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A MODERNIDADE - Profs. Drs. Charles Bonetti e Adrian Ribaric. (NO PRELO)
UNIDADE I. Condições históricas
Quais são as principais características da modernidade? Como compreender o mundo que nos
cerca e, portanto, o nosso papel e responsabilidade com os grupos sociais dos quais fazemos parte:
família, grupos de afinidades, esferas públicas e institucionais da sociedade?
Se os tempos atuais podem ser caracterizados, sem dúvida é pelo fato de serem aparentemente
paradoxais. De um lado podemos observar o avanço constante do poderio tecnológico, expresso
num controle cada vez mais efetivo da natureza, e de outro, os desafios ambientais e sócio-
econômicos que insistem em assombrar a sociedade e que pela primeira vez ameaçam a
continuidade de nossa forma de viver.
Torna-se cada vez mais evidente e indisfarsável o mal-estar causado pelos rumos do
desenvolvimento mundial, desnudado não apenas pela “desordem” econômica e ambiental, mas
também na exponencialização da violência que assola o cotidiano. Vivemos uma época na qual os
nossos grandes problemas deixaram de ser particulares para se tomarem mundiais: a ecologia, a
energia, a disseminação nuclear, as novas epidemias como a Aids. Todos os problemas se situam
em um nível global e, por isso, devemos mobilizar a nossa atitude para os contextualizar, para,
partir do global, compreender o particular e do particular, o global, que é o sentido da frase de
Pascal: "Não posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, e não posso
conhecer as partes se não conhecer o todo".
Dos cerca de seis bilhões de habitantes, existem 2,8 bilhões de pobres, dos quais 1,3 bilhão vivem
na miséria. Na Alemanha, um dos países mais ricos, o número de pobres é de 13,5% da população.
Segundo os participantes do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, o planeta irá se
aquecer entre 1,1ºC e 6,4ºC até o final do século, o que fará subir o nível dos mares em até 59
centímetros e aumentar os períodos de secas e as ondas de calor. A elevação da temperatura
desencadeará múltiplos fenômenos extremos, como ondas de calor, secas prolongadas e
precipitações intensas, que poderão provocar o deslocamento de cerca de 200 milhões de
refugiados climáticos até o final do século.
Repertório 1: Pensamento Racional.
O que chamamos de modernidade, isto é, uma nova atitude diante do mundo pautada na
racionalidade, na ruptura com as tradições, na liberdade individual e na possibilidade da sociedade
perfeita, não começa em 1789 como costumam datar a historiografia tradicional, mas é um
processo longo cujas raízes podem ser identificados entre os gregos com a divulgação do
pensamento racional e a exaltação das virtudes individuais.
Estes são os alicerces da utopia moderna: a possibilidade da construção de uma sociedade livre,
composta de indivíduos livres e conscientes, livre de todas as formas de iniqüidade e servidão.
Quando Rousseau, Voltaire, Montesquieu entre outros pensadores, escreveram suas obras,
estavam se manifestando em favor desta utopia e contra um mundo teocêntrico e tradicional,
marcado por desigualdades e injustiças.
A sociedade medieval caracteriza-se principalmente por ser dividida em ordens ou estamentos e
uma quase ausência de mobilidade social. As três ordens, Clero (“aqueles que nasceram para
rezar”), a Nobreza (“aqueles que nasceram pra governar e guerrear”) e o Povo (“aqueles que
nasceram para trabalhar”), ocupavam na Terra seus lugares como um espelho do que existia no
céu: uma sociedade ordenada, sem conflitos, sem carências, em paz e harmonia...
Como a sociedade estamental era um espelho do que ocorria no cosmos, os governantes também
o eram por vontade divina. Assim o rei era rei por um mistério, uma vontade superior a qual os
homens comuns não podiam contestar. Essa situação perdurou por séculos na Europa cristã e a
Teoria do direito divino dos reis, serviu como base e justificativa para as Monarquias, inclusive nas
Absolutistas. Esta sociedade, fruto de seu tempo, é conhecida como L’Ancién Régime (O Antigo
Regime).
Este paradigma passa a ser contestado quando novas idéias começam a emergir, oriundas tanto de
um desenvolvimento extrínseco de pensadores europeus (GIORDANO BRUNO, COPÉRNICO,
GALILEU GALILEI), quanto de novas idéias que vinham de outras culturas, principalmente através
das “Grandes Navegações”.
Quando o Império Romano entrou em colapso, a perseguição aos textos “pagãos” fez parte da
estratégia de implantação do poder hegemônico da Igreja Católica, que se tornou responsável pela
construção da visão de mundo medieval. Estes textos pagãos guardavam todo o conhecimento e
sabedoria humanista da antiguidade: medicina, astronomia, música, teatro, matemáticas, filosofia,
que se mantiveram vivos em outras sociedades, particularmente os árabes1.
Não podemos esquecer que os textos dos filósofos clássicos como PLATÃO e ARISTÓTELES, por
exemplo, só foram redescobertos na Europa devido aos árabes, pois estes os traduziram dos
originais e quando invadem a península ibérica e lá permanecem por séculos, os trazem consigo,
permitindo sua tradução para o latim.
A partir das “cruzadas”, inicia-se o período de crescimento de intenso comércio entre o ocidente e
o oriente, enriquecendo um grupo de mercadores que serão à base de uma nova classe social, a
burguesia mercantil, que logo começará disputar com a Igreja Católica e a aristocracia rural, o
poder político.
Tal conjunto de fatores fez com que surgisse na Europa o Renascimento cultural, movimento que
mudou por completo a mentalidade européia, abrindo as portas para o nascimento do pensamento
moderno.
1 Para melhor compreensão da perseguição ao conhecimento clássico, assista ao filme “O nome da Rosa”,
baseado no livro de mesmo nome de Humberto Eco.
Dentre os alicerces do Renascimento cultural, destaca-se o antropocentrismo (o homem passa a ser
o “centro do universo” e não mais Deus), a revalorização da cultura greco-romana e o pensamento
racional. Tais bases serão os subsídios para a eclosão dos filósofos humanistas (o Humanismo),
para os pensadores Iluministas e para o surgimento da ciência.
Dentro do desenvolvimento do pensamento moderno, alguns autores se destacaram ao
elaborarem novas formas de explicação e percepção da realidade. Dentre eles, RENÉ DESCARTES,
em sua obra O DISCURSO SOBRE O MÉTODO, demonstra que a razão deve guiar a busca pelo
conhecimento e que isto deve ser orientado por um método, o método científico.
“O bom senso é a coisa melhor dividida no mundo, pois cada um se julga tão bem dotado dele que
ainda os mais difíceis de serem satisfeitos em outras coisas não costumam querê-lo mais do que
têm. E, a esse propósito, não é verossímil que todos se enganem; isso prova, pelo contrário, que o
poder de bem aquilatar e diferenciar o vero do falso, quer dizer, o chamado bom senso ou razão, é
naturalmente igual em todos os homens e assim, que multiplicidade de nossas opiniões não deriva
do fato de uns serem mais razoáveis do que outros, porém somente do fato de encaminharmos
nosso pensamento por diversos caminhos e não levarmos em conta as mesmas coisas. Não é
suficiente ter o espírito bom, o essencial é bem aplicá-lo. As maiores almas são capazes dos maiores
vícios como das maiores virtudes e os que caminham muito vagarosamente podem adiantar muito
mais, se prosseguirem sempre em seu caminho reto, do que os que correm e dele se afastam”.
(DESCARTES, R. Discurso sobre o Método. SP, Hemus-Livraria Editora, 1978).
Esse sentimento era o fundamento maior para a possibilidade da existência do homem livre. O
indivíduo é livre na medida em que se utiliza a razão para decifrar o mundo, e a partir daí guiar a
sua vida em liberdade.
Repertório 2: Liberdade.
“Em meio de minhas queixas, as vagas me atiraram fora da jangada desconjuntada pela borrasca.
Nadei então por sobre o abismo, até que o vento e as ondas me aproximaram de vossa terra”.
(HOMERO, Odisséia. Rapsódia 7).
A idéia de liberdade, a idéia da possibilidade da liberdade individual, é talvez a mais importante
utopia moderna, conceito chave que define o indivíduo burguês e em torno do qual a modernidade
é alicerçada. A própria idéia de propriedade privada, alicerce estruturante da sociedade moderna,
se fundamentada no princípio da liberdade privada de si, de seu próprio corpo, de sua própria
razão. Qualquer atentado à propriedade privada é um atentado à liberdade.
Segundo ADORNO, T. em Ulisses ou Mito e Esclarecimento, primeiro capítulo de seu livro A
DIALÉCTICA DO ESCLARECIMENTO, a figura de Ulisses, personagem heróico de Homero, é o
protótipo do indivíduo burguês.
“Cantar a ira de Aquiles e as aventuras de Ulisses já é uma estilização nostálgica daquilo que não se
deixa mais cantar, e o herói das aventuras revela-se precisamente como um protótipo do indivíduo
burguês, cujo conceito tem origem naquela auto-afirmação unitária que encontra seu modelo mais
antigo no herói errante”.
Somente desta forma racional e individual, toda servidão involuntária imposta pela tradição, força
ou ignorância, poderia ser abolida, sustentando os ideais de democracia, cidadania e de justiça
burguesas. Shakespeare no século XVI e início do XVII antecipava a emergência desta atitude
individual, capaz de enfrentar os empecilhos impostos pela tradição, superstições ou brutalidade,
para caminhar em direção ao novo. As trajetórias Romeu e Julieta, sob esta perspectiva, podem ser
compreendidas como uma metáfora da trajetória do indivíduo burguês em direção à conquista de
sua liberdade. Eles são capazes, por amor, enfrentar o desejo de suas famílias e da tradição, para
construir o seu próprio destino.
Poucos como Marx e Engels, conseguiram retratar o caráter revolucionário do pensamento
burguês marcante deste período, pois é fruto direto dos embates políticos com o antigo regime.
Não podemos esquecer que, no século XVIII, a burguesia mercantil está consolidada
economicamente e necessita elaborar uma visão de mundo que justifique sua presença e
hegemonia na sociedade.
“A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por
conseguinte, as relações de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o
conjunto das relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, ao
contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A contínua
revolução da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação
eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e
cristalizadas, com seu séqüito de crenças e opineis tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas,
e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar,
tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com
sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas”.
(MARX, K. & ENGELS, F. O Manifesto do Partido Comunista.).
Foram estes ideais que levaram Rousseau formular sua utopia do Bom Selvagem, um ser, puro, em
estado de natureza, sem leis, sem Igreja e sem Estado, cuja existência se bastava em si, um ser livre
capaz de viver em paz e harmonia. Este era um Homem ideal, que se opunha aos seres
corrompidos e degradados pela civilização medieval, e modelo de exemplaridade para a
construção da sociedade democrática burguesa.
Em outra direção, Montaigne, pensador moralista, embora admita que o selvagem é feliz em sua
inocência, reconhece estudando a si mesmo, que o Homem em estado de natureza é o “canibal”,
ignorante e bárbaro, que necessitaria civilizar-se para poder viver em sociedade.
Repertório 3: Estado Moderno
No final do século XIV, a ascensão da burguesia mercantil, estrutura-se como força política, capaz
de enfrentar o poderio da aristocracia rural, pulverizada em incontáveis feudos e em constantes
conflitos. Este mundo de fronteiras fragmentadas, onde cada Senhor Feudal tinha o poder de ditar
leis e cobrar taxas, era incompatível com desenvolvimento do capitalismo comercial.
Fazia-se sentir a necessidade de organizar a vida coletiva de uma forma racional, de uma forma de
governar os homens e as coisas capaz de promover a paz e a justiça.
Este movimento histórico pode ser observado inicialmente na península Ibérica, região ocupada
desde os séculos IX e X pelo processo expansionista do império árabe, de forte estrutura mercantil
e acervo tecnológico. Em 1385, com a revolução de Avis, Dom João I chega ao trono de um
unificado reino de Portugal, apoiado pelo setor mercantil. Quase cem anos depois o mesmo ocorre
na Espanha, com o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela e unificação dos reinos
ibéricos de Leão, Castela e Aragão e Navarra e a formação da Espanha.
“Libertos da ocupação sarracena , descansados da exploração judaica, dirimidos dos poderios locais
da nobreza feudal, emergia em cada área um Estado Nacional. Foram os primeiros do Mundo
Moderno”. (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 1995:67)
Um dos primeiros pensadores que abordaram a necessidade da existência de um Estado
centralizado e duradouro, o pensador Nicolo Maquiavel (1469-1527). O Príncipe, sua obra mais
famosa, inaugura o pensamento político moderno, ao defender que o livre exame da realidade
através do uso sistemático da razão permitiria o conhecimento para correção e controle político.
Embora não defendesse o poder absoluto do rei, suas reflexões sobre a política e a prática de
governo inspiraram os pensadores modernos que se debruçaram sobre a necessidade de organizar
racionalmente a vida coletiva através do uso de poder político.
Em Maquiavel, a política possui uma racionalidade própria. Neste sentido, o poder do Estado deve
estar acima dos interesses morais e pessoais, não importando os meios utilizados para se alcançar
os objetivos (fins).
Thomas Hobbes, pensador inglês do século XVII, ao conceber uma teoria sobre o Estado, compara-
o a Leviatã, o monstro bíblico, o ser mais poderoso da Terra. Segundo ele, para que o indivíduo
possa viver em sociedade, deve ceder ao Estado o direito de governar-se, para que ele possa
governar a todos, interferindo na vida de cada indivíduo, coibindo excessos, promovendo e
generalizando a justiça. Como se o indivíduo proferisse tais palavras:
“Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia
de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante
todas as suas ações”.
(HOBBES, Thomas, Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil)
Para Hobbes, a natureza humana é essencialmente egoísta, e este egoísmo transformaria o homem
em seu pior e mais temido inimigo (homo homini lupus). O Homem em estado de natureza viveria
em um estado de guerra permanente. A antropologia pessimista de Hobbes arrasta a conclusão de
que a sociedade civil não pode constituir-se sem a intervenção coerciva do Estado, que este a deve
preceder, implicando que os homens renunciem à sua própria liberdade. Daí o Leviatã.
Os homens, desprovidos de uma força superior que os obrigue a cercear suas vontades, faz com
que aflore as paixões naturais, impossibilitando a vida em sociedade, pois viveríamos em estado de
natureza. A fim de propiciar o funcionamento e a possibilidade da vida em sociedade, os homens
criam o Estado.
“Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a
geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais relevantes), daquele Deus
mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa”.
(Idem.).
“Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano.
Todos os restantes são súditos”.
(Ibdem.).
Ao irracionalismo deste estado natural de guerra, vem John Locke contrapor uma lei racional,
eventualmente inspirada pela natureza divina, que o leva a uma visão antropológica otimista. No
estado de natureza, o homem é essencialmente bom. A harmonia só não se realiza porque a
natureza física é avara, o que implica a afirmação da desigualdade natural como a outra
característica do estado de natureza.
Por se tratar de um fenômeno natural, o estado não pode pretender superar a desigualdade. Em
Locke o Estado já não é configurado como a fonte da sociedade civil, uma vez que a sociedade se
assenta na liberdade de cada indivíduo. Liberdade que consiste essencialmente na liberdade de
adquirir propriedades com base no seu trabalho, propriedades que o Estado liberal deve garantir.
Foi David Hume o primeiro autor que conseguiu escapar à idéia de que a conflitualidade social é
inerente a uma sociedade que se rege pelo princípio da liberdade. Que liberdade individual é
egoísmo. Hume renunciou a uma crítica racionalista do pessimismo de Hobbes, preferindo
caracterizar os homens por um sentimento, que leva cada um a desejar o que é útil ou agradável
para os outros. David Hume designa-o por simpatia, benevolência ou sentido de humanidade.
Fonte dos juízos morais, a simpatia é uma forma virtuosa de egoísmo, origem de um
comportamento que conduz o indivíduo a agir para o bem dos outros como a melhor forma de
conseguir um sistema de relações sociais que seja mais vantajoso para si próprio.
Adam Smith, importante pensador do século XVIII, defendia em sua obra Investigação sobre a
natureza e as causas da riqueza das nações, o livre comércio, a não intervenção do Estado na
economia, a defesa da propriedade privada e o cumprimento dos contratos. Segundo ele, a
economia é regulada pela lei natural da oferta e da procura, e ninguém, nem o Estado, deve
intervir neste processo. Criticava qualquer regulamentação protecionista de atividades ou grupos,
pois isto negava o princípio de liberdade individual.
Para ele, o processo de desenvolvimento econômico dependia do estoque de capital, da mão-de-
obra, dos recursos naturais, e de parâmetros estruturais de sua produtividade. Ele considerava que
a razão do crescimento ou estagnação estava no sistema legal e instituições políticas e econômicas
de cada sociedade, uma vez que delas dependia a criação de um ambiente e de incentivos que
favorecessem a acumulação de capital e, portanto o crescimento econômico.
“Cada pessoa, como diziam os estóicos deve ser primeira e principalmente deixada ao seu próprio
cuidado; e cada pessoa certamente, sob todos os pontos de vista, mais apta e capaz de cuidar de si
do qualquer outra pessoa”
(SMITH. A. Teoria dos Sentimentos Morais).
A principal contribuição de Adam Smith constitui-se em ter mostrado que as forças subjacentes à
ordem natural da economia levavam a um resultado harmonioso em termos econômicos e sociais,
é a mão invisível, que faz com que a luta de cada um por seus interesses individuais gere o
benefício coletivo. Dessa forma, o Estado mínimo garantiria a liberdade e a não intervenção
governamental, permitindo que os indivíduos se apropriassem dos ganhos que são abertos pela
ampliação do mercado e pela divisão do trabalho, impedindo que grupos obtivessem privilégios e
favores do Estado.
Cada um trabalha, necessariamente, para que o crédito anual da sociedade seja o maior possível,
(...) guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte das suas intenções”. Seria
assim, pelo menos, numa “sociedade onde se permitisse que as coisas seguissem o seu curso
natural, onde houvesse liberdade perfeita e onde cada homem fosse totalmente livre de escolher a
ocupação que quisesse e de a mudar sempre que lhe aprouvesse”. Nesta sociedade ideal, o seu
próprio interesse levaria cada homem “a procurar os empregos vantajosos e a evitar os
desfavoráveis”. Cada indivíduo, conclui Smith, “ao tentar satisfazer o seu próprio interesse,
promove, freqüentemente, de um modo mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando
realmente o pretende fazer. (...) Na verdade, aquilo que [cada indivíduo] tem em vista é o seu
próprio benefício e não o da sociedade. Mas o juízo da sua própria vantagem leva-o, naturalmente
— ou melhor, necessariamente —, a preferir o emprego mais vantajoso para a sociedade. SMITH,
Adam. Riqueza das Nações.
A vida econômica, assim entendida, é o fundamento da sociedade civil, o princípio da própria
existência do estado, cujas funções devem restringir-se ao mínimo compatível com a sua
capacidade para garantir a cada um e a todos, em condições de plena liberdade, o direito de lutar
pelos seus interesses como melhor entender.
A Sociedade Moderna.
Repertório 1: Revolução Industrial Inglesa.
Os acontecimentos do século XVIII representam ponto de inflexão decisivo nas transformações
econômicas, políticas e culturais que vem ocorrendo no ocidente europeu em direção a instalação
definitiva da sociedade capitalista. Neste contexto as duas revoluções que este século testemunha
devem ser compreendidas como partes integrantes de um mesmo processo histórico
transformador que colocará problemas inéditos sequer imaginados pelas sociedades pré-
revolucionárias.
Em poucas décadas, o mundo medieval, cujas estruturas sociais, políticas e culturais haviam
permanecido praticamente intactas durante cerca de mil anos, desapareceu completamente.
O advento da indústria desencadeou um processo maciço de migração para cidades sem nenhuma
infra-estrutura para receber esta população, implicou no desaparecimento de pequenos
proprietários rurais artesãos e comerciantes e no engajamento de mulheres e crianças em jornadas
de trabalho de 12, 16 horas em lugares insalubres sem qualquer direito trabalhista.
“As conseqüências da rápida industrialização e urbanização levadas a cabo pelo sistema capitalista
forma tão visíveis quanto traumáticas: aumento assustador da prostituição, do suicídio, do
alcoolismo, do infanticídio da criminalidade da violência e dos surtos de epidemias de tifo e
cólera...”.
(MARTINS, C.B., O que é Sociologia. Págs. 15-16).
A Inglaterra no final do séc. XVII possuía uma somatória de fatores que desembocarão em um
processo de profundas mudanças que transformarão todo o quadro social, muito além da mudança
da estrutura de produção. A Revolução Industrial representou muito mais que a mecanização dos
processos produtivos. Ela marca o surgimento das bases de um novo mundo, totalmente diferente,
comandado pelo empresário capitalista e pela racionalidade tecnológica, responsáveis pela
desintegração total das antigas formas de viver.
Podemos elencar quatro grandes fatores que estavam interligados entre si e que fazem com que a
Revolução ocorresse na Inglaterra e não em nenhum outro lugar como na Alemanha ou França do
período. O primeiro antecedente é o fato da Inglaterra ser desde há muito tempo, grande
produtora de lã, possuindo uma ampla indústria manufatureira têxtil.
O segundo fator está intimamente relacionado ao anterior. As terras nas quais os rebanhos de
ovelhas eram criados deixam de serem comunais e tornam-se propriedades privadas, num
movimento conhecido como cercamento (enclousure).
O terceiro antecedente, diz respeito ao capital acumulado, ou seja, o dinheiro ou patrimônio
necessário ao investimento de qualquer negócio, notadamente na montagem das fábricas que
começam a surgir. Esse dinheiro, ouro e prata, que foram usados nesse investimento recém-
surgido, foram obtidos através da pirataria, dos galeões e navios mercantes, notadamente os
espanhóis, que vinham abarrotados de metais oriundos das colônias conquistadas pelos europeus
no “Novo Mundo”. Também de tratados comerciais e de transporte de mercadorias que deveriam
ser feitos pela frota britânica, como o “Ato de Navegação” decretado por CROMWELL em 1651 ou
o “Tratado de Methuen” assinado com Portugal e 1703.
O quarto antecedente diz respeito a inovações técnicas que ocorreram na Inglaterra nos períodos
que antecedem a Revolução Industrial, mas que sem os fatores anteriores aliados a uma
mentalidade moderna que visava o lucro como um fim em si mesmo.
Essas inovações técnicas são principalmente a máquina que se tornou símbolo deste processo e
que, de certa forma, desencadeou todo o processo de mecanização da produção: máquina-vapor
de JAMES WATT.
No plano político, a “Guerra Civil” de 1642 e a “Revolução Inglesa” de 1688 que pos fim ao
absolutismo, ou seja, os interesses de uma camada de burgueses cada vez mais endinheirada e
poderosa, começam a ter primazia nas decisões da coroa.
As mudanças iniciadas a partir do renascimento comercial e renascimento urbano que
desencadearam o início do fim do sistema feudal, de certa forma, se concretizam com a Revolução
Industrial, pois, entre diversas mudanças, o mundo urbano industrial se estabelece de forma
duradoura, onde as cidades passam a representar as idéias de progresso, civilização e
modernidade. Em contrapartida, o campo passa a simbolizar e a “tradição”, e o “conservadorismo”
É necessário também enfatizar que o fim do feudalismo libertou o trabalhador rural de seu
atrelamento a terra, tornado-o livre para trabalhar em troca de pagamento, tornando-se
assalariado. Também a mentalidade protestante que liberou o homem para a cumulação de
dinheiro, pois isto deixou de ser associado a usura, e o enriquecimento passou a ser visto nos
países protestantes como um sinal de salvação.
Tal idéia de modernidade associada as cidades, aliada as novas oportunidades de emprego para
uma massa de trabalhadores rurais existentes na Inglaterra, fez com que as cidades aumentassem
de tamanho, num processo de explosão demográfica. Antes do início da industrialização, 75% da
população da Inglaterra vivia no campo. Este número inverte-se ao findar o processo no início do
século XX. Até 1850, este processo se concentrou na Inglaterra. Após a segunda metade do séc.
XIX, alastrou-se por toda a Europa e depois o modelo urbano-industrial ultrapassa as fronteiras do
continente para a todo o mundo. Este período é conhecido como Segunda Revolução Industrial.
As cidades não só se tornaram atrativas devido aos empregos ligados a produção, notadamente a
formação da nova classe social composta por operários, mas também de atividades ligadas ao
comércio a ao setor de serviços que explodem junto com a produção mecanizada.
O processo de êxodo rural tornou-se irreversível. Motivado não só por uma grande oferta de
empregos em diversas linhas de montagem, mas também estimulado por uma mudança drástica
nos meios de transporte, principalmente o trem, sendo a locomotiva a vapor o grande símbolo de
progresso que encurtava distâncias, não apenas físicas, mas também mentais. A vida na cidade
passa seduzir uma população que durante séculos estava atrelada a terra e presa a costumes
tradicionais. O apelo da cidade como possibilidade de liberdade, torna-se irresistível.
Em torno das estações de tem começam a surgir vilas, assim como no entorno das fábricas. Estas
vilas de operários dão o tom da mudança radical do cenário até então rural. Tais vilas crescem de
maneira desordenada, até tornarem-se cidades. As cidades que já existiam, também crescem em
torno das fábricas que são montadas nos arredores das habitações que cercavam o centro. Surge a
figura da periferia, habitações periféricas ao centro, como uma oposição, uma sub categoria de
habitações do urbano tradicional, o subúrbio.
O processo de crescimento desordenado das cidades e da população, fez com que surgissem
núcleos habitacionais também desordenados. Não havia qualquer tipo de planejamento
urbanístico ou projetos de saneamento básico. As vilas de operários raramente contavam com
redes de esgoto ou águia encanada. As casas eram habitadas por aglomerados de famílias que não
paravam de chegar em busca de emprego e oportunidade. Surge a figura moderna do cortiço. Essa
proliferação de pessoas sem as condições mínimas de higiene proporcionou rapidamente o
surgimento de epidemias que logo passaram a dizimar grandes contingentes populacionais, como o
cólera em Paris na segunda metade do séc. XIX.. Do ponto de vista da saúde pública, além das
doenças tradicionais, novos tipos modernos começam a surgir, notadamente o alcoolismo e o
stress.
O quadro social alterara-se tanto e de forma tão rápida, que problemas sociais inteiramente novos
também passam a surgir com a mesma rapidez. Não havia empregos em número suficientes para
todos que chegavam a cidades. Além disso, os empresários preferiam o uso de mulheres e crianças
para operarem as máquinas, pois desempenhavam a mesma função e ganhavam menos. Logo o
número de desempregados e de inválidos, era bastante elevado.
Vale lembrar que não havia nenhum tipo de seguridade social que assegurasse ao trabalhador os
mínimos direitos em caso de demissão ou de invalidez, tão pouco uma legislação que regulasse o
número de horas de trabalho. A média de horas de trabalho/dia chegava a dezesseis, inclusive aos
sábados, com meia hora de almoço. O número de acidentes de trabalho nestas condições era
elevadíssimo. O burguês capitalista, simplesmente trocava o operário quando este se feria ou
morria. Outro fenômeno social que acompanhou o quadro acima, foi o aumento da prostituição e
do número de suicídios2.
Esse quadro social de tamanha exploração do trabalho contrastava com a grande riqueza que a
mecanização da produção trouxe para uma pequena camada da população recém criada, o
burguês capitalista. Logo tamanha falta de condições mínimas de trabalho e de vida fez eclodirem
revoltas, que desembocaram para o início do movimento operário e na divulgação das primeiras
idéias anticapitalistas.
2 Émile Durkheim estudou o fenômeno do suicídio e criou uma tipologia sobre ele, afirmando que, ao
contrário do que se pensava, o suicídio não era uma escolha pessoal, mas causado por fatores sociais.
As primeiras greves surgem numa reação espontânea contra aquela que simbolizava a opressão: a
máquina. Estes primeiros movimentos são chamados de “quebra-máquinas”, como por exemplo o
movimento ludista de Ned Ludd, e tinham por objetivo a destruição daquele que o oprimia. Os
trabalhadores inicialmente não percebiam que o controle da opressão não se situava na linha de
montagem, mas na burguesia capitalista que era a dona da máquina. Estas primeiras greves foram
tratadas como “caso de polícia”, e forma solucionadas à bala. São bastante conhecidos os casos em
que o industrial trancava os grevistas na fábrica e a incendiava com todos dentro. O próprio “Dia
internacional da mulher” existe devido a um episódio com este.
Com o passar do tempo o movimento operário tornou-se organizado, com a criação de
cooperativas de trabalhadores que desembocaram na criação dos primeiros sindicatos. Este
movimento organizado começa a surgir a partir de 1830 na Inglaterra. O primeiro grande
movimento foi chamado de cartista, pois a “Associação dos operários ingleses” redigiu a “Carta do
Povo”, exigindo, entre outras coisas, o sufrágio secreto e universal.
A Revolução Industrial causou uma mudança radical na estrutura de produção. No entanto, sua
principal característica é a de ser a fonte de uma profunda revolução social. Após este movimento,
surgem duas classes sociais antagônicas: a burguesia e o proletariado; a produção torna-se
mecanizada; as idéias anticapitalistas passam a guiar a utopia moderna de liberdade; surge um
novo fenômeno ambiental, a poluição com todas suas variáveis, atmosféricas, sonoras, visuais...; O
stress; o anonimato dos indivíduos nas grandes cidades, o movimento operário. Inicia-se também
o processo de libertação da mulher, pois, pela primeira vez, esta passa a participar da produção e a
ganhar salário. A sociedade torna-se moderna.
Na realidade, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa são etapas de um mesmo processo.
Trata-se de um conjunto de transformações ocorridas na Europa, notadamente na França e
Inglaterra que tiveram conseqüências para todo o mundo. É um movimento de transformações
planetárias entre 1789 e 1848, conhecida como a dupla revolução.
Segundo HOBSBAWM, Eric J., em seu livro A Era das Revoluções: Europa 1789-1848:
“A grande revolução de 1789-1848 foi o triunfo não da ‘indústria’ como tal, mas da indústria
capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da sociedade
‘burguesa’ liberal; não da ‘economia moderna’ ou do ‘Estado moderno’, mas das economias e
Estados em uma determinada região geográfica do mundo (parte da Europa e alguns trechos da
América do Norte), cujo centro eram os Estados rivais e vizinhos da Grã-Bretanha e França. A
transformação de 1789-1848 é essencialmente o levante gêmeo que se deu naqueles dois países e
que dali se propagou por todo o mundo”.
(HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. SP, Paz e Terra, 17ª. Ed, 2003:16).
Repertório 2: Revolução Francesa de 1789.
“Todos os homens seriam, portanto, necessariamente iguais se de nada precisassem. A miséria,
condição agregada à nossa espécie, subordina um homem a outro homem; não é a desigualdade
que é um mal real, mas a dependência. Muito pouco importa que talou tal indivíduo se chame Sua
Alteza, e outro fulano Sua Santidade; o que dói, o que é duro de roer, é ter de servir um e outro”.
(Apud VOLTAIRE e DIDEROT, São Paulo. Nova Cultural, 1988:133).
Enquanto a Revolução Industrial modificou radicalmente as estruturas sociais, a Revolução
Francesa de 1789 destruiu o antigo regime e inaugurou a modernidade em suas estruturas
políticas.
Os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade são colocados em prática. Pela primeira
vez na História, a burguesia aliada a outros setores da sociedade francesa como camponeses,
camadas urbanas, intelectuais, tomava o poder, destruindo o antigo regime. O mundo nunca mais
seria o mesmo.
Assim como a Revolução Industrial, que faz parte de um mesmo processo de mudança, o
movimento que eclodiu na França e que alterou por completo as estruturas políticas, também
possui uma serie de antecedentes que devemos conhecer a fim de entender o processo como um
todo.
Além de amplamente influenciada pelas idéias Iluministas, a revolução também buscou inspiração
no movimento de Independência dos Estados Unidos da América de 1776. Ela é tradicionalmente
colocada como iniciada em 5 de maio de 1789 e com o término situado em 9 de Novembro de
1799 com o golpe de Estado realizado por Napoleão Bonaparte conhecido como “18 Brumário”.
Podemos buscar as causas da revolução no sistema político do Antigo Regime que privilegiava,
como vimos, os dois estamentos superiores (Clero e Nobreza) que não trabalhavam ou pagavam
impostos, e também, na situação econômica que a França vivia no período que antecede a
Revolução, baseada numa agricultura ainda nos moldes feudais. As poucas riquezas produzidas
eram mal distribuídas, e a tímida indústria manufatureira estava longe de suprir as necessidades da
população, sendo que 80% dela vivia no campo.
Aliado a esse sistema econômico, os anos que antecedem a eclosão do movimento foram
marcados por um aumento populacional considerável e por sucessivas colheitas mal-sucedidas, o
que limitou a quantidade de alimentos e a fome passou a assolar a população.
Do ponto de vista político, o Rei Luís XVI, pressionado pela crise econômica e por parte da Nobreza
e do Clero que queriam limitar os poderes absolutistas, convocou a “Reunião dos Estados Gerais”
em Maio de 1789 no Palácio de Versalhes, o que não ocorria desde 1614. No entanto, a verdadeira
intenção da reunião, era fazer com que o Terceiro Estado pagasse mais impostos.
Logo de início, ficou claro que os pedidos do Terceiro Estado de que se mudasse os sistema de
votação (que era por Estado e não por indivíduo) e que se discutissem questões políticas e não
apenas econômicas como o fato de apenas eles pagarem impostos. Este impasse fez com que Luís
XVI tentasse dissolver os Estados Gerais, impedindo a entrada dos deputados na sala das sessões.
Ironicamente, uma série de atitudes que partiram do próprio rei, fizeram desencadear o processo
revolucionário. Os representantes do Terceiro Estado rebelam-se, invadem uma outra sala e se
auto proclamam em estado de “Assembléia Nacional” em 15 de Junho de 1789 e que logo depois
de tornaria “Assembléia Nacional Constituinte”. A Revolução começara.
Após diversas tentativas de conter o movimento e impedir que ele se alastrasse pelo resto da
França, o Rei não conseguiu evitar que a população se armasse. O ápice deste processo foi a
tomada da prisão política, símbolo da autoridade absolutista do rei, a Bastilha em 14 de Julho de
1789. Após este ato, a Revolução estendeu-se ao campo, com saques as propriedades feudais,
queima dos castelos, assassinatos de membro da nobreza, destruição de cartórios para queimarem
os títulos de propriedade das terras e confisco das terras da Igreja. Esta fase da Revolução foi
conhecida como o “Grande Medo”.
A “Monarquia Constitucional” foi implantada em Setembro de 1791 e promulgada a primeira
Constituição, colocando em prática a divisão política criada pelo iluminista Montesquieu, os
poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, além da concessão dos direitos civis a população. No
entanto, as eleições seriam censitárias e dividiu-se a população numa incompreensível ala de
ativos (os eleitores mais ricos) e passivos (sem direito a voto e mais pobres). A revolução e a
composição da Assembléia ainda era conservadora.
O Rei, apesar de não ser mais absolutista, ainda governava o Excecutivo e nomeava seus ministros.
Apesar da constituição ter abolido os direitos feudais e ter nacionalizado os bens da Igreja, além de
garantir a igualdade civil e jurídica e legalizado uma França burguesa e capitalista, não consiguira
apaziguar os ânimos de todos os envolvidos no processo revolucionário. Muitos queriam dar um
basta ao processo, enquanto outros queriam radicalizá-lo.
O movimento popular revelava uma diversificada formação da população que compunha o já
antigo Terceiro Estado. Eram camponeses, uma camada diversificada de burgueses, indo desde
pequenos comerciantes a grandes banqueiros, sem terra, e os sans-cullotes, literalmente, os sem-
ceroulas, camada complexa e heterogénea, com artesãos, aprendizes, incipientes operários, e uma
camada de intelectuais urbanos de Paris.
Essa diversificação estava representada nos grupos políticos que compunham a Convenção após a
proclamação da República. À direita da Assembléia sentavam-se os Girondinos, composto pela alta-
burguesia. Ao centro, ficavam a Planície ou Pântano, um grupo heterogêneo que buscava obter
vantagens do processo revolucionário, inclusive de maneira corrupta. À esquerda e no alto da
Assembléia, ficavam os Jacobinos, o grupo mais radical que queria implantar uma República na
França. Como se vê, a divisão da Assembléia passou a classificar as orientações políticas da
modernidade.
“No conflito que, a partir de então, é o da França revolucionária e o da aristocracia européia, uma
parte da burguesia se dá conta de que não venceria sem o povo: os Montanheses aliaram-se aos
Sans-Culottes. Mas esta intromissão popular no cenário político pareceu uma suprema ameaça aos
interesses da grande burguesia que, pela boca de Brissot, denunciou ‘a hidra da anarquia’. ‘Vossas
propriedades estão ameaçadas’, proclamou Pétion, em fins de abril de 1793, reconvocando os
proprietários. ‘A igualdade não passa de um vão fantasma – replicou o furioso Jacques Roux, em 25
de junho de 1793 -, quando o enriquecido pelo monopólio exerce o direito de vida e de morte sobre
o seu semelhante’”.
(SOUBOUL, A. A Revolução Francesa:edição comemorativa do bicentenário da Revolução
Francesa, 1789-1989. 8ª. Edição. Rio de Janeiro:DIFEL, 2003:57).
Em 1793, os jacobinos tomam o controle da Revolução e passam a radicalizar o processo
revolucionário. Robespierre fez aprovar uma série de leis populares como o tabelamento de
preços, a abolição da escravidão nas colônias, aumento dos impostos dos ricos entre outras
medidas. Conseguiram influenciar os demais grupos e conseguiram julgar e condenar o Rei por
crime de alta traição contra a pátria, pois este articulara junto as Monarquias Absolutistas como as
da Áustria, Rússia e Prússia, uma invasão para por fim a Revolução. Estes por sua vez temiam que
os ideais da Revolução chegassem a seus países e, aliados aos nobres franceses exilados, criam
uma coligação armada para invadir a França.
A invasão ocorre após a condenação a morte do Rei na guilhotina na praça da Revolução em 21 de
janeiro de 1793. Inicia-se o período do Terror e a revolução começa a ficar sem controle. Muitos
líderes revolucionários também são condenados a guilhotina como Robespierre e Danton.
Dentre as diversas decisões da Convenção, está a publicação da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, votada em 23 junho de 1793 e encabeçando a Constituição de 24 de 1793.
Esta declaração expunha os direitos sagrados e inalienáveis do cidadão:
Artigo 1:
“O objetivo da sociedade é a felicidade comum. O Governo é instituído para garantir ao hoem o
gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis.
Artigo 2:
“Esses direitos são a igualdade, a liberdade, a segurança, a prosperidade”.
Artigo 3:
“Todos os homens são iguais, por natureza e perante a lei”.
Artigo 35:
“Quando um governo violenta os direitos do povo, a insurreição é para o povo e, para cada parte
do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”.
(In MATTOSO, K. Textos e documentos para o estudo da história contemporânea. SP. Hucitec,
1977:25; 28).
Após este período de radicalização, a alta burguesia girondina toma as rédeas da Revolução num
golpe conhecido como a “Reação Termidoriana”, instalando o período do “Diretório” (!795-1799),
anulando todas as conquistas dos jacobinos, numa última tentativa de controlar a revolução. Mas
pouco adiantou. A França era atacada em várias frentes por exércitos poderosos da “Coligação dos
países absolutistas”. É nesse contexto que emerge a figura de um jovem General que havia obtido
diversas vitórias no front. Este dá um Golpe de Estado a 9 de Nopvembro de 1799 (18 Brumário no
calendário da revolução) e põem fim a maior Revolução burguesa da História.
“Ele destruíra apenas uma coisa: a Revolução Jacobina, o sonho de igualdade, liberdade e
fraternidade, do povo se erguendo na sua grandiosidade para derrubar a opressão. Este foi um
mito mais poderoso do que o dele, pois, após a sua queda, foi isto e não a sua memória que
inspirou as revoluções do século XIX, inclusive em seu próprio país”.
(HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções :Europa 1789-1848. SP, Paz e Terra, 17ª.ed, 2003:113).