido que se pode interpretar a fórmula roupneliana : "A energia não passa de uma grande memória" . 4 Com efeito, ela só é utilizável pela memória, ela é a memória de um ritmo.
Para nós, o hábito é , portanto, sempre um ato restituído a sua novidade; as consequências e o desenvolvimento desse ato são entregues a hábitos subalternos, sem dúvida menos ricos, mas que despendem, também eles, energia própria obedecendo a atos primeiros que os dominam. Samuel Butler já observava que a memória é afetada principalmente por duas forças de caráter opostas, "a da novidade e a da rotina , pelos incidentes ou objetos que nos são ou os mais familiares, ou os menos familiares" . 5 A nosso ver, diante dessas duas forças, o ser reage mais sintética que dialeticamente, e de bom grado definiríamos o hábito como a assimilação rotineira de uma novidade. Mas, com essa noção de rotina, não estamos introduzindo uma mecanização inferior, o que nos exporia a uma acusação de círculo vi-
• Si/oi', p. 1 0 .
5 13utler, La vie cl l 'l111bitudr, trad. Larbaud, p. 1 49 .
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O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONT[NUO
cioso. Não, pois intervém aqui uma questão de relatividade de pontos de vista , e, quando se leva seu exame ao domínio da rotina , percebe-se que ela se beneficia, da mesma sorte que os hábitos intelectuais mais ativos, do impulso fornecido pela novidade radical dos instantes. Examine-se o jogo dos hábitos hierarquizados : ver-se-á que uma aptidão só continua sendo aptidão se se esforça para se ultrapassar, se é um progresso. Se o pianista não quer tocar hoje melhor que ontem, ele se abandona a hábitos menos claros. Se está ausente da obra, seus dedos logo perderão o hábito de correr sobre o teclado. É efetivamente a alma que comanda a mão. Cumpre, pois, apreender o hábito em seu crescimento para captá-lo em sua essência; ele é assim, por seu incremento de sucesso, a síntese da novidade e da rotina, e essa síntese é realizada pelos instantes fecundos .�>
Compreende-se assim que as grandes criações - a criação de um ser vivo, por exemplo - requerem de início uma matéria de algum modo fresca, própria para acolher a novidade com fé . É a palavra que vem sob a pena de Butler : "Quanto a tentar explicar como a menor parcela de matéria pôde impregnar-se de tanta fé a ponto de se dever considerá-la o cu meço da Vida,
ou determinar em que consiste essa fe, eis uma coisa impossível , e tudo que se pode dizer é que essa fé faz parte da essência mesma de todas as coisas e não repousa sobre nada" .7
Ela é tudo, diríamos, porque atua no próprio nível da síntese dos instantes; mas, substancialmente, ela é ttada, porque pretende transcender a realidade do instante. Ainda aqui , a Fé é expectativa e novidade. Nada menos tradicional que a fe na vida . O ser que se oferece à vida , em sua embriaguez de novidade,
'' Cf. idem, op. ci t . , pp. 1 50, 1 5 1 . 7 Idem, op. c i t . , p. 1 28 .
63
A I NTUIÇAO DO INSTANTE
está mesmo disposto a tomar o presente como uma promessa de futuro. A maior das forças é a ingenuidade. Roupnel sublinhou precisamente o estado de recolhimento em que se encontra o germe de onde vai sair a vida . Ele compreendeu tudo quanto havia de liberdade afirmada num começo absoluto. O germe é, sem dúvida , um ser que em certos aspectos imita, que recomeça, mas só pode recomeçar verdadeiramente na exuberância de um início. Iniciar é sua verdadeira função. "O germen não traz consigo outra coisa senão um iníêio de procriação celular."H Noutras palavras, o germen é o início do hábito de viver. Se lemos uma continuidade na propagação de uma espécie, é porque nossa
'leitura é grosseira ; tomamos os indivíduos como testemunhas
da evolução, quando eles são seus atores. Com toda razão, Roupnel descarta todos os princípios mais ou menos materialistas propostos para assegurar uma continuidade formal dos seres vivos . "Pode ter parecido" , diz ele,
que raciocinamos como se os germens não constituíssem elementos
descontínuos. Investimos o gameta da herança dos tempos como
se ele houvesse assistido a eles. Mas declaremos de uma vez por
todas que a teoria das partículas representativas nada tem a ver
com a teoria presente. Não é necessário introduzir no gameta ele
mentos que teriam sido constantes legatários do passado e eternos
atores do futuro. Para desempenhar o papel que lhe atribuímos,
o gameta não precisa das micelas de Nageli , das gêm11las de Darwin,
dos pmtgenes de De Vries, do plasma germi11ativo de Weissmann . Ele
se basta a si mesmo, só depende de sua substância atual , de sua
virtude atual e de sua hora, e vive e morre inteiramente como
contemporâneo. A herança que lhe é particular, e que ele reco-
• ::>ifoe, p. 33.
64
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO
lhe, ele não a recebe do ser atual . Foi ele que a construiu com
zelo apaixonado, e como se as chamas de amor em que nasceu
o houvessem despojado de todas as suas servidões funcionais. res
tabelecido em sua potência original e restituído às suas indigên
cias iniciais . ')
No fundo, mais que a continuidade da vida, é a descontinuidade do nascimento que convém explicar. É aí que se pode medir a verdadeira potência do ser. Essa potência, como veremos, é o retorno à liberdade do possível , àquelas ressonâncias múltiplas nascidas da solidão do ser.
Mas esse ponto aparecerá , talvez, com mais clareza depois que tivermos desenvolvido, valendo-nos dos temas do tempo descontínuo, nossa teoria metafisica do hábito.
11
Para fins de clareza, formulemos nossa tese opondo-a imediatamente às teses realistas.
Costuma-se dizer que o hábito está inscrito no ser. A nosso ver, seria melhor dizer, empregando a linguagem dos geômetras, que o hábito está exscrito ao ser.
Primeiro o indivíduo, na medida em que é complexo, corresponde a uma simultaneidade de ações instantâneas; só reencontra a si mesmo na proporção em que essas ações simultâneas recomeçam. Exprimiríamos isso bastante bem, talvez, dizendo que um indivíduo, tomado na soma de suas qualidades e de seu devir, corresponde a uma harmonia de ritmos temporais . De
• Op. cit ., p. 38.
65
A I NTU IÇAO DO I NSTANTE
fato, é pelo ritmo que se compreenderá melhor essa continuidade do descontínuo que nos cabe agora estabelecer para religar os pináculos do ser e delinear sua unidade. O ritmo transpõe o silêncio, da mesma sorte que o ser transpõe o vazio temporal que separa os instantes . O ser continua pelo hábito, assim como o tempo dura pela densidade regular dos instantes sem duração. É pelo menos nesse sentido que interpretamos a tese roupneliana :
O indivíduo é a expressão não de uma causa constante, mas de
uma justaposição de lembranças incessantes fixadas pela matéria
e cuja ligadura não passa , ela própria, de um hábito que se sobre
põe a todos os demais. O ser já não é senão um estranho lugar
de lembranças; e quase se poderia dizer que a permanência de
que ele se acredita dotado nada mais é que a expressão do hábi
to a si mesmo. 10
No fundo, a coerência do ser não é feita da inerência das qualidades e do devir à matéria; ela é toda harmônica e aérea. É frágil e livre como uma sinfonia. Um hábito particular é um ritmo sustentado, no qual todos os atos se repetem igualando com bastante exatidão seu valor de novidade, mas sem jamais perder esse caráter dominante de ser uma novidade. A diluição do novo pode ser tamanha que às vezes o hábito pode passar para o inconsciente. Parece que a consciência , tão intensa no primeiro ensaio, se perdeu ao se repartir entre todas as repetições desnecessárias. Mas, ao se economizar, a novidade se organiza; ela inventa no tempo em vez de inventar no espaço. A vida já encontra a regra formal numa regulação temporal ; o órgão
1 1 1 Op. cit . , p. 36.
66
O PROBLEMA DO HÁBITO E O TEMPO DESCONTINUO
se constrói pela função; e, para que os órgãos sejam complexos, basta que as funções sejam ativas e frequentes. Tudo equivale sempre a utilizar um número crescente dos instantes que o Tempo oferece. Segundo parece, o átomo que deles se serve em maior número encontra aí hábitos tão sólidos, tão duradouros, tão regulares que acabamos por tomar justamente seus hábitos por propriedades. Assim, caracteres que são feitos com tempo bem utilizado, com instantes bem ordenados, passam por atributos de uma substância . Não admira, pois, encontrar em Siloe fórmulas que parecem obscuras para quem hesita em fazer descer à matéria as instruções que recebemos do exame de nossa vida consciente : "A obra dos Tempos idos está inteiramente em vigilância na potência e na imobilidade dos elementos e em toda parte é afirmada pelas provas que preenchem o silêncio e compõem a atenção das coisas" . 1 1 Porque para nós, como para Roupnel, são as coisas que dão mais atenção ao Ser, e é a atenção delas com a finalidade de apreender todos os instantes que faz sua permanência . A matéria é , assim, o hábito de ser mais uniformemente realizado, porque se forma no mesmo nível da sequência dos instantes .
Mas voltemos ao ponto de partida do hábito psicológico, porquanto aí se encontra a fonte de nossa instrução. Dado que os hábitos-ritmos, que compõem a vida do espírito como a vida da matéria , se representam por registros múltiplos e diferentes, tem-se a impressão de que se pode encontrar sempre, sob um hábito efemero, um hábito mais estável . Existe, pois, para caracterizar um indivíduo, uma hierarquia de hábitos. Seríamos facilmente tentados a postular um hábito fundamental . Ele correspenderia a esse simples hábito de ser, o mais uniforme, o mais
1 1 Op. c i t . , p. to I .
67
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE
monótono, e consagraria a unidade e a identidade do indivíduo; apreendido pela consciência, ele seria, por exemplo, o sentimento da duração. Mas acreditamos ser necessário conservar, para a intuição trazida por Roupnel , todas as possibilidades de interpretação. Ora , não nos parece que o indivíduo seja tão nitidamente definido quanto o ensina a filosofia escolar: não se deve falar nem da unidade nem da identidade do eu fora da síntese realizada pelo instante. Os problemas da fisica contemporânea nos inclinam mesmo a crer que é tão P.erigoso falar da unidade quanto da identidade de um átomo particular. O indivíduo, em qualquer nível que o apreendamos, na matéria , na vida ou no pensamento, é um somatório bastante variável de hábitos não recenseados. Como todos os hábitos que caracterizariam o ser - caso fossem conhecidos - não se aproveitam simultaneamente de todos os instantes que os poderiam atualizar, a unidade de um ser parece sempre tocada de contingência . No fundo, o indivíduo j á não é mais que uma soma de acidentes - mas, além disso, essa soma é , ela própria, acidental . Da mesma maneira , a identidade do ser nunca se realiza plenamente, ela é afetada pelo fato de a riqueza dos hábitos não ter sido regida com atenção suficiente. A identidade global é feita, então, de repetições desnecessárias mais ou menos exatas, de reflexos mais ou menos detalhados . Sem dúvida , o indivíduo empenha-se em copiar o hoje do ontem; essa cópia é ajudada pela dinâmica dos ritmos, mas nem todos esses ritmos estão no mesmo ponto de sua evolução, e é assim que a mais sólida das permanências espirituais, de identidade desejada, afirmada num caráter, se degrada em semelhança . A vida, então, conduz nossa imagem de espelhos em espelhos; somos, assim, reflexos de reflexos, e nossa coragem é feita da lembrança de nossa decisão. Mas, por firmes que sejamos, jamais nos conservamos inteiros, porque nunca fomos conscientes de todo o nosso ser.
68
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO
Pode-se hesitar acerca do sentido em que se deve ler uma hierarquia . A verdadeira potência está na ordem ou na obediência? Eis por que resistimos finalmente à tentação de procurar os hábitos dominantes entre os mais inconscientes.Ao contrário, a concepção do indivíduo como somatório integral dos ritmos é, talvez, suscetível de uma interpretação cada vez menos substancialista, cada vez mais longe da matéria e mais perto do pensamento. Formulemos o problema na linguagem musical . Que é que produz a harmonia, que é que lhe dá verdadeiramente o movimento? A melodia ou o acompanhamento? Não se pode dar a força de evolução à partitura mais cantante? Deixemos as metáforas e falemos claro : é o pensamento que conduz o ser. É pelo pensamento obscuro ou claro, pelo que foi compreendido e, sobretudo, pelo que foi desejado, na unidade e na inocência do ato, que os seres transmitem uns aos outros sua herança. Assim, todo ser individual e complicado dura na medida em que se constitui uma consciência, na medida em que sua vontade se harmoniza com as forças subalternas e encontra esse esquema do dispêndio econômico que é um hábito. Nossas artérias têm a idade de nossos hábitos.
É por esse viés que um aspecto finalista vem aqui enriquecer a noção de hábito. Roupnel só concede um lugar à finalidade cercando-se das mais estritas precauções. Seria evidentemente anormal conferir ao futuro uma força de solicitação real, numa tese em que se recusa ao passado uma força real de causalidade:
Mas, se quisermos situar-nos em face da intuição primeira de Roupnel e estabelecer, com ele, as condições temporais no mesmo plano que as condições espaciais - embora a maior parte das filosofias atribua ao espaço um privilégio de explicação injustificado -, veremos muitos problemas se apresentarem sob
69
A INTUIÇAO DO INSTANTE
uma luz mais favorável . É o caso do finalismo. Com efeito, é notável que no mundo da matéria toda direção privilegiada seja,
em última análise, um privilégio de propagação. Destarte, em nossa hipótese poderemos dizer que, se um acontecimento se propaga mais depressa num certo eixo de um cristal, é porque mais instantes são utilizados nesse eixo do que noutra direção. De igual modo, se a vida aceita a afirmação dos instantes segundo uma cadência particular, ela cresce com mais rapidez numa direção particular; ela se apresenta como uina série linear de células, porque é o resumo da propagação de uma força de geração bem homogênea. A fibra é um hábito materializado ; é fei ta de instantes bem escolhidos, fortemente solidarizados em um ritmo. Assim, se nos colocarmos diante da enorme riqueza de escolhas que os instantes descontínuos ligados por hábitos oferecem, veremos que poderíamos falar de cronotropismos que correspondem aos diversos ri tmos que constituem o ser vivo.
É assim que interpretamos, na hipótese roupneliana, a multiplicidade de durações reconhecida por Bergson . Ele faz, de seu ponto de vista , uma metáfora quando evoca um ritmo e quando escreve:"Não existe um ritmo único da duração; podem-se imaginar ri tmos diferentes que, mais lentos ou mais rápidos, mediriam o grau de tensão ou de relaxamento das consciências e, desse modo, fixariam seus respectivos lugares na série dos seres" . 12 Dizemos exatamente a mesma coisa, porém numa linguagem direta , traduzindo, queremos crer, diretamente a real idade. Conferimos, de fato, a realidade ao instante, e é o grupo dos instantes que forma naturalmente, para nós, o ri tmo temporal . Para Bergson, como o instante não passa de uma abstração, é
1 2 Bergso n . !vlc1th\n· ct mémoirc, p . 23 1 [ ed. bras . : !lclatéria c mcmária, Martins Fontes, 2006] .
70
O PROBLEMA DO HABITO E O TEMPO DESCONTINUO
com os intervalos de "elasticidade desigual" que cumpriria fazer ritmos metafóricos. A multiplicidade das durações é muito justamente evocada, mas ela não se explica por essa tese da elasticidade temporal . Ainda uma vez, é à nossa consciência que cabe a tarefa de estender sobre a tela dos instantes uma trama suficientemente regular para dar ao mesmo tempo a impressão da continuidade do ser e da rapidez do devir. Como indicaremos mais adiante, é dirigindo nossa consciência para um projeto mais ou menos racional que encontraremos efetivamente a coerência temporal fundamental que corresponde, para nós, ao simples hábito de ser.
Essa repentina possibilidade de escolha dos instantes criadores, essà liberdade em sua ligação em ritmos distintos, fornecem duas razões muito apropriadas para nos fazer entender a imbricação dos devires das diversas espécies vivas. Há muito ficamos impressionados pelo fato de as diferentes espécies animais serem coordenadas tanto histórica quanto funcionalmente. A ordem da sucessão das espécies propicia a ordem dos órgãos coexistentes num indivíduo particular. A ciência natural é, a nosso ver, uma história ou uma descrição: o tempo é o esquema que a mobiliza , a coordenação finalista , o esquema que a descreve com mais clareza . Noutras palavras, num único ser particular, a coordenação e o finalismo das funções são as duas recíprocas de um mesmo fato. A ordem do devi r é desde logo o devir de uma ordem. O que se coordena na espécie subordinou-se ao tempo e vice-versa . Um hábito é uma certa ordem de instantes escolhida com base no conjunto dos instantes do tempo; ele ressoa com uma altura determinada e com um timbre particular. É um feixe de hábitos que nos permite continuar a ser na multiplicidade de nossos atributos, deixando-nos a impressão de que já fomos mesmo que não pudéssemos encon-
7 1
A INTU IÇAO DO INSTANTE
trar em nós, como raiz substancial, senão a realidade que nos entrega o instante presente. Do mesmo modo, é porque o hábito constitui uma perspectiva de atos que propomos objetivos e fins ao nosso futuro.
Esse convite do hábito a perseguir o ritmo de atos bem ordenados é , no fundo, uma obrigação de natureza quase racional e estética. São, então, menos forças que razões que nos obrigam a perseverar no ser. É essa coerência racional e estética dos ritmos superiores do pensamento que f"orma a chave de abóbada do ser.
Essa unidade ideal confere à filosofia não raro amarga de Roupnel um pouco daquele otimismo racional - medido e corajoso - que inclina o livro em direção aos problemas morais. Somos assim levados a estudar, num novo capítulo, a ideia de progresso em suas relações com a tese do tempo descontínuo.
7 2
C A P fT U L O 3
A i d ei a d o progresso e a intu içã o d o tempo d escontinuo
Se "o ser que mais amo tw mundo (viesse) me
perguntar que escolha ele deve fazer, c qual é o
refúgio mais prqfimdo, mais inatacável c mais doce,
eu lhe diria para abrigar seu destino no rcJIÍgio da
alma que se apeifeiçoa " .
MAETERLINCK
Resta , na tese de Roupnel sobre o hábito, uma dificuldade aparente que gostaríamos de elucidar. É por esse esforço de esclarecimento que seremos muito naturalmente levados a estabelecer uma distinção entre metafisica e progresso em relação às intuições de Si/oi!.
Essa dificuldade é a seguinte: para penetrar todos os sentidos da idcia de hábito, é preciso associar dois conceitos que pa-
73
A I NTU IÇAO DO I NSTA NTE
recem à primeira vista se contradizer: a repetição e o começo. Ora, essa objeção se desvanecerá se observarmos que todo hábito particular permanece na dependência desse hábito geral - claro e consciente - que é a vontade. Assim sendo, de muito bom grado definiríamos o hábito, tomado no sentido pleno, por esta fórmula que concilia os dois contrários que a crítica se apressou em opor: o hábito é a vontade de começar a repetir a si mesmo.
Se compreendermos bem a teoria de Roupnel, não será necessário tomar o hábito como um metanismo desprovido de ação inovadora . Haveria contradição nos termos se disséssemos que o hábito é uma potência passiva . A repetição que o caracteriza é uma repetição que, instruindo-se, constrói .
Aliás, o que comanda o ser são menos as circunstâncias necessárias para subsistir do que as condições suficientes para progredir. Para suscitar o ser, é necessária uma justa medida de novidade. Butler diz, com muita propriedade :
A introdução de elementos ligeiramente novos em nossa maneira
de agir nos é vantajosa : o novo funde-se então com o antigo, e
isso nos ajuda a suportar a monotonia de nossa ação. Mas, se o
elemento novo nos é demasiado estranho, a fusão do antigo com
o novo não se faz, pois a Natureza parece ter em igual horror qual
quer desvio demasiado grande de nossa prática ordinária e a au
sência de qualquer desvio. 1
É assim que o hábito se torna um progresso. Daí a necessidade de desejar o progresso para conservar a eficácia do hábito. Em todos os recomeças, é esse desejo de progresso que confere verdadeiro valor ao instante inicial que desencadeia um hábito.
1 Butler, LA vir et l'ilabitudt', trad. Larbaud, p. 1 59 .
74
A IDEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO
Sem dúvida , a ideia do eterno retorno acudiu a Roupnel, mas logo em seguida ele compreendeu que essa ideia, fecunda e verdadeira, não podia ser um absoluto. Renascendo, acentuamos a vida .
Porque não ressuscitamos e m vão ! . . . O recomeço não é feito de
um eterno sempre, perenemente idêntico a si mesmo ! . . . Nossos
atos cerebrais, nossos pensamentos, são retomados segundo o rito
de hábitos cada vez mais adquiridos e são investidos de fidelidades
físicas sempre aumentadas! Se nossas faltas agravam seus contornos
funestos, especificam e pioram suas formas e efeitos [ . . . ) , nossos
atos úteis e benfazejos preenchem, também eles, com marcas mais
firmes a pista dos passos eternos. A cada recomeço, alguma firme
za nova passa a revestir o ato e, nos resul tados, traz consigo, pou
co a pouco, a abundância desconhecida. Não dizemos que o ato
é permanente : ele é sempre acrescentado da precisão de suas ori
gens e de seus efeitos. Vivemos cada vida nova como a obra que
passa , mas a vida lega à vida todas as marcas recentes. Cada vez
mais apaixonado por seu rigor, o ato recapitula suas intenções e
suas consequências e completa aí o que jamais s.: consuma . E as
generosidades crescem em nossas obras e multiplicam-se em nós! . . .
Nos dias dos mundos antigos, aquele que nos viu, sensual argila
e lama dolente, arrastar na terra uma alma primitiva nos reconhe
ceria sob os grandes sopros? . . . Viemos de longe com nosso san
gue tépido . . . e eis que somos a Alma com as asas e o Pensamento
na Tempestade! . . . 2
Um destino tão longo prova que, ao retornar eternamente às fontes do ser, encontramos a coragem do voo renovada .
7 5
A I NTUIÇÃO DO INSTANTE
Mais que uma doutrina do eterno retorno, a tese roupneliana é , pois, uma doutrina do eterno recomeço. Ela representa a continuidade da coragem na descontinuidade das tentativas, a continuidade do ideal apesar da ruptura dos fatos. Todas as vezes que Bergson fala3 de uma continuidade que se prolonga (continuidade de nossa vida interior, continuidade de um movimento voluntário) , podemos traduzir dizendo que se trata de uma forma descontínua que se reconstitu i .Todo prolongamento efetivo é uma adjunção; toda identidade; uma semelhança . Reconhecemo-nos em nosso caráter porque imitamos a nós mesmos e porque nossa personalidade é, assim, o hábito de nosso próprio nome. É porque nos unificamos em torno de nosso nome e de nossa dignidade - essa nobreza do pobre - que podemos transportar para o futuro a unidade de uma alma . A cópia que refazemos sem cessar deve melhorar, senão o modelo inútil empana-se e a alma, que não passa de uma persistência estética, dissolve-se.
Para a mônada, nascer e renascer, começar ou recomeçar, é sempre a mesma ação que é tentada . Porém as ocasiões nem sempre são as mesmas, nem todos os recomeças são sincrônicos e nem todos os instantes são uti�izados e l igados pelos mesmos ritmos. Como as ocasiões são meras sombras de condições, toda a força permanece no seio dos instantes que fazem renascer o ser e retomam a tarefa encetada . Uma novidade essencial que passa por liberdade manifesta-se nesses recomeças, e é assim que o hábito, pela renovação do tempo descontínuo, pode tornar-se um progresso em toda a acepção do termo.
Assim a teoria do hábito se concilia , em Roupnel, com a negação da ação fisica e material do passado. O Passado pode,
·' C f . Bergson, Durér et simultarréité, p. 70 [ed. bras . : Duraçã,, e simultaneidade, Mar
tins Fontes, 2006] .
7 6
A IDEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO
sem dúvida , persistir, mas, a nosso ver, somente como verdade, somente como valor racional, somente como um conjunto de harmoniosas solicitações em direção ao progresso. Ele é , se se quiser, um domínio fãcil de atualizar, mas só se atualiza na proporção em que obtém um êxito. O progresso é , então, assegurado pela permanência das condições lógicas e estéticas .
Essa filosofia da vida de um historiador é esclarecida pela confissão da inutilidade da história em si, da história como somatório de fatos . Há decerto forças históricas que podem reviver, mas para isso elas devem receber a síntese do instante, assumir o "vigor dos atalhos" - nós mesmos diríamos: a dinâmica dos ritmos. Naturalmente, Roupnel não separa a filosofia da história e a filosofia da vida . E também aqui o presente domina tudo. A propósito da gênese das espécies, ele escreve :
Os tipos que se conservam o fazem na proporção não de seu pa
pel histórico, mas de seu papel atual . As formas embrionárias já não podem lembrar senão bem de longe as formas específicas
adaptadas às antigas condições de vida histórica. A adaptação que
as realizou já não tem qualidades presentes. São, se quiserdes, adap
tações desafetadas . São os despojos dos quais um raptor se apo
dera, porque são formas de tipos passados a serviço de outrem .
Sua interdependência ativa substitui sua independência abol ida .
Elas têm valor na medida em que se intitulam [ . . . ] . 4
Reencontra-se, assim, sempre a supremacia da harmonia presente sobre uma harmonia preestabelecida que, segundo a intuição leibniziana, sobrecarregaria o passado com o peso do destino.
• Si/oi', p. 55.
77
A I NTU IÇAO DO I NSTANTE
Por fim, são as condições de progresso que constituem as razões mais sólidas e mais coerentes para enriquecer o ser, e Roupnel resume seu argumento nesta fórmula que tem tanto mais sentido quanto está inscrita na parte do livro consagrada ao exame de teses totalmente biológicas: "A assimilação progrediu à medida mesma que progredia a reprodução" . 5 O que persiste é sempre o que se regenera .
11
Naturalmente, Roupnel sentiu tudo quanto o hábito, tomado no aspecto psicológico, traz de facilidade ao progresso. " A ideia de progresso" , diz ele,
está logicamente associada à ideia do recomeço e da repetição.
O hábito já tem, por si só, a significação de um progresso; o ato
que recomeça, pelo efeito do hábito adquirido, recomeça com
mais rapidez e prec isão ; os gestos que o executam perdem sua
amplitude excessiva, sua complicação inútil; eles se simplificam
e se encurtam. Os movimentos parasitas desaparecem. O ato re
duz o gasto ao estrito necessário, à energia suficiente, ao tempo
mínimo. Enquanto o dinamismo melhora e se especifica, aper
feiçoam-se a obra e o resultado.1'
Todas essas observações são clássicas o bastante para que Roupnel deixe de insistir nelas, mas ele acrescenta que sua aplicação à teoria da instantaneidade do ser comporta dificuldades. No fundo, a dificuldade de assegurar o progresso acima de um
" Op. c i t . , p. 74.
'' Op. c i t . , p. 1 57 .
7 8
A IDE IA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO
passado que se demonstrou ineficaz é a mesma que aquela com a qual deparamos quando quisemos fixar nesse mesmo passado as raízes do hábito. É preciso, portanto, voltar incessantemente ao mesmo ponto e lutar contra a falsa clareza da eficácia de um passado abolido, visto que essa eficácia é o postulado de nossos adversários. A posição de Roupnel é particularmente franca. Postulando essa eficácia, diz ele,
somos sempre os crédulos da constante ilusão que nos faz acre
ditar na realidade de um tempo objetivo e aceitar seus pretensos
efeitos. Na vida do ser, dois instantes que se sucedem têm entre
si a independência que corresponde à independência dos dois
ritmos moleculares que eles interpretam. Essa independência, que
ignoramos quando se trata de duas situações consecutivas, se nos
afirma quando consideramos fenômenos que não são imediata
mente consecutivos. Mas então queremos lançar, à conta da dura
ção que os aparta, a indiferença que os separa . Na realidade, quando
começamos a reconhecer na duração essa energia dissolvente e
essa virtude separativa, é somente então que começamos a fazer
justiça à sua natureza negativa e às suas capacidades de nada . Quer
seja tomada em dose fraca, quer em dose forte, a duração é sem
pre apenas uma ilusão. E a potência de seu nada separa tanto os
fenômenos de aparência menos consecutivos quanto os fenôme
nos de aparência menos contemporâneos .
Entre fenômenos consecutivos há, pois, passividade e indiferen
ça. A verdadeira dependência, como mostramos, é feita das sime
trias e referências entre situações homólogas. É sobre essas simetrias,
é sobre essas referências que a energia esculpe seus atos e molda
seus gestos. Os verdadeiros parentescos de instantes seriam, pois,
adaptados aos verdadeiros parentescos de situações do ser. Se qui
séssemos a todo custo construir uma duração contínua, seria sem-
79
A I NTU IÇAO DO I NSTANTE
pre uma duração subjetiva , e os instantes-vida referir-se-iam aí
às séries homólogas .
Mais um passo, partindo-se dessa homologia ou dessa simetria dos instantes agrupados, e se vai chegar àquela ideia de que a duração - sempre apreendida indiretamente - só tem força por seu progresso. É
o aperfeiçoamento, bem fraco sem dúvicta, mas logicamente ine
gável, e que basta para introduzir uma diferenciação dos instantes
e, por conseguinte, para introduzir o elemento de uma duração.
Mas percebemos assim que essa duração nada mais é que a ex
pressão de um progresso dinâmico. E então nós, que reduzimos
tudo ao dinamismo, diremos simplesmente que a duração con
tínua, se existe, é a expressão do progresso. 7
Compreende-se então que uma escala de perfeição possa aplicar-se diretamente sobre o grupo dos instantes reunidos por cronotropismos ativos. Por uma estranha recíproca, é porque existe um progresso no sentido estético, moral ou religioso que pode ser dada como certa a marcha do Tempo. Os instantes são distintos porque são fecundos. E não são fecundos em virtude das lembranças que podem atualizar, mas pelo fato de a eles se acrescentar uma novidade temporal convenientemente adaptada ao ritmo de um progresso.
Mas é nos problemas mais simples ou mais simplificados que melhor se reconhecerá , talvez, essa equação entre a duração pura e o progresso ; é aí que se compreenderá melhor a necessi-
7 Op. c i t . , p. 1 58.
80
A IDEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO
dade de inscrever na conta do tempo seu valor essencial de renovação. O tempo só dura inventando.
Com o fim de simplificar o dado temporal , Bergson também parte de uma melodia; mas, em vez de sublinhar que uma melodia só tem sentido pela diversidade de seus sons, em vez de reconhecer que o próprio som possui uma vida diversa , ele tenta , eliminando essa diversidade entre os sons e no interior mesmo de um som, mostrar que no limite se chega à uniformidade. Noutras palavras, removendo-se a matéria sensível do som, encontrar-se-ia a uniformidade do tempo fundamental . A nosso ver, por esse caminho só se chega à uniformidade do nada . Se examinarmos um som que seja tão unido objetivamente quanto possível , veremos que esse som unido não é uniforme subjetivamente. É impossível manter um sincronismo entre o ritmo da excitação e o ritmo da sensação. À menor experiência reconheceremos que a percepção do som não é um simples somatório ; as vibrações não podem ter um papel idêntico porque não têm o mesmo lugar - a tal ponto que um som prolongado sem variação se torna uma verdadeira tortura, como observou finamente Octave Mirbeau . Depararíamos com a mesma cdtica do uniforme em todos os donúnios, porque a repetição pura e simples tem efeitos similares no mundo orgânico e no mundo inorgânico. Essa repetição demasiado uniforme é um princípio de ruptura para a matéria mais dura, que acaba por se quebrar sob certos esforços rítnúcos monótonos. Logo, como se poderia, seguindo a psicologia da sensação acústica, falar com Bergson de uma "continuação daquilo que precede naquilo que se segue" , da " transição ininterrupta , multiplicada sem diversidade" , e de uma "sucessão sem separação" , quando basta prolongar o som mais puro para que ele mude de caráter? Mas, mesmo sem tomar o som que, por seu prolongamento, se torna uma dor, re-
8 1
A I NTUIÇAO DO I N STANTE
conhecendo no som seu valor musical, devemos admitir que num prolongamento medido ele se renova e canta ! Quanto mais se atenta numa sensação aparentemente uniforme, mais ela se diversifica. É verdadeiramente ser vítima de uma abstração imaginar uma meditação que simplifique um dado sensível. A sensação é variedade, é a única memória que uniformiza . Entre Bergson e nós há sempre, portanto, a mesma diferença de método; ele toma o tempo cheio de acontecimentos no mesmo nível da consciência dos acontecimentos� depois suprime gradativamente os acontecimentos, ou a consciência deles; e chegaria então, ele acredita , ao tempo sem acontecimentos, ou à
consciência da duração pura. Nós, ao contrário, só sabemos sentir o tempo multiplicando os instantes conscientes. Se nossa indolência distende nossa meditação, sem dúvida pode restar ainda um número suficiente de instantes enriquecidos pela vida dos sentidos e da carne, para que conservemos o sentimento mais ou menos vago de que duramos; mas, se quisermos esclarecer tal sentimento, de nossa parte só encontraremos esse esclarecimento numa multiplicação de pensamentos . A consciência do tempo é sempre, para nós, uma consciência da utilização dos instantes, é sempre ativa , nunca passiva - em suma, a consciência de nossa duração é a consciência de um progresso de nosso ser íntimo, seja esse progresso efetivo, imitado ou, ainda, simplesmente sonhado. O complexo assim organizado num progresso é, então, mais claro e mais simples; o ritmo bem renovado, mais coerente que a repetição pura e simples. Ademais, se chegarmos em seguida - por uma construção lógica - à uniformidade em nossa meditação, parece-nos que isso será mais uma conquista , pois encontraremos essa uniformidade numa ordenação dos instantes criadores, num daqueles pensamentos gerais e fecundos, por exemplo, que têm sob sua dependência mil pensamentos
82
A IOEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO
ordenados . A duração é, pois, uma riqueza - não a encontramos por abstração. Sua trama é construída colocando-se um atrás do outro - sempre sem que se toquem - os instantes concretos, ricos de novidade consciente e bem medida . A coerência da duração é a coordenação de um método de enriquecimento. Só se pode falar de uma uniformidade pura e simples num mundo de abstrações, numa descrição do nada . Não é do lado da simplicidade que se deve passar ao limite, é do lado da riqueza.
A única duração uniforme real é , a nosso ver, uma duração uniformemente variada , uma duração progressiva .
1 1 1
Neste ponto de nossa exposição, se nos pedissem para assinalar com uma etiqueta filosófica tradicional a doutrina temporal de Roupnel, diríamos que essa doutrina corresponde a um dos fenomenismos mais nítidos que se conhecem. Seria, com efeito, caracterizá-la muito mal dizer que, como substância, só o tempo conta para Roupnel , porque o tempo é sempre tomado simultaneamente, em Siloe, como substância e como atributo. Explica-se, então, essa curiosa trindade sem substância que faz com que duração, hábito e progresso estejam em perpétua troca de efeitos. Quando se compreende essa perfeita equação dos três fenômenos fundamentais do devir, percebe-se que seria injusto levantar aqui uma acusação de círculo vicioso. Sem dúvida, se partíssemos das intuições comuns, objetaríamos facilmente que a duração não pode explicar o progresso, porque este, para se desenvolver, requer a duração; e objetaríamos ainda que o hábito não pode atualizar o passado, porque o ser não tem como conservar um passado inativo. Porém a ordem discursiva nada prova contra a unidade intuitiva que se vê esclarecer quando se medita Siloe. Não se trata , com efeito, de classificar realida-
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A I NTU IÇAO DO INSTANTE
des, mas de fazer entender os fenômenos reconstruindo-os de múltiplas maneiras . Como realidade, só existe uma: o instante. Duração, hábito e progresso são apenas agrupamentos de instantes , são os mais simples dos fenômenos do tempo. Nenhum desses fenômenos temporais pode ter um privilégio ontológico. Estamos l ivres, portanto, para ler sua relação nas duas direções, para percorrer o círculo que os liga nos dois sentidos .
A síntese metafísica do progresso e dp duração leva Roupnel, no fim do livro, a garantir a Perfeição inscrevendo-a no próprio âmago da Divindade que nos dispensa o Tempo. Por longo tempo, Roupnel permanece com uma alma expectante. Mas dessa própria expectativa parece que Roupnel faz um conhecimento. Numa fórmula surpreendente de humildade intelectual, ele nos indica que a transcendência de Deus se molda sobre a imanência de nosso desejo : "O incognoscível já não está fora de nossas expectativas quando percebemos, se não a causa que o explica, ao menos a forma em que ele se esquiva" . " Nossos desejos, nossas esperanças e nosso amor desenhariam, portanto, de fora do Ser supremo . . .
A luz passa , então, da razão ao coração : "O Amor! Que outra palavra poderia propiciar um invólucro verbal adaptado de nossas espiritualidades no íntimo acordo que compõe a natureza das coisas e ao ritmo grave e grandioso que realiza todo o Universo?"9 Sim, no fundo mesmo do Tempo, para que os instantes façam a duração, para que a duração faça o progresso, cumpre inscrever o Amor . . . Quando lemos essas páginas amorosas, sentimos o poeta novamente em marcha rumo à fonte íntima e misteriosa de sua própria Siloé . . .
• Op. c i t . , p. 1 72 . . , Op. c i t . , p. 1 62 .
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A I DElA DO PROGRESSO E A INTUIÇAO DO TEMPO DESCONTINUO
Que cada um siga , pois, seu caminho.Visto nos ser permitido tirar do livro o que era para nosso espírito a ajuda mais eficaz, indiquemos então que, de nossa parte, é antes em direção a um esforço no qual encontramos o caráter racional do Amor que prosseguimos nosso sonho.
A nosso ver, os caminhos do progresso íntimo são os caminhos da lógica e das leis gerais. As grandes reminiscências de uma alma, aquelas que dão a uma alma sentido e profundidade, percebe-se um dia que estão em vias de tornar-se racionais.
Só se pode chorar por muito tempo um ser que é racional chorar. É então a razão estoica que consola o coração sem lhe pedir o olvido. No próprio amor, o singular é sempre pequeno, permanece anormal e isolado : não pode tomar lugar no ritmo regular que constitui um hábito sentimental . Pode-se colocar, em torno de suas lembranças de amor, todo particular que se quiser, a sebe de pilriteiros ou o portal florido, a noite outonal ou a aurora de maio. O coração sincero é sempre o mesmo. A cena pode mudar, mas o ator é sempre o mesmo. A alegria de amar, em sua novidade essencial, pode surpreender e maravilhar. Mas, vivendo-a em sua profundidade, nós a vivemos em sua simplicidade. Os caminhos da tristeza não são menos regulares. Quando um amor perdeu seu mistério perdendo seu futuro, quando o destino, fechando o livro abruptamente, pôs termo à lei tura, reconhecemos na recordação, sob as variações da saudade, o tema - tão claro, tão simples, tão geral - do sofrimento humano. À beira do túmulo, Guyau dizia ainda um verso de filósofo :
"A felicidade mais doce é aquela que se espera ".
Nós mesmos lhe responderemos, evocando
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A I NTUIÇAO DO I NSTA NTE
A felicidade mais pura, aquela que se perdeu .
Sem dúvida, nossa opinião é uma opinião de filósofo, terá contra si toda a experiência dos romancistas. Mas não podemos subtrair-nos à impressão de que a riqueza dos caracteres singulares, muitas vezes heteróclitos, situa o romance numa atmosfera de realismo ingênuo e facil que não é , em última análise, senão uma forma primitiva da psicologia .Ao contrário, de nosso ponto de vista , a paixão será tanto mais vuiada em seus efeitos quanto mais simples e mais lógica for em seus princípios. Uma fantasia nunca tem duração suficiente para totalizar as possibilidades do ser sentimental . Ela não é precisamente senão uma possibilidade, quando muito uma tentativa , um ritmo sufocado. Ao contrário, um amor profundo é uma coordenação de todas as possibilidades do ser, pois é essencialmente uma referência ao ser, um ideal de harmonia temporal em que o presente está incessantemente ocupado em preparar o futuro. É ao mesmo tempo uma duração, um hábito e um progresso.
Para fortalecer um coração, é preciso duplicar a paixão pela moral, encontrar as razões gerais de amar. É então que se compreende o alcance metafísico das teses que vão buscar na simpatia , no zelo, a força mesma da coordenação temporal . É porque se ama e se sofre que o tempo se prolonga em nós e dura . Meio século antes das teses hoje célebres , Guyau já reconhecera que "a memória e a simpatia têm [ . . . ] no fundo a mesma origem". 10 Ele mostrara que o Tempo é essencialmente afetivo : " A ideia de passado e futuro" , dizia ele com profundidade, "não é somente a condição necessária de todo sofrimento moral ; é, de certo ponto de vista , o princípio" . 1 1 Fazemos nosso tempo como nosso
1" Guyau, La genrse de l'idée du temps, p. 80. 1 1 I dem, op. ci t . , p. 82.
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A IDEIA DO PROGRESSO E A INTUIÇÃO DO TEMPO DESCONTINUO
espaço pela simples preocupação que temos com nosso futuro e pelo desejo de nossa própria expansão. É assim que nosso ser, em nosso coração e em nossa razão, corresponde ao Universo e reivindica a Eternidade. Como diz Roupnel , numa frase que restabelecemos em sua redação primitiva : "Está aí o gênio mesmo de nossa alma ávida de um espaço sem fim, faminta de uma duração sem limite, sedenta de Ideal , perseguida pelo Infinito, cuja vida é a inquietude de um perpétuo alhures e cuja natureza é apenas o longo tormento de uma expansão em direção a todo o Universo" .
Assim, pelo próprio fato de vivermos, pelo próprio fato de amarmos e de sofrermos, estamos inscritos nos caminhos do universal e do permanente. Se nosso amor se revela por vezes sem força , é quase sempre porque somos vítimas do realismo de nossa paixão. Ligamos nosso amor a nosso nome, quando ele é a verdade geral de uma alma; não queremos ligar, num conjunto coerente e racional, a diversidade de nossos desejos, porquanto eles só são eficazes quando se completam e se revezam. Se tivéssemos a sabedoria de escutar em nós mesmos a harmonia do possível , reconheceríamos que os mil ritmos dos instantes trazem a nós realidades tão exatamente complementares que devemos compreender o caráter finalmente racional das dores e das alegrias colocadas na fonte do Ser. Um sofrimento está sempre ligado a uma redenção; uma alegria, a um esforço intelectual . Tudo se redobra em nós mesmos quando queremos tomar posse de todas as possibilidades da duração : "Se amais" , diz Maeterlinck,
não é esse amor que faz parte de vosso destino; é a consciência
de vós mesmo que tereis encontrado no fundo desse amor que
modificará vossa vida . Se alguém vos trai , não é a traição que im-
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A INTUIÇAO DO INSTANTE
porta ; o que importa é o perdão que ela fez nascer em vossa al
ma, e a natureza mais ou menos geral , mais ou menos elevada,
mais ou menos refletida desse perdão é que voltará vossa existên
cia para o lado aprazível e mais claro do destino em que vereis
melhor do que se esse alguém vos tivesse permanecido fiel . Mas,
se a traição não aumentou a simplicidade, a confiança mais alta,
a extensão do amor, tereis sido traído inutilmente e podereis di
zer a vós mesmo que nada aconteceu . 1 2
Como dizer melhor que o ser só pode conservar do passado aquilo que serve a seu progresso, aquilo que pode entrar num sistema racional de simpatia e afeto? Só dura o que tem razões para durar. A duração é, assim, o primeiro fenômeno do princípio da razão suficiente para a ligação dos instantes. Em outras palavras, nas forças do mundo há apenas um princípio de continuidade: é a permanência das condições racionais, das condições de sucesso moral e estético. Essas condições comandam tanto o coração como o espírito. São elas que determinam a solidariedade dos instantl!s em progressão. A duração íntima é sempre a sabedoria . O que coordena o mundo não são as forças do passado, é a harmonia toda em tensão que o mundo vai realizar. Pode-se falar de uma harmonia preestabelecida , mas não se pode tratar de uma harmonia preestabelecida nas coisas - só existe ação por uma harmonia preestabelecida na razão. Toda a força do tempo se condensa no instante inovador em que a vista se descerra , junto à fonte de Siloé, ao toque de um divino redentor que nos dá , num mesmo gesto, a alegria e a razão, e o meio de ser eterno por via da verdade e da bondade.
1 2 Maeterl inck, S<�grssr ri destirrér, p. 27 [ed. bras . : A S<lbcdMi<l I' " dcstirr<•, Pensa
mento, s .d . ] .
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Con clusã o
O ser entregue à razão encontra forças na solidão. Traz em si mesmo os meios de seus recomeças. Tem por si a eternidade do verdadeiro, sem ter o encargo e a guarda da experiência passada . É justamente o que Jean Guéhenno dizia ( Caliban par/e) : " A razão, essa estrangeira sem memória e sem herança, que gostaria sempre que tudo recomeçasse", porque é efetivamente pela razão que tudo pode recomeçar. O fracasso não passa de uma prova negativa , o fracasso é sempre experimental . No donúnio da razão, basta comparar dois temas obscuros para que sobrevenha a clareza da evidência. Então, com o antigo mal compreendido, faz-se uma novidade fecunda. Se há um eterno retorno que sustenta o mundo, é o eterno retorno da razão.
Não é nessa inocência racional que Roupnel procura os caminhos da redenção do ser. Ele encontra na Arte um meio mais diretamente adaptado aos princípios mesmos da criação. Em páginas que se dirigem ao próprio núcleo da intuição estética,
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A INTUIÇAO DO I NSTANTE
ele nos reconduz a esse frescor da alma e dos sentidos que renova a força poética . É
a Arte que nos liberta da rotina literária e artística [ . . . ) . Ela nos
cura a fadiga social da alma e remoça a percepção gasta. Restitui
à expressão aviltada o sentido ativo e a representação realista . Re
conduz a verdade à sensação e a probidade à emoção. Ensina-nos
a lançar mão de nossos sentidos e de nossa alma como se nada
ainda lhes houvesse depravado o vigor ou arruinado a clarividên
cia. Ensina-nos a ver e a escutar o Universo como se só agora ti
véssemos dele a sã e súbita revelação. Reconduz a nossos olha
res a graça de uma Natureza que desperta . Devolve-nos as horas
encantadoras da manhã primitiva banhada de criações novas . De
volve-nos, por assim dizer, o homem maravilhado que ouviu nas
cer as vozes na Natureza, que assistiu à aparição do firmamento
e diante de quem o Céu se ergueu como um Desconhecido. 1
Ainda uma vez, porém, se a Arte, como a Razão, é solidão, eis que a Solidão é a própria Arte. Após o sofrimento, somos entregues "à altiva solidão de nosso coração [ . . . ] então, nossa alma, que rompeu suas correntes infames, torna a entrar em seu templo sepultado" . E Roupnel continua :
A Arte é a escuta dessa voz interior. Ela nos traz o murmúrio en
terrado. É a voz da consciência sobrenatural que habita em nós
no fundo inalienável e perpétuo. Ela nos reconduz ao sítio pri
mordial de nosso Ser e ao Lugar imenso no qual estamos no Uni
verso inteiro. Nossa parcela miserável assume aí seu grau univer
sal e nos entrega a autoridade que ela detém. Triunfando sobre
1 Siloe, p. 1 96.
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CONCLUSÃO
todos os temas descontínuos que separam o Ser e compõem o
Indivíduo, a Arte é o senso de Harmonia que nos restitu i ao doce
ritmo do Mundo e nos devolve ao Infinito que nos chama.
Então, tudo em nós se faz partícipe do ritmo absoluto em que se
desenvolve o fenômeno completo do Mundo. Assim, em nosso
âmago, tudo se ordena nas supremas direções, tudo se aclara sob
as clarividências íntimas. As luzes assumem significado mensagei
ro. As l inhas desenvolvem a graça de uma associação misteriosa
com os acordes infinitos. Os sons desenvolvem sua melodia na
via interior onde canta todo o Universo. Um amor veemente,
uma simpatia universal nos busca o coração e quer l igar-nos à
alma que freme em todas as coisas.
O Universo que assume sua beleza é o Universo que assume seu
sentido; e as imagens desusadas que lhe emprestaríamos tombam
da face absoluta que emerge do mistério. 2
Existe, a nosso ver, na raiz dessa redenção contemplativa , uma força que nos permite aceitar, num único ato, a vida com todas as suas contradições íntimas. Colocando o nada absoluto nas duas margens do instante, Roupnel devia ser le .'a do a uma intensidade de consciência tamanha que toda a imagem de um destino era , por um clarão súbito, legível no próprio ato do espírito. A causa profunda da melancolia roupneliana liga-se talvez a esta necessidade metafísica: devem-se manter num mesmo pensamento o pesar e a esperança . Síntese sentimental dos contrários, eis o instante vivido. Somos capazes, aliás, de girar o eixo sentimental do tempo e de depositar a esperança numa recordação cujo frescor, em nosso devaneio, nós resti tuímos . Por outro lado, podemos ser desencorajados ao contemplar o futu-
Op. ci t . , p. 1 98 .
9 1
A INTUIÇAO DO INSTANTE
ro, porque em certos momentos, no ápice da idade, por exemplo, percebemos que já não podemos deixar para amanhã a guarda de nossas esperanças. A amargura da vida é o desgosto de não poder esperar, de já não ouvir os ritmos que nos exortam a tocar nossa parte na sinfonia do devir. É então que a "lamentação risonha" nos aconselha a convidar a Morte e a aceitar, como i.tma canção que acalenta , os ritmos monótonos da Matéria .
É nessa atmosfera metafisica que nos apraz situar Siloe; é com essa interpretação pessoal que gostamos•üe ler essa obra estranha. Ela nos fala, então, na força e na tristeza porque ela é verdade e coragem. Nessa obra amarga e terna, com efeito, a alegria é sempre uma conquista ; a bondade ultrapassa por sistema a consciência do mal, porque a consciência do mal é já o desejo da redenção. O otimismo é vontade mesmo quando o pessimismo é conhecimento claro. Espantoso privilégio da intimidade ! O coração humano é verdadeiramente a maior potência de coerência para as ideias contrárias. Lendo Siloe, percebemos bem que trazíamos, por nosso comentário, um quinhão de pesadas contradições; mas a simpatia não tardaria, com a obra , a nos exortar a ter confiança nas lições que tiramos de nossos próprios erros.
Eis por que Siloe é um belo livro humano. Ele não ensina, ele evoca . Obra da solidão, é uma leitura para solitários. Reencontramos o livro como nos reencontramos ao reentrar em nós mesmos . Se o contradizemos, ele nos responde. Se o seguimos, ele nos dá um impulso. Mal o fechamos e já renasce o desejo de reabri-lo. Mal se calou e um eco já acorda na alma que o compreendeu .
9 2
A N E X O
lnstan te poético e instante metafisi co*
A poesia é uma metafisica instantânea. Num curto poema, ela deve dar uma visão do universo e o segredo de uma alma, um ser e objetos, tudo ao mesmo tempo. Se segue simplesmente o tempo da vida, ela é menos que esta ; só pode ser mais que a vida imobilizando-a, vivendo no próprio lugar a dialética das alegrias e das dores . Ela é, então, o princípio de uma simultaneidade essencial em que o ser mais disperso, mais desunido, conquista sua unidade.
Enquanto todas as demais experiências metafisicas são preparadas em intermináveis prólogos, a poesia recusa os preâm-
* Este texto de Bachelard , apresentado na edição francesa como complemento a A iutuiçtio do instaure, foi originalmente publicado na revista Mcssagrs: Mc
taphysique ct H•ésic, nY 2, 1 939, e prolonga a meditação do autor sobre a ques
tão do tempo.
93
A I NTUIÇAO DO I NSTA NTE
bulas, os princípios, os métodos, as provas . Recusa a dúvida . Quando muito, ela tem necessidade de um prelúdio de silêncio. Primeiro, valendo-se de palavras ocas, ela faz calar a prosa ou os trinados que deixariam na alma do leitor uma continuidade de pensamento ou de murmúrio. Depois, após as sonoridades vazias, ela produz seu instante. É para construir um instante complexo, para atar, nesse instante, simultaneidades numerosas, que o poeta destrói a continuidade simples do tempo encadeado.
Em todo poema verdadeiro, po-dem-se, então, encontrar os elementos de um tempo interrompido, de um tempo que não segue a medida , de um tempo que chamaremos de vertical para distingui-lo de um tempo comum que foge horizontalmente com a água do rio, com o vento que passa . Daí o paradoxo que cumpre enunciar claramente: enquanto o tempo da prosódia é horizontal, o tempo da poesia é vertical . A prosódia organiza apenas sonoridades sucessivas, regula cadências, administra ímpetos e emoções, por vezes, infelizmente, de modo inoportuno. Aceitando as consequências do instante poético, a prosódia permite chegar à prosa , ao pensamento explicado, aos amores vividos, à vida social , à vida comum, à vida escorregadia, linear, contínua. Mas todas as regras prosódicas não passam de meios, de velhos meios . A meta é a verticalidade, a profundidade ou a altura ; é o instante estabilizado em que as simultaneidades, ordenando-se, provam que o instante poético tem uma perspectiva metafísica.
O instante poético, portanto, é necessariamente complexo : ele comove, ele prova - convida, consola -, é espantoso e familiar. Essencialmente, o instante poético é a relação harmônica de dois contrários. No instante apaixonado do poeta, há sempre um pouco de razão; na recusa racional , resta sempre um pouco de paixão. As antíteses sucessivas agradam ao poeta . Mas, para
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INSTANTE POETICO E INSTANTE METAFISICO
o encantamento, para o êxtase, é preciso que as antíteses se contraiam em ambivalência . Surge então o instante poético . . . Quando menos, o instante poético é a consciência de uma ambivalência. Mas ele é mais, porque é uma ambivalência excitada , ativa , dinâmica. O instante poético obriga o ser a valorizar ou a desvalorizar. No instante poético o ser sobe ou desce, sem aceitar o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência à antítese, o simultâneo ao sucessivo.
Verificaremos facilmente essa relação da antítese com a ambivalência se quisermos comunicar-nos com o poeta , que, evidentemente, vive em um instante os dois termos de suas antíteses . O segundo termo não é evocado pelo primeiro. Os dois termos nasceram juntos. Encontraremos, então, os verdadeiros instantes poéticos de um poema em todos os pontos nos quais o coração humano pode inverter as antíteses . Mais intuitivamente, a ambivalência bem atada revela-se por seu caráter temporal : em vez do tempo masculino e intrépido que arremete e quebra , em vez do tempo melífluo e submisso que lastima e chora, eis o instante andrógino. O mistério poético é uma androginia.
11
Mas será que também é tempo esse pluralismo de acontecimentos contraditórios encerrados num só instante? Será que é tempo toda essa perspectiva vertical que se projeta sobre o instante poético? Sim, porque as simultaneidades acumuladas são simultaneidades ordenadas. Elas conferem uma dimensão ao instante, porque lhe dão uma ordem interna . Ora, o tempo é uma ordem, e nada mais que uma ordem. E toda ordem é um tempo. A ordem das ambivalências no instante é , portanto, um tempo. E é esse tempo vertical que o poeta descobre quando recu-
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A I NTU IÇAO DO INSTA NTE
sa o tempo horizontal, ou seja , o devir dos outros, o devir da vida, o devir do mundo. Eis, portanto, as três ordens de experiências sucessivas que desacorrentam o ser encadeado no tempo horizontal :
1 ) habituar-se a não referir o tempo próprio ao tempo dos outros - romper os contextos sociais da duração;
2) habituar-se a não referir o tempo próprio ao tempo das coisas - romper os contextos fenomênieos da duração;
3) habituar-se - duro exercício - a não referir o tempo próprio ao tempo da vida; não mais saber se o coração bate, se a alegria avança - romper os contextos vitais da duração.
Somente então se alcança a referência autossincrônica no centro de si mesmo, sem a vida periférica. De repente toda a horizontalidade plana se desfaz. O tempo já não corre. Ele jorra .
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Para conservar, ou, antes, para reencontrar esse instante poético estabilizado, poetas há, como Mallarmé, que brutalizam diretamente o tempo horizontal, que invertem a sintaxe, que interrompem ou desviam as consequências do instante poético. As prosódias complicadas põem seixos no riacho para que as ondas pulverizem as imagens ruteis, para que os redemoinhos desfaçam os reflexos . Lendo Mallarmé, tem-se com frequência a sensação de um tempo recorrente que vem pôr termo a instantes idos. Vivemos, então, retardatariamente os instantes que deveríamos ter vivido - sensação tanto mais estranha quanto não participa de nenhum pesar, de nenhum arrependimento, de nenhuma nostalgia . Ela é feita simplesmente de um tempo trabalhado que sabe
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INSTANTE POETICO E INSTANTE METAFISICO
por vezes colocar o eco antes da voz e a recusa antes do consentimento.
Outros poetas, mais felizes, apreendem naturalmente o instante estabilizado. Baudelaire vê, como os chineses, a hora no olho dos gatos, a hora insensível em que a paixão é tão completa que desdenha de realizar-se : "No fundo de seus olhos adoráveis, vejo sempre a hora distintamente, sempre a mesma, uma hora vasta , solene, grande como o espaço, sem divisões de minutos nem de segundos, uma hora imóvel que não é marcada pelos relógios [ . . . )" . 1 Para os poetas que realizam assim o instante com facilidade, o poema não se desenrola, ele se amarra , se tece de nó em nó. Seu drama não se efetua . Seu mal é uma flor serena.
Equilibrando-se sobre a meia-noite, sem nada esperar do sopro das horas, o poeta alija-se de toda vida inútil ; vivencia a ambivalência abstrata do ser e do não ser. Nas trevas, ele vê melhor a própria luz. A solidão lhe traz o pensamento solitário, pensamento sem diversão, pensamento que se eleva, que se acalma exaltando-se puramente.
O tempo vertical eleva-se. Às vezes ele tat.lbém soçobra . A
meia-noite, para quem sabe ler O corvo, nunca mais soa horizontalmente. Ela soa na alma, descendo, descendo . . . Raras são as noites em que tenho coragem de ir até o fundo, até a décima segunda badalada, até a décima segunda batida , até a décima segunda lembrança . . .Volto então ao tempo plano; mcadeio, torno a me encadear, volto para perto dos vivos, para a vida . Para viver, é preciso sempre trair os fantasmas . . .
É n o tempo vertical - descendo - que se escalonam as piores dores, as dores sem causalidade temporal , as dores agudas que
1 Baudelaire, CErlvrcs, tomo I, Plêiade, p. 429.
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A I NTUIÇAO DO INSTANTE
atravessam um coração para nada, sem jamais enlanguescer. É no tempo vertical - subindo - que se estabiliza a consolação sem esperança, essa estranha consolação autóctone, sem protetor. Em suma, tudo quanto nos aparta da causa e da recompensa, tudo quanto nega a história íntima e o próprio desejo, tudo quanto desvaloriza ao mesmo tempo o passado e o futuro, encontra-se no instante poético.
Deseja-se um estudo de um pequeno fragmento do tempo poético vertical? Tome-se o instante poético da lamentação
risonha, no momento mesmo em que a noite adormece e consolida as trevas, em que as horas mal respiram, em que a solidão por si só já é um remorso ! Os polos ambivalentes da lamentação
risonha quase se tocam. A menor oscilação os substitui um ao outro. A lamentação risonha é, portanto, uma das mais sensíveis ambivalências de um coração sensível . Ora, ela se desenvolve, evidentemente, num tempo vertical , porque nenhum dos dois momentos, sorriso ou lamentação, é antecedente. O sentimento é aqui reversível, ou, melhor dizendo, a reversibilidade do ser é aqui sentimentalizada: o sorriso lamenta e a lamentação sorri , a lamentação consola . Nenhum dos tempos expressos sucessivamente é a causa do outro - tal é, portanto, a prova de que se exprimem mal no tempo sucessivo, no tempo horizontal . Mas existe ainda assim, de um ao outro, um devir, um devir que só se pode vivenciar verticalmente, subindo, com a impressão de que o pesar se alivia , de que a alma se eleva , de que o fantasma perdoa . Então, verdadeiramente, a desventura floresce. Um metafisico sensível encontrará assim, na lamentação risonha, a beleza formal da desdita . É em função da causalidade formal que ele compreenderá o valor de desmaterialização em que se reconhece o instante poético. Outra prova de que a causalidade formal
9 8
INSTANTE POETICO E INSTANTE METAFISICO
se desenrola no bojo do instante, no sentido de um tempo vertical , enquanto a causalidade eficiente se desenrola na vida e nas coisas, horizontalmente, agrupando instantes de intensidades variadas.
Naturalmente, na perspectiva do instante, podem-se vivenciar ambivalências de mais longo alcance :"Criança , senti no coração dois sentimentos contraditórios: o horror da vida e o êxtase da vida" . 2 Os instantes em que esses sentimentos são vivenciados juntos imobilizam o tempo, porque são vivenciados juntos ligados pelo interesse fascinante pela vida . Eles removem o ser da duração comum.Tal ambivalência não pode descrever-se em tempos sucessivos, como um vulgar balanço das alegrias e dores passageiras . Contrários tão vivos, tão fundamentais, pertencem ao domínio de uma metafisica imediata .Vivemos-lhes a oscilação num único instante, por êxtases e quedas que podem mesmo estar em oposição aos acontecimentos: o desgosto de viver nos acomete no gozo tão fatalmente quanto a altivez no infortúnio. Os temperamentos cíclicos que se desenrolam na duração usual, seguindo a lua, dos estados contraditórios só apresentam paródias da ambivalência fundamental . Soment�.: uma psicologia aprofundada do instante poderá dar-nos os esquemas necessários para a compreensão do drama poético essencial .
IV
É notável que um dos poetas que mais fortemente apreenderam os instantes decisivos do ser seja o poeta das correspondências. A correspondência baudelairiana não é, como tantas vezes se afir-
2 Idem, Mo11 m·ur mis à 1111 , p. 88 ]ed . bras . : Meu comçào dcsrwdt�do, Nova Fron
teira, 1 98 1 ] .
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A I NTUIÇÃO DO INSTANTE
ma, uma simples transposição que daria um código de analogias sensuais. É um somatório do ser sensível num único instante. Mas as simultaneidades sensíveis que reúnem os perfumes, as cores e os sons só fazem esboçar simultaneidades mais distantes e mais profundas . Nessas duas unidades da noite e da luz, reencontra-se a dupla eternidade do bem e do mal . O que há de "vasto" na noite e na claridade não deve sugerir-nos uma visão espacial . A noite e a luz não são evocadas por sua extensão, por seu infinito, mas por sua unidade.A noite não é um espaço. É uma ameaça de eternidade. Noite e luz são instantes imóveis, instantes escuros ou claros, alegres ou tristes, escuros e claros, tristes e alegres. Nunca o instante poético foi mais completo que nesse verso em que se pode associar ao mesmo tempo a imensidade do dia e da noite. Nunca se fez sentir tão fisicamente a ambivalência dos sentimentos, o maniqueísmo dos princípios.
Meditando nesse caminho, chega-se repentinamente a esta conclusão : toda moralidade é instant�nea. O imperativo categórico da moralidade não tem o que fazer com a duração. Não retém nenhuma causa sensível , não espera nenhuma consequência. Vai direto, verticalmente, ao tempo das formas e das pessoas . O
poeta é, então, o guia natural do metafisico que quer compreender todas as potências de ligações instantâneas, o ímpeto do sacrifício, sem se deixar dividir pela dualidade filosófica grosseira do sujeito e do objeto, sem se deixar deter pelo dualismo do egoísmo e do dever. O poeta anima uma dialética mais sutil . Revela ao mesmo tempo, no mesmo instante, a solidariedade da forma e da pessoa. Prova que a forma é uma pessoa e que a pessoa é uma forma . A poesia torna-se, assim, um instante da causa formal, um instante da potência pessoal. Ela se desinteressa , então, daquilo que desfaz e daquilo que dissolve, de uma
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INSTANTE PO�TICO E INSTANTE METAF!SICO
duração que dispersa ecos. Ela busca o instante. Só tem necessidade do instante. Cria o instante. Fora do instante há apenas prosa e canção. É no tempo vertical de um instante imobilizado que a poesia encontra seu dinamismo específico. Há um dinamismo puro da poesia pura . É aquele que se desenvolve verticalmente no tempo das formas e das pessoas.
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