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Artigos São Paulo / SETEMBRO 2018 1 Artigo publicado no livro "Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A – Controvérsias após a Lei n. 12973", Coord. Sérgio André Rocha, Vol. V. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2018, p. 327-348. Autor: João Francisco Bianco Fabiana Carsoni Alves F. da Silva RECONHECIMENTO DE RECEITAS (CPC 30) - AUSÊNCIA DE NORMA EXPRESSA NA LEI N. 12973/14 QUE REGULE O TRATAMENTO APLICÁVEL A DIVERGÊNCIAS ENTRE OS CRITÉRIOS CONTÁBIL E FISCAL 1. Introdução A Lei n. 11638, de 28.12.2007, e a Lei n. 11941, de 27.5.2009, instituíram profundas alterações na Lei n. 6404, de 15.12.1976, introduzindo novos critérios, métodos e padrões contábeis, buscando promover a harmonização das normas contábeis brasileiras aos padrões internacionais. Essa harmonização teve como um de seus principais objetivos fornecer informações fidedignas a todos os interessados no acompanhamento das atividades das empresas, como os acionistas, trabalhadores, credores e fornecedores, que exprimam, com fidelidade e clareza, a real situação econômica das empresas (art. 1188, “caput”, do Código Civil). Além disso, com a harmonização, buscou-se que essas informações fossem compreendidas pelos investidores estrangeiros no mercado de capitais brasileiro, fomentando a

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Artigo publicado no livro "Direito Tributário, Societário e a Reforma da Lei das S/A – Controvérsias após a Lei n. 12973", Coord. Sérgio André Rocha, Vol. V. São Paulo: Ed. Quartier Latin, 2018, p. 327-348.

Autor: João Francisco Bianco Fabiana Carsoni Alves F. da Silva

RECONHECIMENTO DE RECEITAS (CPC 30) - AUSÊNCIA DE NORMA EXPRESSA NA LEI N. 12973/14 QUE REGULE O TRATAMENTO APLICÁVEL A DIVERGÊNCIAS ENTRE OS CRITÉRIOS CONTÁBIL E FISCAL

1. Introdução A Lei n. 11638, de 28.12.2007, e a Lei n. 11941, de 27.5.2009,

instituíram profundas alterações na Lei n. 6404, de 15.12.1976, introduzindo novos critérios, métodos e padrões contábeis, buscando promover a harmonização das normas contábeis brasileiras aos padrões internacionais.

Essa harmonização teve como um de seus principais objetivos

fornecer informações fidedignas a todos os interessados no acompanhamento das atividades das empresas, como os acionistas, trabalhadores, credores e fornecedores, que exprimam, com fidelidade e clareza, a real situação econômica das empresas (art. 1188, “caput”, do Código Civil). Além disso, com a harmonização, buscou-se que essas informações fossem compreendidas pelos investidores estrangeiros no mercado de capitais brasileiro, fomentando a

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atração de recursos, facilitando a análise comparativa entre empresas sediadas em diferentes países e reduzindo o custo de captação das empresas brasileiras1.

Mais do que facilitar globalmente a leitura das demonstrações

financeiras e retratar com fidedignidade a situação econômica da empresa, a uniformização de critérios de mensuração e de registro de mutações patrimoniais acabou com a interferência do fisco federal na contabilidade, historicamente verificada no Brasil. É que, por questões de praticabilidade tributária, interesse de arrecadação e incipiência do mercado de capitais brasileiro, a contabilidade, por décadas, serviu de instrumento da fiscalização, deixando em segundo plano o fornecimento de informações confiáveis aos usuários das demonstrações financeiras das empresas.

Assim, com as Leis n. 11638 e 11941, ocorreu uma verdadeira

ruptura, extirpando-se a indevida interferência da legislação tributária nos assentamentos contábeis das pessoas jurídicas.

Ocorre que os princípios e normas que regem a incidência dos

tributos devidos pelas empresas nem sempre são compatíveis com os princípios e normas contábeis estabelecidos pela nova legislação, em consonância com os critérios internacionais. Este trabalho, assim, tem por objetivo examinar casos de conflitos entre os dois regramentos – jurídico e contábil – especialmente no que diz respeito aos critérios aplicáveis ao adequado momento do reconhecimento de receitas pela pessoa jurídica, identificando como o tema deve ser tratado para efeito de apuração do imposto de renda.

Para isso, analisaremos as principais normas de regência da nova

contabilidade e do imposto de renda, avaliando, por fim, as divergências entre os critérios contábil e fiscal de reconhecimento de receitas e a solução para o equacionamento do tema.

1 Cf. LOPES, Alexsandro Broedel; MOSQUERA, Roberto Quiroga. “O direito contábil. Fundamentos conceituais, aspectos da experiência brasileira e implicações”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 63-64.

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2. A nova contabilidade: suas premissas essenciais A chamada nova contabilidade apoia-se principalmente nos

seguintes princípios ou padrões contábeis: a) primazia da essência econômica sobre a forma jurídica; b) subjetivismo responsável; e c) visão prospectiva das demonstrações financeiras.

A primazia da essência econômica sobre a forma jurídica requer que

as transações e os eventos sejam registrados pela contabilidade sob a perspectiva de sua substância econômica, independentemente do regime jurídico a que as transações ou eventos sejam submetidos. Não se trata propriamente da prevalência do econômico sobre a forma jurídica, já que forma jurídica, para o direito, constitui a maneira pela qual o negócio jurídico é exteriorizado (escritura pública ou particular, por exemplo). Trata-se, na verdade, de considerar a transação sob o ponto de vista de seus efeitos econômicos e não da sua natureza jurídica. Daí porque esse princípio poderia ser mais bem designado como o princípio da prevalência da aparência econômica sobre a natureza jurídica dos atos praticados 2.

Pelo princípio do subjetivismo responsável, a contabilidade deixa de

ser regida exclusivamente pelo critério da objetividade, lastreada em documentos ou evidências materiais. Assim, os registros contábeis das operações praticadas pela empresa devem ser feitos levando-se em consideração também juízos de valor de natureza subjetiva, ainda que ponderados com certo grau de responsabilidade, ou seja, evitando-se os excessos injustificados.

Por fim, pela visão prospectiva, as demonstrações financeiras

deixam de ser uma “fotografia do passado”, mas sim objetivam retratar “o futuro esperado à luz do passado realizado”3, já que “só se tomam decisões econômicas sobre o futuro; para este fim, o passado é dado, concluído, e sobre ele podem 2 BIANCO, João Francisco. “Aparência econômica e natureza jurídica”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 176. 3 CARVALHO, Nelson. “Essência x Forma na contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 374.

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caber interpretações, mas jamais interpretações que advenham de análise de alternativas visando resultados distintos dos que os já alcançados”4.

3. A hipótese de incidência do imposto de renda da pessoa

jurídica - IRPJ De acordo com o art. 153, inciso III, da Constituição Federal, a União

Federal tem competência para a instituição de imposto sobre “renda e proventos de qualquer natureza”.

O Código Tributário Nacional (“CTN”), por sua vez, estabeleceu que

o fato gerador do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica da renda, assim entendido o produto do trabalho, do capital ou da combinação de ambos; ou dos proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no conceito de renda (art. 43, “caput” e incisos I e II). Trata-se da lei complementar que estabelece normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre o fato gerador e base de cálculo de impostos, como o imposto de renda, na forma determinada pelo art. 146, inciso III, “a”, da Constituição Federal.

O fato econômico que dá ensejo à incidência do imposto de renda é o

acréscimo patrimonial decorrente da aquisição de renda ou de proventos de qualquer natureza, conforme afirmado pelo Ministro Carlos Velloso, quando do julgamento plenário do Recurso Extraordinário (RE) n. 117.887-6/SP, em 11.2.1993:

“Convém esclarecer, de início, que a Lei 4.506, de 30.11.64, foi tirada a lume anteriormente ao Código Tributário Nacional, Lei 5.172, de 25.10.66, com vigência a partir de 01.01.67. Não obstante isso, não me parece possível a afirmativa no sentido de que possa existir renda ou provento sem que haja acréscimo patrimonial, acréscimo patrimonial que ocorre mediante o ingresso ou o auferimento de algo, a título oneroso. Não me parece, pois, que poderia o legislador, anteriormente ao CTN, diante do que expressamente dispunha o art. 15, IV, da CF/46, estabelecer, como renda, uma ficção legal”.

4 Idem, ibidem, p. 372.

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Ainda sobre o tema, e apontando a existência de um “núcleo semântico mínimo” na Constituição Federal acerca do conceito de renda, que somente permite a tributação de ganhos ou acréscimos, assim se manifestou o Ministro Cezar Peluso, em voto proferido no RE n. 256.304/RS, de 20.11.2013:

“4. Embora a existência de um ‘conceito constitucional de renda’ seja deveras controversa, divergindo, a respeito das notas que o caracterizariam, teorias de renda-produto, de renda-acréscimo e concepções legalistas de renda, 3 estou em que nenhuma delas merecerá crédito, se não reverenciar ideia de que

‘as palavras são utilizadas na Constituição com o fim de transmitir uma mensagem com sentido, com o propósito de designar algum conceito, mesmo sendo um conceito do tipo indeterminado (...). Contudo, se existe um conceito, há características definitórias que informam seus limites, que permite identificá-lo e diferençá-lo de outros conceitos’.

Parece-me indiscutível, portanto, que os sentidos licitamente atribuíveis à expressão ‘renda’ são limitados, não podendo transpor aquilo que se denomina o ‘conteúdo semântico mínimo’, cuja ideia norteou, aliás, o julgamento do RE 346.084-PR, a respeito da ampliação da base de cálculo da COFINS mediante manipulação do conceito de faturamento. (...) Ora, esse conceito geral corresponde, precisamente, ao cerne conceitual de renda que se deve resguardar. Segue-se daí que o conceito de renda tem, como todas as expressões categoremáticas, um núcleo semântico mínimo, empregado pela Constituição Federal, para, a um só tempo, traçar o âmbito de incidência possível do tributo e delimitar (no sentido de lhe definir os contornos) a competência do ente tributante. Ao assim dispor, a Carta Constitucional exclui da possibilidade de tributação tudo aquilo que não esteja no campo semântico por ela demarcado. (...)

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O campo semântico da palavra, demarcado também à luz do que assentou a jurisprudência do Tribunal, envolve as notas de ganho e de acréscimo” (grifos do original).

Como se vê, o fato gerador do imposto de renda é a aquisição da

disponibilidade do acréscimo patrimonial. Patrimônio é conceito do direito privado, definido pelo art. 91 do Código Civil como uma universalidade de direito composta pelo complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico.

Os art. 109, 110 e 116 do CTN evidenciam que o Direito Tributário

não é avesso aos conceitos e figuras do Direito Privado. Pelo contrário: estes conceitos e figuras devem prevalecer, mesmo no campo fiscal, quando adotados pelo constituinte na definição da competência tributária (art. 109 e 110); e os efeitos dos negócios jurídicos ou dos fatos regidos pelo Direito Civil norteiam o momento da ocorrência do fato gerador (art. 116 e 117).

Como o patrimônio “é, por natureza, uma universalidade de direito.

Não existem elementos ajurídicos no patrimônio, pela boa razão de que eles se compõem, exclusivamente, de relações jurídicas, ativas e passivas, que se correspondem”5, logo, para efeito de imposto de renda, somente os direitos novos incorporados ao patrimônio do contribuinte representam acréscimo suscetível de tributação.

Assim, em que pese a fluidez do conceito de renda, a incidência do

imposto, em qualquer caso, fica limitada à aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica da renda, ou seja, do acréscimo patrimonial, nos termos do art. 43 do CTN. Desse modo, antes da aquisição da disponibilidade do acréscimo patrimonial, não há incidência do imposto. O que o art. 43 do CTN requer, portanto, para que seja possível a tributação, é que o contribuinte possa dispor da renda ou do provento, sem entraves ou obstáculos de qualquer ordem. Aquele que pode dispor do acréscimo patrimonial é senhor, dono, proprietário deste acréscimo, tendo a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha (art. 1228 do Código Civil). 5 COMPARATO, Fabio Konder. “O irredentismo da ‘nova contabilidade’ e as operações de ‘leasing’”. Revista de Direito Mercantil n. 68. São Paulo: RT, out/dez 1987, p. 51.

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Assim, existindo dúvida ou incerteza sobre o direito, ou sobre sua

quantificação, não se cogita da aquisição da sua disponibilidade e, de conseguinte, de tributação pelo imposto de renda. A renda estimada, ou potencial, sobre a qual haja mera expectativa, não se sujeita à incidência do imposto de renda. Neste caso, há somente um direito eventual ou expectativa de direito6, e não um direito novo, já adquirido, este, sim, passível de incidência tributária.

A tributação, nessas condições, só pode ocorrer quando o

beneficiário (contribuinte) tiver adquirido em caráter definitivo o direito ao recebimento da renda, ou seja, quando o contribuinte puder dispor da renda, sem óbices ou condições. Nesse caso, costuma-se dizer que a renda estará realizada.

A afirmação acima remete a dois princípios, a saber: o princípio da

realização da renda e o princípio da capacidade contributiva. O primeiro, na verdade, deriva do segundo. É que as manifestações de riqueza do contribuinte, quando impliquem acréscimo patrimonial e estejam contidas na descrição da hipótese normativa, são capturadas pelo imposto, mas desde que estejam realizadas, ou seja, concretizadas. Assim, busca-se “evitar que a tributação atinja eventos econômicos incompletos ou incertos, e também evitar que a tributação comprometa o patrimônio”7.

Não se admite, pois, a tributação da renda sujeita a eventos futuros e

incertos, renda não adquirida incondicional e definitivamente, mera expectativa do recebimento da renda. Em outros dizeres, e recordando as palavras de Alcides Jorge Costa, não se admite “a tributação de renda virtual ou ainda não realizada”8.

6 Sobre o direito eventual, o art. 130 do Código Civil estabelece que “Art. 130. Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo”. 7 POLIZELLI, Victor Borges. “O Princípio da Realização da Renda - Reconhecimento de Receitas e Despesas para fins do IRPJ”. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 351. 8 COSTA, Alcides Jorge. “Anais das XI Jornadas do Instituto Latino Americano de Derecho Tributario”, Rio de Janeiro, 1983, p. 166.

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Como se vê, a incidência do imposto de renda está condicionada à aquisição da disponibilidade do acréscimo patrimonial, isto é, à sua realização, definitiva e incondicional, sem dúvidas ou incertezas, inclusive em relação à sua mensuração. Esta afirmação é confirmada pelo art. 116 do CTN, cujo inciso II considera ocorrido o fato gerador, em se tratando de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável; e cujo inciso I considera ocorrido o fato gerador, em se tratando de situação de fato, quando verificadas, sem dúvidas ou incertezas, as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios.

Em suma, o fato gerador do imposto de renda é o acréscimo

patrimonial adquirido pelo contribuinte em caráter definitivo e incondicional, é dizer, realizado juridicamente, sem entraves de qualquer natureza.

4. O distanciamento da nova contabilidade da legislação

reguladora do fato gerador do IRPJ Vimos acima quais os mais importantes princípios ou padrões

contábeis que regem a chamada nova contabilidade: prevalência da substância econômica sobre a natureza jurídica, subjetivismo responsável e visão prospectiva das demonstrações financeiras. Vimos também que o fato gerador do imposto de renda, segundo o art. 43 do CTN, somente ocorre quando houver a aquisição definitiva e incondicional da renda.

A adoção dos referidos princípios ou padrões contábeis pode se

chocar com o regime legal que regula a incidência do imposto de renda da pessoa jurídica.

É natural que isso ocorra, porque, enquanto o lucro contábil é

determinado com base em princípios, normas e regras do referido direito contabilístico, tendo por destinatários os utentes das demonstrações financeiras das empresas (isto é, os investidores, os trabalhadores, os financiadores, os fornecedores e outros credores comerciais, os clientes, o Governo e seus departamentos e o público em geral), o lucro fiscal, diferentemente, guia-se

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pelos princípios e normas próprios do direito fiscal, tendo por destinatário, sobretudo, o Estado, mais precisamente a administração tributária9.

Se, por um lado, a adoção dos três princípios ou padrões contábeis

acima mencionados encontra justificativa na função e nos objetivos próprios da contabilidade, por outro lado, pode-se dizer que eles são responsáveis por promover grande distanciamento entre a contabilidade e o direito tributário, já que esta ciência é informada, fundamentalmente, por critérios jurídicos e pela objetividade.

Em um primeiro momento, esse distanciamento foi equacionado

pela Lei n. 11941, de 27.5.2009, quando da instituição do Regime Tributário de Transição – RTT, o qual assegurou a neutralidade, para efeito fiscal, das novas normas contábeis (artigo 15, parágrafo 1º, da Lei n. 11941), determinando que, para fins de apuração do IRPJ, da CSL, da contribuição ao PIS e da COFINS10, o contribuinte deveria observar os métodos e critérios contábeis vigentes até 31.12.2007, de modo a garantir dita “neutralidade tributária”, como dava conta o artigo 16 da Lei n. 11941:

“Art. 16. As alterações introduzidas pela Lei n. 11638, de 28 de dezembro de 2007, e pelos arts. 37 e 38 desta Lei que modifiquem o critério de reconhecimento de receitas, custos e despesas computadas na apuração do lucro líquido do exercício definido no art. 191 da Lei n. 6404, de 15 de dezembro de 1976, não terão efeitos para fins de apuração do lucro real da pessoa jurídica sujeita ao RTT, devendo ser considerados, para fins tributários, os métodos e critérios contábeis vigentes em 31 de dezembro de 2007. Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo às normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários, com base na competência conferida pelo parágrafo 3º do art. 177 da Lei n. 6404, de 15 de dezembro de 1976, e pelos demais órgãos reguladores que visem a alinhar a legislação específica com os padrões internacionais de contabilidade”.

9 NABAIS, José Casalta. “Direito Fiscal”. Coimbra: Almedina, 8ª edição, 2015, p. 521-522. 10 O art. 15, parágrafo 3º, da Lei n. 11941 dispunha que o RTT era obrigatório a partir do ano-calendário 2010, inclusive para a apuração do imposto sobre a renda com base no lucro presumido ou arbitrado, da CSL, da contribuição ao PIS e da COFINS.

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Ocorre que o RTT exigia das empresas a manutenção de “duas contabilidades”: uma societária, baseada na nova contabilidade, e outra fiscal, baseada na antiga contabilidade. Para solucionar essa questão, foi editada a Medida Provisória n. 627, de 11.11.2013, afinal, convertida na Lei n. 12973, 13.5.2014. Com ela, o RTT restou extinto, tendo havido uma série de adaptações e modificações na legislação tributária, voltadas a disciplinar os efeitos das novas normas e padrões contábeis sobre a tributação.

De um modo geral, pode-se dizer que a Lei n. 12973 buscou

neutralizar os efeitos fiscais decorrentes da adoção dos novos critérios contábeis. É o que se verifica, por exemplo, em relação às avaliações a valor justo, cuja neutralidade fiscal foi expressamente assegurada pela lei, autorizando-se a tributação somente quando houver realização do ganho ou da renda (art. 13, 16, 17 e 26 da Lei n. 12973).

O art. 58 da Lei n. 12973 ainda estabelece que a modificação ou a

adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos (resoluções ou pronunciamentos contábeis) posteriores à publicação da referida lei, serão neutras sob o ponto de vista dos tributos federais, até que lei tributária regule a matéria. Trata-se de mais uma demonstração de que a regra, para a Lei n. 12973, é a neutralidade fiscal.

Muito embora a neutralidade seja a regra, nem todos os critérios e

padrões contábeis introduzidos pelas Leis n. 11638 e 11941 tiveram os respectivos efeitos disciplinados pela Lei n. 12973. Muitos destes critérios e padrões, é importante que se diga, estavam consolidados em atos administrativos de conselhos ou comitês contábeis antes mesmo da edição da Lei n. 12973, pelo que, para situações como esta, não tem aplicação o disposto no art. 58 da mesma lei.

Como proceder em situações como essa, já que a Lei n. 12937 não

contém um regime destinado a promover a neutralidade fiscal, como era o RTT? Para a pessoa jurídica, especialmente aquela tributada pelo IRPJ de acordo com o lucro real, deve prevalecer o lucro líquido contábil, admitindo-se ajustes (adições, exclusões e compensações) voltados a garantir a neutralidade fiscal

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somente se existir norma expressa assegurando a inaplicabilidade do novo critério contábil?11

Essas perguntas têm grande relevância no cenário atual, porque o

legislador tributário, na edição da Lei n. 12973, não foi capaz de prever e regular todas as hipóteses possíveis de neutralidade desejadas para garantir a harmonia do sistema tributário nacional com as regras da nova contabilidade. É o que a prática profissional tem demonstrado aos operadores do direito e da contabilidade desde a edição da Lei n. 12973.

Mas, afinal, quais são os efeitos dessa omissão do legislador

tributário? Especificamente, quais são efeitos de tal omissão no que tange ao momento para o reconhecimento de receitas?

Para responder a essas indagações, passemos a analisar as normas

contábeis e, em seguida, as normas fiscais atinentes ao momento de reconhecimento de receitas, de tal sorte a identificar e, sendo o caso, equacionar eventuais descompassos.

5. CPC 30: a receita e seu reconhecimento contábil O Pronunciamento n. 30, emitido pelo Comitê de Pronunciamentos

Contábeis, doravante chamado CPC 30, em seu item 7, define receita como “o ingresso bruto de benefícios econômicos durante o período observado no curso das atividades ordinárias da entidade que resultam no aumento do seu patrimônio líquido, exceto os aumentos de patrimônio líquido relacionados às contribuições dos proprietários”.

O mesmo CPC, em sua parte introdutória, ainda trata a receita como

um “aumento nos benefícios econômicos durante o período contábil sob a forma de entrada de recursos ou aumento de ativos ou diminuição de passivos que

11 Lembre-se que, segundo o art. 6º, “caput” e parágrafo 1º, do Decreto-lei n. 1598, de 26.12.1977, lucro real é o lucro líquido do exercício ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária. O lucro líquido do exercício, por sua vez, é a soma algébrica de lucro operacional, dos resultados não operacionais e das participações, devendo ser determinado com observância dos preceitos da lei comercial.

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resultam em aumentos do patrimônio líquido da entidade e que não sejam provenientes de aporte de recursos dos proprietários da entidade”.

Como se pode observar, o CPC 30, seguindo a trilha do princípio da

prevalência da essência econômica sobre a forma jurídica, determina que a receita deve ser identificada a partir de critérios econômicos, e não necessariamente jurídicos. Este fato, não há dúvidas, demonstra que as divergências podem estar não apenas no momento de reconhecimento da receita, mas, também, no conceito jurídico de receita, aplicável para efeito de apuração do fato gerador do IRPJ, e o conceito contábil de receita.

Vejamos, então, os principais critérios estabelecidos pelo CPC 30, de

modo a investigar se as regras contábeis podem, ou não, produzir efeitos tributários.

O CPC determina que a receita deve ser reconhecida quando for

provável que benefícios econômicos futuros fluam para a entidade e esses benefícios possam ser confiavelmente mensurados. Note-se que o subjetivismo é traço característico da avaliação acerca do momento adequado para o reconhecimento da receita.

Em seu item 14, o CPC 30 estabelece que, na venda de bens,

considera-se auferida a receita quando forem satisfeitas, cumulativamente, as seguintes condições: (a) o vendedor tiver transferido ao comprador os riscos e benefícios mais significativos inerentes à propriedade dos bens; (b) o vendedor não mantiver envolvimento continuado na gestão dos bens vendidos em grau normalmente associado à propriedade e tampouco efetivo controle sobre tais bens; (c) o valor da receita puder ser mensurado com confiabilidade; (d) for provável que os benefícios econômicos associados à transação fluirão para o vendedor; e (e) as despesas incorridas ou a serem incorridas, referentes à transação, puderem ser mensuradas com confiabilidade.

Na tentativa de auxiliar a compreensão e, pois, a aplicação das

condições acima elencadas, o item 15 do CPC explica que a avaliação sobre a transferência dos riscos e dos benefícios significativos da propriedade para o comprador (item “a” acima) exige o exame das circunstâncias da transação. Geralmente, este momento coincide com a transferência da titularidade legal ou

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da transferência da posse do ativo para o comprador. Mas o mesmo dispositivo do CPC adverte ser possível que a transferência dos riscos e benefícios da propriedade ocorra em momento diferente da transferência da titularidade legal ou da transferência da posse do ativo. Tanto é assim que, se a vendedora retiver riscos significativos da propriedade, a transação não será considerada uma venda e, de conseguinte, a receita não deverá ser reconhecida (item 16 do CPC 30).

Em outras palavras, vale, para efeito de reconhecimento da receita

na contabilidade, a substância econômica da transação, independentemente da efetiva aquisição do direito ao recebimento do preço de venda da mercadoria. Tudo isso em atenção ao princípio da primazia da essência econômica sobre a forma jurídica, referido anteriormente.

No tocante aos serviços, embora o reconhecimento das respectivas

receitas esteja sujeito a regras específicas, tais regras estão assentadas, em linhas gerais, nas mesmas premissas aplicáveis à venda de bens. É que a receita associada à prestação de serviços deve ser reconhecida conforme o estágio de sua execução (“stage of completion”), devendo ser satisfeitas, cumulativamente, as seguintes condições: (a) o valor da receita deve ser passível de mensuração com confiabilidade; (b) deve ser provável que os benefícios econômicos associados à transação fluam para o prestador; (c) o estágio de execução (“stage of completion”) da transação ao término do período de reporte deve ser passível de mensuração com confiabilidade; e (d) as despesas incorridas com a transação assim como as despesas para concluí-la devem ser passíveis de mensuração com confiabilidade.

6. Art. 43 do CTN: a receita e o momento do seu

oferecimento à tributação No tópico 3, vimos que a incidência do imposto de renda depende da

aquisição da disponibilidade da renda, o que significa dizer que o titular do patrimônio (contribuinte) deve ter adquirido um novo direito (direito ao recebimento da renda), que se incorpora ao seu patrimônio em caráter definitivo e incondicional.

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No Código Civil, há diversos dispositivos que regulam a aquisição incondicional e definitiva de direitos, que consequentemente se incorporam ao patrimônio da pessoa. Para os fins deste estudo, cabe-nos apenas listar alguns deles. Veja-se.

Na compra e venda, o direito ao recebimento do preço nasce, para o

vendedor, como regra, na tradição da coisa. É que, antes da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor; mas, se a coisa já tiver sido colocada à disposição do comprador no tempo, modo e lugar ajustados, os riscos correrão por conta dele, e não mais do vendedor (art. 492 do Código Civil). Assim, na compra e venda, considerar-se-á devido o preço e, pois, auferida a receita pelo vendedor, quando da tradição da coisa ou quando da colocação do bem à disposição do comprador, desde que nenhum termo, condição ou dúvida recaiam sobre a obrigação. É nesse momento, portanto, que a receita deve ser oferecida à tributação pelo IRPJ, nos termos do disposto no art. 43 do CTN.

Pois bem. Conforme examinado no tópico 5, considera-se auferida a

receita, sob o ponto de vista contábil, dentre outras hipóteses, quando o vendedor tiver transferido ao comprador os riscos e benefícios mais significativos inerentes à propriedade dos bens. A “transferência de riscos”, como se infere da leitura do art. 492 do Código Civil, é inerente à tradição, porque, como regra, até que ela ocorra, os danos porventura causados à coisa são atribuíveis ao vendedor.

Essa constatação é importante, por revelar que, nas compras e

venda em geral, a tradição (elemento jurídico adotado pelo Direito Tributário) corresponderá à “transferência dos riscos e benefícios mais significativos inerentes à propriedade dos bens” (elemento econômico adotado pela Ciência Contábil). Desse modo, em situações desta natureza, inexistirá descompasso entre o critério jurídico e o contábil com relação ao momento do reconhecimento da respectiva receita.

Logo, o lançamento contábil a crédito de receita não deverá sofrer

qualquer ajuste (exclusão) no livro de apuração do lucro real – LALUR. O lucro líquido composto pela referida receita embasará, a um só tempo, o balanço patrimonial da pessoa jurídica e seu resultado tributável.

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Situações há, no entanto, que essa coincidência entre os critérios de reconhecimento da receita, para a contabilidade, e os critérios jurídicos, adotados pelo Direito Tributário, não se verifica.

Esses exemplos podem ser colhidos no próprio CPC 30. Confira-se o

Apêndice “A” do CPC 30 que contém exemplos acerca do momento do reconhecimento de determinados tipos de receitas.

Em seu item 3, o Apêndice “A” cuida das vendas a prazo nas quais a

entrega da coisa ocorre somente no pagamento final (“lay away sales”). De acordo com o CPC 30, em casos como este, a receita, como regra, deve ser reconhecida quando da entrega da mercadoria. No entanto, o mesmo CPC acrescenta que, se a experiência indicar que tradicionalmente essa modalidade de venda é, ao final do pagamento das parcelas, efetivamente concretizada, a receita pode ser reconhecida a partir do momento em que uma parcela significativa do valor total do objeto da compra tiver sido recebida pelo vendedor, desde que as mercadorias estejam disponíveis nos estoques, devidamente identificadas e prontas para entrega ao comprador. Em outras palavras, se o contador examinar essa situação e concluir responsavelmente que existe uma forte expectativa de que o pagamento integral do preço vai ser efetivamente realizado, então é possível reconhecer a receita de venda da mercadoria antes mesmo da sua entrega.

Ocorre que, para o Direito Civil, não há aquisição do direito ao

recebimento do preço de venda da mercadoria antes da sua efetiva entrega. Assim, não se poderá falar em direito novo adquirido e, pois, em acréscimo patrimonial, enquanto não houver o pagamento integral das prestações.

Na verdade, nas operações de compra e venda em geral, como dito

acima, a receita (preço) deverá ser oferecida à tributação tão logo ocorra a tradição, ou desde o momento em que colocada a coisa à disposição do comprador. Este raciocínio vale, inclusive, para as hipóteses em que houver adiantamento do preço em uma venda cuja entrega ainda não se concretizou. Nestes casos, não há receita a ser reconhecida pelo vendedor antes da entrega das mercadorias, porque não há direito novo para ele. Pelo contrário: pende para ele a obrigação de entrega da mercadoria respectiva, derivada do contrato, a qual fica acrescida de uma nova obrigação derivada do recebimento do

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adiantamento do preço, consistente na obrigação de devolução do valor recebido caso ele não entregue a mercadoria12.

Ocorre que, nos contratos em que a receita deve ser integralmente

recebida pelo vendedor como requisito necessário à entrega ou à colocação da mercadoria à disposição do comprador, enquanto não satisfeita a obrigação de pagar o preço, juridicamente, não nasce, para o vendedor, o dever de entregar o bem, permanecendo com ele os riscos inerentes a este bem, porque não ocorrida sua tradição ou colocação à disposição do comprador.

Com efeito, nesses contratos, dá-se a chamada “venda com reserva

de domínio”, em que o vendedor reserva para si a propriedade, até que o preço esteja integralmente pago (art. 521 do Código Civil), transferindo-a ao comprador no momento em que a obrigação de pagar esteja liquidada (art. 524 do Código Civil). Daí que, sob a ótica do Direito Civil, nas vendas com reserva de domínio, o não pagamento integral das prestações constitui circunstância suficiente para vedar o reconhecimento da receita, mesmo que parte substancial do preço já tenha sido paga pelo comprador.

Isso é assim porque deve haver certeza, e não mera estimativa ou

expectativa, mesmo que razoável, quanto à aquisição de direitos integrantes do patrimônio. Na lição de Pontes de Miranda, “O critério da probabilidade de realizar-se a expectativa (...) é insustentável: não se poderia conhecer onde começa a probabilidade inseridora, nem onde acaba”13.

Portanto, em que pese o critério previsto no item 3 do Apêndice “A”

do CPC 30 atenda aos princípios ou padrões contábeis da primazia da essência econômica sobre a forma jurídica e do subjetivismo responsável, que regem a contabilidade, tal critério conflita com as normas jurídicas que devem nortear o aspecto temporal da incidência do IRPJ.

A Lei n. 12973, nesse particular, não traz nenhuma disposição que

autorize a exclusão da receita nas hipóteses de falta de coincidência entre o 12 Cf. OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. “Fundamentos do imposto de renda”. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 113-114. 13 PONTES DE MIRANDA. “Tratado de Direito Privado” - Parte Geral. Tomo V. 3ª edição. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 372.

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momento de seu reconhecimento contábil e o momento de seu reconhecimento jurídico e, pois, fiscal. Mas a ausência de norma expressa não é elemento suficiente para autorizar a conclusão de que os novos critérios e padrões contábeis devem prevalecer sobre as normas tributárias.

É bem verdade que o lucro real tem como ponto de partida o lucro

líquido contábil, ajustado pelas adições e exclusões estabelecidas em lei (art. 6º do Decreto-lei n. 1598). Ocorre que os ajustes necessários à apuração do lucro real não se encontram apenas na Lei n. 12973. Em realidade, os ajustes necessários à apuração da base de cálculo do imposto são todos aqueles permitidos pela legislação tributária e, ainda, todos aqueles que se impõem em função da aplicação do art. 43 do CTN, dos princípios que com ele se relacionam e das normas de Direito Civil.

Ora, as leis tributárias devem ser interpretadas como qualquer

outra lei, inseridas que estão no ordenamento, ao lado das demais leis. Assim, é necessário, por exemplo, relacioná-las com as demais leis do sistema jurídico (interpretação sistemática) e com os sistemas jurídicos antecedentes (interpretação histórica). Trata-se do chamado “cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico”, propugnado por Alfredo Augusto Becker14. Este cânone existe e foi defendido com Becker, porque a divisão do direito em ramos é teórica e didática, uma vez que as normas, necessariamente, se entrelaçam, devendo formar um ordenamento coeso, harmônico e subsumido às normas e princípios gerais de estatura constitucional. A divisão do direito em ramos, neste contexto, tem apenas utilidade científica e conveniência pedagógica, constituindo os elementos de cada ramo parte do sistema constitucional total, desempenhando cada um sua função coordenada com a função dos outros15.

Essas constatações são fundamentais para os fins deste trabalho, na

medida em que nos permitem afirmar que a Lei n. 12973 não pode ser lida isoladamente. A definição da base de cálculo do IRPJ, com o fim do RTT, não passou a ser traçada, em todos os seus contornos, pela Lei n. 12973, de forma descurada das demais normas do ordenamento jurídico. A compreensão do fato 14 BECKER, Alfredo Augusto. “Teoria Geral do Direito Tributário”. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 103-104. 15 ATALIBA, Geraldo. “Sistema constitucional tributário brasileiro”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 4.

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gerador e o dimensionamento da base de cálculo do IRPJ continuam sujeitos a todas as demais normas existentes e em vigor, inclusive, e especialmente, o art. 43 do CTN, enquanto norma geral que disciplina o fato gerador e a base de cálculo do imposto de renda (art. 146, inciso III, “a”, da Constituição Federal).

Em outras palavras, a omissão do legislador ordinário no trato da

divergência entre o momento de reconhecimento contábil da receita e o momento de seu reconhecimento jurídico e fiscal não constitui fator suficiente para fazer as normas contábeis se sobreporem à realidade jurídica para efeito de tributação pelo IRPJ. As normas tributárias devem ser analisadas e compreendidas em seu conjunto, não sendo admitida a leitura isolada ou literal da Lei n. 12973.

Nesses termos, na situação descrita no item 3 do Apêndice “A” do

CPC 30, o reconhecimento da receita para efeito de apuração do lucro real deve ocorrer somente após o pagamento da última prestação, ou melhor, somente após a tradição ou colocação da mercadoria à disposição do comprador. Antes disto, o vendedor não terá adquirido, incondicional e definitivamente, o direito ao recebimento do preço, tratando-se de meras antecipações, mesmo que haja expectativa razoável de pagamento integral das prestações.

Portanto, eventual reconhecimento contábil da receita em momento

anterior autorizará a exclusão do correspondente valor da apuração do lucro real, o qual deverá ser adicionado quando da tradição da mercadoria, momento em que terá ocorrido o efetivo e incondicional acréscimo patrimonial. A tributação antecipada à efetiva realização da renda é sempre injurídica por contrariar preceitos da Constituição Federal e do CTN16, notadamente a noção de acréscimo patrimonial e os princípios da realização da renda e da capacidade contributiva, além de poder contrariar, também, o princípio da legalidade, quando o registro contábil estiver lastreado em ato infralegal.

Há outra situação descrita no Apêndice “A” do CPC 30 que pode

gerar descompasso entre os critérios contábil e jurídico de reconhecimento da 16 OLIVEIRA, Ricardo Mariz. “Depurações do lucro contábil para determinação do lucro tributável”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). 5º volume. São Paulo: Dialética, 2014, p. 374.

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receita. Trata-se dos acordos de venda e recompra de bens, nos quais o vendedor concorda em recomprar os mesmos bens em data futura; ou quando o vendedor possui opção de compra para readquirir os bens; ou quando o comprador possui opção de venda que lhe confira o direito de exigir a recompra dos bens pelo vendedor.

De acordo com o item 5 do Apêndice “A”, em se tratando de venda e

acordo de recompra de ativo, se for verificado que, na essência, o vendedor transferiu os riscos e os benefícios de propriedade para o comprador, a receita deverá ser reconhecida. Se, por outro lado, o vendedor retiver os riscos e os benefícios de propriedade, ainda que a propriedade legal tenha sido transferida, a transação será caracterizada, em sua essência econômica, como financiamento e não dará origem à receita.

Como se vê, para a contabilidade, mesmo que haja a transferência

jurídica da propriedade, o vendedor não deve reconhecer a receita na compra e venda com pacto de retrovenda se retiver os riscos e benefícios da propriedade. Ou seja, tal negócio jurídico, embora típico para o Direito Civil, deve ser requalificado para fins contábeis como financiamento, independentemente da sua natureza jurídica, regulada pelo direito.

Sob o enfoque da prevalência da essência sobre a forma, a

contabilidade admite que se ignore a transferência jurídica da propriedade. Admite também que se ignore o regime jurídico da retrovenda, pelo qual “O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador (...)” (art. 505 do Código Civil).

Ocorre que, para o direito, a substância econômica da operação não

tem prevalência sobre sua natureza jurídica. Logo, com a transferência jurídica da propriedade da coisa, o vendedor fará jus à receita, devendo oferecê-la à tributação pelo IRPJ, mesmo que tenha retido para si os riscos e benefícios da propriedade.

Isso não se altera pelo fato de a Lei n. 12973 nada dizer sobre

possíveis divergências entre os critérios contábil e jurídico de reconhecimento da receita. É que, conforme mencionado linhas atrás, o ordenamento jurídico

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não pode ser interpretado em fatias ou segmentos, mas, sim, em sua completude e inteireza, o que nos leva a concluir que o aspecto temporal de incidência do IRPJ é aquele descrito no art. 43 do CTN, admitindo-se a tributação somente quando o acréscimo patrimonial estiver definitiva e incondicionalmente adquirido pelo contribuinte, na forma regulada pelo direito.

A legislação tributária autoriza eventuais ajustes (adições, exclusões

e compensações) porventura necessários à apuração adequada da base de cálculo do imposto, como pode ocorrer na hipótese de a contabilidade negar a natureza jurídica da retrovenda, requalificando-a para financiamento. É o que decorre da noção de acréscimo patrimonial e dos princípios da realização da renda, da capacidade contributiva e da legalidade. Assim, não pode haver dúvidas de que, havendo descompasso entre as regras contábeis e o regime tributário aplicável, é perfeitamente possível a convivência entre os dois critérios, bastando para tanto que a pessoa jurídica proceda às adequadas adições e exclusões no Livro de Apuração do Lucro Real – LALUR.

Por fim, no tocante aos serviços, viu-se no tópico 5 deste estudo que

a contabilidade determina o lançamento contábil da respectiva receita quando for provável que os benefícios econômicos associados à transação fluam para o prestador e também quando o estágio de execução da transação for passível de mensuração com confiabilidade.

Juridicamente, a receita oriunda da prestação de serviços é devida

na conclusão da atividade, salvo se as partes dispuserem de forma diferente. De fato, nos termos do art. 597 do Código Civil, a retribuição deve ser paga depois de prestado o serviço, exceto se, por convenção, ou costume, não houver de ser adiantada, ou paga em prestações.

Na empreitada também é assim: como regra, a remuneração é

devida quando do término da obra. No entanto, “se a obra constar de partes distintas, ou for de natureza das que se determinam por medida, o empreiteiro terá direito a que também se verifique por medida, ou segundo as partes em que se dividir, podendo exigir o pagamento na proporção da obra executada” (art. 614 do Código Civil).

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É comum, especialmente em prestações mais complexas, que a remuneração seja estipulada em prestações ou em etapas. Em casos desta natureza, a legislação tributária estabelece que a receita deve ser tributada conforme os custos incorridos ou em função do progresso da obra, em se tratando de contrato de longo prazo, ou à medida da execução do serviço, no que tange aos contratos inferiores a um ano. Eis o que se colhe do art. 10 do Decreto-lei n. 1598:

“Art. 10 - Na apuração do resultado de contratos, com prazo de execução superior a um ano, de construção por empreitada ou de fornecimento, a preço predeterminado, de bens ou serviços a serem produzidos, serão computados em cada período: I - o custo de construção ou de produção dos bens ou serviços incorrido durante o período; Il - parte do preço total da empreitada, ou dos bens ou serviços a serem fornecidos, determinada mediante aplicação, sobre esse preço total, da porcentagem do contrato ou da produção executada no período. § 1º - A porcentagem do contrato ou da produção executada durante o período poderá ser determinada: a) com base na relação entre os custos incorridos no período e o custo total estimado da execução da empreitada ou da produção; ou b) com base em laudo técnico de profissional habilitado, segundo a natureza da empreitada ou dos bens ou serviços, que certifique a porcentagem executada em função do progresso físico da empreitada ou produção. § 2º - O disposto neste artigo não se aplica às construções ou fornecimentos contratados com base em preço unitário de quantidades de bens ou serviços produzidos em prazo inferior a um ano, cujo resultado deverá ser reconhecido à medida da execução”.

Esse regime fiscal distribui as receitas, os custos e as despesas

vinculados ao longo dos períodos de apuração que constituem a fase de execução. Com este expediente legal, evita-se que todo o resultado do

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empreendimento possa, porventura, ser tributado pelo empreiteiro apenas na conclusão e entrega da obra17. Ocorre que a tributação durante a fase de execução do contrato, exigida pelo art. 10 do Decreto-lei n. 1598, pode acabar recaindo sobre parcela que, juridicamente, ainda não constitui renda ou receita, porque a situação jurídica que subsidia a incidência tributária, aludida pelo inciso II do art. 116 do CTN, pode não estar completa18_19. A despeito disto, este regime existe e se justifica não só por interesse na arrecadação, mas por praticabilidade, especialmente nos contratos e empreendimentos mais complexos, em que há diversas etapas de execução com diferentes prestações que englobam a remuneração.

Para a contabilidade, quando o serviço for executado em etapas, há

diferentes critérios de mensuração e reconhecimento da receita, dentre eles: a) levantamento ou medição do trabalho executado; b) percentual de serviços executados até determinada data; e c) proporção entre custo incorrido e custos totais estimados da transação (item 24 do CPC 30).

Note-se que os critérios mencionados no parágrafo anterior, de um

modo geral, são semelhantes àqueles previstos no art. 10 do Decreto-lei n. 1598. Nos casos em que a pessoa jurídica estiver sujeita ao disposto no parágrafo 1º do referido art. 10, eventual divergência entre o regime fiscal de apuração do IRPJ e os novos critérios contábeis poderá ser neutralizada, nos termos do art. 29 da Lei n. 1297320. 17 BOZZA, Fábio Piovesan. “Divergências na contabilização e regime de tributação dos contratos de empreitada a longo prazo”. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 156. São Paulo: Dialética, 2008, p. 54. 18 Idem ibidem, p. 59. 19 A discussão não ganhou corpo em nossos tribunais, embora seja possível encontrar ao menos uma manifestação no sentido de que “as disposições dos arts. 10, incs. I e II, do Dec.-Lei nº 1.598/77, e 280, do RIR/80, atentam contra o art. 43 do CTN, na medida em que fazem presumir disponibilidade patrimonial” (menção constante do acórdão proferido pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no RESP n. 193690, julgado em 4.6.2002, ao citar decisão do TRF da 4ª Região). 20 “Art. 29. Na hipótese de a pessoa jurídica utilizar critério, para determinação da porcentagem do contrato ou da produção executada, distinto dos previstos no § 1o do art. 10 do Decreto-Lei no 1.598, de 26 de dezembro de 1977, que implique resultado do período diferente daquele que seria apurado com base nesses critérios, a diferença verificada deverá ser adicionada ou excluída, conforme o caso, por ocasião da apuração do lucro real”.

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E quanto às hipóteses em que o serviço não estiver submetido ao

regime fiscal do art. 10, parágrafo 1º, do Decreto-lei n. 1598? Como tratar eventual descompasso com a contabilidade, se não há norma expressa de neutralidade fiscal?

É o que pode se dar, por exemplo, em relação aos serviços que

correspondam a um número indeterminado de etapas, executadas durante período específico de tempo. Nesta situação, a contabilidade determina o reconhecimento da receita pelo método linear ou, então, até a execução total de determinada etapa, quando se verificar que ela é muito mais significativa do que qualquer outra (item 25 do CPC 30).

Como se verifica, o critério contábil é baseado na essência

econômica da operação e em avaliações subjetivas, ainda que responsáveis. Ocorre que tal critério nem sempre corresponderá ao momento da aquisição da disponibilidade da renda, pois a execução de etapa significante da obra pode não assegurar ao prestador, de acordo com as disposições contratuais, o direito ao recebimento de remuneração, nem mesmo de parte dela. O próprio método linear pode ocasionar a antecipação do reconhecimento de receita ainda não adquirida juridicamente, é dizer, ainda não realizada pelo contribuinte.

Por tudo o que foi demonstrado até aqui, quando o critério contábil

contrariar o regime jurídico de reconhecimento da receita decorrente da prestação de serviço, ele não poderá ser adotado para efeito de apuração do IRPJ, a despeito da ausência de norma expressa de neutralidade na Lei n. 12973, porque o ordenamento jurídico não pode ser interpretado de forma isolada, exigindo-se, em qualquer caso, não apenas a análise da referida lei, mas, também, do art. 43 do CTN, enquanto norma geral que disciplina o fato gerador e a base de cálculo do imposto de renda (art. 146, inciso III, “a”, da Constituição Federal), da noção de acréscimo patrimonial e dos princípios da realização da renda, da capacidade contributiva e da legalidade, sistematizando-os com o conceito jurídico de patrimônio e sua aquisição.

Logo, seja na compra e venda, seja na prestação de serviços, ou em

qualquer outra modalidade de contratação, o reconhecimento fiscal da respectiva receita deverá obedecer aos critérios jurídicos encontrados em nosso

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ordenamento, devendo prevalecer mesmo que a contabilidade divirja destes critérios. Isto porque, no campo do direito, inclusive do tributário, o patrimônio é aquele definido pelo Direito Privado. Assim, embora a contabilidade seja ponto de partida da tributação, nos termos do art. 6º do Decreto-lei n. 1598, de 26.12.1977, ela não é, necessariamente, ponto de chegada21, impondo-se a neutralidade fiscal quando for constatado descompasso.

7. Conclusões Por todo o exposto, podemos concluir que as regras da nova

contabilidade não podem se sobrepor ao art. 43 do CTN, norma que tem natureza de lei complementar. Assim, sempre que houver descompasso entre as regras contábeis e a legislação tributária, esta deve prevalecer para fins de apuração da base de cálculo do IRPJ. Isso quer necessariamente dizer que na contabilidade haverá lançamentos que não poderão produzir efeitos fiscais, por serem incompatíveis com o art. 43. Esses lançamentos deverão ser neutralizados por meio de ajuste no LALUR, ainda que não haja autorização expressa na Lei 12973 nesse sentido, como nos exemplos citados neste trabalho.

É bem verdade que o art. 6º do Decreto-lei n. 1598, de 26.12.1977,

prevê que o lucro real é o lucro líquido do exercício ajustado pelas adições e exclusões prescritas na legislação tributária. E que o art. 8º, inciso I, alínea “a”, do mesmo decreto-lei estabelece que no LALUR serão lançados os ajustes do lucro líquido do exercício de que tratam os parágrafos 2º e 3º do art. 6º. E uma interpretação apressada desse dispositivo, apegada à sua literalidade, poderia levar o intérprete à conclusão de que os ajustes ao lucro líquido seriam tão somente aqueles previstos nos parágrafos 2º e 3º do art. 6º do Decreto-lei n. 1598. E qualquer outro tipo de ajuste seria vedado por falta de previsão legal expressa.

Sabemos todos que a interpretação da norma não pode ser isolada,

descontextualizada e fora do sistema jurídico onde ela se insere. Qualquer dispositivo de lei ordinária que trata da incidência do imposto de renda deve necessariamente levar em consideração – em primeiro lugar – o disposto no art. 21 SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da. “Direito Tributário e Contabilidade: independência e intersecção. A convivência das duas Ciências”. Revista Tributária, n. 132. São Paulo: RT-Thomson Reuters, jan/fev 2017.

Page 25: Artigosmarizadvogados.com.br/_2017/wp-content/uploads/2018/09/...A Lei n. 11638, de 28.12.2007, e a Lei n. 11941, de 27.5.2009, instituíram profundas alterações na Lei n. 6404,

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São Paulo / SETEMBRO 2018

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43 do CTN. E qualquer interpretação de lei ordinária que conclua em desacordo com a norma da lei complementar será incompatível com o sistema e deverá ser sumariamente desconsiderada.

É por isso que no LALUR poderão ser lançados os ajustes

necessários à neutralização dos efeitos fiscais previstos na nova contabilidade, que sejam incompatíveis com o art. 43 do CTN.