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A LUA DE JOANA Maria Teresa Maia Gonzalez A edição desta obra foi patrocinada pelo Projecto Vida e teve o apoio da TVI - Televisão Independente (Dedicatória) Para o meu tio Augusto (que teve sempre tempo) e para todas as Joanas e Joões que se cruzaram comigo nas escolas.

A Lua de Joana

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A LUA DE JOANA

A LUA DE JOANA

Maria Teresa Maia Gonzalez

A edio desta obra foi patrocinada pelo Projecto

Vida e teve o apoio da TVI - Televiso Independente

(Dedicatria)Para o meu tio Augusto

(que teve sempre tempo)

e

para todas as Joanas e Joes

que se cruzaram comigo

nas escolas.

Lisboa, 28 de Agosto de 1992 (1 carta)Querida Marta,

Demorei muito para me resolver, o que no era costume. Para

dizer a verdade, no sabia que fazer. Precisava de desabafar,

tentar compreender tudo o que aconteceu e, como foste sempre a

minha nica confidente... No fazia sentido escrever um

dirio, pois dava-me a sensao de estar a escrever para mim

prpria, o que acho um bocado estranho. Talvez seja ainda mais

estranho escrever-te, mas uma forma de manter viva a tua

memria, pelo menos at entender o que se passou contigo; pelo

menos at conseguir perdoar-te...

Faz hoje um ms que tu... No sou ainda capaz de dizer a

palavra. Se calhar, porque no acredito que j no

ests aqui comigo. to difcil de acreditar!

Como sabes, hoje fiz anos. So duas da manh e estou

demasiado excitada para dormir. Vou contar-te o que recebi. A

minha me acedeu finalmente em redecorar o meu quarto - est

tal e qual como eu queria! Todo branco (paredes, tapete,

colcha, cortina) e at me mandou fazer o baloio dos meus

sonhos: uma meia-lua de madeira (branca, claro) que est

suspensa do tecto por uma corrente, mesmo no meio do quarto.

nica no Mundo! Fui eu que a imaginei. Quando quero pensar,

coloco-a em posio de quarto crescente e, quando estou

triste, rodo-a para quarto minguante e sento-me at que a

tristeza passe. O armrio velho foi para o corredor, assim,

fiquei com mais espao para danar, quando me apetece. Das

antiguidades s ficou a escrivaninha, por causa daquelas

gavetinhas todas que sempre me deram um jeito para os

segredos. Sei que acharias demais, mas tambm foi pintada de

branco! minha me tudo isto pareceu um bocado extico, mas

foi forada a comparar as minhas notas com as do Pr-histrico

(a quem comprou uma nova prancha de surf carrrima) e no teve

outro remdio. Chamou-me caprichosa e no sei que mais. No me

importei.

A av Ju deu-me uns brincos que usava quando era nova.

Disse-me: "Com 14 anos j tens idade para umas

perolazinhas..." Um amor, a minha av. O Homem do

Cro-Magnon, como costume, estava liso, portanto deve ter

pedido uns trocos me e deu-me um chocolate (sabendo

perfeitamente que sou alrgica) e um carto idiota com o

desenho de um chimpanz horrendo, que diz Ts a ficar

velhota!... Realmente triste ter um irmo assim, pacincia.

Quanto ao meu pai, deu-me mais um relgio, imagina! J tenho

uma coleco disparatada (como diz a av Ju), mas ele no deve

lembrar-se dos que me deu nos anos anteriores. Tem muito que

fazer, como sempre... Provavelmente, mandou a Lisete

comprar-me a prenda, o mais certo. Ele s sai do consultrio

para operar, como que podia ter tempo...

No que respeita festa que a minha me queria fazer,

proibi-a terminantemente e, para a convencer, tive de dizer

que no havia direito de me estragarem o dia de anos. Sem ti,

a festa no seria a mesma coisa, alm disso, no tenho vontade

de festejar coisa nenhuma. Fazer anos no assim to especial

como isso, ainda se fossem quinze...

Estou a ficar com sono, finalmente. Preciso de dormir.

Espero no sonhar outra vez contigo. terrvel!

Um beijo da Joana

P.S. Esqueci-me de contar que a minha me, como no podia

deixar de ser, resolveu trazer-me umas fatiotas l da loja

dela. Demasiado senhorecas para o meu gosto. Mas era de

esperar...

Lisboa, 1 de Setembro de 1992 (2 carta) Querida Marta,

Voltei a pensar seriamente se devia ou no continuar com

isto... Escrever-te praticamente macabro, eu sei. Mas no

posso desligar-me assim to facilmente de ti. E depois, como

ningum sabe, no podero chamar-me doida.

Hoje fui ver se comprava os livros escolares para este ano

e, quando entrei no elevador, dei de caras com o teu irmo.

No o via desde o funeral. Estava esquisitssimo e quase no

me falou. Quando samos para a rua, pedi-lhe se me dava boleia

na moto. Sabes que sempre tive medo de andar de moto com ele,

mas precisava de tentar arrancar-lhe alguma coisa. Levou-me

pendura e deixou-me em frente da livraria do senhor Jos.

Antes de me despedir, disse-lhe que seria uma estupidez se no

continussemos amigos e acrescentei que era com certeza essa a

tua vontade. Respondeu-me, sem olhar para mim: "A Marta

morreu, Joana. Como que tu podes saber quais so os desejos

dela?..." A voz era mais seca do que o deserto do Sara, e eu

percebi que ele estava to revoltado como no ltimo dia em que

nos encontrmos. Julgo que ainda no aceitou a realidade.

Tambm, quem que pode aceitar?!

Um dia destes vou procurar o teu irmo. Ainda no tive

vontade de voltar l a casa, mas os teus pais insistiram para

que eu continuasse a ir. Foi muito simptico da parte deles. A

verdade que no sei o que hei-de dizer-lhes quando os vir.

Nunca pensei ter to pouca coragem. Pode ser que daqui a uns

tempos.. Um beijo da JoanaLisboa, 10 de Setembro de 1992 (3 carta) Querida Marta,

A ltima semana foi uma das piores da minha vida. Quase

todas as noites tive pesadelos contigo... Quis falar com o meu

pai, mas ele foi a Paris, a um congresso qualquer e, quando

voltou, encafuou-se logo no consultrio. Talvez haja alguns

comprimidos que me faam deixar de ter pesadelos. Espero bem

que haja, se no fico maluca! claro que nem falei do assunto

minha me, entrava logo em pnico e punha-se a receitar

coisas da sua autoria, como de costume. De vez em quando, deve

lembrar-se de que, antes de ser dona de um pronto-a-vestir,

foi enfermeira... Tem a mania que percebe de remdios, mas

sabe menos do que eu.

Como a ltima semana foi tenebrosa, passei horas e horas

sentada na minha lua (em quarto minguante) a ver se conseguia

imaginar alguma coisa divertida para fazer, mas no consegui,

portanto pus-me a ler - no foi divertido, mas ajudou-me a

passar o tempo.

Estou morta por que comecem as aulas. Sei que vai ser

horrvel no te encontrar na escola, mas, pelo menos,

distraio-me. Um beijo da Joana

Lisboa, 12 de Setembro de 1992 (4 carta) Querida Marta,

Enchi-me de coragem e fui ontem a tua casa! Assim que me viu

entrar, o Diogo saiu como uma flecha, dizendo que tinha de ir

comprar uma coisa... Os teus pais pediram-me que o

desculpasse, que ele ainda no est nada bem.

No princpio, ficmos os trs na sala sem sermos capazes de

olhar uns para os outros. Foi desgastante! O tempo passava e

nenhum de ns conseguia romper aquele silncio que pesava mais

que chumbo. Ento, a tua me levantou-se, enquanto o teu pai

pegava no jornal, e disse: "H umas coisinhas da... Marta, que

ela devia gostar que ficassem para ti, Joaninha. Se

quiseres..." Engoli em seco. No estava espera daquilo. A

minha cabea comeou a ficar num molho de brcolos. Nem

conseguia ver claro. Acho que me levantei e segui-a como um

autmato at ao teu quarto, sem me dar conta do que estava a

acontecer. Eu, que tinha imaginado mil hipteses de

conversa com os teus pais (tinha at ensaiado o que havia de

dizer para no os chocar ainda mais), fiquei sem fala perante

a atitude da tua me. A verdade que seria ridculo eu, com

14 anos acabados de fazer, pr-me a dizer frases feitas aos

teus pais, do tipo A vida continua, A morte faz parte da vida

e outras como estas que, de tanto serem ditas, j no devem

querer dizer nada.

A entrada no quarto foi como passar para um mundo que, de

repente, me parecia distante. Olhei para todos os cantos,

procura nem eu sei de qu e foi ento que a tua me me mandou

sentar na cadeira de palha junto janela. Olhei outra vez

minha volta. Estava tudo como dantes. Tive uma enorme vontade

de chorar, mas qualquer coisa me impediu (talvez a serenidade

incrvel da tua me). "Sei que sempre foste a melhor amiga da

Marta, praticamente desde que nasceram... Tomei a liberdade de

pr aqui de parte estas coisinhas para ti. Julgo que... Faz

como entenderes. Se no quiseres alguma...", disse ela.

Respondi-lhe imediatamente que queria tudo e, para no

explodir ali mesmo, peguei no saco, agradeci e vim-me embora

velocidade da luz.

Quando ia a entrar no elevador, cruzei-me com o Diogo.

Ento, no sei porqu, instintivamente, escondi o saco atrs

das costas, como uma criana que roubara um doce. Acho que ele

nem reparou em mim. Disse-me adeus numa voz to baixa que

quase no o ouvi. No consegui responder-lhe.

J se passou quase um dia inteirinho e ainda no tive

coragem de abrir o saco... Um beijo da Joana---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Lisboa, 14 de Setembro de 1992 (5carta) Querida Marta,

As aulas esto quase a comear e ainda bem! Quando passar a

ter de levantar-me cedo, com certeza as noites vo ser

melhores. Espero!

S esta manh consegui abrir o saco que a tua me me

entregou. Primeiro, respirei fundo, to fundo que fui invadida

por uma calma que h muito tempo no sentia. Depois, fui

retirando, uma a uma, as coisas que l estavam, sem as olhar.

Coloquei tudo na minha cama e s ento comecei a ver o que me

tinha sido oferecido com tanta amizade: a tua raqueta de tnis

(que sempre invejei); aquele cinto de cabedal que comprmos

numa feira, na excurso a Londres; o teu espectacular estojo

de desenho; a camisa de ganga que te dei uma vez nos anos; o

caderninho com as canes que tocvamos na viola; e,

maravilha das maravilhas!, a tua coleco de caleidoscpios!

Guardei tudo no gaveto da direita, debaixo da minha cama,

excepto os caleidoscpios, que ficaram em cima da

escrivaninha. Nunca te disse, mas sempre quis fazer uma

coleco como a tua; s que achei que seria imitar-te e talvez

no gostasses. Mas possvel que, mesmo sem eu te dizer, tu

soubesses como eu gostava dos caleidoscpios, j que me

conhecias melhor do que ningum. Agora, vou eu continuar a

coleccionar estes tubinhos mgicos com o maior prazer.

Nasceu-me uma alma nova, como diz a av Ju. espantoso como,

s vezes, as coisas podem transformar-nos, no ?

Um beijo da Joana Lisboa, 16 de Setembro de 1992 (6carta) Querida Marta,

As aulas comeam amanh. Acho que nunca desejei tanto voltar

escola!

Hoje, depois do almoo, resolvi ir outra vez a tua casa.

Achei que devia agradecer tua me tudo o que me tinha dado.

Pareceu-me que estava com melhor cara e, sempre atenta (ao

contrrio da minha me), reparou nas minhas olheiras, que vo

quase at ao umbigo...

O teu pai estava na sala, a fumar cachimbo. Tiveste sorte,

os teus pais sempre tiveram tempo para a famlia. O Diogo

estava no quarto e de l no saiu. Ento, como a tua me me

disse para ir falar um bocadinho com ele, bati-lhe porta, a

medo, e acabei por entrar sem ouvir resposta. Estava deitado

na cama, de barriga para baixo. Perguntei-lhe se estava

acordado e s ento balbuciou qualquer coisa como Acho que

sim.... Saltei para o parapeito e sentei-me janela.

Disse-lhe que esperava que nunca cortassem os pinheiros mansos

do passeio em frente. Ele riu-se, sem explicar porqu. Depois,

enchi-me de coragem, contei at trs (como fao antes de

saltar da prancha de 10 metros) e perguntei-lhe se ele

gostaria de ir comigo, um dia destes, ao cemitrio, levar

flores. Levantou-se de um pulo e olhou-me como se eu fosse um

extraterrestre. "Para qu?!", gritou. No sabia bem o que

dizer-lhe. De facto, esse ritual das flores no faz l muito

sentido. Respondi-lhe apenas que, realmente, talvez no fosse

boa ideia, que o que eu queria mesmo era conversar um pouco

com ele. Voltou a deitar-se, desta vez de barriga para cima, e

declarou solenemente: "Se da Marta que queres falar,

esquece. No estou interessado. Tenta com o meu pai ou a minha

me, se quiseres. Comigo no vale a pena."

Coitado do Diogo... Est muito pior do que eu pensava. Quer

fazer-se de forte, de duro, mas no percebe que mostra

exactamente o contrrio. E eu que queria tanto ajud-lo! (E

que ele me ajudasse!...)

Um beijo da Joana

Lisboa, 18 de Setembro de 1992 (7carta) Querida Marta,

Hoje foi o segundo dia de aulas e h gente que ainda est de

frias! O Miguel, o Duga, a Filipa e a Ana Rita no

apareceram, e eu sei que ficaram na nossa turma. A directora

de turma continua a ser a professora de Matemtica. Ainda bem!

Como somos os mesmos, excepo de dois repetentes, a eleio

do delegado vai ser ainda esta semana e eu, sinceramente,

espero no voltar a ser eleita. No estou com vontade nenhuma.

At j avisei que o melhor pensarem noutra pessoa, no Lus,

por exemplo. Acho que ele seria um ptimo delegado. No fim do

ano passado, teve as mesmas notas do que eu, e toda a gente

gosta dele. Eu c voto nele, como sempre. Espero que ganhe.

No primeiro dia de aulas, houve cena para saber quem havia

de ficar sentado no teu lugar, ou melhor, entre mim e a Sara.

Ningum queria... Foi muito desagradvel. Acabei por ser eu a

sentar-me na tua carteira, e o Miguel II ficou na minha.

A stora Margarida resolveu fazer um pequeno discurso de

abertura do ano lectivo e, no fim, falou um pouco de ti. Toda

a gente percebeu que ela estava comovida. At lhe custou

pronunciar o teu nome e, quando finalmente o disse, olhou para

mim, talvez procura de algum encorajamento (que eu no fui

capaz de lhe dar). O que disse foi simples, mas muito tocante.

Falou do papel da amizade e, a seguir, fez um apelo: "Por

favor, quem estiver com problemas, seja de que ordem for:

famlia, droga, namoros, etc., pode vir ter comigo e falar

abertamente. Estou ao vosso dispor." Depois do discurso, o

Joo Pedro decidiu pedir a palavra para dizer que lamentava o

que se tinha passado contigo, que tinha sido teu amigo desde o

Ciclo Preparatrio, mas que, por muito que isso pudesse chocar

(e olhou para mim), no conseguia desculpar que uma rapariga

inteligente, com uma famlia bestial, se comeasse a dar com

gente que ela sabia que andava metida em drogas. Acrescentou

que era inadmissvel, com tanta informao que h sobre o

assunto, que algum da nossa idade ainda no

conhecesse os riscos que se podem correr.

De facto, fiquei chocada. No por achar que o Joo Pedro no

tivesse razo, mas porque ele conseguiu falar com uma calma,

uma frieza que me assustou. No fim da aula, fui ter com ele e

disse-lhe que nunca se devia afirmar desta gua no beberei.

Ele no concordou. Respondeu-me que havia guas que ele, sem

dvida, nunca beberia... Ser? No fundo, talvez eu pense da

mesma maneira que o Joo Pedro e, se calhar, quis apenas, de

algum modo, defender-te. Mas, na realidade, eu tambm ainda

no consegui compreender o que se passou contigo, nem sequer

perdoar-te, Marta, embora esteja a fazer um esforo nesse

sentido. Um superesforo!

Um beijo da Joana

Lisboa, 21 de Setembro de 1992 (8 carta) Querida Marta,

Amanh o dia de anos do meu pai. Tenho andado a pensar no

que hei-de oferecer-lhe, mas ainda no cheguei a nenhuma

concluso. Esta tarde, estive quase uma hora sentada na minha

lua, a baloiar e a dar voltas cabea para ver se tinha

alguma ideia original. Ele pediu minha me para no convidar

ningum, pois logo a seguir ao jantar tem de voltar para o

hospital. Ela ficou chateadssima e disse que j tinha tudo

programado. "Ento, desprograma, B. No devias ter feito

convites sem me consultares...", foi tudo o que ele disse.

Pela primeira vez h muito tempo, senti uma certa pena da

minha me e, como quem tem pena galinha, considero que tive

um sentimento galinceo, o que me irrita um bocado.

Voltando ao assunto da prenda, a melhor ideia que me ocorreu

foi oferecer-lhe uma moldura com uma fotografia que a av Ju

me tirou o ano passado na praia. a nica fotografia decente

que tenho, isto , no estou com cara de dbil mental, como

nas outras. Pode ser que ele goste e que se lembre um pouco de

mim quando olhar para a mesa que tem no consultrio... De

qualquer maneira, resolvi escrever-lhe um carto de parabns

e, sem eu saber como nem porqu, saiu-me uma coisa que nem sei

se se pode chamar poema. assim:

s vezes cruzamo-nos no corredor

E eu acendo a luz para te ver melhor.

Jantamos juntos na noite de Natal

Porque seno at parecia mal.

Deito-me sempre sem te ver chegar

E quando acordo j foste trabalhar.

Mudei de penteado e tu nem reparaste

Chamei-te muitas vezes e nem para trs olhaste.

Apesar de tudo, no quero mais nenhum

s um pai fantasma, mas pai h s um...

Ser que duro demais? Fui sincera e pronto. Amanh, quando

a mesa estiver posta para o jantar, ponho-lhe o carto debaixo

do guardanapo. No quero que ele tenha uma indigesto, mas, se

ficar um bocado maldisposto, s lhe faz bem. Para aprender!

Vou ao centro comercial comprar a moldura. Tem de ser verde,

para condizer com o consultrio.

Um beijo da Joana-------------------------------------------------------------------------------------------------------- Lisboa, 22 de Setembro de 1992 (9 carta) Querida Marta,

So onze e meia e no tenho sono. No calculas o que

aconteceu: estivemos cinquenta minutos espera do meu pai

para jantar e ele, na maior das calmas, telefonou a dizer que

estava atrasado, que ainda tinha duas consultas e no sei que

mais, e que o melhor era irmos comendo... A minha me teve um

ataque de nervos. A av Ju, como sempre, foi acalm-la ao

quarto, e eu fiquei na sala, em frente de uma mesa estilo

Hollywood-em-festa, na companhia execrvel do Pr-histrico,

que grunhiu algumas incongruncias das quais s consegui

decifrar uma curta mensagem: estava fulo porque podia ter

ido ao cinema com uns amigos. O Pr-histrico j no fala,

s grunhe. Torna-se cada vez mais difcil descodificar o

emaranhado de sons que ele emite. A Leonilde diz que ele tem a

mania de falar em alemo s para ela no perceber... Nenhum

professor deve compreender patavina do que ele diz. Azar o

dele. Discretamente, retirei o meu carto escondido sob o

guardanapo e fui pr a moldura (sem o retrato) em cima da

almofada da cama.

Fiquei sem palavras. E eu que estava com receio de ter sido

muito dura no carto... Vou-me deitar sem esperar que ele

venha. Amanh de manh, se o vir, digo-lhe que a moldura

para pr o retrato de uma no-me-toques a quem ele tenha

tirado as rugas com uma plstica, algum que esteja a bem uns

vinte dias sem poder de todo rir!

Um beijo da Joana

Lisboa, 24 de Setembro de 1992 (10 carta) Querida Marta,

Fui outra vez eleita delegada, v l tu. E por maioria

absolutssima. S dez alunos no votaram em mim: eu (que votei

no Lus, claro), as manas Lopes (que votaram no Nuno, por quem

esto apaixonadssimas) e os dois repetentes que entraram este

ano (que votaram um no outro); os outros cinco votaram no Joo

Pedro, que ficou subdelegado. claro que a votao foi

secreta, mas, como de costume, a Sara obteve logo estas

informaes a seguir aula e veio a correr dizer-me, como se

fosse uma coisa importante.

No queria aceitar, mas no tive outro remdio. incrvel

que no percebam que o Lus seria muito melhor delegado do que

eu, mas que que se h-de fazer? A stora Margarida mostrou-se

contente e foi simptica comigo, "Fizeram uma boa escolha. A

Joana j tem dois anos de experincia como delegada e penso

que continuar a fazer um ptimo papel." Perante isto, s me

restou agradecer o voto de confiana e dizer que iria dar o

meu melhor.

A seguir ltima aula, fui ter com o Joo Pedro e dei-lhe

os parabns. Ele disse que a votao nele no tinha sido

representativa, mas que aceitava, porque era a primeira vez

que o elegiam para alguma coisa... Eu acho que ele tem um

certo complexo de inferioridade. Deve ser por gozarem com ele

por causa das politiquices. No fundo, penso que vai aproveitar

todas as oportunidades para fazer discursos e deve ter sido

essa a razo que o levou a aceitar o cargo. A Sara at me

contou que ele fez uma espcie de campanha secreta, mas no

acreditei. A verdade que ele j est cheio de ideias e

falou-me num projecto para o Natal: uma pea de teatro que vai

mexer com a escola inteira... Respondi-lhe que colaboraria no

que pudesse, mas que primeiro queria ver que projecto era

esse. "Est descansada, que no tem nada a ver com poltica",

tranquilizou-me. No entanto, custa-me acreditar...

Quando cheguei a casa, o teu irmo estava a entrar para o

elevador. Tenho quase a certeza de que me viu, mas fechou a

porta depressa e subiu. Preciso de falar com ele.

Tenho um trabalho de Histria para amanh.Um beijo da JoanaLisboa, 27 de Setembro de 1992 (11 carta) Querida Marta,

Estou pasmada com a conversa que tive com o Joo Pedro. No

me podia passar pela cabea que ele tivesse talentos ocultos

e, muito menos, que ele fosse, afinal, to sensvel. Vou

tentar reproduzir o nosso dilogo, porque julgo que o decorei

de uma ponta outra.

Primeiro, foi ter comigo ao bar e chamou-me de parte. Fez-me

sentar a uma mesa no canto mais sossegado e disse-me:

- Queria conversar contigo sobre o projecto de que te falei,

mas, antes disso, no quero deixar de te dizer que lamento

imenso o que aconteceu com a Marta e calculo que deves estar a

passar um mau bocado... Se precisares de mim, j sabes.

Fiquei de boca aberta. Acho que s consegui balbuciar:

- Obrigada, Joo.

Depois, sentou-se ao meu lado, tirou umas folhas daquela

pasta caqutica com que anda sempre e comeou:

- Ora bem, isto aqui apenas um plano. Est s em rascunho.

Deve estar cheio de erros...

Pedi-lhe que se deixasse de tretas e me mostrasse.

- Eu prefiro falar primeiro.

- Ento desembucha, que daqui a pouco toca.

- Bom, a ideia tem justamente a ver com... a morte da Marta.

Engoli em seco.

- Como?

- Ou melhor, com as causas da morte da Marta.

Explicou-me ento que, uma vez que, infelizmente, ainda h

muita gente a desconhecer certos riscos, era preciso falar

abertamente s pessoas (pais e alunos) dos caminhos que levam

autodestruio, especialmente pela droga. A ideia

fundamental do projecto fazer uma pea de teatro, escrita e

representada por alunos da nossa escola, em que se levante

esta questo com a maior clareza e, no fim da representao,

convidar peritos que orientem um debate com o pblico

assistente, sobre o tema proposto.

Fiquei entusiasmada com a ideia, embora ainda me custe

bastante falar sobre este assunto. Ento, antes de tocar para

a aula, o Joo Pedro lanou o ltimo apelo, que me deixou

embasbacada:

- Gostava que escrevesses a pea comigo, Joana. Como gostas

de escrever, acho que podias ser muito til.

Disse-Lhe que ia pensar, mas que, partida, gostava do

projecto, apesar de, neste momento, estar ainda muito chocada

com o que aconteceu contigo. Para me convencer, disse que s

iria fazer-me bem colaborar com ele, pois seria uma forma de

encarar a realidade de uma maneira mais objectiva.

O rapaz tem patu at dizer basta!

Vou pensar.

Um beijo da Joana

P.S. Ontem, foi o concerto do Michael Jackson. Pensei em ir,

mas sem ti no teria piada nenhuma. Fiquei em casa a ler.

Lisboa, 29 de Setembro de 1992 (12 carta) Querida Marta,

Ontem, depois do jantar, subi at tua casa, como tantas

vezes fazia... A tua me disse-me que o Diogo estava no quarto

e eu fui at l, espera de outra rejeio, para variar...

Encontrei-o mais bem-disposto do que nos ltimos dias e

aproveitei para meter conversa de uma forma directa. Disse-lhe

que achava que ele me tinha visto no outro dia e que subira no

elevador sem me falar porque no tinha querido enfrentar-me.

Fez cara de espanto, mas disfarou mal. "Ests parva! Porque

que eu no havia de querer falar-te?!", perguntou, sem tirar

os olhos de um livro de B.D. que tinha no colo. "Porque ainda

no foste capaz de aceitar a ideia da morte da Marta",

respondi, esperando que ele virasse os olhos para mim. Virou.

"Olha quem fala! Tu que ainda no meteste na cachola que a

Marta morreu e ponto final", exaltou-se. Para o acalmar (e

tambm porque a verdade) disse-lhe que ele tinha razo, mas

que, precisamente por isso, precisava da ajuda dele para

compreender e aceitar. "Compreender o qu?", voltou a

enervar-se, "Uma pessoa nasce, vive e morre. Acabou-se. H

quem morra de velhice e quem morra de estupidez. A Marta

preferiu ser estpida. Que que queres que faa agora? No

posso ressuscit-la, pois no?!". Disse estas palavras

praticamente a gritar. Depois, vendo que eu estava quase a

chorar, acalmou-se um pouco e disse: "J no h nada a fazer,

Joana. Pe isto na tua cabea, que o melhor.

Sentei-me no cho, sobre o almofado de xadrez. Ele voltou aos

quadradinhos, como se eu me tivesse ido embora. "Eu sou

diferente de ti, Diogo, gostava de saber quem eram afinal

aqueles punks com quem ela andou metida nos ltimos trs

meses. Acabei por no conhecer nenhum deles", disse, ao fim de

um silncio prolongado. "No conheceste e no perdeste nada

com isso, Joana. Como podes calcular, se no fores burra de

todo, no so flor que se cheire", respondeu, fechando o livro

de banda desenhada. E acrescentou: "So todos iguais,

rapariga. Aqui, na China, no fim do mundo, tudo a mesma

carneirada. Feios, porcos e maus. Comeam por um simples

charro inofensivo e acabam onde se sabe. Queres conhec-los

para qu, h? No vejo qual o interesse".

Embatuquei. Por fim, acabei por dizer-lhe que no acho que

um simples charro possa ser inofensivo. Ele encolheu os

ombros. Tive vontade de falar-lhe do projecto da nossa pea de

teatro, mas achei que ele no tinha pacincia para me ouvir.

No quis abusar. Pode ser que, da prxima vez, consigamos

conversar com mais calma. No quero perder tambm o Diogo...

Um beijo da Joana

P.S. A av Ju contou-me que o meu pai ficou triste por causa

do que eu lhe disse sobre a moldura. Como no tem vindo

jantar, nem sequer tenho hiptese de lhe pedir desculpa, no

?

--------------------------------------------------------------------------------Lisboa, 3 de Outubro de 1992 (13 carta) Querida Marta,

altamente injusto o que pensvamos do Joo Pedro. Ele tem

sido incansvel com o projecto da pea de teatro e quer

mobilizar toda a gente. At convidou as Lopes! Claro que elas

disseram logo que no, que no tinham jeito, mas ele

convidou-as, mesmo sabendo que elas querem ver a caveira dele!

A professora de Portugus tambm anda entusiasmada e quer

colaborar. A Cludia diz que tem uma tia com jeito para

costurar e que lhe vai pedir para ajudar no guarda-roupa. O

Joo Pedro e eu j comemos a trabalhar na pea e no est a

ir nada mal. Como tudo dilogo, est a ir depressa. A

directora de turma j falou do projecto ao Conselho Directivo

e parece que eles querem apoiar. Como, ainda segredo...

Disse ao Joo Pedro que o Lus tambm tem jeito para escrever

e que podia dar-nos algumas ideias. Ele concordou, nem sei

como! Enfim, est tudo a andar.

C em casa, o costume, com uma pequena variante folclrica:

o Homem das Cavernas, para alm de continuar a deixar crescer

aquela trunfa, resolveu usar brinco (uma prola cinzenta...) e

comprou umas botas que podem matar baratas ao canto da sala. A

minha me entrou em pnico e proibiu-o de aparecer na loja

dela naquela figura. E ele ralado... Nem sei como a me foi

capaz de lhe falar naquele tom. Acho que foi a primeira vez

que perdeu as estribeiras com o queridinho dela. O meu pai

ainda no viu o new look do primognito, alis, nos prximos

tempos nem vai ver, porque foi a um congresso em

Madrid. A av Ju pediu-me para eu conversar com o

Pr-histrico, por causa da minha me, mas acho que no vale a

pena. De qualquer maneira, como foi a av a pedir, prometi-Lhe

que ia tentar. Estou cheia de trabalhos para a escola e

amanh recomeo com o bsquete. No sei como vai ser.

Apetece-me escrever mais, mas hoje no posso.

Um beijo da Joana

Lisboa, 7 de Outubro de 1992(14 carta) Querida Marta,

Hoje, logo a seguir ao jantar, tomei uma Alka-Seltzer e fui

ao quarto do Homem do Cro-Magnon. Bati, mas, como a msica

estava aos berros, no ouviu. Entrei e encostei-me parede

para ver se ele me dava alguma ateno. Nada. Fiquei a olhar o

ambiente. J h sculos que l no entrava. Aquilo no um

quarto, nem sequer um acampamento de ciganos; uma espcie de

sala onde se planeiam revolues. Posters asquerosos por todo

o lado (at no tecto), um derivado de tapete pintado por ele

(num dia em que deve ter dormido mal), um cabide-espantalho

onde pendurou o capacete da moto, e restos de autocolantes

chapados no armrio e nas janelas. Compreendo agora porque

que a minha me se recusa a l entrar. Coitada da Leonilde!

Cada vez que lhe vai fazer a cama sai a queixar-se de que vem

de l maluca.

Quando a msica acabou, o meu excelentssimo irmo reparou

finalmente que no estava s, na tranquilidade buclica do seu

casulo.

- Que que queres? - resmungou.

- A av pediu-me que falasse contigo.

- H? - grunhiu.

- Sobre o teu novo visual...

- Que que tem?

- Tem muito estilo, mas c em casa parece que no so dessa

opinio, v l saber-se porqu!... - gozei.

- Hum... - murmurou, enquanto escolhia outro CD.

- Pois . De maneira que ser melhor cederes em alguma

coisa: brinco, cabeleira ou... botas. Mas, se fosse a ti,

comeava pelo cabelo.

- Era s o que faltava! - indignou-se.

- No. Mesmo que comeces pelo cabelo, ainda fica a faltar

muita coisa...

- Desinfecta, que eu no tou com pachorra. Quero ouvir a

minha msica, ts a perceber?!

Desinfecta?! preciso ter lata! Todo infectado deve estar

aquele quarto 24 horas por dia! Rodei sobre os calcanhares e

sa. Ele ficou sentado no tapete, de olhos fixos nas biqueiras

das botas de sete lguas, a fazer movimentos de autista. Se

calhar, isso mesmo! O Pr-histrico sofre de autismo e

ningum da famlia sabe! Fui eu que descobri! Preciso avisar

algum, mas o nico familiar num raio de vinte quilmetros a

av Ju e ela no deve saber o que so autistas.

Bom, de qualquer forma, j fiz a b.a. do dia. To cedo no me

peam para comunicar com o cavernoso. deprimente! Ainda bem

que tomei a Alka-Seltzer...

Um beijo da

Joana

P.S. Dia 10 vai haver um concerto dos GNR em Alvalade. O

Homem das Cavernas arranjou bilhetes para o relvado, mas no

me apetece ir. L da turma s o Joo Pedro que vai.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------Lisboa, 15 de Outubro de 1992(15 carta) Querida Marta,

H muito tempo que no escrevo, porque tenho andado

ocupadssima com as coisas da escola: aulas, teatro,

associao de estudantes, e ainda o bsquete. Por falar em

bsquete, ontem, no treino, ca e torci um p. Doa que se

fartava, de maneira que, como nestas coisas s confio no meu

pai, fui ao consultrio, sem avisar nem nada. Quando entrei, a

Lisete, sempre simptica, gostou imenso de me ver e disse-me

que o meu pai no devia demorar. Qual qu! Esperei trs

quartos de hora. Estava quase a ir-me embora quando ele

apareceu na recepo e me olhou como se eu fosse a

mulher-aranha ou coisa parecida. Perguntou-me que fazia eu ali

quela hora e, depois de lhe contar o sucedido, l me mandou

entrar para o gabinete. Viu-me o p, ps-me uma pomada,

ligou-o e disse que eu estava fina. No entanto, achou que eu

no podia ir aos treinos durante uma semana. Que seca!

Em cima da secretria, l estava a moldura que eu lhe

ofereci nos anos, com uma fotografia da minha me, do tempo em

que ela tinha o cabelo s de uma cor... Uma autntica relquia

que eu nem conhecia. Subitamente, arrependi-me de no lhe ter

dado a minha fotografia tirada na praia, mas no Lhe disse

nada. Como me viu a olhar para a moldura, sorriu e disse: "Foi

uma bela ideia, filha. A outra que eu c tinha partiu-se". Fiz

tambm um sorriso que agora no sei definir e perguntei-lhe se

ia jantar. Que sim, mas tarde, l para as dez. J era de

esperar. Despedi-me e, quando ia a sair, chamou-me: "Espera

a. Que cara essa? Sabes perfeitamente que eu tenho muito

que fazer, Joana. Por mim, claro que ia para casa mais cedo,

filha. Tomara eu ter tempo para jantar com a famlia!" No

acreditei, mas voltei a sorrir, porque no tinha nada para

dizer. E percebi que os sorrisos servem para uma data de

coisas, como por exemplo para tapar buracos que aparecem

quando o mar das palavras se transforma em deserto.

Quando cheguei a casa, o Pr-histrico estava na cozinha a

discutir com a av Ju. Ela dizia-lhe que ele nem parecia um

rapaz de boas famlias, ele argumentava que se estava pouco

ralando para o que parecia ou deixava de parecer, que o cabelo

era dele, a orelha era dele e os ps eram dele! Malcriado at

dizer chega... Coitada da av! Entrei de rompante (at o p se

queixou...) e dei um berro: "Esqueceste-te de dizer que a m

educao e a estupidez crnica tambm so tuas! E desaparece

daqui, que podes pegar isso a algum! DESINFECTA!"

Falei com tal autoridade que ele saiu mesmo da cozinha, a

mastigar um palavreado qualquer que ningum entendeu e ainda

bem. A av Ju ficou desfeita. Ainda por cima, pediu-me para eu

ter pacincia com ele e disse-me que a minha me acha que ele

ainda est muito traumatizado por ter chumbado o ano passado!

o cmulo! Traumatizada estou eu por ter de o aturar desde

que nasci.

s oito em ponto chegou a minha me, cheia de sacos com

coisas para a casa. Refilou logo porque buzinou e eu no fui a

correr ajud-la a tirar a tralha do carro. Mas que mal fiz

eu?! Respondi que havia mais gente em casa (se que se pode

chamar gente ao Homem das Cavernas, agora mais conhecido por

Traumatizado). Resultado: pregou-me um sermo naquele tom de

voz de agulha de injeco, que ela usa quando quer furar os

tmpanos de algum. Nem reparou que eu tinha o p ligado!

Porque que no ests aqui comigo, Marta?!

Acho que vou hibernar para o Havai, este Inverno.

Um beijo da Joana

Lisboa, 20 de Outubro de 1992 (16 carta)Querida Marta,

Afinal, o meu pai exagerou. O p j est mais que bom.

Amanh vou aos treinos, d por onde der.

Emagreci dois quilos desde o Vero e ningum nesta casa

reparou, nem a av Ju! Andam todos preocupados com o

Traumatizado. Acho que at o querem levar a um psiclogo,

imagine-se! Ele anda radiante, claro. J deve ter percebido

que pode comear a inventar desculpas para o prximo chumbo

que vai apanhar se continuar com as notas que tem tido. Onde

que j se viu levar-se um Pr-histrico a um psiclogo s

porque resolveu furar uma orelha e ter um cabelo como a Eva? A

minha av diz que por causa do desinteresse dele pelos

estudos, nos ltimos tempos. Uma ova! Ele nunca se interessou

por nada de jeito! O ltimo plo de atraco decente que ele

teve foi a chucha, que s largou com quatro anos. Acho que, a

partir dessa altura, nunca mais se interessou por nada normal.

Qual psiclogo qual carapua! Deviam era arranjar-lhe um

psiquiatra, isso sim.

Mudando de assunto, a pea est quase acabada! Falta o

ttulo e pouco mais. J a mostrmos professora de Portugus

e, na opinio dela, s necessrio dar uns retoques. Penso

que ficou impressionada. E eu tambm, especialmente com o

trabalho do Joo Pedro. Quem diria, hein? Um dia destes, vamos

fazer a seleco de actores. H muita gente interessada l na

turma. Espero que corra tudo bem, que para desgraas bem

basta c em casa...

Vou fazer os exerccios de Matemtica.

Um beijo da Joana

Lisboa, 21 de Outubro de 1992(17 carta) Querida Marta,

Muitas novidades! Primeira: os actores para a nossa pea j

foram seleccionados (o jri era composto pela professora de

Portugus, pela directora de turma, pelo Joo Pedro e por

mim). Acho que fizemos uma escolha justa, mas, evidentemente,

houve algumas reclamaes...

Segunda novidade: estou contente por ter optado por Sade.

Agora tenho quase a certeza de que vou para Medicina. O

professor fantstico! pediatra, tem 29 anos e lindo de

morrer! Um po! Um gato! Um tigre! Nunca te falei dele antes

porque achei que era s um entusiasmo passageiro; mas no.

Toda a gente o adora, at as manas Lopes (acho que deve ser a

nica pessoa de quem no dizem mal)! Anteontem, recebi o

teste, e ele, no fim da aula, chamou-me e deu-me os parabns:

"Tu gostas mesmo disto, no gostas, Joana?" J sabe o meu

nome, no o mximo?! O meu pai que no pense que eu quero

seguir Medicina por causa dele, no. O mais curioso que, at

anteontem, estava mesmo convencida de que era por causa do meu

pai. Que parvoce!

Terceira novidade: o Traumatizado foi ao psiclogo. Chegou a

casa perdido de riso (mas a disfarar o melhor que podia), a

dizer que ningum podia agora contrari-lo, que um jovem com

problemas de rejeio... Que tristeza! Que foi que eu fiz para

me ter sado um irmo assim?! At a av Ju ficou comovida.

Nesta famlia esto todos diminudos. S espero que no seja

contagioso. Agora, a minha me (que j lhe fazia as

vontadinhas todas) est sempre a fazer-lhe festas na cabea

(at j se esqueceu da impresso que lhe fazia aquela juba

leonina). Enfim, misrias.

Acabaram-se as novidades. Para a semana tenho jogo contra o

Sporting. No vai ser canja.

Um beijo da JoanaLisboa, 23 de Outubro de 1992 (18 carta) Querida Marta,

J encontrmos um ttulo para a nossa pea. Vai chamar-se Os

Amigos da Ona. O Joo Pedro sugeriu De quem a Culpa?, mas

eu achei que, com um ttulo daqueles, ningum iria assistir

representao. A palavra culpa muito forte e, alm disso,

iria parecer que queramos atacar os espectadores. Tambm j

decidimos o que vamos fazer com o dinheiro dos bilhetes. Por

unanimidade (coisa rarssima!), resolvemos que iramos

arranjar decentemente a nossa sala de convvio, como sempre

sonhmos: pintar as paredes, consertar as cadeiras, comprar

uns almofades para o cho e, se o dinheiro chegar, uma

aparelhagem. A representao vai ser no auditrio grande, cabe

imensa gente. Espero que os pais apaream em fora. Os

bilhetes para eles so mais caros, evidentemente. bvio que

nem vale a pena dizer ao meu pai para ir e, quanto minha

me, no iria perceber nada. Talvez convide a av Ju, se ela

tiver pacincia, ir.

Uma curiosidade: tenho reparado que o professor de Sade o

nico a quem ningum chama stor; todos dizem senhor doutor.

Deve ser porque mdico, ou ento porque giro.

Agora, uma notcia pssima: voltei a ter pesadelos

contigo... A noite passada devo ter dormido, no mximo, trs

horas. Assim no d! Eu bem me esforo por no pensar em nada

quando me deito, mas no consigo. Est tudo to presente na

minha memria! como se tudo tivesse acontecido ontem. Talvez

esta histria da pea tambm esteja a contribuir para isto.

Agora, no posso voltar atrs.

Um beijo da Joana

---------------------------------------------------------------------------------------Lisboa, 27 de Outubro de 1992(19 carta) Querida Marta,

Ganhmos ao Sporting! Nem o treinador estava espera! Este

ano no quero faltar uma nica vez aos treinos. Est decidido.

A pea est, finalmente, acabada. Parece-me que ficou bem.

Vamos l ver se o estimvel pblico gosta... O Joo Pedro anda

todo entusiasmado, at se ri sozinho pelos corredores. J nem

fala de poltica nem nada!

O Traumatizado, desde que anda no psiclogo (vai l duas

vezes por semana), est bastante pior, embora isso fosse

impossvel de prever. C em casa toda a gente lhe faz mimos

como se ele fosse um beb. Agora, a Leonilde cozinha

especialmente para ele! Enfim, tornou-se naquilo que sempre

quis ser (e j era quase): o centro das atenes. At o meu

pai tem feito um esforo por chegar a casa antes de nos

deitarmos, fenmeno nunca antes visto. Resumindo, ele est

mais insuportvel do que era e continua a fazer o que quer e

lhe apetece. Balda-se s aulas, veste-se que parece

maluquinho, s ouve msica aos berros, etc.

Ah, verdade, resolvi que vou inscrever-me na Liga

Portuguesa para a Proteco da Natureza. A Filipa tem uma

amiga que scia e diz que se fazem coisas interessantes.

Hei-de arranjar tempo para l ir. Fica em Benfica.

Tenho de pedir av Ju que me ajude a forrar o gaveto onde

pus as coisas que a tua me me deu. J comprei papel (branco,

claro). A telenovela deve estar a acabar, vou sala falar com

a av.

Um beijo da Joana---------------------------------------------------------------------------------------------------------Lisboa, 1 de Novembro de 1992 (20 carta)Querida Marta,Estive a manh inteirinha sentada na minha lua (em quarto

minguante). Hoje dia de Todos os Santos e..., amanh, de

finados (detesto esta palavra). Depois do almoo, fui l

acima ver se encontrava o Diogo. Os teus pais tinham ido ao

cemitrio e ele estava na sala a ouvir msica com headphones,

talvez para se esquecer do dia de hoje. Disse-lhe que tambm

estava sem vontade de fazer o que quer que fosse, excepto ir

dar um passeio a p. Por incrvel que parea, ele

levantou-se do sof, desligou a aparelhagem e disse: "Anda

da".

J na rua, pediu-me que esperasse um bocadinho e voltou a

entrar no prdio. Pouco depois, estava de volta com dois

capacetes (um era o velho dele que passou para ti). Estive

para lhe dizer que preferia andar, mas no quis

contrari-lo. Montmos na moto sem dizer palavra e o Diogo

arrancou em direco a Belm.

Quando chegmos perto do rio, parmos e vi-o dirigir-se para

a beira do Tejo como se esperasse l encontrar alguma coisa.

Segui-o sem fazer perguntas. Foi ento que ele gritou: "Ests

a ver esta porcaria, ests a ver esta poluio toda? Este rio

onde nenhum peixe consegue viver?" Respondi-lhe um sim em d

menor. " isto a vida, a nossa vida, percebeste?", voltou a

gritar. Depois, sentou-se na pedra e eu sentei-me tambm, um

pouco assustada, devo dizer. Ficmos a uns dez minutos em

silncio absoluto e, quando aquilo j comeava a tornar-se

insuportvel, pedi-lhe para irmos embora, que estava um frio

de rachar. Levantou-se e voltou a aproximar-se do rio. Ento,

com uma voz que eu no lhe conhecia, exclamou, revoltado: "Que

raio que aqueles dois foram fazer ao cemitrio, caraas?!

Flores? Para qu? Para quem? Porqu?!"

No soube responder-lhe. Creio que se sentiu culpado de no

ter ido com os teus pais e foi aquela a maneira de desabafar.

Ou talvez no. Que que eu sei de psicologia...

Quando entrmos no prdio, entreguei-lhe o capacete, mas ele

devolveu-mo, que no lhe fazia falta. E entrmos calados como

pedras no elevador.

Que farei com este capacete? Nem no gaveto me cabe!

Marta, Marta, onde que tu ests? Para que morada hei-de eu

mandar-te flores? S espero que no cu que for o teu haja

espao para todas as coisas que eu vou levar comigo para te

devolver. Sinto que nada do que me foi entregue me pertence de

verdade, excepto, talvez, os caleidoscpios...

Um beijo da Joana

Lisboa, 10 de Novembro de 1992 (21 carta) Querida Marta,

Tenho pensado tanto no Diogo! Como eu gostaria de saber

ajud-lo! um sentimento diferente do que tinha dantes. Ele

era assim como um irmo (aquele que eu preferia ter em vez

do Pr-histrico); agora, nem sei definir o que sinto em

relao a ele. como se eu gostasse de poder ser me do

Diogo... Sei que estranho, mas a verdade que s vezes me

lembro dele quando me vou deitar e apetecia-me ir l acima

ajeitar-lhe o cobertor, passar-lhe a mo pelos cabelos. , de

facto, esquisito, mas assim. Por outro lado, acho que no

tenho jeito para ser me de ningum, nem de mim mesma.

Pensando bem, havia de haver uma escola para mes. Se um dia

algum seguir esta ideia brilhante, vou a correr matricular a

minha me, porque... enfim, por razes evidentes.

Outro assunto: o capacete que era teu sempre ficou no meu

quarto. Como no devo us-lo, pu-lo sobre a escrivaninha,

virado ao contrrio, com os meus pincis l dentro. A minha

me disse que a ideia disparatada, o que equivale a dizer

que foi genial.

Um beijo da Joana --------------------------------------------------------------------------------------------------------- Lisboa, 15 de Novembro de 1992 (22 carta) Querida Marta,

Muitas coisas aconteceram nestes ltimos dias. Na escola

tive de assistir a um Conselho Disciplinar. O Ninja andou

tareia com o Paulo e ps-lhe a cara num bolo. E o pior que

tudo isto aconteceu na aula de Desenho... L fui chamada ao

Conselho e fartei-me de falar, a tentar defender o desgraado

do Ninja, que, para cmulo, tem umas notas miserveis. Percebi

que todos os professores estavam com m vontade, pois a

verdade que ele tambm no liga nada s aulas. L disse que

o Paulo que tinha comeado, que lhe chamara nomes me e,

no fim, como vi pela cara dos profes que no estava a

convencer ningum, dei o golpe de misericrdia: lembrei-me do

Pr-histrico e desatei a inventar que o Ninja um

traumatizado, que ficou muito abalado com a morte da av e com

o divrcio dos pais, e sei l que mais eu disse. Devo ter

feito uma cara to sria que acho que acabaram por ficar

comovidos. No fim, a directora de turma chamou-me para me

comunicar o castigo que tinham dado: dois dias de suspenso.

Acrescentou que, no incio, tinham pensado numa semana, mas

que os meus argumentos tinham sido um esclarecimento

importante. Pediu-me para no dizer nada a ningum, pois, como

sempre, ela quem vai dar a notcia ao Ninja e aos pais.

Sa do Conselho satisfeita com os resultados e, quando

entrei na sala de aula para ir buscar a mochila , o Ninja

apareceu, ofegante, a pedir-me por tudo para lhe contar o que

tinha ficado decidido. Respondi-lhe que a stora Margarida

que queria falar com ele. Ento , o pobre Ninja ajoelhou-se e

fez uma cena de fazer chorar as pedras da calada. L me

prometeu que no diria nada, e disse-lhe que iria ficar dois

dias suspenso. Respirou fundo. Pensava que iria uma semana

para casa e, nesse caso, segundo ele, o pai mat-lo-ia...

Quando j me ia embora, lembrei-me das minhas invenes e

chamei-o: "Olha, Ninja, se a stora Margarida te perguntar pela

tua av, tu dizes que morreu e que isso te deixou paranico,

ouviste?", avisei-o. "Qual das avs?", quis saber o Ninja. No

me tinha lembrado daquele pormenor. Como, para mim, av h s

uma, no pensei no assunto. "Uma qualquer", respondi. "Mas,

quando eu nasci, j as duas tinham morrido!" Acabei por

dizer-lhe que, nesse caso, no era mentira nenhuma dizer que a

av morreu sim senhora, o que foi uma grande pena. Depois,

aconselhei-o a deixar os golpes de karate para o ginsio onde

ele vai e a ver menos filmes de artes marciais e outros do

gnero. Agradeceu-me: "s um anjo, Joaninha. Eu votei sempre

em ti para delegada desde o stimo ano!"

Quanto nossa pea de teatro, os ensaios j comearam, e o

guarda-roupa est a ser pensado. A professora de Desenho l

concordou em ajudar nos cenrios que, alis, vo ser muito

simples. Percebemos que ela, afinal, no estava para se ralar,

mas aceitou, para no ficar mal vista.

A Leonor, que anda no bsquete comigo, foi operada ao

apndice e est a faltar aos treinos h um tempo. uma pena

se ela no voltar. Tenho de telefonar-lhe a anim-la.

Acabei de ler Viagem ao Mundo da Droga. deprimente e foi

uma estupidez da minha parte. Agora, mais do que nunca, passo

as noites com pesadelos. O Joo Pedro que me deu a ideia.

Antes me tivesse dito para ler o Tio Patinhas...

Um beijo da Joana

Lisboa, 17 de Novembro de 1992 (23 carta)Querida Marta,

A minha me, que j h muito tempo no tinha ideias

estramblicas, resolveu mandar redecorar a loja dela. Acho que

foi essencialmente para poder fazer uma festa de reabertura...

Ela pela-se por cocktails e snobeiras do gnero.

Ontem, vi o Diogo com uma amiga nova, ao p do caf da nossa

rua. No percebi se eram namorados. Ela ruiva e ainda mais

alta do que eu. Parece o Adamastor. Deve ter alguma beleza

interior, como diz a minha av. Espero que seja boa companhia

para o Diogo, que bem precisa.

Comprei um livro de poesia de Sophia de Mello Breyner.

espectacular! Acho que vou decorar a maior parte dos poemas.

Esto a bater-me porta. Tenho de acabar por aqui.

Um beijo da Joana

Lisboa, 20 de Novembro de 1992(24 carta)Querida Marta,

O Traumatizado est de tal forma anormal que resolvi

escrever uma carta ao psiclogo que o anda a tratar. Dizia

assim:

"Caro Senhor, Chamo-me Joana e sou irm do Jorge C. R. de

Brito que tem ido s suas consultas.

Escrevo-lhe porque estou bastante preocupada com a sade

mental do meu irmo e com as mudanas estranhssimas que tem

havido na minha casa desde que o senhor comeou a trat-lo.

No quero ofend-lo, mas, realmente, se ele j no era bom da

cabea, agora est francamente pior, o que o mesmo que dizer

que, se ele estava beira do abismo, acabou por dar um grande

passo em frente...

Desculpe a minha sinceridade, mas isso de aconselhar a minha

me a no o contrariar tem dado pssimos resultados, seno

vejamos: ouvia a msica aos berros; agora, preciso de tampes

nos ouvidos quando vou estudar. Andava maltrapilho como um

palhao pobre; agora, anda mal vestido como um palhao rico.

Fumava s escondidas, portanto, s quando estava no quarto;

agora, fuma a toda a hora e em qualquer lugar, o que polui o

ambiente da casa. Estudava s quando tinha testes; agora, nem

quando os tem. Tratava mal a nossa empregada; ontem, ela

ameaou despedir-se. Tinha o quarto num pandemnio e, agora,

j ningum l consegue entrar porque h entulho desde a porta

at cama.

Por tudo isto e outras coisas mais que o senhor deve

calcular, venho pedir-lhe que mude de tctica, pois, assim,

isto vai de mal a pior e quem o atura sou eu e a minha av.

Ningum sabe que lhe escrevi, de maneira que gostaria de

pedir-lhe que no revelasse a ningum o contedo desta carta.

Agradeo o tempo que me dispensou e espero que reveja a sua

actuao.

Os meus respeitosos cumprimentos Joana B."

Fao votos de que ele leia com ateno a minha carta e de

que no conte nada ao Pr-histrico. Acho que no o far por

uma questo de tica profissional, que uma coisa que os

mdicos tm de ter e os psiclogos tambm, julgo eu.

A Leonilde, que, de facto, pediu a demisso, j no se vai

embora. A av Ju e eu falmos com ela e pedimos-lhe que

tivesse pacincia, porque no h mal que sempre dure e o

Traumatizado no pode ficar assim para o resto da vida.

Esperemos que seja verdade. men!

Um beijo da Joana -------------------------------------------------------------------------------------------------------- Lisboa, 25 de Novembro de 1992 (25 carta) Querida Marta,

Os ensaios da pea esto a decorrer o melhor possvel. O

Joo Pedro sugeriu que eu fizesse uns cartazes para espalhar

pela escola e, se tivesse tempo, que fizesse tambm os

convites. Os convites iro para: o presidente do Conselho

Directivo, a nossa directora de turma, os presidentes da

Associao de Pais e da Associao de Estudantes e ainda, a

meu pedido, os teus pais, j que a pea foi inspirada em ti.

Contamos que toda a gente aparea!

No recebi resposta do psiclogo. Espero que tenha lido a

minha carta! O Traumatizado continua na mesma...

O meu pai foi outra vez a Espanha e trouxe-me, para variar,

um relgio... Disse que daqueles ainda no havia c, que lhe

garantiram que o ltimo grito da moda. Tenho uma gaveta

cheia de relgios, quase todos oferecidos por um pai que nunca

chega a horas...

A minha me anda a fazer os preparativos para

a reabertura da loja. com estas banalidades que ela se

entretm. J mandou fazer um vestido para o cocktail e

disse-me para eu escolher uma roupa para ir. Ia dizer-lhe que

no, mas a av Ju olhou-me com cara de caso e eu compreendi

que era prefervel no abrir a boca. Depois, pensando melhor,

percebi o que a minha av deveria estar a querer dizer-me com

aquele olhar: o meu pai, com certeza, no tem tempo para ir, a

av Ju cada vez mais raro sair de casa, por causa das

pernas, e o Homem das Cavernas s iria dar bronca. Estou a ver

que tenho mesmo de ir eu, para salvar a honra da famlia...

Tenho de estudar Geografia. Para a semana h teste e a

professora no sabe dar a matria nem impor respeito. Aquelas

aulas so uma balda.

Um beijo da Joana

Lisboa, 29 de Novembro de 1992 (26 carta) J lemos, falta resumir Querida Marta,

Hoje decidi recomear a pintar. Fui comprar tintas e algumas

telas Baixa, para retomar aquilo que mais gosto de fazer e

que deixei desde que tu desapareceste. J montei o cavalete,

junto da janela, e comecei uma aguarela para oferecer minha

me no Natal. No lhe digo nada por enquanto, mas estou a

pensar fazer qualquer coisa que fique bem na loja dela, que

agora est a ficar toda chique: cho de granito especial,

tecto de madeira, armrios novos, etc. Se calhar, ela nem vai

gostar, mas vou tentar.

Ontem, no bsquete, ia torcendo novamente o p , mas afinal

foi s o susto (e as dores).

O dia do ensaio geral da pea j est marcado. Quero l

estar para ver como tudo vai ficar: garda-roupa, cenrios,

luminotcnica e, claro, a representao em si. O Joo Pedro

est com ares de grande empresrio de Hollywood, sempre

atarefado a querer tratar de tudo. O pior que no tem ligado

muito s aulas e as notas dele baixaram consideravelmente.

Pelo menos, anda feliz!

Vou voltar s pinturas.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 1 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

Amanh o dia do cocktail da minha me. Ela anda

excitadssima com as toilettes e os arranjos florais e no sei

que mais. O meu pai, como era de calcular, no vai poder ir.

Disse que, assim que tiver um tempinho, passa por l para ver

como ficou. Estive a pensar que, com o dinheiro que a minha

me deve ter gasto para a festarola dela, se poderiam bem

vontade alimentar dezenas ou talvez centenas de crianas que

morrem fome todos os dias pelo mundo fora e tambm no nosso

pas. A minha me fica toda emocionada quando v aquelas

imagens terrveis no telejornal, que mostram meninos africanos

de barrigas sadas, moscas na cara e olhos do tamanho do Sol.

s vezes at chora e diz que fica sem vontade de jantar, mas

janta sempre e lembra que temos de fazer qualquer coisa para

ajudar aqueles desgraados. Depois, para no ter uma

indigesto, muda rapidamente de assunto... E eu, que farei,

quando for grande, pelos meninos de barrigas grvidas de fome?

Uma coisa certa: em cocktails no hei-de gastar dinheiro!

Agora, a grande novidade: a av Ju contou-me que o psiclogo

do Traumatizado chamou a minha me para uma conversa. Ser que

quer falar-lhe sobre a carta que lhe escrevi h tempos? Ou

ser que o Pr-histrico um caso incurvel? Pode ser que a

minha me conte tudo minha av, sim, porque comigo j sei

que no fala de certezinha. Acha que ainda sou uma criana.

Tenho visto o teu irmo com a tal ruiva que parece o

Adamastor. Aquilo deve ter pegado. Vejo-os muitas vezes no

caf e ontem at a encontrei no elevador do nosso prdio.

Estive para lhe perguntar pelo Diogo, mas no quis que ela

pensasse nada de errado. Quando o vir, falo com ele. Espero

que no deixemos de ser amigos s porque ele arranjou uma

namorada, mesmo que ela seja a verso feminina do Adamastor. E

olha que feia de meter d, a rapariga! Feia como uma noite

de trovoada. Para ele gostar dela porque a Adamastora deve

ser uma jia de pessoa. Mas, c para ns, fica muito mal ao p

do teu irmo. Esteticamente um conjunto desastroso, ainda

por cima a mida anda sempre vestida e calada de preto. Tudo

preto da cabea aos ps. E usa o cabelo quase rapado (se

calhar tem caspa...).

Esqueci-me de te dizer qe o Lus, l da nossa turma, tem

participado imenso na pea e, coisa que eu no sabia, tem um

jeito para teatro. Ajudou-nos no texto e um dos actores.

Estou orgulhosa. Sempre tive muita f naquele rapaz.

Vou sentar-me na minha lua a reler os poemas da Sophia de

Mello Breyner. No h stio melhor para os ler!

Um beijo da

Joana

Lisboa, 7 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

A ltima semana foi um corre-corre. No tive mos a medir.

Primeiro, a festa na loja da minha me (que correu menos mal,

mas para mim foi um sacrifcio). Depois, o ensaio geral, que

mostrou que ainda preciso tratar de alguns pormenores. Os

testes acumularam-se, como sempre, e a minha aguarela

ocupou-me os tempos livres, mas acabei-a: so trs manequins

numa montra, com vestidos imaginados por mim. Os tons que

escolhi so os amarelos (claros e escuros) e os laranja (com

toques de vermelho). Se a minha me no gostar porque

estragou o gosto, o que seria pssimo, j que o bom gosto a

sua maior qualidade, talvez mesmo a nica. Mostrei-o av e

ela achou bem. No sei se estava s a ser simptica, mas

talvez no.

Ainda no pensei o que hei-de oferecer ao meu pai, e o Natal

est porta. minha av vou dar um perfume, que a sua

nica extravagncia, como ela diz. Quanto ao Traumatizado, no

penso dar-lhe nada. Est farto de implicar comigo e continua a

pr a msica aos berros. Afinal, aquela histria da conversa

do psiclogo com a minha me no deu em nada de especial. A

av Ju s disse que, na opinio do psiclogo, o Pr-histrico

est a fazer progressos. No vejo em qu! Vou pedir para me

oferecerem uns culos no Natal, porque devo estar a ficar

cegueta. Tambm gostaria de oferecer uma prendinha tua

me, mas no fao ideia do que h-de ser. Vou sentar-me na

lua, para ver se me inspiro.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 20 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

Estive um tempo sem escrever, porque a verdade que andei

to ocupada que nem senti essa necessidade.

As notas do 1 perodo foram boas, mas o melhor de tudo foi

o nosso teatro, Os Amigos da Ona! Um autntico sucesso,

palavra! Estava quase a escola em peso no auditrio. A

directora de turma filmou tudo e diz que no prximo perodo

leva a cassete para a escola para todos vermos. O teu pai no

foi, mas a tua me apareceu e levou o Diogo, s que ele saiu a

meio, acho que no aguentou... Fez-se um dinheiro e o

Conselho Directivo j deu autorizao para fazermos as obras

na nossa sala de convvio. Os cenrios ficaram impecveis e o

Lus recebeu uma enorme ovao no final. Eu dei-lhe os

parabns e disse-lhe que ele tem de ser actor. Toda a gente

achou a pea comovente, especialmente os pais, e o presidente

do Conselho Directivo discursou, depois da representao, a

agradecer o nosso trabalho e a dizer que foi com certeza muito

til termos abordado um tema que no est, de modo algum,

esgotado. A tua me veio dar-me um beijo, antes de ir para

casa. Estava muito impressionada e disse que o Joo Pedro e eu

no ramos teus amigos da ona, mas sim, amigos de verdade.

Pois , Marta, ns no merecamos o que tu fizeste. Disso

tenho a certeza. Como se esperava, da minha famlia s foi a

av Ju. Sem comentrios...

Tenho de ir fazer as minhas compras de Natal, mas como que

eu fao isso sem ti?!

Um beijo da

Joana

Lisboa, 22 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

Ontem, depois de jantar, fui a tua casa. Quando entrei,

cruzei-me porta com uns amigos do teu irmo que tinham um

aspecto esquisito (esquisito piropo, eram praticamente

piolhosos - cabelo oleoso, borbulhas a dar com um pau,

colarinhos sebentos, dedos amarelos e tnis supernojentos).

Pareceu-me j ter visto um deles em tua casa e acho que o

conhecias. O Diogo conversou um bocado comigo e disse-me que

tinha acabado o namoro com a Adamastora. Afinal, no devia ser

nenhuma jia... Falou do Natal e disse que, para ele, no tem

qualquer significado. Tentei dissuadi-lo, mas no lucrei nada.

Fui tambm falar com a tua me e oferecer-lhe uns doces que

pedi av Ju para fazer. O teu pai estava de cama, com gripe.

Fui ao quarto desejar-lhe bom Natal. Quando me despedi, a tua

me comeou a chorar. Foi horrvel! No sabia que dizer-lhe,

por isso abracei-a e ficmos assim uma data de tempo, em

silncio. E o silncio falou por ns.

Quando cheguei a casa, o meu pai j tinha vindo do

consultrio. Chamou-me da sala e perguntou-me o que queria de

presente. Eu vinha ainda atordoada e no respondi. Disse-me

ento para me sentar ao p dele.

Nem me lembro j quando foi a ltima vez que isto aconteceu.

O certo que no fui capaz de conversar.

Ento, ele sugeriu um computador, sabia que eu queria um

desde o ano passado e que agora era boa altura para mo dar.

Estava muito contente com as minhas notas como sempre e

lamentou que o Traumatizado no fosse como eu... Expliquei-lhe

que o Jorge no liga nenhuma ao computador dele e que, quando

eu quisesse, podia trabalhar nele, que no valia a pena

comprar outro. "Ento que que h-de ser, filha?"

perguntou. "Pode ser... um relgio", gracejei, mas acho que

ele no percebeu a piada, porque fez um ar srio de quem ia

pensar no assunto. Depois, respirou fundo e desculpou-se: "No

pude mesmo ir ver o teu teatrinho da escola. Tive muita pena,

mas no me foi possvel. Espero que compreendas." Levantei-me

do sof, dei-Lhe um beijo e fui-me deitar.

Agora sei o que podia ter-lhe dito. O que devia ter dito.

Mas ele j no est em casa...

Como que se diz a um pai que devia ser possvel v-lo um

pouco mais do que duas horas por semana; que devia ser

possvel a um pai conhecer a filha que tem?

Acho que vou comprar o perfume para a minha av. As lojas

ainda esto abertas. Se me sobrar dinheiro, quero ver

se compro tambm uma prendinha para a filha da nossa porteira.

Reparei que olha imenso para os meus tnis e nunca Lhe vi

nenhuns. A minha me, de vez em quando, d-lhe roupas que j

no me servem, mas no Natal suposto receber-se coisas novas.

Vou sair.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 24 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

So trs da manh. A ceia decorreu como de costume. A minha

me fez um arranjo de mesa espampanante; a comida chegava para

dez famlias (l foi a av J fazer embrulhos para os pobres

da zona); as velhotas do meu pai mandaram as lampreias de ovos

da praxe, e a Lisete do consultrio fez as rabanadas. A rvore

de Natal este ano era artificial, a meu pedido. Expliquei

minha me que, com os incndios que tem havido todos os anos,

indecente cortar pinheiros para uma noite... O prespio,

como sempre, fui eu que fiz e estava rodeado de prendas quase

at ao tecto.

O meu irmo (como Natal, no lhe chamo os nomes habituais)

s ofereceu uma prenda minha me (um espelho de carteira) e,

percebendo tudo com antecedncia, a av J foi a correr buscar

umas caixinhas de bombons para ele dar ao resto da famlia...

O descarado, claro, aceitou a ideia. Eu ofereci um livro de

receitas em branco av Ju e pedi-lhe que me passasse l

todas as receitas fabulosas que ela sabe, para ficarem comigo

para sempre. av dei tambm uma saquinha para as agulhas de

tric. Entreguei o quadro minha me e ela disse que vai

mandar emoldur-lo e p-lo no quarto... Expliquei-lhe que o

tinha pintado para a loja, mas ela respondeu que para a loja,

j comprou trs que ficam a matar... A minha av ficou mais

triste do que eu. Ao Jorge no era para dar nada, mas acabei

por comprar-Lhe umas luvas de cabedal que ele disse av que

queria. Finalmente, ao meu pai ofereci uma PGiker (que levou o

resto das minhas economias) com um carto que dizia "no

telefones a dizer que no vens jantar. Escreve. Recebemos a

mensagem com algum atraso, mas muito mais original. Um beijo

da tua filha." Ele leu, sorriu e disse que a caneta era gira.

Quanto ao que recebi, vou fazer uma lista:

Av Ju - uma camisola azul feita por ela, uma cassete do

Sting, que eu queria, e um anjinho feito de acar com um

carto queridssimo que dizia "Este anjo s tu. Um beijo da

av"; Me - cinquenta mil roupas de vrias marcas e com vrios

objectivos especficos, das quais s gostei mesmo de um fato

de treino para levar para o bsquete; Padrinhos - um envelope

com dinheiro (que falta de imaginao... ); Jorge - zero (a

caixa de bombons no conta); Pai - o que que havia de ser?

No quis acreditar, mas foi mesmo um relgio. Deve ter achado

que eu queria realmente outro. No h nada a fazer...

Esqueci-me de dizer que a av Ju e eu demos um presente

Leonilde, que bem merece por nos aturar. Comprmos-lhe, a

meias, uns lenis que ela andava a namorar. Quanto filha da

nossa porteira, sempre Lhe ofereci uns tnis (tambm a meias

com a minha av, porque quis que fossem uns iguaizinhos aos

meus de que ela tanto gosta).

Agora, o mais extraordinrio: ontem tarde, vieram c a

casa entregar um embrulho para mim. Quando cheguei das

compras, abri-o e ia caindo quando encontrei um livro, A Luta

de Classes, com um carto dourado do Joo Pedro onde estava

escrito o seguinte "Como sei que curtes ler, ofereo-te este

livro que fundamental! Espero que gostes. Um beijo."

S me faltava isto! J vi que temos de arranjar bem depressa

outra actividade qualquer para o Joo Pedro, se no, volta

rapidamente e em fora s politiquices. Acabou-se o teatro,

zs!, vamos outra vez luta de classes... O pior que nem

sei o que hei-de inventar quando me perguntar se gostei do

livro. O melhor dizer que foi muito educativo. Julgo que

esta resposta deve servir. O meu pai riu-se gargalhada

quando viu e comentou que era engraado que eu tivesse um

admirador revolucionrio. Sem palavras...

No tenho sono. Acho que vou sentar-me um bocadinho na minha

lua a pensar em tudo o que aconteceu de importante desde o

ltimo Natal. Sei que vais estar sempre no meu pensamento.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 27 de Dezembro de 1992

Querida Marta,

Hoje de manh, o Diogo apareceu-me c em casa para me trazer

um presente! Fiquei radiante. Nunca pensei que se lembrasse de

mim. uma caixinha de msica toda branca (eu tinha-lhe falado

do meu quarto) com um pssaro em cima, tambm branco.

lindssima! At fiquei comovida! Agradeci-Lhe e fiquei to

embasbacada que ele riu-se e disse que no era nada de

especial e que s queria dizer que continuava a ser muito meu

amigo. Dei-Lhe um beijo to ruidoso que se deve ter ouvido no

prdio inteiro. Convidei-o para almoar c em casa, porque o

Pr-histrico est em casa de um amigo. Aceitou e estivemos os

dois imenso tempo a conversar. Quis falar de ti, mas achei que

o ia entristecer, de maneira que falmos de outras coisas. S

saiu de c s cinco horas. Foi o mximo!

Penso que vou fazer uma aguarela para dar ao teu irmo. Ao

contrrio da minha me, tenho a certeza de que ele vai gostar.

Um beijo da

Joana

P.S. Telefonei ao Joo Pedro a agradecer o livro. Ficou

histrico: "Ainda bem que gramaste, Joana. Curti bu escolher

um livro para ti! Fixe que tivesses gostado!" E eu que nem Lhe

disse se tinha lido...

Lisboa, 1 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

Nunca dei grande importncia s festas de passagem de ano. A

minha me que adora. Ainda ontem enfeitou a casa como se

fosse Carnaval e convidou um monto de gente. Fizeram um

barulho incrvel! As amigas da minha me falam altssimo e

no se sabem rir. H risos que deviam ser proibidos, so

alfinetadas nos tmpanos e irritam, at fico com pele de

galinha! O Pr-histrico, depois da meia-noite, foi sair com

uns amigos. Eu no tive vontade nenhuma de sair, nem sequer de

ficar na sala no meio da confuso. Estava cheia de sono e

fui-me deitar ainda no era uma hora. O pior foi depois. Claro

que no conseguia dormir com a barulheira e, quando finalmente

adormeci, tive outro pesadelo contigo. No sei quando que

isto acabar. Levantei-me a meio da noite a transpirar e fui

casa de banho beber gua. Por azar, cruzei-me com a tia Nicha:

outro pesadelo. Pegou-me por um brao e comeou a danar uma

espcie de valsa comigo no corredor e a dizer que eu devia

estar mais animada... As pulseiras chocalhavam-lhe nos pulsos

como badalos, e os olhos, pintadrrimos, pareciam artesanato

ndio. Assim que me livrei dela, fugi para o quarto e tranquei

a porta. Como trouxe algodo da casa de banho, enfiei uma bola

em cada ouvido e meti a cabea debaixo da almofada. s quatro

da manh, ainda estava acordada!

claro que hoje s me levantei ao meio-dia. O Homem das

Cavernas chegou s sete da manh um bocado grosso, a cantar

Knock, knock, knocking on Heavens door... Zs!, estampou-se

no hall e acordou a casa inteira. Depois, a av Ju foi lev-lo

casa de banho para ele vomitar. Nhac! No era eu! A minha

av uma santa, desculpa tudo a toda a gente. A casa de banho

ficou empestada! claro que, quando o Traumatizado se

levantou, s trs da tarde, estava com cara de zombie e ainda

cheirava a tabaco e a vinho que at enjoava. L foi o meu pai

dar-lhe um remdio qualquer para ele acordar de vez. Realmente

no sei que piada ter uma pessoa embebedar-se! Eu acho um

nojo. Absolutamente degradante.

Hoje, primeiro dia do ano, resolvi tornar-me vegetariana.

Desde que fui Liga para a Proteco da Natureza que fiquei a

pensar no horror que comer animais! indecente, porque eles

no nos comem a ns. Claro que no me vou pr a fazer

exigncias especiais Leonilde ou minha av. Vou

simplesmente comer apenas os acompanhamentos (saladas,

esparregado, etc.) e passo a beber mais leite e a comer mais

iogurtes e fruta. Se ficar com fome, encho-me de sopa (no

gosto muito, mas passo a gostar). Estou felicssima com a

minha deciso! S espero que a minha me no desate a implicar

comigo por isto.

Resolvi tambm dar as roupas que no ponho (algumas nunca

usei) aos pobres da av Ju. Tenho o armrio a abarrotar de

trapos que nunca visto e isso injusto. Nem mostro minha

me os sacos que encher, porque com certeza teria um ataque. A

verdade que no preciso de metade das coisas que tenho e

farto-me de dizer isto minha me, s que ela no percebe;

para a minha me, roupas e sapatos nunca so demais... Por

ela, s se dariam os fatos de treino, as jeans, as T shirts e

os tnis, resumindo, as nicas coisas que eu realmente uso.

E pronto. Chega de decises por hoje.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 9 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

J estamos no 2 perodo. Logo no primeiro dia de aulas,

houve cena entre o Ninja e o Joo Pedro. Foi durante o

intervalo grande da manh. Estava eu no bar a comer uma

sanduche de queijo (aboli o fiambre de vez), quando aquele

contnuo velhote, o senhor Armando, me veio chamar para ir ao

Conselho Directivo. Cheguei l e o professor Joo Antunes

disse que, como a directora de turma no estava e os dois

rapazes tinham pedido para eu ser chamada, gostaria que eu

tomasse conhecimento do que tinha sucedido com os meus dois

colegas. Fiquei sozinha no gabinete com os dois e, quando

perguntei ao Joo Pedro o que tinha acontecido para ele estar

com os culos todos tortos e o Ninja com o cabelo em p, ele

respondeu-me: "Foi aqui o Bruce Lee que comeou a chamar-me

comunide..." O Ninja defendeu-se: "E ele chamou-me neonazi,

Joana!"

Tive vontade de rir. O Ninja nem devia saber que nome era

aquele. Deve pensar que nazis so os alemes que usam bigode

igual ao do Hitler. Dei duas tossidelas e voltei a perguntar,

desta vez ao Ninja: "Qual foi a ideia de chamares comunide ao

Joo Pedro? Ele h sculos que nem fala de poltica!" O Ninja

esclareceu: "Comunide um andride comuna. isso que ele .

Uma espcie de humanide, com a mania que russo."

O Joo Pedro ia a atirar-se a ele. Separei-os. "Ouam l,

mas vocs esto na Infantil, ou qu?! Vamos, esto espera de

qu para darem um aperto de mo? Olhem que eu no tenho o dia

todo e o professor est l fora espera. Que que querem que

eu lhe diga, hein? Que esto a discutir qual dos dois mais

andride?!" O Joo Pedro olhou-me de testa franzida e

perguntou: "Tenho alguma alternativa?" "Tens. Se preferires,

podes dar-Lhe um chocho na testa", respondi na maior das

calmas.

Quando o professor Antunes entrou no gabinete, j eles

estavam a cumprimentar-se, a fingirem que nada tinha

acontecido e que eram amigos do peito. Depois, o professor

mandou-os sair e perguntou-me o que se passava com aqueles

dois caramelos. Tranquilizei-o: "Nada, stor. S tiveram uma

pequena divergncia por causa de um filme de fico

cientfica... Nem vale a pena dizer nada nossa directora de

turma. Eles j fizeram as pazes." O professor encolheu os

ombros e disse-me que eu podia ir para a aula. No intervalo

seguinte, o Joo Pedro veio agradecer-me a minha interveno

na cmara dos calores. Disse-Lhe que ele era parvo e que o

Ninja no lhe ficava atrs. Ficou um bocado amuado comigo e

no voltou a falar-me at ao fim da manh.

Os da nossa turma comearam a gozar comigo por eu levar

cenouras descascadas para comer nos intervalos. Mas ningum se

atreveu a chamar-me coelho, v l... Assumi que passei a ser

vegetariana e avisei que quem tivesse alguma coisa contra, o

dissesse na minha cara. Ningum abriu mais a boca. Nem as

Lopes!

Preciso de reorganizar o caderno de Matemtica. Emprestei

umas folhas Sara e ainda no tenho as coisas em ordem.

Um beijo da

Joana

P.S. O Traumatizado anda a fumar quase um mao por dia! Os

pulmes dele devem ser uma caverna escura igual que tem no

lugar do crebro. Aquele psiclogo deve ser um andride...

Lisboa, 13 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

O Diogo teve ontem um ataque de asma daqueles que j no

tinha h muito tempo. Os teus pais at o levaram ao hospital.

Fui v-lo hoje, assim que cheguei da escola. No quis entrar

em pormenores. Explicou-me apenas que se tinha enervado com

uma coisa estpida, mas que j passou. "Ento foi como a

anedota do jacto...", brinquei. Ele sorriu. Pareceu-me outra

vez triste. Confessou que no anda com pacincia para estudar

e que gostava de arranjar um emprego. Claro que lhe disse que

aquilo era uma coisa sem ps nem cabea. Sa de l convencida

de que ele precisa urgentemente de uma namorada, algum que o

apoie, que tenha miolos.

Se eu pudesse arranjar-lha, garanto que o faria.

A av Ju e a minha me fazem anos amanh. Como possvel

que duas pessoas to diferentes tenham nascido no mesmo dia?!

por estas e por outras que eu no acredito nessa treta dos

signos e dos astrlogos. tudo conversa fiada para imbecis.

L na aula, s as Lopes que acreditam nessa tanga. Continuam

a comprar as revistas que trazem os horscopos e tudo.

preciso ser muito ignorante!

O meu pai pediu-me para ir comprar as prendas. Era

previsvel...

Tenho de sair.

Um beijo da

Joana

P.S. O Lus inscreveu-se num clube de teatro amador. Ainda

bem que seguiu o meu conselho. Tem c um jeito!

Lisboa, 15 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

Ontem, o dia foi estafante. Com os anos das duas senhoras da

casa o telefone no parou de tocar.

Vieram c entregar uma data de ramos de flores, e o jantar

prolongou-se at s tantas, porque a famlia veio em peso.

Claro que isto tudo foi especialmente pela av Ju, porque toda

a gente gosta dela.

Fiz questo de ajudar a fazer o bolo de anos das duas, que

ficou dividido ao meio com fios de ovos. Era descomunal!

minha me comprei uma planta para ela pr na loja (desta vez,

acho que no vai ter lata de no pr l a planta). minha av

ofereci uma coisa especial: como a moldura do retrato do meu

av estava muito velhota, fiz eu uma, em madeira forrada de

tecido, e coloquei-lhe volta uma fita de seda que era de um

vestido feito pela minha av quando eu tinha 8 anos, o meu

preferido, por isso nunca deixei que o dessem. Pus l dentro a

fotografia do meu av (que ela tem sempre cabeceira) e

coloquei a prenda numa caixinha de carto (que tambm fiz).

Ela adorou e comoveu-se ao perceber de onde eu tinha tirado a

fita de seda.

O Pr-histrico, v l, esmerou-se e comprou duas caixas de

nozes caramelizadas. Nem sei o que lhe deu. Se calhar, foi o

psiclogo que lhe disse alguma coisa que o deve ter feito

pensar que, para variar, devia mostrar-se agradecido. Esta

proeza foi to notada por todos que at o meu pai fez uma

algazarra, a gab-lo por se ter lembrado das prendas. E a

minha me fez uma fita, a dizer que ele era um amor... Enfim,

lamechices, para ver se ele se modifica, est na cara.

Achei um pouco estranho que o meu pai no tivesse dito nada

sobre a minha moldura, porque, afinal, para o retrato do pai

dele. Talvez tenha sido para o Traumatizado no se sentir

inferior. Ou ento nem ligou... Bem, nem vale a pena falar

nisso.

Os meus primos gmeos tambm vieram festa. Esto ainda

mais snobes do que eram (e eles j so snobes desde os cinco

anos)! Vinham de blazer e gravata, sapato italiano e com um

perfume fortssimo que empestou a sala. Esto numa

universidade particular qualquer, porque no tiveram notas nem

para a oficial nem para a Catlica. Mas estavam cheios de

peneiras, armados em doutores. E uma sorte se conseguirem

passar do 1 ano. Trouxeram umas florzecas av Ju e s

falaram comigo para me perguntarem se eu continuava a ter boas

notas. "No", respondi com cara de atrasada mental, "resolvi

dedicar-me pesca, para ver se consigo entrar, um dia, para a

vossa universidade." No lhes disse mais nada, porque o meu

pai olhou para mim com cara de poucos amigos.

Enquanto estava a decorar o bolo de anos, lembrei-me de que

talvez seja cruel estarmos sempre a roubar os ovos s

galinhas; por outro lado, se de todos os ovos nascessem

pintainhos, o mundo era uma capoeira gigante. Por esta razo,

o facto de comer ovos no entra em contradio com a minha

nova condio de vegetariana e defensora dos animais. Fiquei

mais tranquila.

Vou-me deitar. Talvez hoje consiga dormir sem ter pesadelos.

Seria um milagre!

Um beijo da

Joana

Lisboa, 20 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

Ontem noite, ouvi a minha me conversar com a av Ju sobre

o Traumatizado. Eu ia a entrar na sala para ir buscar um livro

de Fernando Pessoa que ando a ler, quando percebi que falavam

do meu irmo. Estaquei e fiz uma coisa que no do meu

estilo: pus-me escuta. Estava com imensa curiosidade e tinha

a certeza de que, mal eu pusesse os ps na sala, mudariam de

assunto. A minha me disse que est muito preocupada, porque o

Jorginho no est motivado para o estudo... A verdade que

ele no est motivado para nada que d trabalho, mas, c em

casa, parece que s eu que percebi isso. Disse ainda que at

o meu pai anda muito ansioso, a pensar no futuro do filho.

Fiquei admirada. A coisa deve estar mesmo preta para o meu pai

se ter apercebido da situao! Estive para entrar de rompante

na sala e explicar que o que deviam era tir-lo do psiclogo,

proibi-lo de andar de moto e de ouvir msica aos berros e,

acima de tudo, arranjar-lhe um emprego nas obras. Se trocasse

o capacete da moto por um da construo civil, logo via se

ficava ou no motivado para andar a carregar com sacos de

cimento! Tive uma vontade enorme de gritar isto aos ouvidos da

minha me, mas achei que no valia a pena causar-lhe um ataque

de choro, daqueles que a fazem acordar no dia seguinte com

enxaqueca. Palavra que no consigo compreender os meus pais.

Se querem que o Homem das Cavernas evolua, ponham-no a

trabalhar! a nica soluo.

Como que eles no vem isso?! Ser que preciso um

psiclogo para educar um filho?! que o problema dele tem s

um nome: m educao e ponto final. Mas isso de educar deve

dar muito trabalho, de maneira que j que podem pagar,

metem-no no psiclogo e fazem de conta que ele um doente.

Isto o cmulo!

Estou farta de viver numa casa onde ningum quer ver a

verdade, Marta, E o mais grave que ainda no sei porqu.

Ser que a verdade ainda pior do que eu calculo?

Vou estudar.

Um beijo da

Joana

Lisboa, 28 de Janeiro de 1993

Querida Marta,

O Lus l da nossa turma vai entrar na sua primeira pea a

srio, no clube de teatro amador onde se inscreveu e

convidou-me para assistir a um ensaio! Fiquei

entusiasmadssima. Eu no tenho jeito para representar e

talvez por isso admire tanto o Lus. Ainda esta manh, no

intervalo grande, estive um tempo a conversar com ele sobre

teatros (os que so representados num palco e... os

outros...). Foi uma conversa incrvel, que disso o Lus fala

como gente grande. No fim, tocou, disse-lhe: "Vou prometer-te

uma coisa. Se tu morreres antes de mim (o que provvel,

porque os bons vo sempre frente), mando escrever uma placa

para pr sobre a tua campa: "Aqui jaz Lus, que sabe e saber

sempre o que diz". Riu-se. Depois, quando amos a entrar para

a sala de aula, perguntou-me: "Tu acreditas mesmo que somos

imortais, no acreditas?" Sorri-lhe e respondi: "Claro. Por

isso que me tornei vegetariana." Ele olhou para mim sem

perceber. Confesso que tambm no percebi por que razo disse

aquilo. Enfim, s o Lus sabe sempre o que diz...

Vou pintar um bocadinho, enquanto h luz.

Um beijo da

Joana

P.S. O Ninja voltou a andar tareia, desta vez com o Game

Boy. Deixou-o com um olho Belenenses e rasgou-lhe a

sweat-shirt (que o pai lhe tinha trazido dos Estdos Unidos).

Foi uma cena triste. No h pachorra!

Um beijo da

Joana

Lisboa, 3 de Fevereiro de 1993

Querida Marta,

Odeio a poca do Carnaval. Sempre detestei carnavalices.

Lembro-me daquelas fatiotas ridculas que a minha me nos

obrigava a vestir (a mim e ao Traumatizado) quando ramos

pequenos. Acho que nunca me esquecerei daquelas cenas tristes

que, inexplicavelmente, faziam sempre rir os grandes. Tenho c

um azar ao ms de Fevereiro! Na escola o desatino do

costume: continuam com as abominveis tradies de atirar

ovos, gua, tinta e outras bodegas para cima de toda a gente,

como se isso tivesse alguma piada. incompreensvel. Num

mundo onde milhes morrem fome, gastam-se ovos e tomates em

guerrilhas nos corredores das escolas! isso , proibido,

claro, mas, pelo menos todos os anos a mesma guerra. L vo

uns dias para casa, de castigo, mas no se ralam, muito pelo

contrrio. Este ano, j avisei: se me atiram alguma porcaria

para o cabelo, demito-me de delegada. E desfao o palhao que

me sujar, Mas desfao mesmo. E eles j sabem que eu tenho mais

fora do que muitos lingrinhas da turma, por isso acho bem que

no se armem em parvos. No stimo arruinaram-me um fato de

treino novinho em folha, lembras-te? Pois , e eu jurei a mim

prpria que nunca mais iria deixar que me fizessem o mesmo. E

tu sabes o que eu sou com as juras. Espero que eles j me

conheam minimamente!"

palavra Que No percebo, que maneiras mais estpidas de se

divertirem. Entre isto e as festas de Carnaval da minha me,

que venha o diabo e escolha... O Ninja j prometeu

defender-me, coitado, mas eu disse-Lhe que no era preciso, e

o Joo Pedro acrescentou: "Joana, T descansada ningum quer

que tu deixes de ser delegada. E toda a gente sabe que, se te

der uma veneta, demites-te mesmo e s capaz de no falar a

ningum um ano inteiro." Exagerou, claro, mas foi com boa

inteno. O Lus acha que ele anda apaixonado por mim,

imagine-se! O Joo Pedro e eu? Nem morta! Nem que ele fosse

capaz de me converter ao marxismo!

Por falar em paixes, vi o teu irmo com uma nova amiga, aqui

no caf da rua. No sei onde a desencantou. bastante

diferente da Adamastora, diga-se de passagem. Mais gira, mais

baixa e menos esgroviada. Enfim, at tem um ar civilizado.

Aproximei-me da mesa onde estavam sentados e o Diogo disse-me

para lhes fazer companhia. Sentei-me. Pedi um sumo natural e

fiquei a olhar para a rapariga a ver se ela se descosia.

Npias. No foi capaz de abrir a boca durante todo o tempo em

que eu estive no caf. At me fez impresso! Como que algum

pode aguentar tanto tempo calado?! Suponho que o Diogo que

deve falar pelos dois, o que tambm no h-de ser fcil,

porque ele fala pouco, ainda menos do que o meu pai. Percebi

que