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Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 3, p. 381-402, jul.-set. 2015 Exceto onde especicado diferentemente, a matéria publicada neste periódico é licenciada sob forma de uma licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional . http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/ Dossiê: América Latina como lugar de enunciação  http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2015.3. 20580 A modernidade é de fato universal? Reemergênci a, desocidentalizaçã o e opção decolonial  Is modernity real ly universal?  Reemergence, deweste rnization and d ecolonial option  Júl io Ro berto de Sou za Pi nto* Walter D. Mignolo** Resumo:  Neste ensaio, argumentamos: (1) que modernidade não é o desenrolar ontológico de uma história universal, mas sim a interpretação de certos eventos por atores e instituições q ue se viam e se veem como estando no centro da terra e no presente de um tempo universal; (2) que essa interpretação é local e regionalmente condicionada, é europeia ocidental, embora se apresente como universal e global; ou seja, a enunciação é local em que pese o enunciado ser global; (3) que, por trás de um discurso triunfalista, a modernidade esconde os horrores que a constituem: a colonialidade; essa é a razão mesma por que entendemos que modernidade não pode ser compreendida sem colonialidade e que a colonialidade não pode ser superada pela modernidade; e (4) que a essa retórica de salvação da humanidade e suas expressões mais recentes – desenvolvimento e globalismo –, articulada por agentes e instituições que controlam a produção do conhecimento e traduzem os próprios privilégios em promessas para o resto do mundo, assim como o projeto de dominação cultural, econômica e política que ela promove, especialmente a partir da segunda década do século 20 vêm apresentando sinais de enfraquecimento, na mesma proporção em que discursos e projetos dissidentes de re-existência , entre os quais a opção decolonial, baseada na qual formulamos nosso argumento , vêm ganhando força. Palavras-chave:  Modernidade. Universalismo. Ocidentalização. Colonialidade. Desociden- talização. Decolonialidad e. ** Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB, Brasília, DF, Brasil), professor do mestrado prossional em Poder Legislativo da Câmara de Deputados (Brasília, DF, Brasil) e  pesquisador visitante do Centro de Estudos Globais e Ciências Humanas da Universidade de Duke (EUA) <  julio.pinto@cama ra.leg.br >. ** Doutor em Semiótica e T eoria Literária pela École des Hautes Études (EP HE, P aris, França), catedrático William H. Wannamaker , diretor do Center for Global Studies and the  Huma nitie s, professor da Universidade de Duke (EUA) < [email protected] >.

A Modernidade e de Fato Universal Reemer

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Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

Exceto onde especicado diferentemente a mateacuteria publicada neste perioacutedico eacutelicenciada sob forma de uma licenccedila Creative Commons - Atribuiccedilatildeo 40 Internacional httpcreativecommonsorglicensesby40

Dossiecirc Ameacuterica Latina como lugar de enunciaccedilatildeo

httpdxdoiorg10154481984-72892015320580

A modernidade eacute de fato universal

Reemergecircncia desocidentalizaccedilatildeoe opccedilatildeo decolonial

Is modernity really universal

Reemergence dewesternization and decolonial option

Juacutelio Roberto de Souza PintoWalter D Mignolo

Resumo Neste ensaio argumentamos (1) que modernidade natildeo eacute o desenrolarontoloacutegico de uma histoacuteria universal mas sim a interpretaccedilatildeo de certos eventos poratores e instituiccedilotildees que se viam e se veem como estando no centro da terra e no presentede um tempo universal (2) que essa interpretaccedilatildeo eacute local e regionalmente condicionadaeacute europeia ocidental embora se apresente como universal e global ou seja aenunciaccedilatildeo eacute local em que pese o enunciado ser global (3) que por traacutes de um discursotriunfalista a modernidade esconde os horrores que a constituem a colonialidade essaeacute a razatildeo mesma por que entendemos que modernidade natildeo pode ser compreendidasem colonialidade e que a colonialidade natildeo pode ser superada pela modernidade e(4) que a essa retoacuterica de salvaccedilatildeo da humanidade e suas expressotildees mais recentes ndashdesenvolvimento e globalismo ndash articulada por agentes e instituiccedilotildees que controlama produccedilatildeo do conhecimento e traduzem os proacuteprios privileacutegios em promessas para oresto do mundo assim como o projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica queela promove especialmente a partir da segunda deacutecada do seacuteculo 20 vecircm apresentandosinais de enfraquecimento na mesma proporccedilatildeo em que discursos e projetos dissidentes

de re-existecircncia entre os quais a opccedilatildeo decolonial baseada na qual formulamos nossoargumento vecircm ganhando forccedilaPalavras-chave Modernidade Universalismo Ocidentalizaccedilatildeo Colonialidade Desociden-talizaccedilatildeo Decolonialidade

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasiacutelia (UnB Brasiacutelia DF Brasil) professor domestrado prossional em Poder Legislativo da Cacircmara de Deputados (Brasiacutelia DF Brasil) e pesquisador visitante do Centro de Estudos Globais e Ciecircncias Humanas da Universidade deDuke (EUA) lt juliopintocamaralegbr gt

Doutor em Semioacutetica e Teoria Literaacuteria pela Eacutecole des Hautes Eacutetudes (EPHE ParisFranccedila) catedraacutetico William H Wannamaker diretor do Center for Global Studies and the Humanities professor da Universidade de Duke (EUA) ltwmignoloacpubdukeedugt

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Abstract In this essay we argue (1) that modernity is not the ontological unfoldingof a universal history but rather the interpretation of certain events by actors andinstitutions that saw and see themselves as being in the center of the Earth and inthe present of a universal time (2) that this interpretation is locally and regionallyconditioned it is Western European despite presenting itself as universal and globalthat is the enunciation is local in spite of the enunciated be global (3) that behind atriumphalist discourse modernity hides the horrors that constitute it coloniality this isthe very reason why we believe that modernity can not be understood without colonialityand coloniality can not be overcome by modernity and (4) that this rhetoric of salvationof mankind and its most recent expressions ndash development and globalism ndash articulated

by agents and institutions that control the production of knowledge and translate theirown privileges into promises for the rest of the world as well as the project of culturaleconomic and political domination that it promotes especially starting from the second

decade of the twentieth century have shown signs of weakening in the same proportionas dissident discourses and projects of re-existence including the de-colonial option based on which we formulate our argument have gained strengthKeywords Modernity Universalism Westernization Coloniality Dewesternization Decoloniality

Introduccedilatildeo

Quando a ideia de Brasil foi inventada e como essa invenccedilatildeo se tornouo fundamento de uma histoacuteria territorial que apagou outras memoacuterias eterritorialidades O Brasil eacute parte da modernidade inventada no processo deconstituir a si mesma como modernidade Agrave eacutepoca natildeo era modernidade a

palavra usada mas re-nascimento A invenccedilatildeo do Brasil foi precedida pelainvenccedilatildeo das ldquoIacutendias Ocidentaisrdquo e do ldquoNovo Mundordquo este uacuteltimo termoutilizado pelos europeus para designar tudo aquilo que eles natildeo conheciamA invenccedilatildeo dessa histoacuteria territorial justicou a supressatildeo e ateacute mesmo ogenociacutedio de outras territorialidades e memoacuterias em nome do renascimento

e da salvaccedilatildeo O discurso emergente o discurso que se tornou o fundamentohistoacuterico do que mais recentemente tem sido narrado e celebrado comoldquomodernidaderdquo homogeneizou as grandes civilizaccedilotildees de Anahuac e Abya Yalaem barbaacutericos ldquoiacutendiosrdquo E a invenccedilatildeo do Brasil juntamente com a invenccedilatildeo do

Novo Mundo contribuiu para a justicaccedilatildeo de um segundo genociacutedio sobre oqual o imaginaacuterio de modernidade foi construiacutedo o genociacutedio dos africanosescravizados

Neste ensaio argumentamos (1) que modernidade natildeo eacute o desenrolar

ontoloacutegico de uma histoacuteria universal mas sim a interpretaccedilatildeo de certos eventos por atores e instituiccedilotildees que se viam e se veem como estando no centro daTerra e no presente de um tempo universal (2) que essa interpretaccedilatildeo eacute local eregionalmente condicionada eacute europeia ocidental embora se apresente como

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universal e global ou seja a enunciaccedilatildeo eacute local em que pese o enunciado serglobal (3) que por traacutes de um discurso triunfalista a modernidade esconde

os horrores que a constituem a colonialidade essa eacute a razatildeo mesma por queentendemos que modernidade natildeo pode ser compreendida sem colonialidadee que a colonialidade natildeo pode ser superada pela modernidade e (4) que aessa retoacuterica de salvaccedilatildeo da humanidade e suas expressotildees mais recentes ndashdesenvolvimento e globalismo ndash articulada por agentes e instituiccedilotildees quecontrolam a produccedilatildeo do conhecimento e traduzem os proacuteprios privileacutegios em

promessas para o resto do mundo assim como o projeto de dominaccedilatildeo culturaleconocircmica e poliacutetica que ela promove especialmente a partir da segunda

deacutecada do seacuteculo 20 vecircm apresentando sinais de enfraquecimento na mesma proporccedilatildeo em que discursos e projetos dissidentes de re-existecircncia entre osquais a opccedilatildeo decolonial baseada na qual formulamos nosso argumento vecircmganhando forccedila

Discurso no sentido em que o empregamos neste ensaio transcendea simples ideia de pronunciamento oral ou escrito para referir-se a todo umconjunto de percepccedilotildees de si e do mundo que as diferentes comunidades desujeitos elaboram interativamente Inclui cosmologia arte losoa ciecircnciatecnologia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica direito Em muitoscontextos eacute sinocircnimo de imaginaacuterio narrativa e mesmo retoacuterica na acepccedilatildeode discurso orientado agrave persuasatildeo de ouvintes e leitores

Do mesmo modo colonialidade ou colonialidade do poder transcende amera noccedilatildeo de colonialismo para referir-se ao conjunto de princiacutepios baseadosnos quais a narrativa salvacionista e triunfalista de renascimento e modernidadefoi construiacuteda justicando expropriaccedilatildeo exploraccedilatildeo e toda sorte de violecircnciaem nome de uma salvaccedilatildeo cristatilde ou de um renascimento e progresso secularesColonialidade do poder refere-se pois a um coacutedigo conceitual fundamentado

no qual a ideia de civilizaccedilatildeo ocidental legitima a si mesma ndash por meio deatores instituiccedilotildees linguagens ndash como controladora natildeo soacute da economia eda autoridade mas tambeacutem da subjetividade e do conhecimento de povos eetnias natildeo ocidentais A desumanizaccedilatildeo de habitantes natildeo europeus do globofoi necessaacuteria para justicar o controle de tais ldquoseres humanos inferioresrdquoRacismo como o conhecemos hoje foi estabelecido agravequela eacutepoca Racismonatildeo eacute bioloacutegico mas sim epistecircmico eacute a classicaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo deumas pessoas por outras que controlam a produccedilatildeo do conhecimento que estatildeo

em posiccedilatildeo de atribuir credibilidade a tal classicaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo e queestabelecem a si mesmas como o padratildeo ldquoos humanosrdquo ndash todos os demaissatildeo apenas diferentes graus de quase ou semi-humanos Colonialidade eacute por-tanto constitutiva de modernidade Modernidade-colonialidade ndash expressatildeo

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pela qual descrevemos esse fenocircmeno ndash eacute por conseguinte sinocircnimo deocidentalizaccedilatildeo Ocidentalizaccedilatildeo designa o conjunto de projetos globais ndash

sempre em mutaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo ndash que visam agrave disseminaccedilatildeo dos valores dacivilizaccedilatildeo ocidental em escala planetaacuteria

Decolonialidade por sua vez abrange natildeo apenas os movimentos detransformaccedilatildeo das ex-colocircnias europeias em estados-naccedilotildees independen-tes ndash descolonizaccedilatildeo ndash como tambeacutem os esforccedilos de desligamento oudesengajamento subjetivo epistecircmico econocircmico e poliacutetico em face do

projeto de dominaccedilatildeo ocidental esforccedilos que antecederam tais movimentosde descolonizaccedilatildeo ainda que soacute tenham vindo a ganhar musculatura a partir

da Conferecircncia de Bandung em meados da deacutecada de 1950 A Bandung naverdade estatildeo relacionados trecircs projetos de contestaccedilatildeo dos valores universaisda civilizaccedilatildeo ocidental e de sua pretensatildeo de dominar o mundo O primeirodeles a descolonizaccedilatildeo jaacute estava andamento na Aacutefrica e na Aacutesia Nessesentido Bandung se transformou na organizaccedilatildeo de paiacuteses natildeo alinhados

Noutra ponta um novo projeto surgia desocidentalizaccedilatildeo Desocidentalizaccedilatildeoconsiste natildeo na rejeiccedilatildeo do capitalismo mas em sua apropriaccedilatildeo A primeiratentativa bem sucedida nessa direccedilatildeo foi Cingapura a segunda foi a Chinadesde Deng Xiaoping O terceiro projeto a guardar relaccedilatildeo com Bandungdecolonialidade ou opccedilatildeo decolonial ganhou especial robustez a partir doiniacutecio dos anos 1990 depois que o insucesso da descolonizaccedilatildeo da Aacutefrica e daAacutesia cou evidente e o fracasso do socialismo restou patente no colapso daUniatildeo Sovieacutetica Decolonialidade adquiriu a forma que aqui esboccedilamos nosAndes sul-americanos em decorrecircncia dos limites apresentados pela teoriada dependecircncia e a partir da obra do peruano Joseacute Carlos Mariaacutetegui AniacutebalQuijano tambeacutem peruano chamou a atenccedilatildeo para o fato de que modernidadee colonialidade satildeo dois lados da mesma moeda e para a consequente e urgente

necessidade de um desligamento ou desengajamento das cccedilotildees da modernidadee das violecircncias da colonialidade (Quijano 1998 2005 2007) Um dos alvos dadecolonialidade portanto eacute a recorrente anaacutelise do fenocircmeno da modernidade-colonialidade que eacute justamente o que nos propomos a fazer neste ensaio

Mas isso natildeo eacute tudo A decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeo sob a presidecircnciade George W Bush nos Estados Unidos e a emergecircncia da desocidentalizaccedilatildeolevaram agrave necessidade de renovaccedilatildeo da ocidentalizaccedilatildeo numa nova base Essafoi a primeira movimentaccedilatildeo do presidente norte-americano Barack Obama no

cenaacuterio internacional E tal projeto estaacute em plena execuccedilatildeo hoje na Ucracircniano Oriente Meacutedio nas tentativas de limitar as movimentaccedilotildees da China noPaciacuteco no restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba associado com o controleda Ameacuterica Central e a desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuela

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Chamemos de reocidentalizaccedilatildeo o renascimento de mais de quinhentos anosde ocidentalizaccedilatildeo

Modernidade como discurso

A elucidaccedilatildeo da natureza discursiva da modernidade e seus correla-tos ndash civilidade desenvolvimento democracia ndash nos parece ser preliminarateacute mesmo ao desvelamento do seu caraacuteter local provincial mais ainda a seudescortinamento como projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacuteticado mundo

Com efeito toda relaccedilatildeo do ser humano com o meio fiacutesico eacute mediada

pela linguagem e linguagem necessariamente envolve interaccedilatildeo social esimboacutelica Natildeo haacute pois verdade objetiva ou direta representaccedilatildeo do mundoexterior Tudo que existe eacute verdade intersubjetiva ou verdade construiacuteda na e

pela interaccedilatildeo dos sujeitos por meio do processo de vericaccedilatildeo ou produccedilatildeocoletiva da verdade Verdade cientiacuteca nesse sentido eacute aquela verdade

produzida pela comunidade cientiacuteca ou seja aquela verdade construiacutedanos termos e na forma admitidos pela comunidade dos cientistas e por issomesmo por eles raticada ou homologada e natildeo simplesmente pela dialeacuteticaestabelecida entre hipoacutetese e experimentaccedilatildeo Nada eacute mais ingecircnuo do que asuposiccedilatildeo de que a mera tabulaccedilatildeo de dados tidos e havidos como amostrasde uma realidade pretensamente exterior agraves interaccedilotildees sociais e simboacutelicascomo que automaticamente resulte numa representaccedilatildeo direta e imediata dessarealidade

Modernidade desenvolvimento democracia e direitos humanos portantonatildeo existem como realidades objetivas tampouco satildeo suas conceituaccedilotildeesrepresentaccedilotildees diretas ou imediatas de tais supostas realidades exterioresModernidade desenvolvimento democracia e cidadania assim como

mercado estado e naccedilatildeo satildeo realidades discursivas constituiacutedas e validadasno curso das interaccedilotildees simboacutelicas nem sempre plenamente conscientes entresujeitos individuais e coletivos tanto no plano micro quanto no plano macroespacial e temporalmente

Agrave modernidade no entanto interessa ocultar esse seu caraacuteter discursivo poliacutetico A ela interessa apresentar-se como realidade objetiva ldquonaturalrdquonecessaacuteria e inevitaacutevel eliminando assim toda e qualquer possibilidadede contestaccedilatildeo e de reexistecircncia ou busca de outros mundos Daiacute por que

entendemos que a dominaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que tambeacutem se esconde portraacutes da retoacuterica ocidental de modernidade emancipaccedilatildeo (liberal ou marxista)desenvolvimento e democracia comeccedila e termina com a dominaccedilatildeo cultural dainformaccedilatildeo e do conhecimento Enquanto a dominaccedilatildeo poliacutetica chegou ao m

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com a transformaccedilatildeo das colocircnias e de fragmentos das antigas civilizaccedilotildees emestados-naccedilotildees independentes e o domiacutenio econocircmico depois de globalizado

comeccedila a apresentar sinais de exaustatildeo a dominaccedilatildeo cultural da informaccedilatildeo edo conhecimento segue dando mostras de vitalidade e vigor nas universidadesnos museus teatros e cinemas nos jornais nas redes de televisatildeo e demaismeios de comunicaccedilatildeo pelo mundo afora Na verdade a cultura a informaccedilatildeoe o conhecimento sempre foram esferas privilegiadas de dominaccedilatildeo econocircmicae poliacutetica A diferenccedila eacute que nestes dias de capitalismo tardio ou poacutes-fordistaesse fato cou mais evidente

Mas se por um lado eacute no ser discurso sem se declarar como tal

apresentando-se antes como realidade objetiva ldquonaturalrdquo inexoraacutevel que o projeto de dominaccedilatildeo ocidental encontra sua forccedila por outro eacute tambeacutem aiacute quereside sua fraqueza Em outras palavras eacute exatamente devido agrave sua naturezadiscursiva que a modernidade e o projeto de dominaccedilatildeo ocidental que por traacutesdela se esconde como uma espeacutecie de subtexto podem ser contestados e novasformas de coexistecircncia humana podem ser imaginadas e articuladas Natildeo eacute

por outra razatildeo que o primeiro e mais fundamental passo proposto pela opccedilatildeodecolonial eacute justamente o desligamento ou desengajamento epistecircmico

Modernidade como discurso local com pretensotildees universais

A modernidade e seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento demo-cracia e direitos humanos ndash natildeo somente satildeo realidades discursivas satildeotambeacutem narrativas articuladas a partir das experiecircncias histoacutericas e locais dediferentes povos europeus ainda que se apresentem como verdades objetivasldquonaturaisrdquo universais comuns a todos os povos que habitam o planeta

Ao longo dos tempos os diferentes agrupamentos humanos tecircmarticulado discursos a partir das proacuteprias histoacuterias locais formas de interaccedilatildeo e

comunicaccedilatildeo crenccedilas ciecircncias e instituiccedilotildees Agrave medida que os agrupamentoshumanos tecircm interagido uns com os outros os discursos tecircm aumentado seualcance transcendendo limites espaciais e temporais o que por sua vez temampliado o acircmbito das interaccedilotildees Nunca entretanto qualquer outro discursochegou a atingir caraacuteter tatildeo universalista e totalitaacuterio como o articulado peloseuropeus ocidentais a partir do seacuteculo 16

A comeccedilar com o Renascimento e culminando com o Iluminismo oseuropeus passaram a se ver como sendo o centro do mundo e o cliacutemax da

evoluccedilatildeo humana Natildeo apenas criaram uma geograa em que se localizamno centro e os outros povos satildeo localizados na periferia mas tambeacutem inven-taram uma histoacuteria em que se situam no presente de uma linha do tempoque evolui de um estado da natureza a um estado racional civilizado e os

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demais povos embora contemporacircneos satildeo situados no passado satildeo primi- tivizados

Nesse discurso italianos espanhoacuteis e portugueses a partir do Re-nascimento e holandeses britacircnicos franceses e alematildees desde o Iluminismorepresentam sua visatildeo de mundo como sendo a visatildeo de todo mundo suacultura literatura arte losoa ciecircncia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e

poliacutetica como sendo universais Apresentam a si proacuteprios como a forma nal eacabada da humanidade

Tal discurso de modernidade racionalidade desenvolvimentodemocracia e direitos humanos natildeo somente procura esconder seu caraacuteter

local regional europeu por traacutes de uma maacutescara universal mas tambeacutem busca ocultar a participaccedilatildeo de natildeo europeus em sua articulaccedilatildeo dialoacutegica Na verdade os natildeo europeus ldquonatildeo ocidentaisrdquo satildeo totalmente excluiacutedos dodiaacutelogo sequer satildeo considerados Outros propriamente ditos ao contraacuteriosatildeo dessubjetivizados reduzidos a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo Mais natildeo apenas nega a participaccedilatildeo de natildeo europeus em suaarticulaccedilatildeo dialoacutegica por natildeo consideraacute-los sujeitos ndash natildeo admitindo porexemplo o fato de que natildeo haveria Europa se natildeo existissem a Ameacuterica aAacutefrica e a Aacutesia ndash o discurso europeu ocidental suprime todo e qualquer outrodiscurso Ou seja aleacutem de se apresentar como totalidade o discurso europeuocidental eacute tambeacutem totalitaacuterio

Daiacute por que o desligamento ou desengajamento epistecircmico ndash o primeiro emais importante passo na direccedilatildeo da decolonialidade ao qual jaacute nos referimosna parte anterior ndash implica a adoccedilatildeo de uma geopoliacutetica e uma corpopoliacuteticado conhecimento que de um lado denuncie a pretensatildeo universal e portantoo totalitarismo de uma particular etnia (corpopoliacutetica) localizada numa parteespeciacuteca do planeta (geopoliacutetica) e de outro crie condiccedilotildees de possibilidade

para a contestaccedilatildeo e a reexistecircncia de outras etnicidades numa espeacutecie de pluriversalidade

Modernidade como colonialidade

Discursividade e localidade no entanto natildeo satildeo tudo o que se escondeno subtexto do discurso de modernidade Por traacutes da retoacuterica de emancipaccedilatildeodesenvolvimento tecnologia democracia e direitos humanos tambeacutem seoculta um projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacutetica do mundo

inicialmente liderado pela Espanha e Portugal (do seacuteculo 16 a meados doseacuteculo 18) depois pela Holanda Gratilde-Bretanha e Franccedila (de meados do seacuteculo18 a meados do seacuteculo 20) e nalmente pelos Estados Unidos (de meados doseacuteculo 20 aos dias de hoje)

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Obviamente o periacuteodo que antecede o seacuteculo 16 registra outros casosde expansatildeo colonial e imperial mas nenhum apresentou a mesma natureza

e o mesmo alcance do colonialismo e do imperialismo modernos Diferentesformaccedilotildees sociais se desenvolveram em diversas regiotildees do mundo nummovimento expansionista que envolveu a colonizaccedilatildeo de vaacuterias outraslocalizadas em suas margens e certo controle sobre tantas outras situadas emsuas submargens Nenhuma contudo chegou ao ponto de articular um discursotatildeo universalista e totalitaacuterio como o que veio a ser estruturado pelos europeusocidentais a partir do Renascimento Podemos ateacute considerar algumas dessasformaccedilotildees sociais antigas como impeacuterios mas jamais qualquer delas chegou

a se tornar tatildeo imperialista quanto a moderna Europa ocidental e seu legataacuterioanglo-americano os Estados UnidosAssim eacute que a partir do ldquomarco zerordquo e do ldquotopo da escalada civilizatoacuteriardquo

e tomando a proacutepria cosmologia ciecircncia e tecnologia forma de organizaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica como valores e regras universais os europeus saiacuteram adividir o mundo entre ocidente e oriente norte e sul baacuterbaros e civilizadostradicionais e modernos criando novas identidades sociais como ldquoiacutendiordquoldquonegrordquo e ldquomesticcedilordquo e recriando outras tantas ldquoEspanhoacuteisrdquo ldquoportuguesesrdquo emais tarde ldquoeuropeusrdquo que antes simplesmente indicavam origem geograacutecaadquiriram em relaccedilatildeo a essas novas identidades conotaccedilatildeo racial (Quijano2005)

Com a becircnccedilatildeo papal os reis catoacutelicos da Espanha e Portugal dividiramentre si as imensas porccedilotildees de terra por seus navegantes e mercadoresldquodescobertasrdquo em suas tentativas de chegar agraves Iacutendias pelo oeste (Tratado deTordesilhas 1494) razatildeo pela qual as denominaram ldquoIacutendias OcidentaisrdquoAnos depois em 1529 foi a vez de as ldquoIacutendias Orientaisrdquo serem repartidasentre esses dois impeacuterios cristatildeos (Tratado de Saragoccedila) Um pouco mais

de um seacuteculo agrave frente as novas potecircncias europeias Holanda Gratilde-Bretanhae Franccedila passaram a disputar com espanhoacuteis e portugueses o controle e aexploraccedilatildeo dos territoacuterios e dos povos da Ameacuterica da Aacutesia e da Aacutefrica Paraaqueacutem das linhas divisoacuterias globais reinava o estado de direito em outras

palavras as vaacuterias formaccedilotildees sociais europeias jaacute estruturadas como estados-naccedilotildees (na verdade uma combinaccedilatildeo indissociaacutevel de capital estado e naccedilatildeo)regulavam-se pelo direito interestatal ou internacional Para aleacutem de tais linhasdivisoacuterias imperava o estado da natureza e o mundo era ldquolivrerdquo ndash livre para

ser dominado apropriado e explorado De fato a partir do momento que oseuropeus ocidentais se inventaram como estados-naccedilotildees em suas interaccedilotildeese intercacircmbios com outros povos e etnias a nada e a ningueacutem reconheciamcomo sujeito a menos que tivesse a mesma conguraccedilatildeo Em outras palavras

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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Abstract In this essay we argue (1) that modernity is not the ontological unfoldingof a universal history but rather the interpretation of certain events by actors andinstitutions that saw and see themselves as being in the center of the Earth and inthe present of a universal time (2) that this interpretation is locally and regionallyconditioned it is Western European despite presenting itself as universal and globalthat is the enunciation is local in spite of the enunciated be global (3) that behind atriumphalist discourse modernity hides the horrors that constitute it coloniality this isthe very reason why we believe that modernity can not be understood without colonialityand coloniality can not be overcome by modernity and (4) that this rhetoric of salvationof mankind and its most recent expressions ndash development and globalism ndash articulated

by agents and institutions that control the production of knowledge and translate theirown privileges into promises for the rest of the world as well as the project of culturaleconomic and political domination that it promotes especially starting from the second

decade of the twentieth century have shown signs of weakening in the same proportionas dissident discourses and projects of re-existence including the de-colonial option based on which we formulate our argument have gained strengthKeywords Modernity Universalism Westernization Coloniality Dewesternization Decoloniality

Introduccedilatildeo

Quando a ideia de Brasil foi inventada e como essa invenccedilatildeo se tornouo fundamento de uma histoacuteria territorial que apagou outras memoacuterias eterritorialidades O Brasil eacute parte da modernidade inventada no processo deconstituir a si mesma como modernidade Agrave eacutepoca natildeo era modernidade a

palavra usada mas re-nascimento A invenccedilatildeo do Brasil foi precedida pelainvenccedilatildeo das ldquoIacutendias Ocidentaisrdquo e do ldquoNovo Mundordquo este uacuteltimo termoutilizado pelos europeus para designar tudo aquilo que eles natildeo conheciamA invenccedilatildeo dessa histoacuteria territorial justicou a supressatildeo e ateacute mesmo ogenociacutedio de outras territorialidades e memoacuterias em nome do renascimento

e da salvaccedilatildeo O discurso emergente o discurso que se tornou o fundamentohistoacuterico do que mais recentemente tem sido narrado e celebrado comoldquomodernidaderdquo homogeneizou as grandes civilizaccedilotildees de Anahuac e Abya Yalaem barbaacutericos ldquoiacutendiosrdquo E a invenccedilatildeo do Brasil juntamente com a invenccedilatildeo do

Novo Mundo contribuiu para a justicaccedilatildeo de um segundo genociacutedio sobre oqual o imaginaacuterio de modernidade foi construiacutedo o genociacutedio dos africanosescravizados

Neste ensaio argumentamos (1) que modernidade natildeo eacute o desenrolar

ontoloacutegico de uma histoacuteria universal mas sim a interpretaccedilatildeo de certos eventos por atores e instituiccedilotildees que se viam e se veem como estando no centro daTerra e no presente de um tempo universal (2) que essa interpretaccedilatildeo eacute local eregionalmente condicionada eacute europeia ocidental embora se apresente como

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universal e global ou seja a enunciaccedilatildeo eacute local em que pese o enunciado serglobal (3) que por traacutes de um discurso triunfalista a modernidade esconde

os horrores que a constituem a colonialidade essa eacute a razatildeo mesma por queentendemos que modernidade natildeo pode ser compreendida sem colonialidadee que a colonialidade natildeo pode ser superada pela modernidade e (4) que aessa retoacuterica de salvaccedilatildeo da humanidade e suas expressotildees mais recentes ndashdesenvolvimento e globalismo ndash articulada por agentes e instituiccedilotildees quecontrolam a produccedilatildeo do conhecimento e traduzem os proacuteprios privileacutegios em

promessas para o resto do mundo assim como o projeto de dominaccedilatildeo culturaleconocircmica e poliacutetica que ela promove especialmente a partir da segunda

deacutecada do seacuteculo 20 vecircm apresentando sinais de enfraquecimento na mesma proporccedilatildeo em que discursos e projetos dissidentes de re-existecircncia entre osquais a opccedilatildeo decolonial baseada na qual formulamos nosso argumento vecircmganhando forccedila

Discurso no sentido em que o empregamos neste ensaio transcendea simples ideia de pronunciamento oral ou escrito para referir-se a todo umconjunto de percepccedilotildees de si e do mundo que as diferentes comunidades desujeitos elaboram interativamente Inclui cosmologia arte losoa ciecircnciatecnologia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica direito Em muitoscontextos eacute sinocircnimo de imaginaacuterio narrativa e mesmo retoacuterica na acepccedilatildeode discurso orientado agrave persuasatildeo de ouvintes e leitores

Do mesmo modo colonialidade ou colonialidade do poder transcende amera noccedilatildeo de colonialismo para referir-se ao conjunto de princiacutepios baseadosnos quais a narrativa salvacionista e triunfalista de renascimento e modernidadefoi construiacuteda justicando expropriaccedilatildeo exploraccedilatildeo e toda sorte de violecircnciaem nome de uma salvaccedilatildeo cristatilde ou de um renascimento e progresso secularesColonialidade do poder refere-se pois a um coacutedigo conceitual fundamentado

no qual a ideia de civilizaccedilatildeo ocidental legitima a si mesma ndash por meio deatores instituiccedilotildees linguagens ndash como controladora natildeo soacute da economia eda autoridade mas tambeacutem da subjetividade e do conhecimento de povos eetnias natildeo ocidentais A desumanizaccedilatildeo de habitantes natildeo europeus do globofoi necessaacuteria para justicar o controle de tais ldquoseres humanos inferioresrdquoRacismo como o conhecemos hoje foi estabelecido agravequela eacutepoca Racismonatildeo eacute bioloacutegico mas sim epistecircmico eacute a classicaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo deumas pessoas por outras que controlam a produccedilatildeo do conhecimento que estatildeo

em posiccedilatildeo de atribuir credibilidade a tal classicaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo e queestabelecem a si mesmas como o padratildeo ldquoos humanosrdquo ndash todos os demaissatildeo apenas diferentes graus de quase ou semi-humanos Colonialidade eacute por-tanto constitutiva de modernidade Modernidade-colonialidade ndash expressatildeo

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pela qual descrevemos esse fenocircmeno ndash eacute por conseguinte sinocircnimo deocidentalizaccedilatildeo Ocidentalizaccedilatildeo designa o conjunto de projetos globais ndash

sempre em mutaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo ndash que visam agrave disseminaccedilatildeo dos valores dacivilizaccedilatildeo ocidental em escala planetaacuteria

Decolonialidade por sua vez abrange natildeo apenas os movimentos detransformaccedilatildeo das ex-colocircnias europeias em estados-naccedilotildees independen-tes ndash descolonizaccedilatildeo ndash como tambeacutem os esforccedilos de desligamento oudesengajamento subjetivo epistecircmico econocircmico e poliacutetico em face do

projeto de dominaccedilatildeo ocidental esforccedilos que antecederam tais movimentosde descolonizaccedilatildeo ainda que soacute tenham vindo a ganhar musculatura a partir

da Conferecircncia de Bandung em meados da deacutecada de 1950 A Bandung naverdade estatildeo relacionados trecircs projetos de contestaccedilatildeo dos valores universaisda civilizaccedilatildeo ocidental e de sua pretensatildeo de dominar o mundo O primeirodeles a descolonizaccedilatildeo jaacute estava andamento na Aacutefrica e na Aacutesia Nessesentido Bandung se transformou na organizaccedilatildeo de paiacuteses natildeo alinhados

Noutra ponta um novo projeto surgia desocidentalizaccedilatildeo Desocidentalizaccedilatildeoconsiste natildeo na rejeiccedilatildeo do capitalismo mas em sua apropriaccedilatildeo A primeiratentativa bem sucedida nessa direccedilatildeo foi Cingapura a segunda foi a Chinadesde Deng Xiaoping O terceiro projeto a guardar relaccedilatildeo com Bandungdecolonialidade ou opccedilatildeo decolonial ganhou especial robustez a partir doiniacutecio dos anos 1990 depois que o insucesso da descolonizaccedilatildeo da Aacutefrica e daAacutesia cou evidente e o fracasso do socialismo restou patente no colapso daUniatildeo Sovieacutetica Decolonialidade adquiriu a forma que aqui esboccedilamos nosAndes sul-americanos em decorrecircncia dos limites apresentados pela teoriada dependecircncia e a partir da obra do peruano Joseacute Carlos Mariaacutetegui AniacutebalQuijano tambeacutem peruano chamou a atenccedilatildeo para o fato de que modernidadee colonialidade satildeo dois lados da mesma moeda e para a consequente e urgente

necessidade de um desligamento ou desengajamento das cccedilotildees da modernidadee das violecircncias da colonialidade (Quijano 1998 2005 2007) Um dos alvos dadecolonialidade portanto eacute a recorrente anaacutelise do fenocircmeno da modernidade-colonialidade que eacute justamente o que nos propomos a fazer neste ensaio

Mas isso natildeo eacute tudo A decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeo sob a presidecircnciade George W Bush nos Estados Unidos e a emergecircncia da desocidentalizaccedilatildeolevaram agrave necessidade de renovaccedilatildeo da ocidentalizaccedilatildeo numa nova base Essafoi a primeira movimentaccedilatildeo do presidente norte-americano Barack Obama no

cenaacuterio internacional E tal projeto estaacute em plena execuccedilatildeo hoje na Ucracircniano Oriente Meacutedio nas tentativas de limitar as movimentaccedilotildees da China noPaciacuteco no restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba associado com o controleda Ameacuterica Central e a desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuela

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Chamemos de reocidentalizaccedilatildeo o renascimento de mais de quinhentos anosde ocidentalizaccedilatildeo

Modernidade como discurso

A elucidaccedilatildeo da natureza discursiva da modernidade e seus correla-tos ndash civilidade desenvolvimento democracia ndash nos parece ser preliminarateacute mesmo ao desvelamento do seu caraacuteter local provincial mais ainda a seudescortinamento como projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacuteticado mundo

Com efeito toda relaccedilatildeo do ser humano com o meio fiacutesico eacute mediada

pela linguagem e linguagem necessariamente envolve interaccedilatildeo social esimboacutelica Natildeo haacute pois verdade objetiva ou direta representaccedilatildeo do mundoexterior Tudo que existe eacute verdade intersubjetiva ou verdade construiacuteda na e

pela interaccedilatildeo dos sujeitos por meio do processo de vericaccedilatildeo ou produccedilatildeocoletiva da verdade Verdade cientiacuteca nesse sentido eacute aquela verdade

produzida pela comunidade cientiacuteca ou seja aquela verdade construiacutedanos termos e na forma admitidos pela comunidade dos cientistas e por issomesmo por eles raticada ou homologada e natildeo simplesmente pela dialeacuteticaestabelecida entre hipoacutetese e experimentaccedilatildeo Nada eacute mais ingecircnuo do que asuposiccedilatildeo de que a mera tabulaccedilatildeo de dados tidos e havidos como amostrasde uma realidade pretensamente exterior agraves interaccedilotildees sociais e simboacutelicascomo que automaticamente resulte numa representaccedilatildeo direta e imediata dessarealidade

Modernidade desenvolvimento democracia e direitos humanos portantonatildeo existem como realidades objetivas tampouco satildeo suas conceituaccedilotildeesrepresentaccedilotildees diretas ou imediatas de tais supostas realidades exterioresModernidade desenvolvimento democracia e cidadania assim como

mercado estado e naccedilatildeo satildeo realidades discursivas constituiacutedas e validadasno curso das interaccedilotildees simboacutelicas nem sempre plenamente conscientes entresujeitos individuais e coletivos tanto no plano micro quanto no plano macroespacial e temporalmente

Agrave modernidade no entanto interessa ocultar esse seu caraacuteter discursivo poliacutetico A ela interessa apresentar-se como realidade objetiva ldquonaturalrdquonecessaacuteria e inevitaacutevel eliminando assim toda e qualquer possibilidadede contestaccedilatildeo e de reexistecircncia ou busca de outros mundos Daiacute por que

entendemos que a dominaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que tambeacutem se esconde portraacutes da retoacuterica ocidental de modernidade emancipaccedilatildeo (liberal ou marxista)desenvolvimento e democracia comeccedila e termina com a dominaccedilatildeo cultural dainformaccedilatildeo e do conhecimento Enquanto a dominaccedilatildeo poliacutetica chegou ao m

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com a transformaccedilatildeo das colocircnias e de fragmentos das antigas civilizaccedilotildees emestados-naccedilotildees independentes e o domiacutenio econocircmico depois de globalizado

comeccedila a apresentar sinais de exaustatildeo a dominaccedilatildeo cultural da informaccedilatildeo edo conhecimento segue dando mostras de vitalidade e vigor nas universidadesnos museus teatros e cinemas nos jornais nas redes de televisatildeo e demaismeios de comunicaccedilatildeo pelo mundo afora Na verdade a cultura a informaccedilatildeoe o conhecimento sempre foram esferas privilegiadas de dominaccedilatildeo econocircmicae poliacutetica A diferenccedila eacute que nestes dias de capitalismo tardio ou poacutes-fordistaesse fato cou mais evidente

Mas se por um lado eacute no ser discurso sem se declarar como tal

apresentando-se antes como realidade objetiva ldquonaturalrdquo inexoraacutevel que o projeto de dominaccedilatildeo ocidental encontra sua forccedila por outro eacute tambeacutem aiacute quereside sua fraqueza Em outras palavras eacute exatamente devido agrave sua naturezadiscursiva que a modernidade e o projeto de dominaccedilatildeo ocidental que por traacutesdela se esconde como uma espeacutecie de subtexto podem ser contestados e novasformas de coexistecircncia humana podem ser imaginadas e articuladas Natildeo eacute

por outra razatildeo que o primeiro e mais fundamental passo proposto pela opccedilatildeodecolonial eacute justamente o desligamento ou desengajamento epistecircmico

Modernidade como discurso local com pretensotildees universais

A modernidade e seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento demo-cracia e direitos humanos ndash natildeo somente satildeo realidades discursivas satildeotambeacutem narrativas articuladas a partir das experiecircncias histoacutericas e locais dediferentes povos europeus ainda que se apresentem como verdades objetivasldquonaturaisrdquo universais comuns a todos os povos que habitam o planeta

Ao longo dos tempos os diferentes agrupamentos humanos tecircmarticulado discursos a partir das proacuteprias histoacuterias locais formas de interaccedilatildeo e

comunicaccedilatildeo crenccedilas ciecircncias e instituiccedilotildees Agrave medida que os agrupamentoshumanos tecircm interagido uns com os outros os discursos tecircm aumentado seualcance transcendendo limites espaciais e temporais o que por sua vez temampliado o acircmbito das interaccedilotildees Nunca entretanto qualquer outro discursochegou a atingir caraacuteter tatildeo universalista e totalitaacuterio como o articulado peloseuropeus ocidentais a partir do seacuteculo 16

A comeccedilar com o Renascimento e culminando com o Iluminismo oseuropeus passaram a se ver como sendo o centro do mundo e o cliacutemax da

evoluccedilatildeo humana Natildeo apenas criaram uma geograa em que se localizamno centro e os outros povos satildeo localizados na periferia mas tambeacutem inven-taram uma histoacuteria em que se situam no presente de uma linha do tempoque evolui de um estado da natureza a um estado racional civilizado e os

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demais povos embora contemporacircneos satildeo situados no passado satildeo primi- tivizados

Nesse discurso italianos espanhoacuteis e portugueses a partir do Re-nascimento e holandeses britacircnicos franceses e alematildees desde o Iluminismorepresentam sua visatildeo de mundo como sendo a visatildeo de todo mundo suacultura literatura arte losoa ciecircncia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e

poliacutetica como sendo universais Apresentam a si proacuteprios como a forma nal eacabada da humanidade

Tal discurso de modernidade racionalidade desenvolvimentodemocracia e direitos humanos natildeo somente procura esconder seu caraacuteter

local regional europeu por traacutes de uma maacutescara universal mas tambeacutem busca ocultar a participaccedilatildeo de natildeo europeus em sua articulaccedilatildeo dialoacutegica Na verdade os natildeo europeus ldquonatildeo ocidentaisrdquo satildeo totalmente excluiacutedos dodiaacutelogo sequer satildeo considerados Outros propriamente ditos ao contraacuteriosatildeo dessubjetivizados reduzidos a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo Mais natildeo apenas nega a participaccedilatildeo de natildeo europeus em suaarticulaccedilatildeo dialoacutegica por natildeo consideraacute-los sujeitos ndash natildeo admitindo porexemplo o fato de que natildeo haveria Europa se natildeo existissem a Ameacuterica aAacutefrica e a Aacutesia ndash o discurso europeu ocidental suprime todo e qualquer outrodiscurso Ou seja aleacutem de se apresentar como totalidade o discurso europeuocidental eacute tambeacutem totalitaacuterio

Daiacute por que o desligamento ou desengajamento epistecircmico ndash o primeiro emais importante passo na direccedilatildeo da decolonialidade ao qual jaacute nos referimosna parte anterior ndash implica a adoccedilatildeo de uma geopoliacutetica e uma corpopoliacuteticado conhecimento que de um lado denuncie a pretensatildeo universal e portantoo totalitarismo de uma particular etnia (corpopoliacutetica) localizada numa parteespeciacuteca do planeta (geopoliacutetica) e de outro crie condiccedilotildees de possibilidade

para a contestaccedilatildeo e a reexistecircncia de outras etnicidades numa espeacutecie de pluriversalidade

Modernidade como colonialidade

Discursividade e localidade no entanto natildeo satildeo tudo o que se escondeno subtexto do discurso de modernidade Por traacutes da retoacuterica de emancipaccedilatildeodesenvolvimento tecnologia democracia e direitos humanos tambeacutem seoculta um projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacutetica do mundo

inicialmente liderado pela Espanha e Portugal (do seacuteculo 16 a meados doseacuteculo 18) depois pela Holanda Gratilde-Bretanha e Franccedila (de meados do seacuteculo18 a meados do seacuteculo 20) e nalmente pelos Estados Unidos (de meados doseacuteculo 20 aos dias de hoje)

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Obviamente o periacuteodo que antecede o seacuteculo 16 registra outros casosde expansatildeo colonial e imperial mas nenhum apresentou a mesma natureza

e o mesmo alcance do colonialismo e do imperialismo modernos Diferentesformaccedilotildees sociais se desenvolveram em diversas regiotildees do mundo nummovimento expansionista que envolveu a colonizaccedilatildeo de vaacuterias outraslocalizadas em suas margens e certo controle sobre tantas outras situadas emsuas submargens Nenhuma contudo chegou ao ponto de articular um discursotatildeo universalista e totalitaacuterio como o que veio a ser estruturado pelos europeusocidentais a partir do Renascimento Podemos ateacute considerar algumas dessasformaccedilotildees sociais antigas como impeacuterios mas jamais qualquer delas chegou

a se tornar tatildeo imperialista quanto a moderna Europa ocidental e seu legataacuterioanglo-americano os Estados UnidosAssim eacute que a partir do ldquomarco zerordquo e do ldquotopo da escalada civilizatoacuteriardquo

e tomando a proacutepria cosmologia ciecircncia e tecnologia forma de organizaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica como valores e regras universais os europeus saiacuteram adividir o mundo entre ocidente e oriente norte e sul baacuterbaros e civilizadostradicionais e modernos criando novas identidades sociais como ldquoiacutendiordquoldquonegrordquo e ldquomesticcedilordquo e recriando outras tantas ldquoEspanhoacuteisrdquo ldquoportuguesesrdquo emais tarde ldquoeuropeusrdquo que antes simplesmente indicavam origem geograacutecaadquiriram em relaccedilatildeo a essas novas identidades conotaccedilatildeo racial (Quijano2005)

Com a becircnccedilatildeo papal os reis catoacutelicos da Espanha e Portugal dividiramentre si as imensas porccedilotildees de terra por seus navegantes e mercadoresldquodescobertasrdquo em suas tentativas de chegar agraves Iacutendias pelo oeste (Tratado deTordesilhas 1494) razatildeo pela qual as denominaram ldquoIacutendias OcidentaisrdquoAnos depois em 1529 foi a vez de as ldquoIacutendias Orientaisrdquo serem repartidasentre esses dois impeacuterios cristatildeos (Tratado de Saragoccedila) Um pouco mais

de um seacuteculo agrave frente as novas potecircncias europeias Holanda Gratilde-Bretanhae Franccedila passaram a disputar com espanhoacuteis e portugueses o controle e aexploraccedilatildeo dos territoacuterios e dos povos da Ameacuterica da Aacutesia e da Aacutefrica Paraaqueacutem das linhas divisoacuterias globais reinava o estado de direito em outras

palavras as vaacuterias formaccedilotildees sociais europeias jaacute estruturadas como estados-naccedilotildees (na verdade uma combinaccedilatildeo indissociaacutevel de capital estado e naccedilatildeo)regulavam-se pelo direito interestatal ou internacional Para aleacutem de tais linhasdivisoacuterias imperava o estado da natureza e o mundo era ldquolivrerdquo ndash livre para

ser dominado apropriado e explorado De fato a partir do momento que oseuropeus ocidentais se inventaram como estados-naccedilotildees em suas interaccedilotildeese intercacircmbios com outros povos e etnias a nada e a ningueacutem reconheciamcomo sujeito a menos que tivesse a mesma conguraccedilatildeo Em outras palavras

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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universal e global ou seja a enunciaccedilatildeo eacute local em que pese o enunciado serglobal (3) que por traacutes de um discurso triunfalista a modernidade esconde

os horrores que a constituem a colonialidade essa eacute a razatildeo mesma por queentendemos que modernidade natildeo pode ser compreendida sem colonialidadee que a colonialidade natildeo pode ser superada pela modernidade e (4) que aessa retoacuterica de salvaccedilatildeo da humanidade e suas expressotildees mais recentes ndashdesenvolvimento e globalismo ndash articulada por agentes e instituiccedilotildees quecontrolam a produccedilatildeo do conhecimento e traduzem os proacuteprios privileacutegios em

promessas para o resto do mundo assim como o projeto de dominaccedilatildeo culturaleconocircmica e poliacutetica que ela promove especialmente a partir da segunda

deacutecada do seacuteculo 20 vecircm apresentando sinais de enfraquecimento na mesma proporccedilatildeo em que discursos e projetos dissidentes de re-existecircncia entre osquais a opccedilatildeo decolonial baseada na qual formulamos nosso argumento vecircmganhando forccedila

Discurso no sentido em que o empregamos neste ensaio transcendea simples ideia de pronunciamento oral ou escrito para referir-se a todo umconjunto de percepccedilotildees de si e do mundo que as diferentes comunidades desujeitos elaboram interativamente Inclui cosmologia arte losoa ciecircnciatecnologia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica direito Em muitoscontextos eacute sinocircnimo de imaginaacuterio narrativa e mesmo retoacuterica na acepccedilatildeode discurso orientado agrave persuasatildeo de ouvintes e leitores

Do mesmo modo colonialidade ou colonialidade do poder transcende amera noccedilatildeo de colonialismo para referir-se ao conjunto de princiacutepios baseadosnos quais a narrativa salvacionista e triunfalista de renascimento e modernidadefoi construiacuteda justicando expropriaccedilatildeo exploraccedilatildeo e toda sorte de violecircnciaem nome de uma salvaccedilatildeo cristatilde ou de um renascimento e progresso secularesColonialidade do poder refere-se pois a um coacutedigo conceitual fundamentado

no qual a ideia de civilizaccedilatildeo ocidental legitima a si mesma ndash por meio deatores instituiccedilotildees linguagens ndash como controladora natildeo soacute da economia eda autoridade mas tambeacutem da subjetividade e do conhecimento de povos eetnias natildeo ocidentais A desumanizaccedilatildeo de habitantes natildeo europeus do globofoi necessaacuteria para justicar o controle de tais ldquoseres humanos inferioresrdquoRacismo como o conhecemos hoje foi estabelecido agravequela eacutepoca Racismonatildeo eacute bioloacutegico mas sim epistecircmico eacute a classicaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo deumas pessoas por outras que controlam a produccedilatildeo do conhecimento que estatildeo

em posiccedilatildeo de atribuir credibilidade a tal classicaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo e queestabelecem a si mesmas como o padratildeo ldquoos humanosrdquo ndash todos os demaissatildeo apenas diferentes graus de quase ou semi-humanos Colonialidade eacute por-tanto constitutiva de modernidade Modernidade-colonialidade ndash expressatildeo

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pela qual descrevemos esse fenocircmeno ndash eacute por conseguinte sinocircnimo deocidentalizaccedilatildeo Ocidentalizaccedilatildeo designa o conjunto de projetos globais ndash

sempre em mutaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo ndash que visam agrave disseminaccedilatildeo dos valores dacivilizaccedilatildeo ocidental em escala planetaacuteria

Decolonialidade por sua vez abrange natildeo apenas os movimentos detransformaccedilatildeo das ex-colocircnias europeias em estados-naccedilotildees independen-tes ndash descolonizaccedilatildeo ndash como tambeacutem os esforccedilos de desligamento oudesengajamento subjetivo epistecircmico econocircmico e poliacutetico em face do

projeto de dominaccedilatildeo ocidental esforccedilos que antecederam tais movimentosde descolonizaccedilatildeo ainda que soacute tenham vindo a ganhar musculatura a partir

da Conferecircncia de Bandung em meados da deacutecada de 1950 A Bandung naverdade estatildeo relacionados trecircs projetos de contestaccedilatildeo dos valores universaisda civilizaccedilatildeo ocidental e de sua pretensatildeo de dominar o mundo O primeirodeles a descolonizaccedilatildeo jaacute estava andamento na Aacutefrica e na Aacutesia Nessesentido Bandung se transformou na organizaccedilatildeo de paiacuteses natildeo alinhados

Noutra ponta um novo projeto surgia desocidentalizaccedilatildeo Desocidentalizaccedilatildeoconsiste natildeo na rejeiccedilatildeo do capitalismo mas em sua apropriaccedilatildeo A primeiratentativa bem sucedida nessa direccedilatildeo foi Cingapura a segunda foi a Chinadesde Deng Xiaoping O terceiro projeto a guardar relaccedilatildeo com Bandungdecolonialidade ou opccedilatildeo decolonial ganhou especial robustez a partir doiniacutecio dos anos 1990 depois que o insucesso da descolonizaccedilatildeo da Aacutefrica e daAacutesia cou evidente e o fracasso do socialismo restou patente no colapso daUniatildeo Sovieacutetica Decolonialidade adquiriu a forma que aqui esboccedilamos nosAndes sul-americanos em decorrecircncia dos limites apresentados pela teoriada dependecircncia e a partir da obra do peruano Joseacute Carlos Mariaacutetegui AniacutebalQuijano tambeacutem peruano chamou a atenccedilatildeo para o fato de que modernidadee colonialidade satildeo dois lados da mesma moeda e para a consequente e urgente

necessidade de um desligamento ou desengajamento das cccedilotildees da modernidadee das violecircncias da colonialidade (Quijano 1998 2005 2007) Um dos alvos dadecolonialidade portanto eacute a recorrente anaacutelise do fenocircmeno da modernidade-colonialidade que eacute justamente o que nos propomos a fazer neste ensaio

Mas isso natildeo eacute tudo A decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeo sob a presidecircnciade George W Bush nos Estados Unidos e a emergecircncia da desocidentalizaccedilatildeolevaram agrave necessidade de renovaccedilatildeo da ocidentalizaccedilatildeo numa nova base Essafoi a primeira movimentaccedilatildeo do presidente norte-americano Barack Obama no

cenaacuterio internacional E tal projeto estaacute em plena execuccedilatildeo hoje na Ucracircniano Oriente Meacutedio nas tentativas de limitar as movimentaccedilotildees da China noPaciacuteco no restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba associado com o controleda Ameacuterica Central e a desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuela

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Chamemos de reocidentalizaccedilatildeo o renascimento de mais de quinhentos anosde ocidentalizaccedilatildeo

Modernidade como discurso

A elucidaccedilatildeo da natureza discursiva da modernidade e seus correla-tos ndash civilidade desenvolvimento democracia ndash nos parece ser preliminarateacute mesmo ao desvelamento do seu caraacuteter local provincial mais ainda a seudescortinamento como projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacuteticado mundo

Com efeito toda relaccedilatildeo do ser humano com o meio fiacutesico eacute mediada

pela linguagem e linguagem necessariamente envolve interaccedilatildeo social esimboacutelica Natildeo haacute pois verdade objetiva ou direta representaccedilatildeo do mundoexterior Tudo que existe eacute verdade intersubjetiva ou verdade construiacuteda na e

pela interaccedilatildeo dos sujeitos por meio do processo de vericaccedilatildeo ou produccedilatildeocoletiva da verdade Verdade cientiacuteca nesse sentido eacute aquela verdade

produzida pela comunidade cientiacuteca ou seja aquela verdade construiacutedanos termos e na forma admitidos pela comunidade dos cientistas e por issomesmo por eles raticada ou homologada e natildeo simplesmente pela dialeacuteticaestabelecida entre hipoacutetese e experimentaccedilatildeo Nada eacute mais ingecircnuo do que asuposiccedilatildeo de que a mera tabulaccedilatildeo de dados tidos e havidos como amostrasde uma realidade pretensamente exterior agraves interaccedilotildees sociais e simboacutelicascomo que automaticamente resulte numa representaccedilatildeo direta e imediata dessarealidade

Modernidade desenvolvimento democracia e direitos humanos portantonatildeo existem como realidades objetivas tampouco satildeo suas conceituaccedilotildeesrepresentaccedilotildees diretas ou imediatas de tais supostas realidades exterioresModernidade desenvolvimento democracia e cidadania assim como

mercado estado e naccedilatildeo satildeo realidades discursivas constituiacutedas e validadasno curso das interaccedilotildees simboacutelicas nem sempre plenamente conscientes entresujeitos individuais e coletivos tanto no plano micro quanto no plano macroespacial e temporalmente

Agrave modernidade no entanto interessa ocultar esse seu caraacuteter discursivo poliacutetico A ela interessa apresentar-se como realidade objetiva ldquonaturalrdquonecessaacuteria e inevitaacutevel eliminando assim toda e qualquer possibilidadede contestaccedilatildeo e de reexistecircncia ou busca de outros mundos Daiacute por que

entendemos que a dominaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que tambeacutem se esconde portraacutes da retoacuterica ocidental de modernidade emancipaccedilatildeo (liberal ou marxista)desenvolvimento e democracia comeccedila e termina com a dominaccedilatildeo cultural dainformaccedilatildeo e do conhecimento Enquanto a dominaccedilatildeo poliacutetica chegou ao m

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com a transformaccedilatildeo das colocircnias e de fragmentos das antigas civilizaccedilotildees emestados-naccedilotildees independentes e o domiacutenio econocircmico depois de globalizado

comeccedila a apresentar sinais de exaustatildeo a dominaccedilatildeo cultural da informaccedilatildeo edo conhecimento segue dando mostras de vitalidade e vigor nas universidadesnos museus teatros e cinemas nos jornais nas redes de televisatildeo e demaismeios de comunicaccedilatildeo pelo mundo afora Na verdade a cultura a informaccedilatildeoe o conhecimento sempre foram esferas privilegiadas de dominaccedilatildeo econocircmicae poliacutetica A diferenccedila eacute que nestes dias de capitalismo tardio ou poacutes-fordistaesse fato cou mais evidente

Mas se por um lado eacute no ser discurso sem se declarar como tal

apresentando-se antes como realidade objetiva ldquonaturalrdquo inexoraacutevel que o projeto de dominaccedilatildeo ocidental encontra sua forccedila por outro eacute tambeacutem aiacute quereside sua fraqueza Em outras palavras eacute exatamente devido agrave sua naturezadiscursiva que a modernidade e o projeto de dominaccedilatildeo ocidental que por traacutesdela se esconde como uma espeacutecie de subtexto podem ser contestados e novasformas de coexistecircncia humana podem ser imaginadas e articuladas Natildeo eacute

por outra razatildeo que o primeiro e mais fundamental passo proposto pela opccedilatildeodecolonial eacute justamente o desligamento ou desengajamento epistecircmico

Modernidade como discurso local com pretensotildees universais

A modernidade e seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento demo-cracia e direitos humanos ndash natildeo somente satildeo realidades discursivas satildeotambeacutem narrativas articuladas a partir das experiecircncias histoacutericas e locais dediferentes povos europeus ainda que se apresentem como verdades objetivasldquonaturaisrdquo universais comuns a todos os povos que habitam o planeta

Ao longo dos tempos os diferentes agrupamentos humanos tecircmarticulado discursos a partir das proacuteprias histoacuterias locais formas de interaccedilatildeo e

comunicaccedilatildeo crenccedilas ciecircncias e instituiccedilotildees Agrave medida que os agrupamentoshumanos tecircm interagido uns com os outros os discursos tecircm aumentado seualcance transcendendo limites espaciais e temporais o que por sua vez temampliado o acircmbito das interaccedilotildees Nunca entretanto qualquer outro discursochegou a atingir caraacuteter tatildeo universalista e totalitaacuterio como o articulado peloseuropeus ocidentais a partir do seacuteculo 16

A comeccedilar com o Renascimento e culminando com o Iluminismo oseuropeus passaram a se ver como sendo o centro do mundo e o cliacutemax da

evoluccedilatildeo humana Natildeo apenas criaram uma geograa em que se localizamno centro e os outros povos satildeo localizados na periferia mas tambeacutem inven-taram uma histoacuteria em que se situam no presente de uma linha do tempoque evolui de um estado da natureza a um estado racional civilizado e os

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demais povos embora contemporacircneos satildeo situados no passado satildeo primi- tivizados

Nesse discurso italianos espanhoacuteis e portugueses a partir do Re-nascimento e holandeses britacircnicos franceses e alematildees desde o Iluminismorepresentam sua visatildeo de mundo como sendo a visatildeo de todo mundo suacultura literatura arte losoa ciecircncia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e

poliacutetica como sendo universais Apresentam a si proacuteprios como a forma nal eacabada da humanidade

Tal discurso de modernidade racionalidade desenvolvimentodemocracia e direitos humanos natildeo somente procura esconder seu caraacuteter

local regional europeu por traacutes de uma maacutescara universal mas tambeacutem busca ocultar a participaccedilatildeo de natildeo europeus em sua articulaccedilatildeo dialoacutegica Na verdade os natildeo europeus ldquonatildeo ocidentaisrdquo satildeo totalmente excluiacutedos dodiaacutelogo sequer satildeo considerados Outros propriamente ditos ao contraacuteriosatildeo dessubjetivizados reduzidos a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo Mais natildeo apenas nega a participaccedilatildeo de natildeo europeus em suaarticulaccedilatildeo dialoacutegica por natildeo consideraacute-los sujeitos ndash natildeo admitindo porexemplo o fato de que natildeo haveria Europa se natildeo existissem a Ameacuterica aAacutefrica e a Aacutesia ndash o discurso europeu ocidental suprime todo e qualquer outrodiscurso Ou seja aleacutem de se apresentar como totalidade o discurso europeuocidental eacute tambeacutem totalitaacuterio

Daiacute por que o desligamento ou desengajamento epistecircmico ndash o primeiro emais importante passo na direccedilatildeo da decolonialidade ao qual jaacute nos referimosna parte anterior ndash implica a adoccedilatildeo de uma geopoliacutetica e uma corpopoliacuteticado conhecimento que de um lado denuncie a pretensatildeo universal e portantoo totalitarismo de uma particular etnia (corpopoliacutetica) localizada numa parteespeciacuteca do planeta (geopoliacutetica) e de outro crie condiccedilotildees de possibilidade

para a contestaccedilatildeo e a reexistecircncia de outras etnicidades numa espeacutecie de pluriversalidade

Modernidade como colonialidade

Discursividade e localidade no entanto natildeo satildeo tudo o que se escondeno subtexto do discurso de modernidade Por traacutes da retoacuterica de emancipaccedilatildeodesenvolvimento tecnologia democracia e direitos humanos tambeacutem seoculta um projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacutetica do mundo

inicialmente liderado pela Espanha e Portugal (do seacuteculo 16 a meados doseacuteculo 18) depois pela Holanda Gratilde-Bretanha e Franccedila (de meados do seacuteculo18 a meados do seacuteculo 20) e nalmente pelos Estados Unidos (de meados doseacuteculo 20 aos dias de hoje)

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Obviamente o periacuteodo que antecede o seacuteculo 16 registra outros casosde expansatildeo colonial e imperial mas nenhum apresentou a mesma natureza

e o mesmo alcance do colonialismo e do imperialismo modernos Diferentesformaccedilotildees sociais se desenvolveram em diversas regiotildees do mundo nummovimento expansionista que envolveu a colonizaccedilatildeo de vaacuterias outraslocalizadas em suas margens e certo controle sobre tantas outras situadas emsuas submargens Nenhuma contudo chegou ao ponto de articular um discursotatildeo universalista e totalitaacuterio como o que veio a ser estruturado pelos europeusocidentais a partir do Renascimento Podemos ateacute considerar algumas dessasformaccedilotildees sociais antigas como impeacuterios mas jamais qualquer delas chegou

a se tornar tatildeo imperialista quanto a moderna Europa ocidental e seu legataacuterioanglo-americano os Estados UnidosAssim eacute que a partir do ldquomarco zerordquo e do ldquotopo da escalada civilizatoacuteriardquo

e tomando a proacutepria cosmologia ciecircncia e tecnologia forma de organizaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica como valores e regras universais os europeus saiacuteram adividir o mundo entre ocidente e oriente norte e sul baacuterbaros e civilizadostradicionais e modernos criando novas identidades sociais como ldquoiacutendiordquoldquonegrordquo e ldquomesticcedilordquo e recriando outras tantas ldquoEspanhoacuteisrdquo ldquoportuguesesrdquo emais tarde ldquoeuropeusrdquo que antes simplesmente indicavam origem geograacutecaadquiriram em relaccedilatildeo a essas novas identidades conotaccedilatildeo racial (Quijano2005)

Com a becircnccedilatildeo papal os reis catoacutelicos da Espanha e Portugal dividiramentre si as imensas porccedilotildees de terra por seus navegantes e mercadoresldquodescobertasrdquo em suas tentativas de chegar agraves Iacutendias pelo oeste (Tratado deTordesilhas 1494) razatildeo pela qual as denominaram ldquoIacutendias OcidentaisrdquoAnos depois em 1529 foi a vez de as ldquoIacutendias Orientaisrdquo serem repartidasentre esses dois impeacuterios cristatildeos (Tratado de Saragoccedila) Um pouco mais

de um seacuteculo agrave frente as novas potecircncias europeias Holanda Gratilde-Bretanhae Franccedila passaram a disputar com espanhoacuteis e portugueses o controle e aexploraccedilatildeo dos territoacuterios e dos povos da Ameacuterica da Aacutesia e da Aacutefrica Paraaqueacutem das linhas divisoacuterias globais reinava o estado de direito em outras

palavras as vaacuterias formaccedilotildees sociais europeias jaacute estruturadas como estados-naccedilotildees (na verdade uma combinaccedilatildeo indissociaacutevel de capital estado e naccedilatildeo)regulavam-se pelo direito interestatal ou internacional Para aleacutem de tais linhasdivisoacuterias imperava o estado da natureza e o mundo era ldquolivrerdquo ndash livre para

ser dominado apropriado e explorado De fato a partir do momento que oseuropeus ocidentais se inventaram como estados-naccedilotildees em suas interaccedilotildeese intercacircmbios com outros povos e etnias a nada e a ningueacutem reconheciamcomo sujeito a menos que tivesse a mesma conguraccedilatildeo Em outras palavras

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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pela qual descrevemos esse fenocircmeno ndash eacute por conseguinte sinocircnimo deocidentalizaccedilatildeo Ocidentalizaccedilatildeo designa o conjunto de projetos globais ndash

sempre em mutaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo ndash que visam agrave disseminaccedilatildeo dos valores dacivilizaccedilatildeo ocidental em escala planetaacuteria

Decolonialidade por sua vez abrange natildeo apenas os movimentos detransformaccedilatildeo das ex-colocircnias europeias em estados-naccedilotildees independen-tes ndash descolonizaccedilatildeo ndash como tambeacutem os esforccedilos de desligamento oudesengajamento subjetivo epistecircmico econocircmico e poliacutetico em face do

projeto de dominaccedilatildeo ocidental esforccedilos que antecederam tais movimentosde descolonizaccedilatildeo ainda que soacute tenham vindo a ganhar musculatura a partir

da Conferecircncia de Bandung em meados da deacutecada de 1950 A Bandung naverdade estatildeo relacionados trecircs projetos de contestaccedilatildeo dos valores universaisda civilizaccedilatildeo ocidental e de sua pretensatildeo de dominar o mundo O primeirodeles a descolonizaccedilatildeo jaacute estava andamento na Aacutefrica e na Aacutesia Nessesentido Bandung se transformou na organizaccedilatildeo de paiacuteses natildeo alinhados

Noutra ponta um novo projeto surgia desocidentalizaccedilatildeo Desocidentalizaccedilatildeoconsiste natildeo na rejeiccedilatildeo do capitalismo mas em sua apropriaccedilatildeo A primeiratentativa bem sucedida nessa direccedilatildeo foi Cingapura a segunda foi a Chinadesde Deng Xiaoping O terceiro projeto a guardar relaccedilatildeo com Bandungdecolonialidade ou opccedilatildeo decolonial ganhou especial robustez a partir doiniacutecio dos anos 1990 depois que o insucesso da descolonizaccedilatildeo da Aacutefrica e daAacutesia cou evidente e o fracasso do socialismo restou patente no colapso daUniatildeo Sovieacutetica Decolonialidade adquiriu a forma que aqui esboccedilamos nosAndes sul-americanos em decorrecircncia dos limites apresentados pela teoriada dependecircncia e a partir da obra do peruano Joseacute Carlos Mariaacutetegui AniacutebalQuijano tambeacutem peruano chamou a atenccedilatildeo para o fato de que modernidadee colonialidade satildeo dois lados da mesma moeda e para a consequente e urgente

necessidade de um desligamento ou desengajamento das cccedilotildees da modernidadee das violecircncias da colonialidade (Quijano 1998 2005 2007) Um dos alvos dadecolonialidade portanto eacute a recorrente anaacutelise do fenocircmeno da modernidade-colonialidade que eacute justamente o que nos propomos a fazer neste ensaio

Mas isso natildeo eacute tudo A decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeo sob a presidecircnciade George W Bush nos Estados Unidos e a emergecircncia da desocidentalizaccedilatildeolevaram agrave necessidade de renovaccedilatildeo da ocidentalizaccedilatildeo numa nova base Essafoi a primeira movimentaccedilatildeo do presidente norte-americano Barack Obama no

cenaacuterio internacional E tal projeto estaacute em plena execuccedilatildeo hoje na Ucracircniano Oriente Meacutedio nas tentativas de limitar as movimentaccedilotildees da China noPaciacuteco no restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba associado com o controleda Ameacuterica Central e a desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuela

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Chamemos de reocidentalizaccedilatildeo o renascimento de mais de quinhentos anosde ocidentalizaccedilatildeo

Modernidade como discurso

A elucidaccedilatildeo da natureza discursiva da modernidade e seus correla-tos ndash civilidade desenvolvimento democracia ndash nos parece ser preliminarateacute mesmo ao desvelamento do seu caraacuteter local provincial mais ainda a seudescortinamento como projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacuteticado mundo

Com efeito toda relaccedilatildeo do ser humano com o meio fiacutesico eacute mediada

pela linguagem e linguagem necessariamente envolve interaccedilatildeo social esimboacutelica Natildeo haacute pois verdade objetiva ou direta representaccedilatildeo do mundoexterior Tudo que existe eacute verdade intersubjetiva ou verdade construiacuteda na e

pela interaccedilatildeo dos sujeitos por meio do processo de vericaccedilatildeo ou produccedilatildeocoletiva da verdade Verdade cientiacuteca nesse sentido eacute aquela verdade

produzida pela comunidade cientiacuteca ou seja aquela verdade construiacutedanos termos e na forma admitidos pela comunidade dos cientistas e por issomesmo por eles raticada ou homologada e natildeo simplesmente pela dialeacuteticaestabelecida entre hipoacutetese e experimentaccedilatildeo Nada eacute mais ingecircnuo do que asuposiccedilatildeo de que a mera tabulaccedilatildeo de dados tidos e havidos como amostrasde uma realidade pretensamente exterior agraves interaccedilotildees sociais e simboacutelicascomo que automaticamente resulte numa representaccedilatildeo direta e imediata dessarealidade

Modernidade desenvolvimento democracia e direitos humanos portantonatildeo existem como realidades objetivas tampouco satildeo suas conceituaccedilotildeesrepresentaccedilotildees diretas ou imediatas de tais supostas realidades exterioresModernidade desenvolvimento democracia e cidadania assim como

mercado estado e naccedilatildeo satildeo realidades discursivas constituiacutedas e validadasno curso das interaccedilotildees simboacutelicas nem sempre plenamente conscientes entresujeitos individuais e coletivos tanto no plano micro quanto no plano macroespacial e temporalmente

Agrave modernidade no entanto interessa ocultar esse seu caraacuteter discursivo poliacutetico A ela interessa apresentar-se como realidade objetiva ldquonaturalrdquonecessaacuteria e inevitaacutevel eliminando assim toda e qualquer possibilidadede contestaccedilatildeo e de reexistecircncia ou busca de outros mundos Daiacute por que

entendemos que a dominaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que tambeacutem se esconde portraacutes da retoacuterica ocidental de modernidade emancipaccedilatildeo (liberal ou marxista)desenvolvimento e democracia comeccedila e termina com a dominaccedilatildeo cultural dainformaccedilatildeo e do conhecimento Enquanto a dominaccedilatildeo poliacutetica chegou ao m

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com a transformaccedilatildeo das colocircnias e de fragmentos das antigas civilizaccedilotildees emestados-naccedilotildees independentes e o domiacutenio econocircmico depois de globalizado

comeccedila a apresentar sinais de exaustatildeo a dominaccedilatildeo cultural da informaccedilatildeo edo conhecimento segue dando mostras de vitalidade e vigor nas universidadesnos museus teatros e cinemas nos jornais nas redes de televisatildeo e demaismeios de comunicaccedilatildeo pelo mundo afora Na verdade a cultura a informaccedilatildeoe o conhecimento sempre foram esferas privilegiadas de dominaccedilatildeo econocircmicae poliacutetica A diferenccedila eacute que nestes dias de capitalismo tardio ou poacutes-fordistaesse fato cou mais evidente

Mas se por um lado eacute no ser discurso sem se declarar como tal

apresentando-se antes como realidade objetiva ldquonaturalrdquo inexoraacutevel que o projeto de dominaccedilatildeo ocidental encontra sua forccedila por outro eacute tambeacutem aiacute quereside sua fraqueza Em outras palavras eacute exatamente devido agrave sua naturezadiscursiva que a modernidade e o projeto de dominaccedilatildeo ocidental que por traacutesdela se esconde como uma espeacutecie de subtexto podem ser contestados e novasformas de coexistecircncia humana podem ser imaginadas e articuladas Natildeo eacute

por outra razatildeo que o primeiro e mais fundamental passo proposto pela opccedilatildeodecolonial eacute justamente o desligamento ou desengajamento epistecircmico

Modernidade como discurso local com pretensotildees universais

A modernidade e seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento demo-cracia e direitos humanos ndash natildeo somente satildeo realidades discursivas satildeotambeacutem narrativas articuladas a partir das experiecircncias histoacutericas e locais dediferentes povos europeus ainda que se apresentem como verdades objetivasldquonaturaisrdquo universais comuns a todos os povos que habitam o planeta

Ao longo dos tempos os diferentes agrupamentos humanos tecircmarticulado discursos a partir das proacuteprias histoacuterias locais formas de interaccedilatildeo e

comunicaccedilatildeo crenccedilas ciecircncias e instituiccedilotildees Agrave medida que os agrupamentoshumanos tecircm interagido uns com os outros os discursos tecircm aumentado seualcance transcendendo limites espaciais e temporais o que por sua vez temampliado o acircmbito das interaccedilotildees Nunca entretanto qualquer outro discursochegou a atingir caraacuteter tatildeo universalista e totalitaacuterio como o articulado peloseuropeus ocidentais a partir do seacuteculo 16

A comeccedilar com o Renascimento e culminando com o Iluminismo oseuropeus passaram a se ver como sendo o centro do mundo e o cliacutemax da

evoluccedilatildeo humana Natildeo apenas criaram uma geograa em que se localizamno centro e os outros povos satildeo localizados na periferia mas tambeacutem inven-taram uma histoacuteria em que se situam no presente de uma linha do tempoque evolui de um estado da natureza a um estado racional civilizado e os

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demais povos embora contemporacircneos satildeo situados no passado satildeo primi- tivizados

Nesse discurso italianos espanhoacuteis e portugueses a partir do Re-nascimento e holandeses britacircnicos franceses e alematildees desde o Iluminismorepresentam sua visatildeo de mundo como sendo a visatildeo de todo mundo suacultura literatura arte losoa ciecircncia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e

poliacutetica como sendo universais Apresentam a si proacuteprios como a forma nal eacabada da humanidade

Tal discurso de modernidade racionalidade desenvolvimentodemocracia e direitos humanos natildeo somente procura esconder seu caraacuteter

local regional europeu por traacutes de uma maacutescara universal mas tambeacutem busca ocultar a participaccedilatildeo de natildeo europeus em sua articulaccedilatildeo dialoacutegica Na verdade os natildeo europeus ldquonatildeo ocidentaisrdquo satildeo totalmente excluiacutedos dodiaacutelogo sequer satildeo considerados Outros propriamente ditos ao contraacuteriosatildeo dessubjetivizados reduzidos a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo Mais natildeo apenas nega a participaccedilatildeo de natildeo europeus em suaarticulaccedilatildeo dialoacutegica por natildeo consideraacute-los sujeitos ndash natildeo admitindo porexemplo o fato de que natildeo haveria Europa se natildeo existissem a Ameacuterica aAacutefrica e a Aacutesia ndash o discurso europeu ocidental suprime todo e qualquer outrodiscurso Ou seja aleacutem de se apresentar como totalidade o discurso europeuocidental eacute tambeacutem totalitaacuterio

Daiacute por que o desligamento ou desengajamento epistecircmico ndash o primeiro emais importante passo na direccedilatildeo da decolonialidade ao qual jaacute nos referimosna parte anterior ndash implica a adoccedilatildeo de uma geopoliacutetica e uma corpopoliacuteticado conhecimento que de um lado denuncie a pretensatildeo universal e portantoo totalitarismo de uma particular etnia (corpopoliacutetica) localizada numa parteespeciacuteca do planeta (geopoliacutetica) e de outro crie condiccedilotildees de possibilidade

para a contestaccedilatildeo e a reexistecircncia de outras etnicidades numa espeacutecie de pluriversalidade

Modernidade como colonialidade

Discursividade e localidade no entanto natildeo satildeo tudo o que se escondeno subtexto do discurso de modernidade Por traacutes da retoacuterica de emancipaccedilatildeodesenvolvimento tecnologia democracia e direitos humanos tambeacutem seoculta um projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacutetica do mundo

inicialmente liderado pela Espanha e Portugal (do seacuteculo 16 a meados doseacuteculo 18) depois pela Holanda Gratilde-Bretanha e Franccedila (de meados do seacuteculo18 a meados do seacuteculo 20) e nalmente pelos Estados Unidos (de meados doseacuteculo 20 aos dias de hoje)

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Obviamente o periacuteodo que antecede o seacuteculo 16 registra outros casosde expansatildeo colonial e imperial mas nenhum apresentou a mesma natureza

e o mesmo alcance do colonialismo e do imperialismo modernos Diferentesformaccedilotildees sociais se desenvolveram em diversas regiotildees do mundo nummovimento expansionista que envolveu a colonizaccedilatildeo de vaacuterias outraslocalizadas em suas margens e certo controle sobre tantas outras situadas emsuas submargens Nenhuma contudo chegou ao ponto de articular um discursotatildeo universalista e totalitaacuterio como o que veio a ser estruturado pelos europeusocidentais a partir do Renascimento Podemos ateacute considerar algumas dessasformaccedilotildees sociais antigas como impeacuterios mas jamais qualquer delas chegou

a se tornar tatildeo imperialista quanto a moderna Europa ocidental e seu legataacuterioanglo-americano os Estados UnidosAssim eacute que a partir do ldquomarco zerordquo e do ldquotopo da escalada civilizatoacuteriardquo

e tomando a proacutepria cosmologia ciecircncia e tecnologia forma de organizaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica como valores e regras universais os europeus saiacuteram adividir o mundo entre ocidente e oriente norte e sul baacuterbaros e civilizadostradicionais e modernos criando novas identidades sociais como ldquoiacutendiordquoldquonegrordquo e ldquomesticcedilordquo e recriando outras tantas ldquoEspanhoacuteisrdquo ldquoportuguesesrdquo emais tarde ldquoeuropeusrdquo que antes simplesmente indicavam origem geograacutecaadquiriram em relaccedilatildeo a essas novas identidades conotaccedilatildeo racial (Quijano2005)

Com a becircnccedilatildeo papal os reis catoacutelicos da Espanha e Portugal dividiramentre si as imensas porccedilotildees de terra por seus navegantes e mercadoresldquodescobertasrdquo em suas tentativas de chegar agraves Iacutendias pelo oeste (Tratado deTordesilhas 1494) razatildeo pela qual as denominaram ldquoIacutendias OcidentaisrdquoAnos depois em 1529 foi a vez de as ldquoIacutendias Orientaisrdquo serem repartidasentre esses dois impeacuterios cristatildeos (Tratado de Saragoccedila) Um pouco mais

de um seacuteculo agrave frente as novas potecircncias europeias Holanda Gratilde-Bretanhae Franccedila passaram a disputar com espanhoacuteis e portugueses o controle e aexploraccedilatildeo dos territoacuterios e dos povos da Ameacuterica da Aacutesia e da Aacutefrica Paraaqueacutem das linhas divisoacuterias globais reinava o estado de direito em outras

palavras as vaacuterias formaccedilotildees sociais europeias jaacute estruturadas como estados-naccedilotildees (na verdade uma combinaccedilatildeo indissociaacutevel de capital estado e naccedilatildeo)regulavam-se pelo direito interestatal ou internacional Para aleacutem de tais linhasdivisoacuterias imperava o estado da natureza e o mundo era ldquolivrerdquo ndash livre para

ser dominado apropriado e explorado De fato a partir do momento que oseuropeus ocidentais se inventaram como estados-naccedilotildees em suas interaccedilotildeese intercacircmbios com outros povos e etnias a nada e a ningueacutem reconheciamcomo sujeito a menos que tivesse a mesma conguraccedilatildeo Em outras palavras

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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Chamemos de reocidentalizaccedilatildeo o renascimento de mais de quinhentos anosde ocidentalizaccedilatildeo

Modernidade como discurso

A elucidaccedilatildeo da natureza discursiva da modernidade e seus correla-tos ndash civilidade desenvolvimento democracia ndash nos parece ser preliminarateacute mesmo ao desvelamento do seu caraacuteter local provincial mais ainda a seudescortinamento como projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacuteticado mundo

Com efeito toda relaccedilatildeo do ser humano com o meio fiacutesico eacute mediada

pela linguagem e linguagem necessariamente envolve interaccedilatildeo social esimboacutelica Natildeo haacute pois verdade objetiva ou direta representaccedilatildeo do mundoexterior Tudo que existe eacute verdade intersubjetiva ou verdade construiacuteda na e

pela interaccedilatildeo dos sujeitos por meio do processo de vericaccedilatildeo ou produccedilatildeocoletiva da verdade Verdade cientiacuteca nesse sentido eacute aquela verdade

produzida pela comunidade cientiacuteca ou seja aquela verdade construiacutedanos termos e na forma admitidos pela comunidade dos cientistas e por issomesmo por eles raticada ou homologada e natildeo simplesmente pela dialeacuteticaestabelecida entre hipoacutetese e experimentaccedilatildeo Nada eacute mais ingecircnuo do que asuposiccedilatildeo de que a mera tabulaccedilatildeo de dados tidos e havidos como amostrasde uma realidade pretensamente exterior agraves interaccedilotildees sociais e simboacutelicascomo que automaticamente resulte numa representaccedilatildeo direta e imediata dessarealidade

Modernidade desenvolvimento democracia e direitos humanos portantonatildeo existem como realidades objetivas tampouco satildeo suas conceituaccedilotildeesrepresentaccedilotildees diretas ou imediatas de tais supostas realidades exterioresModernidade desenvolvimento democracia e cidadania assim como

mercado estado e naccedilatildeo satildeo realidades discursivas constituiacutedas e validadasno curso das interaccedilotildees simboacutelicas nem sempre plenamente conscientes entresujeitos individuais e coletivos tanto no plano micro quanto no plano macroespacial e temporalmente

Agrave modernidade no entanto interessa ocultar esse seu caraacuteter discursivo poliacutetico A ela interessa apresentar-se como realidade objetiva ldquonaturalrdquonecessaacuteria e inevitaacutevel eliminando assim toda e qualquer possibilidadede contestaccedilatildeo e de reexistecircncia ou busca de outros mundos Daiacute por que

entendemos que a dominaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que tambeacutem se esconde portraacutes da retoacuterica ocidental de modernidade emancipaccedilatildeo (liberal ou marxista)desenvolvimento e democracia comeccedila e termina com a dominaccedilatildeo cultural dainformaccedilatildeo e do conhecimento Enquanto a dominaccedilatildeo poliacutetica chegou ao m

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com a transformaccedilatildeo das colocircnias e de fragmentos das antigas civilizaccedilotildees emestados-naccedilotildees independentes e o domiacutenio econocircmico depois de globalizado

comeccedila a apresentar sinais de exaustatildeo a dominaccedilatildeo cultural da informaccedilatildeo edo conhecimento segue dando mostras de vitalidade e vigor nas universidadesnos museus teatros e cinemas nos jornais nas redes de televisatildeo e demaismeios de comunicaccedilatildeo pelo mundo afora Na verdade a cultura a informaccedilatildeoe o conhecimento sempre foram esferas privilegiadas de dominaccedilatildeo econocircmicae poliacutetica A diferenccedila eacute que nestes dias de capitalismo tardio ou poacutes-fordistaesse fato cou mais evidente

Mas se por um lado eacute no ser discurso sem se declarar como tal

apresentando-se antes como realidade objetiva ldquonaturalrdquo inexoraacutevel que o projeto de dominaccedilatildeo ocidental encontra sua forccedila por outro eacute tambeacutem aiacute quereside sua fraqueza Em outras palavras eacute exatamente devido agrave sua naturezadiscursiva que a modernidade e o projeto de dominaccedilatildeo ocidental que por traacutesdela se esconde como uma espeacutecie de subtexto podem ser contestados e novasformas de coexistecircncia humana podem ser imaginadas e articuladas Natildeo eacute

por outra razatildeo que o primeiro e mais fundamental passo proposto pela opccedilatildeodecolonial eacute justamente o desligamento ou desengajamento epistecircmico

Modernidade como discurso local com pretensotildees universais

A modernidade e seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento demo-cracia e direitos humanos ndash natildeo somente satildeo realidades discursivas satildeotambeacutem narrativas articuladas a partir das experiecircncias histoacutericas e locais dediferentes povos europeus ainda que se apresentem como verdades objetivasldquonaturaisrdquo universais comuns a todos os povos que habitam o planeta

Ao longo dos tempos os diferentes agrupamentos humanos tecircmarticulado discursos a partir das proacuteprias histoacuterias locais formas de interaccedilatildeo e

comunicaccedilatildeo crenccedilas ciecircncias e instituiccedilotildees Agrave medida que os agrupamentoshumanos tecircm interagido uns com os outros os discursos tecircm aumentado seualcance transcendendo limites espaciais e temporais o que por sua vez temampliado o acircmbito das interaccedilotildees Nunca entretanto qualquer outro discursochegou a atingir caraacuteter tatildeo universalista e totalitaacuterio como o articulado peloseuropeus ocidentais a partir do seacuteculo 16

A comeccedilar com o Renascimento e culminando com o Iluminismo oseuropeus passaram a se ver como sendo o centro do mundo e o cliacutemax da

evoluccedilatildeo humana Natildeo apenas criaram uma geograa em que se localizamno centro e os outros povos satildeo localizados na periferia mas tambeacutem inven-taram uma histoacuteria em que se situam no presente de uma linha do tempoque evolui de um estado da natureza a um estado racional civilizado e os

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demais povos embora contemporacircneos satildeo situados no passado satildeo primi- tivizados

Nesse discurso italianos espanhoacuteis e portugueses a partir do Re-nascimento e holandeses britacircnicos franceses e alematildees desde o Iluminismorepresentam sua visatildeo de mundo como sendo a visatildeo de todo mundo suacultura literatura arte losoa ciecircncia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e

poliacutetica como sendo universais Apresentam a si proacuteprios como a forma nal eacabada da humanidade

Tal discurso de modernidade racionalidade desenvolvimentodemocracia e direitos humanos natildeo somente procura esconder seu caraacuteter

local regional europeu por traacutes de uma maacutescara universal mas tambeacutem busca ocultar a participaccedilatildeo de natildeo europeus em sua articulaccedilatildeo dialoacutegica Na verdade os natildeo europeus ldquonatildeo ocidentaisrdquo satildeo totalmente excluiacutedos dodiaacutelogo sequer satildeo considerados Outros propriamente ditos ao contraacuteriosatildeo dessubjetivizados reduzidos a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo Mais natildeo apenas nega a participaccedilatildeo de natildeo europeus em suaarticulaccedilatildeo dialoacutegica por natildeo consideraacute-los sujeitos ndash natildeo admitindo porexemplo o fato de que natildeo haveria Europa se natildeo existissem a Ameacuterica aAacutefrica e a Aacutesia ndash o discurso europeu ocidental suprime todo e qualquer outrodiscurso Ou seja aleacutem de se apresentar como totalidade o discurso europeuocidental eacute tambeacutem totalitaacuterio

Daiacute por que o desligamento ou desengajamento epistecircmico ndash o primeiro emais importante passo na direccedilatildeo da decolonialidade ao qual jaacute nos referimosna parte anterior ndash implica a adoccedilatildeo de uma geopoliacutetica e uma corpopoliacuteticado conhecimento que de um lado denuncie a pretensatildeo universal e portantoo totalitarismo de uma particular etnia (corpopoliacutetica) localizada numa parteespeciacuteca do planeta (geopoliacutetica) e de outro crie condiccedilotildees de possibilidade

para a contestaccedilatildeo e a reexistecircncia de outras etnicidades numa espeacutecie de pluriversalidade

Modernidade como colonialidade

Discursividade e localidade no entanto natildeo satildeo tudo o que se escondeno subtexto do discurso de modernidade Por traacutes da retoacuterica de emancipaccedilatildeodesenvolvimento tecnologia democracia e direitos humanos tambeacutem seoculta um projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacutetica do mundo

inicialmente liderado pela Espanha e Portugal (do seacuteculo 16 a meados doseacuteculo 18) depois pela Holanda Gratilde-Bretanha e Franccedila (de meados do seacuteculo18 a meados do seacuteculo 20) e nalmente pelos Estados Unidos (de meados doseacuteculo 20 aos dias de hoje)

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Obviamente o periacuteodo que antecede o seacuteculo 16 registra outros casosde expansatildeo colonial e imperial mas nenhum apresentou a mesma natureza

e o mesmo alcance do colonialismo e do imperialismo modernos Diferentesformaccedilotildees sociais se desenvolveram em diversas regiotildees do mundo nummovimento expansionista que envolveu a colonizaccedilatildeo de vaacuterias outraslocalizadas em suas margens e certo controle sobre tantas outras situadas emsuas submargens Nenhuma contudo chegou ao ponto de articular um discursotatildeo universalista e totalitaacuterio como o que veio a ser estruturado pelos europeusocidentais a partir do Renascimento Podemos ateacute considerar algumas dessasformaccedilotildees sociais antigas como impeacuterios mas jamais qualquer delas chegou

a se tornar tatildeo imperialista quanto a moderna Europa ocidental e seu legataacuterioanglo-americano os Estados UnidosAssim eacute que a partir do ldquomarco zerordquo e do ldquotopo da escalada civilizatoacuteriardquo

e tomando a proacutepria cosmologia ciecircncia e tecnologia forma de organizaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica como valores e regras universais os europeus saiacuteram adividir o mundo entre ocidente e oriente norte e sul baacuterbaros e civilizadostradicionais e modernos criando novas identidades sociais como ldquoiacutendiordquoldquonegrordquo e ldquomesticcedilordquo e recriando outras tantas ldquoEspanhoacuteisrdquo ldquoportuguesesrdquo emais tarde ldquoeuropeusrdquo que antes simplesmente indicavam origem geograacutecaadquiriram em relaccedilatildeo a essas novas identidades conotaccedilatildeo racial (Quijano2005)

Com a becircnccedilatildeo papal os reis catoacutelicos da Espanha e Portugal dividiramentre si as imensas porccedilotildees de terra por seus navegantes e mercadoresldquodescobertasrdquo em suas tentativas de chegar agraves Iacutendias pelo oeste (Tratado deTordesilhas 1494) razatildeo pela qual as denominaram ldquoIacutendias OcidentaisrdquoAnos depois em 1529 foi a vez de as ldquoIacutendias Orientaisrdquo serem repartidasentre esses dois impeacuterios cristatildeos (Tratado de Saragoccedila) Um pouco mais

de um seacuteculo agrave frente as novas potecircncias europeias Holanda Gratilde-Bretanhae Franccedila passaram a disputar com espanhoacuteis e portugueses o controle e aexploraccedilatildeo dos territoacuterios e dos povos da Ameacuterica da Aacutesia e da Aacutefrica Paraaqueacutem das linhas divisoacuterias globais reinava o estado de direito em outras

palavras as vaacuterias formaccedilotildees sociais europeias jaacute estruturadas como estados-naccedilotildees (na verdade uma combinaccedilatildeo indissociaacutevel de capital estado e naccedilatildeo)regulavam-se pelo direito interestatal ou internacional Para aleacutem de tais linhasdivisoacuterias imperava o estado da natureza e o mundo era ldquolivrerdquo ndash livre para

ser dominado apropriado e explorado De fato a partir do momento que oseuropeus ocidentais se inventaram como estados-naccedilotildees em suas interaccedilotildeese intercacircmbios com outros povos e etnias a nada e a ningueacutem reconheciamcomo sujeito a menos que tivesse a mesma conguraccedilatildeo Em outras palavras

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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com a transformaccedilatildeo das colocircnias e de fragmentos das antigas civilizaccedilotildees emestados-naccedilotildees independentes e o domiacutenio econocircmico depois de globalizado

comeccedila a apresentar sinais de exaustatildeo a dominaccedilatildeo cultural da informaccedilatildeo edo conhecimento segue dando mostras de vitalidade e vigor nas universidadesnos museus teatros e cinemas nos jornais nas redes de televisatildeo e demaismeios de comunicaccedilatildeo pelo mundo afora Na verdade a cultura a informaccedilatildeoe o conhecimento sempre foram esferas privilegiadas de dominaccedilatildeo econocircmicae poliacutetica A diferenccedila eacute que nestes dias de capitalismo tardio ou poacutes-fordistaesse fato cou mais evidente

Mas se por um lado eacute no ser discurso sem se declarar como tal

apresentando-se antes como realidade objetiva ldquonaturalrdquo inexoraacutevel que o projeto de dominaccedilatildeo ocidental encontra sua forccedila por outro eacute tambeacutem aiacute quereside sua fraqueza Em outras palavras eacute exatamente devido agrave sua naturezadiscursiva que a modernidade e o projeto de dominaccedilatildeo ocidental que por traacutesdela se esconde como uma espeacutecie de subtexto podem ser contestados e novasformas de coexistecircncia humana podem ser imaginadas e articuladas Natildeo eacute

por outra razatildeo que o primeiro e mais fundamental passo proposto pela opccedilatildeodecolonial eacute justamente o desligamento ou desengajamento epistecircmico

Modernidade como discurso local com pretensotildees universais

A modernidade e seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento demo-cracia e direitos humanos ndash natildeo somente satildeo realidades discursivas satildeotambeacutem narrativas articuladas a partir das experiecircncias histoacutericas e locais dediferentes povos europeus ainda que se apresentem como verdades objetivasldquonaturaisrdquo universais comuns a todos os povos que habitam o planeta

Ao longo dos tempos os diferentes agrupamentos humanos tecircmarticulado discursos a partir das proacuteprias histoacuterias locais formas de interaccedilatildeo e

comunicaccedilatildeo crenccedilas ciecircncias e instituiccedilotildees Agrave medida que os agrupamentoshumanos tecircm interagido uns com os outros os discursos tecircm aumentado seualcance transcendendo limites espaciais e temporais o que por sua vez temampliado o acircmbito das interaccedilotildees Nunca entretanto qualquer outro discursochegou a atingir caraacuteter tatildeo universalista e totalitaacuterio como o articulado peloseuropeus ocidentais a partir do seacuteculo 16

A comeccedilar com o Renascimento e culminando com o Iluminismo oseuropeus passaram a se ver como sendo o centro do mundo e o cliacutemax da

evoluccedilatildeo humana Natildeo apenas criaram uma geograa em que se localizamno centro e os outros povos satildeo localizados na periferia mas tambeacutem inven-taram uma histoacuteria em que se situam no presente de uma linha do tempoque evolui de um estado da natureza a um estado racional civilizado e os

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demais povos embora contemporacircneos satildeo situados no passado satildeo primi- tivizados

Nesse discurso italianos espanhoacuteis e portugueses a partir do Re-nascimento e holandeses britacircnicos franceses e alematildees desde o Iluminismorepresentam sua visatildeo de mundo como sendo a visatildeo de todo mundo suacultura literatura arte losoa ciecircncia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e

poliacutetica como sendo universais Apresentam a si proacuteprios como a forma nal eacabada da humanidade

Tal discurso de modernidade racionalidade desenvolvimentodemocracia e direitos humanos natildeo somente procura esconder seu caraacuteter

local regional europeu por traacutes de uma maacutescara universal mas tambeacutem busca ocultar a participaccedilatildeo de natildeo europeus em sua articulaccedilatildeo dialoacutegica Na verdade os natildeo europeus ldquonatildeo ocidentaisrdquo satildeo totalmente excluiacutedos dodiaacutelogo sequer satildeo considerados Outros propriamente ditos ao contraacuteriosatildeo dessubjetivizados reduzidos a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo Mais natildeo apenas nega a participaccedilatildeo de natildeo europeus em suaarticulaccedilatildeo dialoacutegica por natildeo consideraacute-los sujeitos ndash natildeo admitindo porexemplo o fato de que natildeo haveria Europa se natildeo existissem a Ameacuterica aAacutefrica e a Aacutesia ndash o discurso europeu ocidental suprime todo e qualquer outrodiscurso Ou seja aleacutem de se apresentar como totalidade o discurso europeuocidental eacute tambeacutem totalitaacuterio

Daiacute por que o desligamento ou desengajamento epistecircmico ndash o primeiro emais importante passo na direccedilatildeo da decolonialidade ao qual jaacute nos referimosna parte anterior ndash implica a adoccedilatildeo de uma geopoliacutetica e uma corpopoliacuteticado conhecimento que de um lado denuncie a pretensatildeo universal e portantoo totalitarismo de uma particular etnia (corpopoliacutetica) localizada numa parteespeciacuteca do planeta (geopoliacutetica) e de outro crie condiccedilotildees de possibilidade

para a contestaccedilatildeo e a reexistecircncia de outras etnicidades numa espeacutecie de pluriversalidade

Modernidade como colonialidade

Discursividade e localidade no entanto natildeo satildeo tudo o que se escondeno subtexto do discurso de modernidade Por traacutes da retoacuterica de emancipaccedilatildeodesenvolvimento tecnologia democracia e direitos humanos tambeacutem seoculta um projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacutetica do mundo

inicialmente liderado pela Espanha e Portugal (do seacuteculo 16 a meados doseacuteculo 18) depois pela Holanda Gratilde-Bretanha e Franccedila (de meados do seacuteculo18 a meados do seacuteculo 20) e nalmente pelos Estados Unidos (de meados doseacuteculo 20 aos dias de hoje)

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Obviamente o periacuteodo que antecede o seacuteculo 16 registra outros casosde expansatildeo colonial e imperial mas nenhum apresentou a mesma natureza

e o mesmo alcance do colonialismo e do imperialismo modernos Diferentesformaccedilotildees sociais se desenvolveram em diversas regiotildees do mundo nummovimento expansionista que envolveu a colonizaccedilatildeo de vaacuterias outraslocalizadas em suas margens e certo controle sobre tantas outras situadas emsuas submargens Nenhuma contudo chegou ao ponto de articular um discursotatildeo universalista e totalitaacuterio como o que veio a ser estruturado pelos europeusocidentais a partir do Renascimento Podemos ateacute considerar algumas dessasformaccedilotildees sociais antigas como impeacuterios mas jamais qualquer delas chegou

a se tornar tatildeo imperialista quanto a moderna Europa ocidental e seu legataacuterioanglo-americano os Estados UnidosAssim eacute que a partir do ldquomarco zerordquo e do ldquotopo da escalada civilizatoacuteriardquo

e tomando a proacutepria cosmologia ciecircncia e tecnologia forma de organizaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica como valores e regras universais os europeus saiacuteram adividir o mundo entre ocidente e oriente norte e sul baacuterbaros e civilizadostradicionais e modernos criando novas identidades sociais como ldquoiacutendiordquoldquonegrordquo e ldquomesticcedilordquo e recriando outras tantas ldquoEspanhoacuteisrdquo ldquoportuguesesrdquo emais tarde ldquoeuropeusrdquo que antes simplesmente indicavam origem geograacutecaadquiriram em relaccedilatildeo a essas novas identidades conotaccedilatildeo racial (Quijano2005)

Com a becircnccedilatildeo papal os reis catoacutelicos da Espanha e Portugal dividiramentre si as imensas porccedilotildees de terra por seus navegantes e mercadoresldquodescobertasrdquo em suas tentativas de chegar agraves Iacutendias pelo oeste (Tratado deTordesilhas 1494) razatildeo pela qual as denominaram ldquoIacutendias OcidentaisrdquoAnos depois em 1529 foi a vez de as ldquoIacutendias Orientaisrdquo serem repartidasentre esses dois impeacuterios cristatildeos (Tratado de Saragoccedila) Um pouco mais

de um seacuteculo agrave frente as novas potecircncias europeias Holanda Gratilde-Bretanhae Franccedila passaram a disputar com espanhoacuteis e portugueses o controle e aexploraccedilatildeo dos territoacuterios e dos povos da Ameacuterica da Aacutesia e da Aacutefrica Paraaqueacutem das linhas divisoacuterias globais reinava o estado de direito em outras

palavras as vaacuterias formaccedilotildees sociais europeias jaacute estruturadas como estados-naccedilotildees (na verdade uma combinaccedilatildeo indissociaacutevel de capital estado e naccedilatildeo)regulavam-se pelo direito interestatal ou internacional Para aleacutem de tais linhasdivisoacuterias imperava o estado da natureza e o mundo era ldquolivrerdquo ndash livre para

ser dominado apropriado e explorado De fato a partir do momento que oseuropeus ocidentais se inventaram como estados-naccedilotildees em suas interaccedilotildeese intercacircmbios com outros povos e etnias a nada e a ningueacutem reconheciamcomo sujeito a menos que tivesse a mesma conguraccedilatildeo Em outras palavras

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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demais povos embora contemporacircneos satildeo situados no passado satildeo primi- tivizados

Nesse discurso italianos espanhoacuteis e portugueses a partir do Re-nascimento e holandeses britacircnicos franceses e alematildees desde o Iluminismorepresentam sua visatildeo de mundo como sendo a visatildeo de todo mundo suacultura literatura arte losoa ciecircncia forma de organizaccedilatildeo econocircmica e

poliacutetica como sendo universais Apresentam a si proacuteprios como a forma nal eacabada da humanidade

Tal discurso de modernidade racionalidade desenvolvimentodemocracia e direitos humanos natildeo somente procura esconder seu caraacuteter

local regional europeu por traacutes de uma maacutescara universal mas tambeacutem busca ocultar a participaccedilatildeo de natildeo europeus em sua articulaccedilatildeo dialoacutegica Na verdade os natildeo europeus ldquonatildeo ocidentaisrdquo satildeo totalmente excluiacutedos dodiaacutelogo sequer satildeo considerados Outros propriamente ditos ao contraacuteriosatildeo dessubjetivizados reduzidos a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo Mais natildeo apenas nega a participaccedilatildeo de natildeo europeus em suaarticulaccedilatildeo dialoacutegica por natildeo consideraacute-los sujeitos ndash natildeo admitindo porexemplo o fato de que natildeo haveria Europa se natildeo existissem a Ameacuterica aAacutefrica e a Aacutesia ndash o discurso europeu ocidental suprime todo e qualquer outrodiscurso Ou seja aleacutem de se apresentar como totalidade o discurso europeuocidental eacute tambeacutem totalitaacuterio

Daiacute por que o desligamento ou desengajamento epistecircmico ndash o primeiro emais importante passo na direccedilatildeo da decolonialidade ao qual jaacute nos referimosna parte anterior ndash implica a adoccedilatildeo de uma geopoliacutetica e uma corpopoliacuteticado conhecimento que de um lado denuncie a pretensatildeo universal e portantoo totalitarismo de uma particular etnia (corpopoliacutetica) localizada numa parteespeciacuteca do planeta (geopoliacutetica) e de outro crie condiccedilotildees de possibilidade

para a contestaccedilatildeo e a reexistecircncia de outras etnicidades numa espeacutecie de pluriversalidade

Modernidade como colonialidade

Discursividade e localidade no entanto natildeo satildeo tudo o que se escondeno subtexto do discurso de modernidade Por traacutes da retoacuterica de emancipaccedilatildeodesenvolvimento tecnologia democracia e direitos humanos tambeacutem seoculta um projeto de dominaccedilatildeo epistecircmica econocircmica e poliacutetica do mundo

inicialmente liderado pela Espanha e Portugal (do seacuteculo 16 a meados doseacuteculo 18) depois pela Holanda Gratilde-Bretanha e Franccedila (de meados do seacuteculo18 a meados do seacuteculo 20) e nalmente pelos Estados Unidos (de meados doseacuteculo 20 aos dias de hoje)

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Obviamente o periacuteodo que antecede o seacuteculo 16 registra outros casosde expansatildeo colonial e imperial mas nenhum apresentou a mesma natureza

e o mesmo alcance do colonialismo e do imperialismo modernos Diferentesformaccedilotildees sociais se desenvolveram em diversas regiotildees do mundo nummovimento expansionista que envolveu a colonizaccedilatildeo de vaacuterias outraslocalizadas em suas margens e certo controle sobre tantas outras situadas emsuas submargens Nenhuma contudo chegou ao ponto de articular um discursotatildeo universalista e totalitaacuterio como o que veio a ser estruturado pelos europeusocidentais a partir do Renascimento Podemos ateacute considerar algumas dessasformaccedilotildees sociais antigas como impeacuterios mas jamais qualquer delas chegou

a se tornar tatildeo imperialista quanto a moderna Europa ocidental e seu legataacuterioanglo-americano os Estados UnidosAssim eacute que a partir do ldquomarco zerordquo e do ldquotopo da escalada civilizatoacuteriardquo

e tomando a proacutepria cosmologia ciecircncia e tecnologia forma de organizaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica como valores e regras universais os europeus saiacuteram adividir o mundo entre ocidente e oriente norte e sul baacuterbaros e civilizadostradicionais e modernos criando novas identidades sociais como ldquoiacutendiordquoldquonegrordquo e ldquomesticcedilordquo e recriando outras tantas ldquoEspanhoacuteisrdquo ldquoportuguesesrdquo emais tarde ldquoeuropeusrdquo que antes simplesmente indicavam origem geograacutecaadquiriram em relaccedilatildeo a essas novas identidades conotaccedilatildeo racial (Quijano2005)

Com a becircnccedilatildeo papal os reis catoacutelicos da Espanha e Portugal dividiramentre si as imensas porccedilotildees de terra por seus navegantes e mercadoresldquodescobertasrdquo em suas tentativas de chegar agraves Iacutendias pelo oeste (Tratado deTordesilhas 1494) razatildeo pela qual as denominaram ldquoIacutendias OcidentaisrdquoAnos depois em 1529 foi a vez de as ldquoIacutendias Orientaisrdquo serem repartidasentre esses dois impeacuterios cristatildeos (Tratado de Saragoccedila) Um pouco mais

de um seacuteculo agrave frente as novas potecircncias europeias Holanda Gratilde-Bretanhae Franccedila passaram a disputar com espanhoacuteis e portugueses o controle e aexploraccedilatildeo dos territoacuterios e dos povos da Ameacuterica da Aacutesia e da Aacutefrica Paraaqueacutem das linhas divisoacuterias globais reinava o estado de direito em outras

palavras as vaacuterias formaccedilotildees sociais europeias jaacute estruturadas como estados-naccedilotildees (na verdade uma combinaccedilatildeo indissociaacutevel de capital estado e naccedilatildeo)regulavam-se pelo direito interestatal ou internacional Para aleacutem de tais linhasdivisoacuterias imperava o estado da natureza e o mundo era ldquolivrerdquo ndash livre para

ser dominado apropriado e explorado De fato a partir do momento que oseuropeus ocidentais se inventaram como estados-naccedilotildees em suas interaccedilotildeese intercacircmbios com outros povos e etnias a nada e a ningueacutem reconheciamcomo sujeito a menos que tivesse a mesma conguraccedilatildeo Em outras palavras

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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Obviamente o periacuteodo que antecede o seacuteculo 16 registra outros casosde expansatildeo colonial e imperial mas nenhum apresentou a mesma natureza

e o mesmo alcance do colonialismo e do imperialismo modernos Diferentesformaccedilotildees sociais se desenvolveram em diversas regiotildees do mundo nummovimento expansionista que envolveu a colonizaccedilatildeo de vaacuterias outraslocalizadas em suas margens e certo controle sobre tantas outras situadas emsuas submargens Nenhuma contudo chegou ao ponto de articular um discursotatildeo universalista e totalitaacuterio como o que veio a ser estruturado pelos europeusocidentais a partir do Renascimento Podemos ateacute considerar algumas dessasformaccedilotildees sociais antigas como impeacuterios mas jamais qualquer delas chegou

a se tornar tatildeo imperialista quanto a moderna Europa ocidental e seu legataacuterioanglo-americano os Estados UnidosAssim eacute que a partir do ldquomarco zerordquo e do ldquotopo da escalada civilizatoacuteriardquo

e tomando a proacutepria cosmologia ciecircncia e tecnologia forma de organizaccedilatildeoeconocircmica e poliacutetica como valores e regras universais os europeus saiacuteram adividir o mundo entre ocidente e oriente norte e sul baacuterbaros e civilizadostradicionais e modernos criando novas identidades sociais como ldquoiacutendiordquoldquonegrordquo e ldquomesticcedilordquo e recriando outras tantas ldquoEspanhoacuteisrdquo ldquoportuguesesrdquo emais tarde ldquoeuropeusrdquo que antes simplesmente indicavam origem geograacutecaadquiriram em relaccedilatildeo a essas novas identidades conotaccedilatildeo racial (Quijano2005)

Com a becircnccedilatildeo papal os reis catoacutelicos da Espanha e Portugal dividiramentre si as imensas porccedilotildees de terra por seus navegantes e mercadoresldquodescobertasrdquo em suas tentativas de chegar agraves Iacutendias pelo oeste (Tratado deTordesilhas 1494) razatildeo pela qual as denominaram ldquoIacutendias OcidentaisrdquoAnos depois em 1529 foi a vez de as ldquoIacutendias Orientaisrdquo serem repartidasentre esses dois impeacuterios cristatildeos (Tratado de Saragoccedila) Um pouco mais

de um seacuteculo agrave frente as novas potecircncias europeias Holanda Gratilde-Bretanhae Franccedila passaram a disputar com espanhoacuteis e portugueses o controle e aexploraccedilatildeo dos territoacuterios e dos povos da Ameacuterica da Aacutesia e da Aacutefrica Paraaqueacutem das linhas divisoacuterias globais reinava o estado de direito em outras

palavras as vaacuterias formaccedilotildees sociais europeias jaacute estruturadas como estados-naccedilotildees (na verdade uma combinaccedilatildeo indissociaacutevel de capital estado e naccedilatildeo)regulavam-se pelo direito interestatal ou internacional Para aleacutem de tais linhasdivisoacuterias imperava o estado da natureza e o mundo era ldquolivrerdquo ndash livre para

ser dominado apropriado e explorado De fato a partir do momento que oseuropeus ocidentais se inventaram como estados-naccedilotildees em suas interaccedilotildeese intercacircmbios com outros povos e etnias a nada e a ningueacutem reconheciamcomo sujeito a menos que tivesse a mesma conguraccedilatildeo Em outras palavras

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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todas as demais formaccedilotildees sociais que igualmente natildeo se estruturassem comoestados-naccedilotildees eram mantidas na exterioridade por eles criadas no processo de

invenccedilatildeo de si mesmos como interioridadeEacute oportuno destacarmos nesta altura do argumento nosso entendimento

de que essa exterioridade criada pelos europeus eacute antes de tudo subjetiva eepistecircmica Natildeo somente as terras localizadas no lado de fora do estado dedireito ou da cosmoacutepolis europeia estavam livres agrave ocupaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeomas tambeacutem os diferentes povos situados nesse estado da natureza depois dedessubjetivizados podiam ser reduzidos a objetos de dominaccedilatildeo e expropriaccedilatildeoSob uma retoacuterica primeiramente salvacionista depois civilizatoacuteria e nalmente

desenvolvimentista povos e etnias posicionadas na periferia do novo centro domundo inclusive antigos impeacuterios em diferentes graus tecircm sido desapropriadosde suas terras tecircm visto suas cosmologias manifestaccedilotildees artiacutesticas ciecircn-cias e tecnologias formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica serem redu-zidas a supersticcedilotildees mitos folclores tradiccedilotildees irracionais e idiossincrasiasquando natildeo satildeo totalmente suprimidas Sob uma retoacuterica emancipatoacuteria povose etnias periferizadas tecircm sido destituiacutedas de sua subjetividade e dignidade

A Ameacuterica e os povos originaacuterios desse continente foram os primeirosa sentir mais fortemente o impacto do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio edesenvolvimentista dos europeus ocidentais Ao argumento de que resistiamagraves tentativas de salvaacute-los do paganismo e do primitivismo a que supostamentese encontravam aprisionados os vaacuterios povos e etnias que milenarmentehabitavam o continente americano do sul ao norte foram desapropriadas desuas terras removidas e circunscritas a aacutereas ldquoreservadasrdquo pobres de recursose improacuteprias a suas formas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica Submetidos aum esmagador processo de dominaccedilatildeo cultural suas vozes foram silenciadassuas memoacuterias ndash inclusive de resistecircncia ndash foram apagadas suas crianccedilas

lhes foram arrancadas e internadas em escolas-faacutebricas de ocidentalizadosSem passado nem futuro os que natildeo foram connados foram submetidos a trabalho forccedilado e os que sobreviveram ao extermiacutenio ndash e muitos mi-lhotildees foram exterminados jaacute nos primeiros contatos com os europeus ociden-tais ndash foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de ldquoiacutendiosrdquo

E a situaccedilatildeo desses povos originaacuterios da Ameacuterica e do relativamente pequeno contingente de indiviacuteduos que deles restou natildeo melhorou com areproduccedilatildeo dos estados-naccedilotildees europeus em solo americano Ao contraacuterio a

presenccedila desses povos originaacuterios tem sido quase que inteiramente obliteradaou invisibilizada ou quando menos obscurecida no norte da Ameacuterica e noCone Sul Nas demais regiotildees do continente americano do Brasil ao Meacutexicouma maioria de ldquoiacutendiosrdquo e ldquomesticcedilosrdquo tem sido duplamente colonizada

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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mantida na ldquoperiferia da periferiardquo ou na ldquoexterioridade da exterioridaderdquo por uma elite branca ou branqueada por sua vez conservada em depen-

decircncia cultural e econocircmica em relaccedilatildeo agraves potecircncias centrais do Atlacircntico Norte desde meados do seacuteculo 20 sob a lideranccedila suprema dos EstadosUnidos

Os impactos do esforccedilo salvacionista civilizatoacuterio e desenvolvimentistaeuropeu ocidental e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacuteticaque por traacutes dele se esconde natildeo foram menos violentos na Aacutefrica e em seushabitantes Agrave semelhanccedila dos povos originaacuterios da Ameacuterica os diferentes

povos e etnias africanas especialmente as subsaarianas foram submetidas a

um brutal controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmico aleacutem de econocircmicoe poliacutetico Diferentemente de seus consortes americanos no entanto por teremsido posicionados por forccedila de argumentos inicialmente cristatildeo-teoloacutegicose posteriormente cientiacuteco-bioloacutegicos no mais primitivo estaacutegio da linhade evoluccedilatildeo humana articulada no discurso eurocecircntrico de modernidadeos subsaarianos em sua grande parte foram reduzidos a mera mercadoriatendo sido comercializados sobretudo na Ameacuterica para onde foram massiva-mente exportados e utilizados como matildeo de obra escrava ateacute quando por razotildeesmais econocircmicas do que eacuteticas ou melhor por forccedila de uma eacutetica econocircmicaforam trocados por trabalhadores assalariados muitos dos quais imigradosde regiotildees perifeacutericas da Europa

A propoacutesito disso conveacutem salientarmos nesta altura de nosso argumentoque a ideia segundo a qual a relaccedilatildeo capital-trabalho teria evoluiacutedo de umregime de escravidatildeo passando por um regime de servidatildeo ateacute chegar umregime de trabalho assalariado nada mais eacute do que uma criaccedilatildeo eurocecircntricaseja ela em sua versatildeo liberal ou marxista Na verdade assim como zeramcom as noccedilotildees de mercado estado e naccedilatildeo os europeus ocidentais articularam

em suas interaccedilotildees e intercacircmbios com outros povos e etnias os regimesde escravidatildeo servidatildeo e trabalho assalariado e os distribuiacuteram entre asidentidades sociais por eles inventadas aos ldquonegrosrdquo a escravidatildeo aosldquoiacutendiosrdquo a servidatildeo e aos ldquobrancosrdquo o trabalho assalariado Com a expansatildeoda dominaccedilatildeo europeia ocidental essa divisatildeo racial do trabalho foi impostaem escala global com a consequente criaccedilatildeo de novas identidades sociaiscomo os ldquoamarelosrdquo por exemplo (Quijano 2005) Assim eacute que o trabalhoescravo eacute tatildeo moderno quanto o trabalho assalariado sendo ateacute hoje a grande

parte da populaccedilatildeo das regiotildees perifeacutericas em sua maioria pessoas de cormantida sob aquele regime de trabalho forccedilado ou a ele anaacutelogo para sustentaras respectivas elites brancas ou branqueadas ocidentalizadas e uma minoria

branca ldquocivilizadardquo ldquodesenvolvidardquo e ldquodemocraacuteticardquo confortavelmente ins-

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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talada no novo centro do mundo o Atlacircntico Norte a despeito de toda umaretoacuterica emancipatoacuteria seja ela liberal ou marxista

Mas voltemos agrave discussatildeo da condiccedilatildeo de vida dos africanos da diaacutespora particularmente da diaacutespora americana do enorme contingente de indiviacute-duos que dessubjetivados e reduzidos a meros objetos foram brutalmentedesarraigados de diferentes regiotildees povos e etnias da Aacutefrica para transformadosem commodities e homogeneizados como ldquonegrosrdquo aqui serem utilizados comomatildeo de obra escrava Mesmo depois da extinccedilatildeo do regime escravista ndash emalguns lugares como no Brasil bem mais tardiamente do que em outros ndash osldquonegrosrdquo natildeo tecircm tido melhor sorte do que os ldquoiacutendiosrdquo Ao contraacuterio como jaacute

argumentamos por haverem sido posicionados no estaacutegio mais primitivo dalinha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus ocidentais os ldquonegrosrdquo tecircmsofrido maior violecircncia fiacutesica e simboacutelica Se os ldquoiacutendiosrdquo em que pese a teremsido desapropriados removidos e connados ainda tecircm uma terra a reivindicare uma memoacuteria nela fulcrada os ldquonegrosrdquo diferentemente tiveram suas raiacutezesarrancadas da Aacutefrica e aqui nunca foram propriamente enxertados Vivem comoque num natildeo espaccedilo num natildeo lugar e assim satildeo mantidos como um exeacutercito detrabalho de reserva Quando ousam ocupar algum espaccedilo satildeo implacavelmentecriminalizados e ateacute mesmo sumariamente executados Nos Estados Unidosembora sejam apenas 132 da populaccedilatildeo total do paiacutes (US Census Bureau2015)1 constituem desproporcionais 376 da populaccedilatildeo carceraacuteria (FederalBureau of Prison 2015) E o que eacute mais assustador representam 50 dasviacutetimas de homiciacutedio naquele paiacutes (FBI 2011)2 No Brasil a situaccedilatildeo natildeo eacutediferente apesar de escamoteada por traacutes do discurso da democracia racialarticulado pela elite branca ou branqueada e internalizado por grande parteda populaccedilatildeo Embora constituam a maioria da populaccedilatildeo brasileira (pelomenos 5094 IBGE 2010)3 negros e mesticcedilos satildeo os grandes ausentes

nas principais universidades e centros de pesquisas4 nas sedes das grandesempresas e corporaccedilotildees nas bolsas de valores nos palaacutecios governamentaisnas casas legislativas e nos tribunais de justiccedila enm nos principais espaccedilosde exerciacutecio de poder epistecircmico econocircmico e poliacutetico Em contrapartida sua

presenccedila nas carceragens do paiacutes eacute ostensiva (54 Depen 2012) excedendo

1 Dados de 20132 Natildeo estatildeo aiacute incluiacutedos os chamados ldquohomiciacutedios justicadosrdquo3 Pela primeira vez na histoacuteria mais brasileiros se declararam negros e pardos (mesticcedilos de negros)

do que brancos (5094 contra 4751 os restantes 155 distribuem-se entre amarelos eindiacutegenas) (IBGE 2010)

4 A natildeo ser mais recentemente e de maneira ainda muito tiacutemida e inexpressiva por forccedila da poliacutetica de cotas adotadas pelo governo federal (Lei n 1271112)

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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sua parcela na populaccedilatildeo do paiacutes Mais ostensiva ainda ndash e alarmante ndash eacute sua presenccedila entre as viacutetimas de homiciacutedio (711 Waisesz 2012)5

Mas nem os diversos povos e etnias localizadas nas regiotildees centrais emarginais das antigas civilizaccedilotildees asiaacuteticas conseguiram resistir agrave seduccedilatildeo daretoacuterica ocidental de modernidade civilidade desenvolvimento e democraciahavendo igualmente sucumbido ao projeto de dominaccedilatildeo que por traacutes dela seesconde O controle e o gerenciamento ocidental sobre os povos e etnias doOriente Meacutedio e do Extremo Oriente contudo natildeo foram tatildeo devastadorescomo foram e tecircm sido sobre os povos e etnias da Ameacuterica e da Aacutefrica oque se explica pelo posicionamento dos orientais ou asiaacuteticos em estaacutegio mais

avanccedilado do que aquele em que foram posicionados negros e ameriacutendiosna linha de evoluccedilatildeo humana inventada pelos europeus como tambeacutem pela presenccedila naquela regiatildeo de antigas civilizaccedilotildees e potecircncias militares Ningueacutemno entanto escapou ao processo de desumanizaccedilatildeo e humilhaccedilatildeo imposto pelosocidentais ao resto do mundo

Tomemos o caso da China por exemplo Antes mesmo da era cristatilde oschineses iniciaram a articulaccedilatildeo de um discurso com base no qual mantiveramuma poderosa organizaccedilatildeo cultural econocircmica poliacutetica e militar ateacute o seacuteculo20 Tanto no campo cientiacuteco e tecnoloacutegico quanto na esfera governamentalos chineses estavam bem agrave frente dos europeus quando Marco Polo os ldquovisitourdquono seacuteculo 13 De modo que quando os primeiros mercadores missionaacuteriose soldados ocidentais chegaram agrave China encontraram uma rica e antigacivilizaccedilatildeo Deixaram no seu rastro entretanto ruiacutena e humilhaccedilatildeo Aschamadas guerras do oacutepio satildeo emblemaacuteticas A primeira delas de 1839 a 1842foi precipitada pelos esforccedilos do governo da China de impedir que comerciantes

britacircnicos continuassem a vender oacutepio agrave populaccedilatildeo daquele paiacutes A droga estavadestruindo a sauacutede e a vida de um nuacutemero alarmante de chineses poreacutem era

grande fonte de lucro para negociantes ocidentais especialmente britacircnicosmas tambeacutem americanos e franceses a tal ponto de se constituir importantefator de equiliacutebrio na balanccedila comercial entre a Gratilde-Bretanha os EstadosUnidos e a Franccedila de um lado e a China de outro De sorte que quandoem 1839 a China tentou banir a importaccedilatildeo de oacutepio a Gratilde-Bretanha declarouguerra contra aquele paiacutes apesar de ela proacutepria haver proibido o consumo dadroga em seu territoacuterio Derrotada a China foi obrigada a assinar o Tratadode Nanquim de 1842 por forccedila do qual cedeu Hong Kong abriu seus portos

aceitou tarifas que natildeo podiam ser alteradas sem o assentimento dos britacircnicose a estes pagou indenizaccedilatildeo pelo oacutepio perdido e pelos custos da guerra Nos

5 Dados de 2010

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

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passos da Gratilde-Bretanha outras potecircncias ocidentais vieram a exigir con-cessotildees agrave China Os Estados Unidos por exemplo em 1844 impuseram

agravequele paiacutes um tratado em virtude do qual obtiveram uma seacuterie de privileacutegioscomerciais

A guerra do oacutepio e o Tratado de Nanquim expuseram a vulnerabilidade daChina e abriram o caminho para extensa exploraccedilatildeo ocidental De acordo com olorde Palmerston primeiro-ministro britacircnico de 1859 a 1865 ldquogovernos poucocivilizados como os da China Portugal Ameacuterica Hispacircnica precisam de uma

bronca [dressing down] a cada oito ou dez anos para se manterem em ordemrdquo(Fulbright 1966 p 144) E natildeo foram poucas as ldquobroncasrdquo que os chineses

receberam das potecircncias ocidentais nos anos seguintesColonialidade controle e gerenciamento subjetivo e epistecircmicoeconocircmico e poliacutetico eacute pois o outro lado pouco evidente mas constitutivoda modernidade razatildeo pela qual entendemos que a modernidade natildeo pode serentendida sem a colonialidade e a colonialidade natildeo pode ser superada pelamodernidade

Desocidentalizaccedilatildeo e decolonialidade

A despeito de seu grande poder de seduccedilatildeo e alcance global modernidadee seus correlatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e cidadania ndashno entanto comeccedilam a apresentar sinais de fraqueza a mostrar sua naturezadiscursiva de verdade construiacuteda intersubjetivamente e portanto agoniacutestica e

poliacutetica a revelar seu caraacuteter de discurso local provincial europeu ainda queuniversalista e por isso mesmo totalitaacuterio e o que eacute ainda mais importantea desvelar seu lado escuro tenebroso ateacute um brutal e devastador projeto dedominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo pelo ocidente Ao mesmotempo e na mesma proporccedilatildeo vozes por tanto tempo silenciadas memoacuterias

desde longa data sufocadas cosmovisotildees e formas de convivecircncia ao longo dosseacuteculos reprimidas comeccedilam a ressurgir renovadas transguradas por entre as

brechas e ssuras da agora cambaleante modernidadeOra modernidade ateacute por ser discurso articulado por diferentes povos

e etnias europeias em suas interaccedilotildees e intercacircmbios entre si e com osdemais povos e etnias natildeo europeias ao longo dos tempos portanto devido aseu caraacuteter dialoacutegico agoniacutestico poliacutetico nunca foi monoliacutetica em que

pese a ter chegado a ser hegemocircnica Ou seja modernidade eacute o discurso

e o projeto poliacutetico que tecircm prevalecido sobre outros discursos e projetos poliacuteticos natildeo soacute externamente nas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeuscom natildeo europeus mas tambeacutem internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosdos europeus entre si

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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Natildeo apenas isso Mesmo internamente nas interaccedilotildees e intercacircmbiosque os povos e etnias ocidentais europeus e anglo-americanos tecircm mantido

entre si natildeo somente modernidade natildeo eacute discurso uacutenico embora hegemocircnicocomo tambeacutem eacute constituiacuteda por uma variedade de microdiscursos em relaccedilatildeotensional Dois desses microdiscursos de modernidade se tecircm contraposto deuma maneira especial um tendendo para o coletivismo (marxismo) e outro

para o individualismo (liberalismo) com a prevalecircncia atual de uma formamodicada do uacuteltimo (neoliberalismo) (Neo)liberalismo e (neo)marxismocontudo partilham do mesmo caraacuteter teleoloacutegico universalista totalitaacuterio e omesmo projeto de uniformizaccedilatildeo do mundo

Ainda no interior da modernidade outros microdiscursos se tecircmintercruzado em diferentes dimensotildees e graus com o (neo)liberalismoe o (neo)marxismo Nenhum entretanto tem provocado tanta tensatildeo e ateacutemesmo rupturas na esfera subjetiva e epistecircmica como o articulado a partirda psicanaacutelise e da teoria criacutetica o poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo6 Os poacutes-estruturalistaspoacutes-modernistas foram os primeiros a descortinaro caraacuteter discursivo e local da modernidade e seus correlatos ndash civilidadedesenvolvimento democracia e cidadania (Derrida 1982 Lyotard 1984Foucault 1969) Desde entatildeo um nuacutemero ainda pequeno mas intelectualmenteinuente de ocidentais europeus e anglo-americanos comeccedilou a perceberque suas cosmologias artes losoa e ciecircncia sistemas econocircmico poliacuteticoe juriacutedico natildeo satildeo ldquonaturaisrdquo nem universais e que portanto natildeo podemser impostos sobre os outros povos e etnias do planeta Se esse despertarou desencantamento epistecircmico tem sido ainda insuciente para desencadearum processo de desimperializaccedilatildeo do ocidente ele certamente estaacute por traacutesdos vaacuterios movimentos contestatoacuterios em emergecircncia no interior de suasfronteiras sempre uidas muitos dos quais articulados transnacionalmente

que protestam tanto contra poliacuteticas internas excludentes das minorias quantocontra poliacuteticas externas intervencionistas

As brechas e ssuras abertas no discurso de modernidade pelo poacutes-estruturalismopoacutes-modernismo tecircm sido igualmente aproveitadas porintelectuais natildeo ocidentais que atuam em universidades europeias e anglo-americanas Autodenominados poacutes-coloniais esses estudiosos tecircm chamadoatenccedilatildeo para o fato de que o discurso de modernidade foi articulado natildeo apenasnas interaccedilotildees e intercacircmbios dos europeus entre si mas tambeacutem nas interaccedilotildees

6 A separaccedilatildeo entre o poacutes-estruturalismo e o poacutes-modernismo natildeo eacute clara Ainda que JacquesDerrida seja usualmente classicado como poacutes-estruturalista (ele proacuteprio no entanto resistia aessa classicaccedilatildeo) Michel Foucault Roland Barthes e Jean-Franccedilois Lyotard satildeo comumente posicionados em ambos as categorias

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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e intercacircmbios dos europeus com os natildeo europeus nada obstante estes seremrepresentados ora como caricatura ora como estereoacutetipo mas sempre como

uma siacutentese aglutinadora de tudo o que aqueles natildeo querem ser A partirdaiacute os diferentes estudiosos poacutes-coloniais cada um agrave sua maneira tecircm-seengajado na desconstruccedilatildeo do discurso de modernidade com a nalidade deexpurgando-o de seu eurocentrismo nele identicar verdades construiacutedas nase pelas interaccedilotildees entre europeus e natildeo europeus portanto globais (Said 1978Hall 1996 Chakrabarty 2000)

Mas natildeo satildeo apenas intelectuais natildeo ocidentais atuando em universidadeseuropeias e anglo-americanas que se tecircm aproveitado da crescente debilitaccedilatildeo

do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicoe poliacutetico que ele promove Povos e etnias inteiras ndash que nas interaccedilotildees eintercacircmbios nas quais o discurso de modernidade foi articulado natildeo somentetiveram sua participaccedilatildeo negada mas tambeacutem por isso mesmo por teremsido dessubjetivadas foram reduzidas a meros objetos de estudo dominaccedilatildeo eexploraccedilatildeo de toda sorte ndash tecircm ressurgido renovadas transguradas por entreas brechas e ssuras que se abrem nesse discurso a partir da exterioridadenele inventada E satildeo esses povos e etnias ndash em alguns casos o que restoudelas ndash que muito mais pelas feridas deixadas em seus corpos e pelos estigmasque trazem em sua pele de cor do que mesmo pelas elaboraccedilotildees de suasconsciecircncias divididas e que se movem por entre as fronteiras inventadas nodiscurso de modernidade tecircm desnudado o truculento e arrasador projeto deocidentalizaccedilatildeo ou dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica do mundo peloocidente nesse discurso por muito tempo escondido e que agraves escondidas delese tem alimentado

Nesse esforccedilo de reexistecircncia que se tem robustecido na exata medidada debilitaccedilatildeo do discurso de modernidade e do projeto de dominaccedilatildeo do

mundo que ele promove alguns povos e etnias natildeo ocidentais tecircm procuradoem suas rearticulaccedilotildees discursivas a partir da exterioridade e movendo-seao longo de fronteiras inventadas pela modernidade desta se desligar oudesengajar total e radicalmente assim como de seu lado inseparaacutevel outroraocultado mas agora trazido agrave luz a colonialidade Nesse esforccedilo de radicaldesligamento ou desengajamento decolonial povos originaacuterios ou ab-oriacutegenes de diferentes regiotildees do mundo no interior de estados-naccedilotildees localizados noocidente ou reproduzidos em sua periferia mas sempre a partir da exterioridade

subjetiva e epistecircmica fabricada no discurso de modernidade rearticulam suasantigas cosmologias artes ciecircncias e saberes formas de intercacircmbio natildeocomoditicadas e portanto natildeo capitalistas modos de interaccedilotildees sociais emque nenhum indiviacuteduo ou grupo possa alcanccedilar supremacia sobre os outros

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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portanto natildeo estatais tudo num sistema harmonicamente integrado com o meionatural (Tinker 2008 Simpson 2008 Coulthard 2014 Ndebele 2014)

Os africanos da diaacutespora diferentemente ndash talvez como jaacute argumentamos por terem sido desarraigados de suas regiotildees povos e etnias originaacuterias enunca haverem sido propriamente enxertados nas regiotildees para as quais foramexportados e nas quais foram comercializados por seacuteculos utilizados comoescravos e mesmo depois de abolido o regime escravista mantidos numaespeacutecie de natildeo espaccedilo de natildeo lugar como uma forccedila laboral de reserva ndashnenhuma memoacuteria tecircm para invocar senatildeo a da violecircncia fiacutesica e simboacutelicaa que foram e satildeo ateacute hoje submetidos de sua dor fiacutesica e psiacutequica de suas

humilhaccedilotildees mas tambeacutem de suas movimentaccedilotildees contestatoacuterias as quaisquando natildeo suprimidas no discurso prevalente nele tecircm sido criminalizadasAssumindo a identidade social na qual a despeito de toda a variedade desuas origens cosmoloacutegicas culturais linguiacutesticas e eacutetnicas eles tecircm sidohomogeneizados ndash ldquonegrordquo ndash os africanos da diaacutespora se tecircm engajado num

processo de ressubjetivizaccedilatildeo no interior do discurso de modernidade numaluta pelo reconhecimento de seus plenos direitos como cidadatildeos de estados-naccedilotildees situados no ocidente ou reproduzidos em sua periferia (Wynter 2003Trouillot 2001)

Outros povos e etnias natildeo ocidentais haacute entretanto que ateacute por jaacute estaremorganizados como estados antes mesmo do que os europeus com essa formaccedilatildeosocial ndash estatal ndash natildeo apenas tecircm contestado o conteuacutedo mas tambeacutem tecircmmudado os termos do discurso eurocecircntrico de modernidade e formulado

projetos proacuteprios de reexistecircncia Nesse processo tais povos e etnias tecircmrearticulado suas milenares cosmologias artes losoas ciecircncias e tecnologiasformas de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica apropriando-se de elementos dodiscurso de modernidade depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo

Tomemos a China mais uma vez como caso de estudo Os chineses naverdade articularam um discurso de modernidade proacuteprio uma espeacutecie demodernidade conitiva que em nada se assemelha agrave modernidade perifeacutericae dependente de ex-colocircnias como o Brasil de ateacute poucos anos atraacutes Quandoa partir de 1949 os chineses incluiacuteram em suas rearticulaccedilotildees discursivaselementos do marxismo e mais tarde do liberalismo natildeo o zeram com odesejo de ocidentalizar-se como o zeram os japoneses por exemplo aoadotarem o liberalismo Ao contraacuterio os chineses se apropriaram de tais

elementos do discurso ocidental num claro esforccedilo de se desocidentalizar Natildeoeacute por outra razatildeo que comeccedilaram pelo microdiscurso de modernidade derrotadono ocidente o marxismo e desde entatildeo vecircm desenvolvendo uma forma deorganizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica com a posterior apropriaccedilatildeo de aspectos do

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J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 397

liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 399

um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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400 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

Referecircncias

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Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 397

liberalismo que natildeo se subsome nem ao (neo)liberalismo nem ao (neo)mar-xismo (Lee 2012 Wang 2010 Zhang 2012) Aleacutem disso em que pese a se

ter estabelecido no mercado internacional como uma das maiores potecircnciaseconocircmicas do mundo ndash a segunda muito em breve a primeira ultrapassandoos Estados Unidos ndash a China tem-se mantido politicamente alinhada com

paiacuteses natildeo ocidentais como o Brasil a Ruacutessia e a Aacutefrica do Sul7 com osquais formou o Brics com isso rompendo com o centralismo e a mediaccedilatildeodos estados-membros da Organizaccedilatildeo do Tratado do Atlacircntico Norte ndash Otan

principalmente dos Estados Unidos nas relaccedilotildees internacionaisObviamente tais esforccedilos de desocidentalizaccedilatildeo tecircm sido seguidos

de tentativas de reocidentalizaccedilatildeo Com a decadecircncia da ocidentalizaccedilatildeoevidenciada durante a presidecircncia de George W Bush e a emergecircncia dadesocidentalizaccedilatildeo o ocidente se tem lanccedilado num arrojado projeto derevitalizaccedilatildeo de sua dominaccedilatildeo cultural econocircmica e poliacutetica sobre o restodo mundo sob a lideranccedila de Barack Obama As recentes movimentaccedilotildees naUcracircnia e no Oriente Meacutedio as tentativas de limitar a inuecircncia da China noPaciacuteco e o restabelecimento das relaccedilotildees com Cuba vinculado ao controle daAmeacuterica Central e agrave desestabilizaccedilatildeo do Brasil da Argentina e da Venezuelasatildeo partes importantes da execuccedilatildeo desse projeto

Contudo pela primeira vez em muitos seacuteculos as vaacuterias regiotildees natildeoocidentais do mundo o ldquosul globalrdquo e um ldquohemisfeacuterio orientalrdquo ressurgente emtermos cada vez mais denidos pelos proacuteprios orientais tecircm estabelecido entresi relaccedilotildees culturais econocircmicas e poliacuteticas sem a intermediaccedilatildeo e fora dogerenciamento das potecircncias ocidentais e de seu liacuteder atual os Estados Unidoso que parece apontar para um mundo crescentemente multipolar e marcado

pelo multilateralismo em que pese aos esforccedilos do ocidente de retomar seucentenaacuterio controle sobre todo o mundo

Consideraccedilotildees fnais

A natureza discursiva agoniacutestica poliacutetica da modernidade e seuscorrelatos ndash civilidade desenvolvimento democracia e direitos humanos ndashassim como de toda e qualquer outra pretensa representaccedilatildeo da realidadeexterior seu caraacuteter local provincial europeu ainda que universalista

7 A esta altura de nosso argumento jaacute deve ter cado sucientemente claro que ldquoocidenterdquo eacutemais uma categoria poliacutetica do que geograacuteca inventadas pelos proacuteprios ldquoocidentaisrdquo em suasinteraccedilotildees com outros povos e etnias no curso das quais inventaram tambeacutem o ldquoorienterdquo e osldquoorientaisrdquo e mais tarde com o colapso da Uniatildeo Sovieacutetica o ldquosul globalrdquo como sucedacircneo doldquoterceiro mundordquo Nesse sentido a Austraacutelia eacute considerada ocidental ao passo que a Aacutefrica doSul e o Brasil satildeo mantidos fora do clube

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398 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

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J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 399

um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

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SMITH Linda Tuhiwai Decolonizing methodologies research and indigenous peoples Dunedin University of Otago Press 2006

TINKER George Struggle resistance liberation and theological methodologyindigenous peoples and the two-thirds world In American Indian liberation atheology of sovereignty Maryknoll NY Orbis Book 2008 p 17-35

TROUILLOT Michel-Rolph North Atlantic universal analytical ctions 1492-1945The South Atlantic Quarterly v 101 n 4 p 839-858 2002

US Census Bureau USA Quick Facts Uacuteltima revisatildeo 31 mar 2015 lthttpquickfactscensusgovqfdstates00000htmlgt (6 maio 2015)

WAISEFISZ Julio J Mapa da violecircncia 2012 a cor dos homiciacutedios no Brasil Rio deJaneiro Cebela Flacso Brasiacutelia SeppirPR 2012 lthttpwwwmapadaviolenciaorg

brmapa2012_corphpgt (6 maio 2015)

WANG Hui An interview concerning modernity In The end of the revolution Chinaand the limits of modernity Londres Verso 2010 p 69-104

WYNTER Sylvia Unsettling the coloniality of beingpowertruthfreedom towardsthe human after man its overrepresentation ndash an argument The New Centennial

Review v 3 n 3 p 257-337 2003

ZHANG Weiwei The China wave rise of a civilizational state Hackensack NJ WorldCentury 2012

Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

7242019 A Modernidade e de Fato Universal Reemer

httpslidepdfcomreaderfulla-modernidade-e-de-fato-universal-reemer 1822

398 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

totalitaacuterio e o brutal e arrasador projeto de dominaccedilatildeo cultural econocircmicae poliacutetica que ela promove tudo isso tem vindo agrave luz tem sido claramente

revelado nas uacuteltimas deacutecadasAo mesmo tempo e na mesma proporccedilatildeo projetos dissidentes como a

desocidentalizaccedilatildeo tecircm cada vez mais disputado o controle da matriz colonialde poder que eacute o fundamento da ideia de modernidade e de sua retoacutericasalvacionista e triunfalista A desocidentalizaccedilatildeo se tem apropriado dela semcontudo seguir o roteiro Em consequecircncia a colonialidade do poder se temtornado mais compartilhada assim como mais compartilhado se tem tornado o

poder de decisatildeo nas relacionais internacionais desde o Conselho de Seguranccedila

da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ateacute a Organizaccedilatildeo Mundial do ComeacutercioEnquanto os Estados Unidos ampliam suas bases comerciais e militares noPaciacuteco a China trabalha para estender a rota da seda por terra e mar de Pequima Roterdatilde Eacute claro que nem a desocidentalizaccedilatildeo nem a reocidentalizaccedilatildeo ndash osesforccedilos dos Estados Unidos e da Europa de manter a lideranccedila mundial ndash satildeonecessariamente boas para o planeta A desocidentalizaccedilatildeo entretanto estaacutecriando uma classe meacutedia global que natildeo foi possiacutevel sob a ocidentalizaccedilatildeoAfora isso a desocidentalizaccedilatildeo estaacute em boa medida impedindo a marcha nadireccedilatildeo de um fascismo hegemocircnico e global

Daiacute a importacircncia do pensamento decolonial como instrumento deanaacutelise das draacutesticas mudanccedilas por que passa a ordem mundial cujos sinais seespalham por toda a parte da Ucracircnia ao Oriente Meacutedio de Iguala no Meacutexicoa Ferguson nos Estados Unidos do escacircndalo da Petrobras ao caso Nismanna Argentina Vulcotildees estatildeo entrando em erupccedilatildeo por todos os lugares e umaexplicaccedilatildeo para isso pode ser a gradativa perda de privileacutegios do ocidente e ocrescente despertamento do mundo para aleacutem da Europa e dos Estados Unidos

ndash cerca de 80 da populaccedilatildeo do planeta ndash despertamento que aqui signica

despertamento do pesadelo da modernidade As respostas obviamente tecircmvariado mas antes de fazer o papel de juiz e decretar o que eacute melhor e pior parao mundo eacute fundamental entender que estamos a testemunhar as consequecircnciasda dupla face da modernidade de um lado a retoacuterica da salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila por meio do progresso e do desenvolvimento e de outro a loacutegicada colonialidade ou seja a violecircncia a exploraccedilatildeo e a expropriaccedilatildeo necessaacuteriasagrave realizaccedilatildeo da promessa de salvaccedilatildeo e bem-aventuranccedila Se para nada maisserve o pensamento decolonial ao menos contribui ao entendimento de que a

nova ordem mundial natildeo eacute aquela ambicionada por George Bush o pai com aguerra do golfo mas sim os procedimentos ldquolegaisrdquo de desocidentalizaccedilatildeo e osldquoilegaisrdquo dos carteacuteis ndash em busca de lucros econocircmicos que eacute o que aprenderamcom o capitalismo ndash e do Estado Islacircmico ndash em busca da constituiccedilatildeo de

7242019 A Modernidade e de Fato Universal Reemer

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J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 399

um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

7242019 A Modernidade e de Fato Universal Reemer

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400 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

Referecircncias

COULTHARD Glen S Read skin white mask rejecting the colonial politics ofrecognition Minneapolis University of Minnesota Press 2014

CHAKRABARTY Dipesh Provincializing Europe Princeton University ofPrinceton 2000

DEPEN Departamento Penitenciaacuterio Nacional Relatoacuterio EstatiacutesticoAnaliacuteticodo Sistema Prisional Brasileiro dez 2012 lthttpjusticagovbrseus-direitos

politica-penaltransparencia-institucionalestatisticas-prisionalrelatorios-estatisticos-analiticos-do-sistema-prisionalgt (6 maio 2015)

DERRIDA Jacques Diffeacuterance In Jacques Derrida Margins of philosophy ChicagoUniversity of Chicago Press 1982

DUSSEL Enrique Eurocentrism and modernity introduction to the Frankfurt Lectures Boundary 2 v 20 n 3 p 65-76 1993

DUSSEL Enrique Europa modernidade e eurocentrismo In Edgardo Lander (org)Colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Buenos Aires Clacso 2005

p 24-32

FBI ndash Federal Bureau of Investigation Crime in the United States 2011 lthttpwwwfbigovabout-uscjisucrcrime-in-the-us2011crime-in-the-us-2011offenses-known-to-law-enforcementexpandedexpanded-homicide-datagt (6 maio 2015)

FEDERAL Bureau of Prisons Inmate Race Uacuteltima atualizaccedilatildeo 28 mar 2015 lthttpwwwbopgovaboutstatisticsstatistics_inmate_racejspgt (6 maio 2015)

FOUCAULT Michel Lrsquoarcheacuteologie du savoir Paris Gallimard 1969

FULBRIGHT J William The arrogance of power Nova York Random House 1966

7242019 A Modernidade e de Fato Universal Reemer

httpslidepdfcomreaderfulla-modernidade-e-de-fato-universal-reemer 2122

J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 401

HALL Stuart The West and the rest discourse and power In Stuart Hall et al (orgs) Modernity introduction to the modern society Oxford Blackwell 1996

IBGE Instituto Brasileiro de Geograa e Estatiacutestica Censo 2010 lthttpcenso2010ibgegovbrresultadosgt (6 maio 2015)

LEE Kuan Yew The grand masterrsquos insight on China the United States and the world Cambridge The MIT Press 2012

LYOTARD Jean-Franccedilois The postmodern condition a report on knowledgeMinneapolis Univ Minn Press 1984

MIGNOLO Walter D A colonialidade de cabo a rabo o hemisfeacuterio ocidental nohorizonte conceitual da modernidade In Edgardo Lander (org) Colonialidade do

saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Buenos Aires Clacso 2005 p 33-49MIGNOLO Walter D Theorizing from the borders shifting to geo- and body-politicsof knowledge European Journal of Social Theory v 9 n 2 p 205-22 2006

MIGNOLO Walter D The darker side of Western modernity Durham DukeUniversity Press 2011a

MIGNOLO Walter D Cosmopolitan localism a decolonial shifting of the Kantianrsquoslegacies Localities v 1 p 11-45 2011b

MIGNOLO Walter D Geopoliacutetica de la sensibilidad y del conocimiento sobre (de)colonialidad pensamiento fronterizo y desobediencia episteacutemica Revista de Filosofiacuteav 74 p 7-23 2013

MIGNOLO Walter D Democracia liberal camino de la autoridad humana y transicioacutenal vivir bien In Debora Messenberg G Flaacutevia L Barros Julio R S Pinto (orgs)Desaos da consolidaccedilatildeo democraacutetica na Ameacuterica Latina Sociedade e Estado v 29n 1 2014 p 21-44

NDEBELE Njabulo S To be or not to be no longer at ease Palestra de Abertura da 40aConferecircncia de Associaccedilatildeo Africana de Literatura na Universidade de Witwatersrand

Joanesburgo 10 abr 2014QUIJANO Aniacutebal Colonialidade del poder cultura y conocimiento en AmeacutericaLatina Anuario Mariateguiano v 9 n 9 p 113-22 1998

QUIJANO Aniacutebal Colonialidade do poder eurocentrismo e Ameacuterica Latina InEdgardo Lander (org) Colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociaisBuenos Aires Clacso 2005 p 107-30

QUIJANO Aniacutebal Coloniality and modernityrationality Cultural Studies v 21n 2-3 p 168-178 2007

SAID Edward Orientalism Nova York Vintage 1978

SIMPSON Leanne Oshkimaadiziig The new people e Our elder brothers In Lighting the eighth fre the liberation resurgence and protection of Indigenous Nations Winnipeg Arbeiter Ring Pub 2008 p 13-21 73-87

7242019 A Modernidade e de Fato Universal Reemer

httpslidepdfcomreaderfulla-modernidade-e-de-fato-universal-reemer 2222

402 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

SMITH Linda Tuhiwai Decolonizing methodologies research and indigenous peoples Dunedin University of Otago Press 2006

TINKER George Struggle resistance liberation and theological methodologyindigenous peoples and the two-thirds world In American Indian liberation atheology of sovereignty Maryknoll NY Orbis Book 2008 p 17-35

TROUILLOT Michel-Rolph North Atlantic universal analytical ctions 1492-1945The South Atlantic Quarterly v 101 n 4 p 839-858 2002

US Census Bureau USA Quick Facts Uacuteltima revisatildeo 31 mar 2015 lthttpquickfactscensusgovqfdstates00000htmlgt (6 maio 2015)

WAISEFISZ Julio J Mapa da violecircncia 2012 a cor dos homiciacutedios no Brasil Rio deJaneiro Cebela Flacso Brasiacutelia SeppirPR 2012 lthttpwwwmapadaviolenciaorg

brmapa2012_corphpgt (6 maio 2015)

WANG Hui An interview concerning modernity In The end of the revolution Chinaand the limits of modernity Londres Verso 2010 p 69-104

WYNTER Sylvia Unsettling the coloniality of beingpowertruthfreedom towardsthe human after man its overrepresentation ndash an argument The New Centennial

Review v 3 n 3 p 257-337 2003

ZHANG Weiwei The China wave rise of a civilizational state Hackensack NJ WorldCentury 2012

Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 399

um estado proacuteprio que eacute o que o euro-moderno e democraacutetico estado-naccedilatildeolhe ensinou

Eacute claro que esforccedilos como os da China e de outras potecircncias (re)emer- gentes em diferentes regiotildees natildeo ocidentais do mundo de rearticular os

proacuteprios discursos e projetos de reexistecircncia apropriando-se de elementos damodernidade ainda que depois de expurgaacute-los de seu eurocentrismo podemeventualmente ter o efeito contraacuterio e indesejado de reproduzir aspectos de suaface indissociaacutevel a colonialidade Ademais apesar de ao longo de todo seu

passado como uma das maiores e mais poderosas civilizaccedilotildees do mundo oschineses nunca terem exibido a mesma sanha imperialista dos ocidentais nada

garante que eles natildeo venham a fazecirc-lo nos proacuteximos anos quando chegarem adesbancar os anglo-americanos como a maior potecircncia econocircmica de todos ostempos tanto mais agora que reproduziram ainda que de maneira modicadaadaptada a seus princiacutepios e praacuteticas milenares a combinaccedilatildeo ocidentalmercado-estado-naccedilatildeo ndash forma de organizaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica que se temrevelado expansionista e destruidora da cultura dos povos e etnias e do meionatural sobre os quais ela avanccedila Experiecircncias como a da China portanto soacutecorroboram nosso entendimento da inviabilidade de uma decolonialidade radical

por meio do estado e da insuperabilidade da colonialidade por intermeacutedio damodernidade ou modernizaccedilatildeo No entanto visto por outro acircngulo pensar queos chineses seguiratildeo os passos do imperialismo ocidental eacute em si uma maneira

bem ocidental e eurocecircntrica de raciocinar ldquoEles faratildeo o que noacutes zemosrdquoAleacutem do mais eacute uma clara manifestaccedilatildeo de medo medo de que a China causeao ocidente os mesmos danos que o imperialismo ocidental impingiu agrave Chinae ao resto do mundo

Evidentemente a desocidentalizaccedilatildeo e a decolonialidade tanto quanto areocidentalizaccedilatildeo e tudo o mais tecircm limites Mas reiteramos pensar em limites

eacute de certa forma colocar-se na posiccedilatildeo de uma mente soberana que julga semser julgada de algueacutem que consegue ver os limites dos outros sem enxergar os

proacuteprios Se formos entrar na anaacutelise dos limites o primeiro limite a analisarteria de ser os limites de quem analisa os limites Do contraacuterio continuariacuteamosa nos colocar no marco zero do conhecimento na epistemologia imperialistada modernidade Natildeo haacute lugar em que possamos analisar limites sem quenos vejamos analisando tais limites inclusive os nossos proacuteprios Estamostodos dentro do mundo Natildeo haacute qualquer exterioridade socioloacutegica em que um

observador possa posicionar-se e a partir da qual possa analisar o que quer queseja Esse tambeacutem eacute em parte o m do sonho das modernas ciecircncias sociais

Em todo caso quaisquer que sejam os limites da desocidentalizaccedilatildeoe as diculdades da decolonialidade em vez de levar agrave desistecircncia devem

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400 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

Referecircncias

COULTHARD Glen S Read skin white mask rejecting the colonial politics ofrecognition Minneapolis University of Minnesota Press 2014

CHAKRABARTY Dipesh Provincializing Europe Princeton University ofPrinceton 2000

DEPEN Departamento Penitenciaacuterio Nacional Relatoacuterio EstatiacutesticoAnaliacuteticodo Sistema Prisional Brasileiro dez 2012 lthttpjusticagovbrseus-direitos

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DUSSEL Enrique Europa modernidade e eurocentrismo In Edgardo Lander (org)Colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Buenos Aires Clacso 2005

p 24-32

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FULBRIGHT J William The arrogance of power Nova York Random House 1966

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J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 401

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LYOTARD Jean-Franccedilois The postmodern condition a report on knowledgeMinneapolis Univ Minn Press 1984

MIGNOLO Walter D A colonialidade de cabo a rabo o hemisfeacuterio ocidental nohorizonte conceitual da modernidade In Edgardo Lander (org) Colonialidade do

saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Buenos Aires Clacso 2005 p 33-49MIGNOLO Walter D Theorizing from the borders shifting to geo- and body-politicsof knowledge European Journal of Social Theory v 9 n 2 p 205-22 2006

MIGNOLO Walter D The darker side of Western modernity Durham DukeUniversity Press 2011a

MIGNOLO Walter D Cosmopolitan localism a decolonial shifting of the Kantianrsquoslegacies Localities v 1 p 11-45 2011b

MIGNOLO Walter D Geopoliacutetica de la sensibilidad y del conocimiento sobre (de)colonialidad pensamiento fronterizo y desobediencia episteacutemica Revista de Filosofiacuteav 74 p 7-23 2013

MIGNOLO Walter D Democracia liberal camino de la autoridad humana y transicioacutenal vivir bien In Debora Messenberg G Flaacutevia L Barros Julio R S Pinto (orgs)Desaos da consolidaccedilatildeo democraacutetica na Ameacuterica Latina Sociedade e Estado v 29n 1 2014 p 21-44

NDEBELE Njabulo S To be or not to be no longer at ease Palestra de Abertura da 40aConferecircncia de Associaccedilatildeo Africana de Literatura na Universidade de Witwatersrand

Joanesburgo 10 abr 2014QUIJANO Aniacutebal Colonialidade del poder cultura y conocimiento en AmeacutericaLatina Anuario Mariateguiano v 9 n 9 p 113-22 1998

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QUIJANO Aniacutebal Coloniality and modernityrationality Cultural Studies v 21n 2-3 p 168-178 2007

SAID Edward Orientalism Nova York Vintage 1978

SIMPSON Leanne Oshkimaadiziig The new people e Our elder brothers In Lighting the eighth fre the liberation resurgence and protection of Indigenous Nations Winnipeg Arbeiter Ring Pub 2008 p 13-21 73-87

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402 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

SMITH Linda Tuhiwai Decolonizing methodologies research and indigenous peoples Dunedin University of Otago Press 2006

TINKER George Struggle resistance liberation and theological methodologyindigenous peoples and the two-thirds world In American Indian liberation atheology of sovereignty Maryknoll NY Orbis Book 2008 p 17-35

TROUILLOT Michel-Rolph North Atlantic universal analytical ctions 1492-1945The South Atlantic Quarterly v 101 n 4 p 839-858 2002

US Census Bureau USA Quick Facts Uacuteltima revisatildeo 31 mar 2015 lthttpquickfactscensusgovqfdstates00000htmlgt (6 maio 2015)

WAISEFISZ Julio J Mapa da violecircncia 2012 a cor dos homiciacutedios no Brasil Rio deJaneiro Cebela Flacso Brasiacutelia SeppirPR 2012 lthttpwwwmapadaviolenciaorg

brmapa2012_corphpgt (6 maio 2015)

WANG Hui An interview concerning modernity In The end of the revolution Chinaand the limits of modernity Londres Verso 2010 p 69-104

WYNTER Sylvia Unsettling the coloniality of beingpowertruthfreedom towardsthe human after man its overrepresentation ndash an argument The New Centennial

Review v 3 n 3 p 257-337 2003

ZHANG Weiwei The China wave rise of a civilizational state Hackensack NJ WorldCentury 2012

Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

7242019 A Modernidade e de Fato Universal Reemer

httpslidepdfcomreaderfulla-modernidade-e-de-fato-universal-reemer 2022

400 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

conduzir-nos a uma maior radicalizaccedilatildeo do empreendimento Ateacute porqueas alternativas que se nos apresentam natildeo satildeo nada encorajadoras Ou

radicalizamos nossos esforccedilos no sentido de nos desligar ou desengajar damodernidade-colonialidade abrindo assim as possibilidades para a imaginaccedilatildeode novas formas de interaccedilotildees e intercacircmbios humanos num sistema maisharmonicamente integrado com o meio natural ou sucumbindo a uma supostainexorabilidade dos acontecimentos restringimo-nos tatildeo somente a continuardiscutindo no Brasil se jaacute somos ou natildeo sucientemente modernos enquantotodos noacutes ndash brasileiros e demais habitantes do planeta situados no centro na

periferia ou na periferia da periferia colonizadores colonizados-colonizadores

ou simplesmente colonizados ndash caminhamos a passos cada vez mais largos para o uacuteltimo e derradeiro holocausto produzido pela modernidade agoranatildeo mais apenas de ameriacutendios negros judeus ou qualquer Outro dessubje-tivizado ndash portanto descartaacutevel quando natildeo mais utilizaacutevel ndash mas de todosnoacutes Em outras palavras ou sonhamos ou morremos

Referecircncias

COULTHARD Glen S Read skin white mask rejecting the colonial politics ofrecognition Minneapolis University of Minnesota Press 2014

CHAKRABARTY Dipesh Provincializing Europe Princeton University ofPrinceton 2000

DEPEN Departamento Penitenciaacuterio Nacional Relatoacuterio EstatiacutesticoAnaliacuteticodo Sistema Prisional Brasileiro dez 2012 lthttpjusticagovbrseus-direitos

politica-penaltransparencia-institucionalestatisticas-prisionalrelatorios-estatisticos-analiticos-do-sistema-prisionalgt (6 maio 2015)

DERRIDA Jacques Diffeacuterance In Jacques Derrida Margins of philosophy ChicagoUniversity of Chicago Press 1982

DUSSEL Enrique Eurocentrism and modernity introduction to the Frankfurt Lectures Boundary 2 v 20 n 3 p 65-76 1993

DUSSEL Enrique Europa modernidade e eurocentrismo In Edgardo Lander (org)Colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Buenos Aires Clacso 2005

p 24-32

FBI ndash Federal Bureau of Investigation Crime in the United States 2011 lthttpwwwfbigovabout-uscjisucrcrime-in-the-us2011crime-in-the-us-2011offenses-known-to-law-enforcementexpandedexpanded-homicide-datagt (6 maio 2015)

FEDERAL Bureau of Prisons Inmate Race Uacuteltima atualizaccedilatildeo 28 mar 2015 lthttpwwwbopgovaboutstatisticsstatistics_inmate_racejspgt (6 maio 2015)

FOUCAULT Michel Lrsquoarcheacuteologie du savoir Paris Gallimard 1969

FULBRIGHT J William The arrogance of power Nova York Random House 1966

7242019 A Modernidade e de Fato Universal Reemer

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J R S Pinto W D Mignolo ndash A modernidade eacute de fato universal 401

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IBGE Instituto Brasileiro de Geograa e Estatiacutestica Censo 2010 lthttpcenso2010ibgegovbrresultadosgt (6 maio 2015)

LEE Kuan Yew The grand masterrsquos insight on China the United States and the world Cambridge The MIT Press 2012

LYOTARD Jean-Franccedilois The postmodern condition a report on knowledgeMinneapolis Univ Minn Press 1984

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saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Buenos Aires Clacso 2005 p 33-49MIGNOLO Walter D Theorizing from the borders shifting to geo- and body-politicsof knowledge European Journal of Social Theory v 9 n 2 p 205-22 2006

MIGNOLO Walter D The darker side of Western modernity Durham DukeUniversity Press 2011a

MIGNOLO Walter D Cosmopolitan localism a decolonial shifting of the Kantianrsquoslegacies Localities v 1 p 11-45 2011b

MIGNOLO Walter D Geopoliacutetica de la sensibilidad y del conocimiento sobre (de)colonialidad pensamiento fronterizo y desobediencia episteacutemica Revista de Filosofiacuteav 74 p 7-23 2013

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NDEBELE Njabulo S To be or not to be no longer at ease Palestra de Abertura da 40aConferecircncia de Associaccedilatildeo Africana de Literatura na Universidade de Witwatersrand

Joanesburgo 10 abr 2014QUIJANO Aniacutebal Colonialidade del poder cultura y conocimiento en AmeacutericaLatina Anuario Mariateguiano v 9 n 9 p 113-22 1998

QUIJANO Aniacutebal Colonialidade do poder eurocentrismo e Ameacuterica Latina InEdgardo Lander (org) Colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociaisBuenos Aires Clacso 2005 p 107-30

QUIJANO Aniacutebal Coloniality and modernityrationality Cultural Studies v 21n 2-3 p 168-178 2007

SAID Edward Orientalism Nova York Vintage 1978

SIMPSON Leanne Oshkimaadiziig The new people e Our elder brothers In Lighting the eighth fre the liberation resurgence and protection of Indigenous Nations Winnipeg Arbeiter Ring Pub 2008 p 13-21 73-87

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402 Civitas Porto Alegre v 15 n 3 p 381-402 jul-set 2015

SMITH Linda Tuhiwai Decolonizing methodologies research and indigenous peoples Dunedin University of Otago Press 2006

TINKER George Struggle resistance liberation and theological methodologyindigenous peoples and the two-thirds world In American Indian liberation atheology of sovereignty Maryknoll NY Orbis Book 2008 p 17-35

TROUILLOT Michel-Rolph North Atlantic universal analytical ctions 1492-1945The South Atlantic Quarterly v 101 n 4 p 839-858 2002

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Review v 3 n 3 p 257-337 2003

ZHANG Weiwei The China wave rise of a civilizational state Hackensack NJ WorldCentury 2012

Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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Review v 3 n 3 p 257-337 2003

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Recebido em 8 maio 2015Aprovado em 30 set 2015

Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil

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TINKER George Struggle resistance liberation and theological methodologyindigenous peoples and the two-thirds world In American Indian liberation atheology of sovereignty Maryknoll NY Orbis Book 2008 p 17-35

TROUILLOT Michel-Rolph North Atlantic universal analytical ctions 1492-1945The South Atlantic Quarterly v 101 n 4 p 839-858 2002

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WAISEFISZ Julio J Mapa da violecircncia 2012 a cor dos homiciacutedios no Brasil Rio deJaneiro Cebela Flacso Brasiacutelia SeppirPR 2012 lthttpwwwmapadaviolenciaorg

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Autor correspondenteJuacutelio Roberto de Souza PintoCacircmara dos Deputados Centro de Formaccedilatildeo Treinamento e AperfeiccediloamentoVia N3 ndash Projeccedilatildeo L Complexo Avanccedilado da Cacircmara dos Deputados Bloco BSetor de Garagens Ministeriais Norte70160-900 Brasiacutelia DF Brasil