A Pessoa de Cristo - Berkouwer

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    APESSOA DE CRISTOG. C. Berkouwer

    Traduo de: A. Zimmermann e P. G. Hollanders

    Todos os direitos reservados. Copyright 1964 da ASTE para a lngua portuguesa.Edio da JUERP mediante convnio com a ASTE.

    Ttulo original holands: DE PERSOON VAN CHRISTUS

    Uitgave J. H. Kok N. V. Kampen, 1952

    1edio: ASTE, 19642 edio: JUERP/ASTE, 1983

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    SUMRIO

    PREFCIO DO TRADUTOR ....................................................... ......................................................... ..3

    CAPTULO I - INTRODUO .......................................................... ..................................................... 5

    CAPTULO II A CRISE DAS DUAS NATUREZAS...........................................................................9

    CAPTULO III DECISES ECUMNICAS.....................................................................................27

    CAPTULO IV AS CONFISSES REFORMADAS.........................................................................34

    CAPTULO V - ESTACIONAR EM CALCEDNIA?........................................................................39

    CAPTULO VI PESSOA E OBRA DE CRISTO ........................................................... ....................45

    CAPTULO VII PROMESSA E CUMPRIMENTO..........................................................................50

    CAPTULO VIII - A DIVINDADE DE CR1STO ..................................................................... ............68

    CAPTULO IX A HUMANIDADE DE CRISTO...............................................................................85

    CAPTULO X A IMPECABILIDADE DE CRISTO.......................................................................105

    CAPTULO XI - UNIDADE DA PESSOA ............................................................... ...........................119

    CAPTULO XII NATUREZA HUMANA E NO PESSOA HUMANA ....................................... 135

    CAPTULO XIII MISTRIO CRSTOLGICO............................................................................146

    PEQUENO LXICO TEOLGICO....................................................................................................163

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    CAPTULO I - INTRODUO

    Sumrio:

    Modernismo, fada sedutora. Conflito religioso Teologia e f daComunidade Cristologia e Modernismo Pierson e Kuyper Deciso

    existencial A pergunta de Cesaria de Filipos O segredo da Revelao Conhecimento, dom de Deus A atmosfera de nosso sculo Novoconceito mundial Credo e misso apostlica Cristologia e fundamentoda misso Ortodoxia e tradio.

    Em 1871, o Dr. A. Kuyper deu uma aula sobre o Modernismo que se tornou famosa,Fata Morgana em campo cristo. Traou um paralelismo impressionante entre oesplndido fenmeno luminoso dos cus de Rgio e aFata Morgana, com o movimentomodernista. Alm de revestir-se de beleza sedutora, o Modernismo aparece como umalei natural que, embora prevista, to irreal como uma miragem. O discurso de Kuyperconstitui um requisitrio implacvel contra essa heresia do sculo XIX, anttese

    irredutvel f crist. Denunciou o fato de que a heterodoxia aparece, no plano cristo,de acordo com determinada lei, tal como surgem as miragens na atmosfera: refraonecessria do luminoso raio evanglico no cu espiritual de todos os sculos. Cadapoca produz sua prpria forma de heresia na Igreja. Desde que ao sculo XIX dadoum lugar privilegiado na Histria, deveria surgir nele de conformidade com as leishistricas uma heresia majestosa. Surgiu assim o Modernismo de beleza sedutora.Kuyper lembrava-se da influncia que esta doutrina exercia sobre o seu esprito,especialmente quando nos lbios de Scholten, pois em 1871 o primeiro confessava tercompartilhado, por algum tempo, dos sonhos do Modernismo. J octogenrio, aindaevocava diante dos alunos da Universidade Livre sua petulncia espiritual, causa deseus deslizes passados. Em Leyden eu me achava entre os que aplaudiram calorosa e

    ruidosamente quando Rauwenhoff, nosso professor, manifestou sua ruptura total com af na ressurreio de Cristo. Acrescentava, porm: Hoje a minha alma treme porcausa da desonra que outrora infligi a meu Salvador. Finalizando sua preleo, Kuyperfez uma referncia especial Encarnao do Verbo, com relao qual aparece maisespetacularmente o imenso abismo entre a Ortodoxia Crist e o Modernismo. Esteaparece como a ressurreio do Arianismo. Basta modificar nomes e datas, e a histriado Arianismo ser a do Modernismo, em suas linhas gerais.

    Para Kuyper, muito mais do que mera discordncia terica e cientfica no campo daCristologia, o Modernismo uma decisiva ameaa existencial ao Cristianismo. Trata-sede uma heresia que solapa toda a vida da Igreja, exatamente como nos tempos de

    Atansio. Em sua luta contra rio, o grande campeo alexandrino estava plenamenteconsciente do seu alvo: salvar a Igreja. De fato, o Modernismo varre completamente as

    perspectivas crists: No useis mais a palavra orar. A assim chamada orao nopassa de elevao fantica da alma, de desabafo do corao, de solilquio espiritual.

    * * *

    Esta evocao de Kuyper permite-nos abordar as questes que sero objeto deste livro.Renova nossa convico de que a teologia crist nunca est em posio deindependncia quanto f da comunidade, isto , quanto religio viva da f expressaatravs da orao e da adorao. A teologia dogmtica entra em muitas distines,inclusive em problemas relativos ao Cristo de Deus; entretanto, tambm nessassutilezas, ela dever guardar a fiel dependncia quanto f no depsito cristo, nunca

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    degenerando em meras anlises cientficas, como se Cristo pudesse ser objeto dequalquer anlise sem compromisso. Esta atitude inspirou e ainda determina as grandeslutas cristolgicas em todos os tempos. Na Cristologia sempre se faz ouvir umtestemunho, mesmo quando a exposio dogmtica no coincide com a pregao.

    Infelizmente, nem sempre se compreendeu esta exigncia de f, a anlise cientficaentrando em jogo aqui e acol, dando-nos o fruto de uma f desvirtuada e racional.Kuyper, com profunda tristeza, evocava a notvel figura de Allard Pierson, o chamadoenfant terrible do Modernismo. Esse aluno de Opzoomer, coerente com o empirismo domestre, tornou-se o ctico do Modernismo. Comeou duvidando da famosa sntese F-Cincia e terminou demitindo-se de seu ministrio na Igreja Reformada. Em sua cartade demisso (1865), declarava Pierson que a nica razo de sua retirada estava naOrtodoxia da Igreja Reformada, pois, para ele, a idia de uma Revelao era puraquimera: no podia furtar-se a essa deciso existencial. No continuaria, portanto, atrabalhar sem reservas para uma Igreja onde, com seu esprito crtico, sentia-sedeslocado. Perseverar seria simplesmente desonestidade. A desero de Pierson resultou

    de um caso de conscincia: exigir que a Igreja alargasse seus limites, equivalia a pedirque assinasse sua prpria condenao morte; permanecer na Igreja provaria ser faltade princpios. No havia, pois, outra soluo a no ser retirar-se. O ilustre Pierson estavaconvencido da impossibilidade de unir o princpio modernista com a ortodoxiaeclesistica. Para ele, era impossvel construir uma teologia partindo das hiptesesmodernas: a conscincia moderna edifica, sobre o principio de causalidade puramentenatural, excluindo a possibilidade do milagre, em particular, e de qualquer causasobrenatural. Ora, sendo o sobrenatural uma necessidade vital para a Igreja, no restavaseno reconhecer aberta e honestamente a irredutvel anttese. Pierson recusou-se acontinuar brincando com termos da antiga ortodoxia recheados com um contedonovo; tirou as concluses de seu credo cientfico e desafiou os modernos a provaremseus direitos de cristos.

    Embora totalmente antagnicos em seus credos, Pierson e Kuyper concordavam nesteponto de Modernismo e f crist serem irreconciliveis. Kuyper foi combatido como umintransigente e Pierson como um incrdulo com relao a qualquer sntese.

    * * *

    Esta pgina de Histria nos leva a uma das questes capitais do sistema dogmtico eque ultrapassa de longe as fronteiras do sculo XIX. Continuam reinando no

    pensamento os mesmos problemas, com variantes de toda classe. Ainda que no seequipare plenamente o Modernismo do sculo XIX com o atual, quem penetra naspreocupaes cristolgicas de hoje percebe que a luta perdura sob novos aspectos. Aproblemtica concentra-se ainda em torno da questo capital: Que pensais de Cristo?Nomes e datas se modificam, mas a luta a mesma. Atualidade verdadeiramentemisteriosa do eterno problema! Quem no est vendo o carter trgico e profundamenteexistencial de cada deciso tomada a este respeito? Como sempre, ainda hoje ressoam

    palavras esperanosas, promessas da to almejada sntese, da reconciliaotranqilizadora entre F e Razo; como sempre, de igual modo, ouvimos os testemunhosfirmes da anttese irreconcilivel.

    * * *

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    Enquanto Cristo viveu entre ns, corriam j os conceitos mais desencontrados a seurespeito. Quem dizem os homens ser o Filho do Homem? Um via Joo Batista nele,outro, Elias, Jeremias, ou um dos profetas. Mas vs, quem dizeis que eu SOU? Comesta pergunta Cristo no espera ouvir, ao lado dos mltiplos conceitos que correm a seurespeito, mais uma opinio altura das demais; pretende provocar uma deciso de outra

    ndole, existencial, diretamente correlata com a verdade vista em sua Pessoa; quer umaresposta que supere toda considerao terica, resposta real e nica, conforme arealidade dele. Tu s o Cristo, o Filho do Deus vivo. Esta resposta de Pedrorecebeu a aprovao expressiva de Cristo; Pedro declarado bem-aventurado; revelada a Pedro a origem misteriosa de seu reconhecimento. Bem-aventurado s tu,Simo, filho de Jonas, pois no foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai queest nos cus (Mt 16.13-20). Atribui-se o conhecimento de Pedro revelao divina.Impossvel explic-lo pela altura ou profundeza da percepo racional, ou por umaintuio infalvel, mas pelo milagre e carisma divino. Confirmao evidente da frase deJesus: Ningum conhece o Filho, seno o Pai (Mt 11.27).

    Tudo na Cristologia depende, de modo mais intrnseco, do mistrio desta revelao. ACristologia parte da revelao divina que nos ilumina os olhos. A luta secular em tornode Cristo origina-se precisamente na poderosa iluminao do testemunho original doevangelista Joo: Todo aquele que cr que Jesus o Cristo nascido de Deus (1Jo5.1).

    Eis por que o testemunho da Igreja acerca de Cristo nunca poder ter o carter deconhecimento que exalte a Igreja acima do mundo. Igreja cabe recordar que esteconhecimento um milagre, um dom gratuito, no um fruto de carne e sangue. Essahumildade, alis, no excluir o testemunho da Igreja; pelo contrrio, provoc-lo-carismaticamente. Aquele que no tem o Filho de Deus no tem a vida (1Jo 5.12).

    Para quem ignora esta revelao, a afirmao renovada da Igreja no deixa de ressoarcomo uma ameaa orgulhosa. Na realidade ela surge, como no apstolo Joo, da plenacerteza de que a vida s se acha em Cristo.

    A luta em torno da pessoa e da obra de Cristo revestiu-se de formas muito variadas nodecorrer dos sculos. Atingiu culminncias cada vez que foi atacada a confisso centralda Igreja. Temos em mente, de modo particular, os sculos IV, V, XIX e XX. No sculoXX a luta tem atingido o seu ponto mximo. Hoje, mais do que nunca, discute-se aquesto: Pode o pensamento moderno aliar-se f crist? Ter ainda ressonncia otestemunho cristo na atmosfera espiritual contempornea? Haver ainda lugar para ele?E se houver lugar, qual ser ele num mundo cientificamente adulto, onde o absolutismo

    religioso-cristo deixou de reinar? Ter-se- aprofundado ainda mais o abismo que tantoimpressionou a Kuyper e a Pierson? Haver razes de sobra para considerarmosseriamente estas perguntas, precisamente quando impera o relativismo mais absoluto,quando s se cogita em reconstruir o mundo sobre estruturas diferentes, quando as boas-novas de Cristo, Senhor e Filho de Deus, carecem de novidade? Porventura as novasestruturas traro uma viso diferente daquela que foi o contedo da f crist durantetantos sculos? Chegar a triunfar o atual intento da Entmythologisierung, adesmitologizao do Cristianismo, sonhada por R. Bultmann e seus seguidores? E, casoa mensagem crist seja dissecada de seu carter mitolgico, o que sobrar daquilo quea jovem Igreja trouxe ao mundo nos sculos passados, quando se declarou testemunhade Deus, mensageira da maravilhosa salvao preparada por Deus e que olho algum

    viu, nem ouvido ouviu, nem mente percebeu (1Co 2.9)? Ser possvel hoje, sem deixarde ser honesto, proclamar-se cristo e evangelizar o mundo? Em nosso mundo, to

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    aberto a toda espcie de religies, caber ainda lugar a uma misso apostlica baseadanum mistrio insondvel? Mencionamos com razo a misso apostlica, por estarem areflexo e a coragem da Igreja intimamente correlacionadas.

    Reflexo e coragem sempre caminharam entrelaadas. A veracidade das pretenses de

    Cristo, a verdade da pregao apostlica explicam a pretenso carinhosa e humilde daIgreja labutando no mundo. Solapar a verdade minar irremediavelmente aevangelizao. Dogma e misso tocam-se na raiz, juntam-se na questo: Quem dizemos homens ser o Filho do Homem? Uma confisso diminuda de Cristo repercute

    profundamente na conscincia missionria. O impulso missionrio se esmigalha contratremendas resistncias em no poucas frentes quando, na retaguarda domiciliar, nomais ressoa o verdadeiro cntico de louvor. J em 1906, Troeltsch, mencionando o

    problema da misso num mundo transformado, analisava as conseqncias da novacincia religiosa para a conscincia missionria. Sendo deixadas de lado as antigasidias sobre Cristianismo e paganismo, no h razo para que devam ser convertidas asobscurecidas e pecaminosas massas de condenados e perdidos que vivem longe do

    Cristianismo; no h lugar para salvao nem tampouco para vida eterna. A ortodoxia searmou com a teoria da Redeno, na expresso de Troeltsch, para defender suaAlleinwahrheit, isto , sua posse exclusiva e monoplio da verdade. Desaparecida estateoria, desaparece tambm o mais simples e mais necessrio estmulo missionrio a

    piedade e o dever de salvar. Hoje no mais se fala em converso, mas em progresso.No obstante tal coisa, a vocao missionria pode sobreviver: pois quem professa umconceito tico e religioso, conforme Troeltsch, sentir coragem para propagar seu ideale, inclusive, precisar da misso em benefcio do prprio desenvolvimento. Aqui

    percebemos bem a crise da relao entre Cristologia e apostolado. Eliminado oesplendor do Absoluto, rejeitada a pretenso do Nome nico, nada sobrevive da antigaconvico do Caminho, do nico Caminho que Cristo, e a respeito do qual o mundo

    precisa ser ensinado para que chegue a se salvar.

    Eis por que a vocao da Igreja concentrar-se na reflexo sobre sua confisso de f.Caso queira testemunhar a verdade contra a apostasia, deve, mais do que nunca, possuira certeza do Caminho e a convico da mensagem. E, quando professores hindus

    perguntarem: Por que vs, cristos, afirmais que s Cristo o Salvador? ela devepossuir uma resposta perfeitamente clara. Reflita, portanto, sem cessar, acerca domistrio revelado em Cesaria de Filipos, a fim de saber o que fazer quando lutar pelaortodoxia. De nada serve estender a mo protetora sobre um tradicional depsitocomum: imprescindvel que se fale com convico, o que no possvel enquanto nose lhe tornar visvel a verdade da mensagem recebida. At em sua prpria vida deve ser

    refletida a convico de que a revelao de Cristo no vem do sangue ou da carne, mas um dom, exatamente como o dom da viso. Ortodoxia no significa outra coisa senoviver nessa contnua contemplao; no apenas se movimentar rotineiramente peloscaminhos conhecidos da tradio e do passado, mas experimentar o mistrio de Cesariade Filipos: Bem-aventurado s tu, filho de Jonas!.

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    CAPTULO II A CRISE DAS DUAS NATUREZAS

    Sumrio

    A crise, um fato Fato grave Racionalismo Progresso difcil Schleiermachere Ritschl Sua influncia na histria do Dogma Harnack examina Calcednia Substituiremos o dogma eclesistico? Uma Cristologia hegeliana SnteseDivindade-Humanidade Opina Strauss Onde a generalizao degenera emdestruio A doutrina da Kenosis Teoria da renncia Atributos imanentes eatributos relativos Unidade de conscincia em Cristo No tribunal de Korff Kenosis e mutabilidade de Deus Sintoma da crise Dorner critica Pesquisahistrico-critica Evangelho e Kerygma Entra Khler Noticirio histrico ouproclamao? Kerygma e autoridade Ridderbos examina oKerygma Bultmannabre um caminho Kerygma e desmitologizao Uma concepo mitolgica Empecilho para o homem atual Suma mitolgica eKerygima A cruz histrica Cruz e Ressurreio Acontecimento histrico e cpia mitolgica Ressurreio ef na Ressurreio Paulo e o mito gnstico O homem face a face com a deciso

    Agrava-se a crise Influncia do pensamento cientfico Joo e o mito gnstico O Modernismo visita a Holanda Scholten Um Modernismo direitista Roessingh Uma Cristologia assentada em bases criticas A casa ortodoxa Realidade de Cristo F e Histria Valor da Histria Cristo, centro da Histria Deus no mundo Realidade da Histria possvel a sntese? Contra aheteronomia Crepsculo ou alvorada? Heering no aprecia Roessingh AEncarnao definida pela Igreja e explicada por Irineu Divindade de Jesus Cristo,mistrio e dogma Desaparece a dvida de Roessing Gerretsen e a tradio critica Aalders e Korff Em defesa de Calcednia Teologia dialtica de Karl Barth Sevenster opina acerca do NT H. de Vos Outra vez Sevenster s voltas comHeering Heering se precav contra o poder da tradio Cristologia, cincia atual.

    Quem se interessa pelas mltiplas questes surgidas no decorrer da Histria em torno deJesus Cristo no consegue furtar-se evidncia de que se trata de uma crise de alcancemuito longo na doutrina das duas naturezas de Cristo. A antiga confisso eclesistica

    proclamando Jesus Cristo vere Deus et vere homo (verdadeiro Deus e verdadeirohomem), tem sido submetida a uma crtica cada vez mais exaustiva. Desde os primeirossculos, a Igreja professou o mistrio da salvao em Cristo, defendendo-o contranumerosas heresias, que negavam ora sua natureza divina, ora sua natureza humana.Colocou-se no apenas na atmosfera terica, propcia anlise neutra, mas nanecessjdade de sua f, que a fazia prorromper em exortaes maternais, ecos daadmoestao joanina: Quem no confessar que Jesus Cristo veio na carne guiado

    pelo esprito do Anticristo (1Jo 4.3).

    exatamente nest luz que a luta em torno de Jesus Cristo adquire carter bem srio,merecendo especial ateno a crise do credo da Igreja. No entanto, percebemos quemuitos oposicionistas doutrina das duas naturezas no se sentem atingidos pelaadmoestao de Joo, pretextando que a doutrina da prpria Igreja se desviou muito dotestemunho neo-testamentrio sob influncia de idias filosficas ou outras quaisquer.Assume, pois, importncia gravissiina o problema da origem desta crise cristolgica.Desde o sculo XVIII surgiram objees contra o credo de diversas partes; e,

    paulatinamente, foi sendo formada certa tradio criticista considerando insustentveisas afirmaes dogmticas.

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    Foi, porm, no sculo XIX que os ataques de peso contra a doutrina das duas naturezasforam sendo estruturados. Comeou a reinar certa unanimidade prtica a respeito doinconcebvel e da irrealidade da figura do Cristo da f tal como a Igreja a apresentava.Decises conciliares antigas foram invocadas e reapareceu um modo de pensarcristolgico de outras pocas. H muito tempo esse pensamento vinha sendo incubado

    no Socinianismo, por exemplo, cuja influncia foi grande no desenvolvimento datradio crtica, O Socinianismo apela, antes de tudo, para uma acerba oposio contra odogma da paixo e morte de Cristo, mas tambm para uma profunda hostilidade doutrina das duas naturezas. Quem se d ao trabalho de estudar os comentrios dostextos bblicos relativos Divindade de Cristo no CatechismusRacoviensis sociniano vclaramente, nessa crtica, um preldio aos argumentos dos modernistas do sculo XIX, erespira nela o mesmo sabor racionalista de total alheamento aos testemunhosescritursticos. A Trindade, a Redeno e a Divindade do Cristo foram minuciosamentesubmetidas ao prisma critico. A unio hiposttica das duas naturezas em Cristo foisimplesmente qualificada como impossvel e inconcebivel. O caudal da crticaracionalista jorra aqui com bastante evidncia, tanto corno de sua fonte. Embora

    discretos em tirar todas as conseqncias (Os socinianos admitiam o fato da geraosobrenatural e do nascimento virginal de Jesus), os inovadores atingiram todos oscampos da doutrina cristolgica, terminando sua critica por reduzir o Salvador a merafigura histrica a figura humana do homem Jesus de Nazar.

    Sem dvida alguma, o desenvolvimento da Cristologia seguiu caminhos bemcomplicados. A critica racionalista atuava sugestivamente, porm empobrecia e esfriavao corao. No era de se surpreender, pois, que tentativas de toda orientao fossemempreendidas para conservar e da melhor forma possvel Cristo como o centrogenuno da f crist. Seria arbitrrio e injusto acusar de racionalista a toda a tradiocrist. Lembremos aqui apenas o exemplo de Schleiermacher, o qual se ops com a

    maior veemncia ao racionalismo vulgar de seu tempo. Rejeitando a supremacia darazo humana, Schleiermacher advogava o valor excepcional do sentimento na esfera dareligio. muito interessante observar as conseqncias desta reivindicao para adoutrina das duas naturezas em Schleiermacher: toma ele por base a opinio daconscincia crist, eliminando logo tudo quanto, no transcurso de sculos de polmica,fora acrescentado doutrina cristolgica e que no condizia com a essncia desta.Entrando no detalhe das afirmaes confessionais da Igreja, Schleiermacher descobriuque no h quase nada contra o qual no se deveria protestar, a comear pela palavranatureza, pobre demais para expressar tanto o que divino em Cristo quanto o que humano nele. Natureza implica em ser finito e, como tal, no pode ser relacionada comDeus . Referindo-se natureza e pessoa, pergunta ele: Como pode haver unidadevital no dualismo de naturezas, sem que a natureza divina ceda humana (isso porqueuma descreve uma rbita maior e a outra uma rbita menor) ou, sem que ambas sefundam uma na outra, pois seus respectivos sistemas de leis e relaes, na realidade, seconfundem num sistema nico, porquanto se trata de uma s Pessoa, de um nico EU?

    Do fato de chegar-se necessariamente, tanto a uma fuso, como a uma separao dasduas naturezas, Schleiermacher deduz que a prpria formulao da Igreja est errada,

    patenteando-se ainda mais a esterilidade da doutrina tradicional quando se aborda oproblema das duas vontades em Cristo. Inevitavelmente, em sua prpria reflexoleolgica, a Igreja acabaria por se emaranhar em complicao e artificialidade. Taisteorias devem, pois, ser consideradas como pouco valiosas para o uso da Igreja.

    mister encontrar uma outra frmula para traduzir a impresso que recebenios da sublimedignidade do Salvador; Schleiermacher visa aqui a esse inexplicvel ineinander, ou

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    interpresena do divino e do humano em Cristo. No critica, porm, a terminologia daIgreja, mas, sim, a m apresentao de todo o problema. Sugere que se apresente oSalvador como igual a todos os homens, em virtude da identidade da natureza humana,e como diferente de todos pela poderosa conscincia que ele tem de ser Deus,conscincia que em Jesus uma genuna essncia de Deus. Desta maneira Cristo

    poderia ser novamente o irmo bem prximo de ns, mais prximo do que na doutrinatradicional, sem deixar de ser o objeto de nossa f e culto.

    Alm dessa tentativa de Schleiermacher, mencionemos ainda a Cristologia de Ritschl.

    Ritschl acentua, energicamente, a revelao histrica em Cristo, mas hostiliza de modoresoluto qualquer ingerncia da metafsica na religio e teologia. A metafsica edificacom juzos de essncias e no com juzos de valor; portanto, inevitavelmente ela atacara religio em seu ncleo. Ritschl conclui, com esta premissa, que a doutrina das duasnaturezas insustentvel, em vista de introduzir um sistema metafsico na teologia. Essacrtica foi popular entre os ritschuianos e inspirou muitos historiadores do dogma,

    especialmente Harnack e Loofs, que se dedicaram pesquisa da gnese da Cristologia,persuadidos de que poderiam indicar o vititun originis (vcio original). Segundo estesltimos, influncias filosficas tinham condicionado o dogma cristolgico,distanciando-o cada vez mais da profundidade religiosa caracterstica do testemunhoneotes tamentrio. Estas asseres dogmtico- histricas fortalcceiain e estimularamconsideravelmente a tradio crtica. Mediante esses novos pontos de vista constatar-se-ia que o dogma cristolgico estava alicerado no na verdade absoluta, mas numsistema csmico. Era necessrio portanto e cada vez mais urgentemente extrair daCristologia essas categorias ontolgicas.

    De modo consciente e intencional, os modernistas se afastaram da antiga confisso daIgreja. Para Harnack, a doutrina do Logos uma invaso metafsico-grega noCristianismo; essa influncia deforma e desfigura o verdadeiro homem que foi Ciisto einspira as afirmaes inspidas e negativas de Calcednia. Do nico sujeito, JesusCristo, foram feitos dois sujeitos, doutrina fatal unio dos cristos, como a luta contrao Monofisismo demonstrou. O dogma perdeu seu valor prtico para a piedade. Objeesdo mesmo teor pululam nos autores: todos se unem para defender a unidade da figura deCristo, ameaada pela doutrina da Igreja. Loofs chega a dizer que, para quem pensa comsinceridade, no possvel imaginar uma Pessoa divina sujeitando-se a uma vidahumana, por si mesma temporal e limitada. De todas as partes chovem os argumentosracionais, que podemos resumir nesta frase de Nietzsche: Um verdadeiro homem no

    pode ser, metafisicamenle falando, um verdadeiro Deus. O argumento permanecer

    vivo atravs de todo o sculo XIX: a confisso da Igreja absurda; o vere Deus et verehomo absurdo.

    No falta interesse em constatar como, no sculo XIX, houve uma tentativa de substituiressa doutrina absurda. O sculo indicado possui, alis, vrias configuraes de cunhomuodernista. A figura de maior destaque cabe chamada Cristologia especulativa.Foi ela profundamente influenciada por Hegel; a filosofia hegeliana foi tida comoapoio principal da renovao dogmtica crist. Um exemplo evidente desse tipo (leCristologia nos dado por Biedermann, o qual confessa dever a Hegel grande parte desua ideologia. Esta confisso vale particularmente para a sua Cristologia. A inteno doHegelianismo era demonstrar a sntese do divino e do humano, da sua atrao profunda

    pela doutrina da Encarnao do Verbo. O Verbo fazer-se carne, que maravilha digna daateno dos hegelianos! O Ser Divino no ficou fechado em si mesmo, mas sofreu um

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    unidade da figura de Cristo. A teologia da kenosis ensina, pois, que oLogosasarkos (oVerbo no-encarnado) teve que despir-se total ou parcialmente de sua Divindade, parase encarnar: mediante esse processo de esvaziamento foi que o Verbo se tornou homem.

    No se fala mais em assuno da natureza humana por parte do Filho de Deus. Contudo,em lugar de assuno, preconiza-se uma transformao, no sentido definido por

    Thomnasius: Kenosis a troca de urna forma de existncia por outra. Isso quer dizerque, nesta maneira de considerar as duas naturezas, sempre acabamos forosamentenuma dualidade, na duplicidade da figura de Cristo, na duplicidade de sua vida, suasobras e sua conscincia. Na opinio de Thomasius, s escaparemos desta dualidade seconsiderarmos a kenosis como um esvaziamento genuno da natureza divina, um atosoberano de renncia e autolimitao divinas. Os partidrios desta doutrjna, entretanto,no ensinam que a prpria natureza divina fora eliminada de Jesus Cristo, pois que issoseria um erro contra as Escrituras.

    Embora sem desistir da Divindade, o Logos encarnado desiste da magnificncia e deoutros atributos divinos. Assim, Thomasius pensa evitar o perigo de desvirtuar a

    afirmao patrstica de que em Deus no h mudana. Disfingue, pois, entre atributosimanentes e atributos relativos: os relativos dizem respeito ao rnurtdo,e os imanentes,aoprprio Ser Divino. Os atributos imanentes permanecem no Verbo encarnado, mas osrelativos so esvaziados. Evidentemente esta uma tentativa de superar as dificuldadesdo vere Deuset vere homo clssico, embora conservando urna Cristologia na qual sejatanto possvel como concebvel uma unio verdadeira. A inteno no prossegue semhesitaes rnanif estas: se por Encarnao entendssemos o processo primeiramenteDeus e agora Homem, a dualidade ver-se-ia eliminada. Mas quase todos recuam diantedesta expresso e, conseqentemente, reaparece a dualidade sob outra forma. Se, defato, o Verbo encarnado desistiu dos atributos relativos, no afastou os atributosimanentes, permanecendo, portanto, o problema dualista: os atributos imanentes de

    Deus e o homem genuno na Pessoa de Cristo. compreensvel que algunskenosistas, insatisfeitos, ensinassem o afastamento de todos os atributos divinos emCristo, inclusive os imanentes; o Logos torna-se, assim, homem no pleno alcance da

    palavra e o problema dualista recebe, enfim, uma soluo. Gess pode escrever que aDivindade transformou-se em Humanidade e Godet que, em virtude da prprialiberdade de Deus, ele no est indissoluvelmente ligado ao seu modo de ser divino.Tal Cristologia, coerente com o seu ponto de partida, concluiria necessariamente considerao racional de um Jesus Cristo, puro homem, sem lugar para um Jesus Cristodivino. Mesmo sendo guardado o mistrio original do Verbo Divino nos antecedentesdeste Homem, o fato que agora ele se tornou homem, pura e exclusivamente homem.J no cabe mais qualquer duplicidade; o problema foi resolvido eliminando-se um dosconstituintes da Pessoa de Cristo. A teologia da kenosis nasceu do desejo de urna visoracional sobre a unidade da autoconscincia de Cristo; sendo admitida, porm, adoutrina da desistncia, quem ainda acreditar que, em Cristo, o prprio Deus quemnos visita? Como falar ainda em unio genuna, em encarnao autntica? Este o

    ponto capital utilizado por Korf, em sua crtica teologia da kenosis, na qual no hlugar para uma vinda de Deus ao mundo, quer dizer, para o mistrio da Cristologia.Baur, com muita razo, julga que esta kenosis, total desistncia de si mesmo, , de fato,a autodissoluo do dogma. Uma tentativa da eliminao da dupljcidade de Cristoacarreta o ensino da mutabilidade de Deus.

    * * *

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    Essa doutrina contradiz termnantemente a doutrina da Igreja. Elimina a verdadeirarelao entre as duas naturezas de Cristo, guardando apenas a idia de Cristo ter-setornado homem mediante urna transio do modo divino de ser para um modo humanode existir. Esta evoluo ocupa o lugar da unio hiposttica. Lembremo-nos de que essadoutrina foi condenada, tanto explcita como implicitamente, pelos conclios. Por

    exemplo, no Smbolo de Atndsio, afirma-se que na Encarnao no h mudana daDivindade para a carne, mas assuno da humanidade. At a Confisso ReformadaHolandesa explicitamente anti-kenosista, professando que, em Cristo, ambas asnaturezas conservam os seus atributos. Longe de esclarecer a doutrina das duasnaturezas, a doutrina kenosista atenta contra a mesma, dissolvendo-a. o sintoma dagravidade da crise dogmtica. Dorner e outros denunciaram-na como sendo um atentado imutabilidade divina. Aludindo ao velho patripassianismo, (= uma Pessoa daTrindade, o Pai, sofreu na Cruz), renovado no teopassionismo (= Deus sofreu aPaixo), Dorner reconhece nos kenosistas um profundo motivo religioso, pois elesvem corno, no esvaziamento de Cristo, realizada a obra do amor de Deus, Redentor eSofredor. Tambm reconhece o esforo kenosista em vista da nfase ao tornar-se

    Cristo homem. Mas, aos ultras que aceilam a mudana radical do Verbo ou suadesistncia radical dos atributos divinos, Dorner cita as palavras de 2Tm 2.23: Deusno pode negar-se a si mesmo, texto particularmente duro para quem, em vista daliberdade soberana de Deus, pensa na possibilidade de Deus desistir de seu modo divinode ser.

    Em resumo, a doutrina da kenosis no oferece melhor soluo para tirar a Igreja de seuembarao dogmtico. Renasce a eterna questo: Cristo ou pode ser Cristo verdadeiroDeus e verdadeiro homem? No final do edifcio kenosista assomava o perigo dehumanizar Cristo, o que seria o fim da Cristologia.

    * * *

    O mesmo sculo XIX viu surgir outras dificuldades no campo da crtica histrica.Muitos foram levados a aceitar uma figura histrica de Jesus, depurada dos adornos etransformaes acrescentados pelos dogmas eclesisticos. A tendncia era a decontentar-se com o homem Cristo, sem qualquer preocupao pela tradio das duasnaturezas. Por mais qualidades e prerrogativas que dessem a Jesus, no podiam disfararque, de fato, deixara de existir o problema da dualidade de Cristo, visto que a naturezadivina do Salvador tinha sido eliminada a priori. Foi encarniada a Juta travada emtorno do Jesus liberal. Hoje em dia est definitivamente superada a teologia liberal,

    especialmente sua Cristologia. Eles negavam que se pudesse reconstruir uma figura doCristo historicamente vlida, com base nos depoimentos neotestamentrios. NosEvangelhos no temos documentos fidedignos que nos apresentem um Cristo autntico.Em vez do Cristo histrico, temos um Cristo da f. elaborado em base de testemunhosde f, de pregao e interpretao desta mesma f. Nunca encontraremos a figurahistrica de Cristo nos Evangelhos.

    Para muitos, era grande a tentao de acolher essa crtica dos Evangelhos, bem como onovo mtodo de se compreender os depoimentos evanglicos, no como possuidores devalor histrico, mas repletos deDeutungou interpretao; sua luz conhecemos o quesignificava a vida de Jesus para a comunidade primitiva,, atravs do prisma da

    Ressurreio.

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    Freqentemente entrava em questo a historicidade da vida do Cristo, alternando-seidias radicais e idias moderadas. Mas, por mais que variasse a forma crtica, no campoliberal reinava a unanimidade acerca de que no cabia buscar nos Evangelhos ahumanidade do Cristo histrico: os Evangelhos retratam apenas o Cristo dacomunidade, os aspectos da f primitiva; no desincuinbem nenhum papel biogrfico.

    De acordo com o que pensavam os liberais, era esta a nica maneira de conservar umaatitude crtica diante dos relatos evanglicos, dando a estes seu grande significado detestemunhar a f primitiva. Surgiu, logicamente, a pergunta capital: visto que a crticahistrica descobre em Jesus apenas um homem essencialmente igual aos demais, atransfigurao deste homem em Deus, realizada na comunidade primitiva, porventurano explicaria suficientemente a doutrina das duas naturezas?

    Muitos saudaram, na idia liberal, uma libertao, uma perspectiva luminosa sobre asinmeras dificuldades da Cristologia, ainda mais agora que a crtica histrica estavacriando juzo. Anteriormente era conhecida uma crtica histrica cujo alvo pareciatornar incerto o que antes era tido por verdadeiro. Essa primeira crtica histrica

    terminava em ceticismo universal: acusava os narradores sagrados de terem desenhado afigura do Cristo luz da Ressurreio e das fbulas de uma fantasia fecunda. Quempoderia seguir por semelhante caminho de negao?

    Reina agora seriedade no campo liberal: ningum desacredita a priori o depoimento daf evanglica. Khler teve o mrito de indicar o caminho libertador na confuso da

    pesquisa histrica, ou seja, o caminho do kerygma (proclamao da promessa). Khleraceitou, como ponto de partida, o fato de no possuirmos fontes fidedignas acerca davida de Jesus. Toda essa problemtica da vida do Cristo uni beco sem saida. No

    podemos retroceder aos escritos evanglicos; em outras palavras, no h maneira devoltar ao Cristo bblico, ao Jesus histrico. Se isto fosse possivel, a f ficaria

    condicionada pesquisa histrica. Os Evangelhos so dcumentos da f; no pretendemesclarecer a biografia do Cristo histrico, mas simplesmente provocar a f em JesusCristo. No so um noticirio, mas uma proclamao, com base na pregao. Khlerdeu assim a resposta salvadora (Althaus) que nos libertou do historicismo e doceticismo. No mais havia necessidade de se ficar angustiado, na incerteza e esperadas decises dos historiadores. Era suficiente atentar para a pregao do Cristo bblico.O kerygma debelou o historicismo. O verdadeiro Cristo est no kerygma. Os problemashistricos perdem sua tenso ofegante. No exagero se dizer que a idia fundamentalde Khler exerceu e ainda exerce enorme influncia. Brunner, por exempio,reedita o pensamento khleriano.

    Isto nos leva questo decisiva. Por acaso Cristo sairia ileso do conflito? Permaneceainda possvel a Cristologia? Cerlniiwnte, pois que as dificuldades no encontramsoluo satisfatria na teologia liberal. A despeito das consideraes kerygmticas, o

    problema ainda fica de p: at que ponto os assim chamados testemunhas da f nospem em contato com o Cristo genuno? De fato, cada vez que pregamos, surgir apergunta justificada: Qual a autoridade de tua pregao? Mesmo quando no seexige a prova da veracidade da nossa pregao, persistem dvidas quanto suaautenticidade. No nos admiremos, pois, se, mesmo onde se aceita a visokerygmtica, a Cristologia continua subordinada s conseqncias necessrias dokerygmatismo.

    A questo kerygmtica no apenas liqidada com estas consideraes superficiais.No negamos que os Evangelhos fornecem uma biografia de Jesus, e muito menos ainda

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    que tm por inteno consciente despertar a f no Cristo. Foi abundantementedemonstrado pelos trs Sinticos que a mensagem evanglica constitui umaanunciao do Cristo para a posteridade (Ridderbos). Admito sem dificuldade que no o quando que interessa mas o aquilo, ou seja, que o interesse histrico cede lugarao interesse kerygintico.

    Mas as dificuldades no esto resolvidas. A questo genuna e bsica visa precisamentea relao que h entre o kerygma e a prpria histria. Que e o que nos d, afinal, oEvangelho? A figura do Cristo tal como a encontraram na f expressa pela comunidade,ou a vida do Cristo tal como na realidade ocorreu? Ou deveremos aceitar que este Jesus, ao mesmo tempo, o Cristo crido na comunidade e o Cristo histrico que, de fato

    pregou, operou milagres, sofreu, morreu e ressuscitou? Ridderbos est convencido deque a resposta a esta pergunta implica absolutamente na fidedignidade dos Evangelhos.Embora os autores sacros circunscrevessem seu relato finalidade visada e ao carter

    pessoal de cada um, eviderieia-se que a finalidade profunda de todos foi precisamentedemonstrar a fidedignidade das coisas que relatavam a respeito de Cristo. De nada

    serve, pois, decretar que os Evangelhos foram escritos conforme a f, se esta mesma ftem por objeto o Cristo histrico, que o Filho de Deus, ou, em outros termos, se oCristo da f e o Cristo histrico coincidem na realidade e no fato. A soluo do

    problema pelo kerygmatismo , portanto, bem ilusria: as dificuldades da crticahistrica no so superadas atravs de um conceito formal, corno o kerygina; esteconceito no nos liberta dos problemas criticos. Eis por que, tambm dentro do sistemakerygmtico, a luta em torno das duas naturezas continua ininterrupta.

    O problema mximo do sculo XIX, o da F-Cincia (particularmente F-Histria),penetrou profundamente nas pesquisas modernas em torno do Evangelho de JesusCristo.

    Quem se desprender da histria (como acontece na teologia especulativaj subordinandoCristo prpria verdade histrica, no percebe a gravidade do problema. Para lal, adoutrina das duas naturezas no perturbadora. Mas quem de alguma maneira coloca oCristo histrico no centro de sua f ou de sua teologia, este se desespera em encontrarsoiuo para as questes histricas nos ensinos da kerygmtica. O prprio sistema deteologia kerygmtica leva o problema consigo e sofre-o como espinho na carne, pois a

    pregao acarreta responsabilidade: descansa sobre testemunhos de f, que so osalicerces necessrios de qualquer Cristologia. Isso se evidencia nos refinamentos deBultmann, o qual se compraz em destacar a crise da doutrina das duas naturezas sobre ofundo obscuro do conceito kerygma. Bultmann chega a distinguir o kerygma da

    comunidade primitiva e o kerygma da comunidade helenistica. Bultrnann, porm,submete esta pregao a um inqurito crtico: ela no exige implicitamente a f dohomem moderno, mas chega a constituir o objeto de uma anlise crtica. Dai anecessidade cada vez mais evidente de seu programa de desmitologizao do NovoTestamento. Bultmann no duvida que o mito entrou em proporo considervel nocorao do kerygina. O alvo bultmanniano a veracidade da pregao para o homemmoderno. Tendo o conceito cosmolgico do Novo Testamento uma indole mitolgica, oencontro entre Evangelho e Homem moderno constitui uma problemtica peculiar.

    A concepo mitolgica v no cu a morada de Deus, na terra, o campo onde laboramforas sobrenaturais, divinas e anglicas, ou satnicas e demonacas: estas foras

    intervm, hoje aqui e amanh acol, nos acontecimentos naturais. O mundo est hoje

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    sob o dominio dos demnios, mas tal situarn o ter de acabar quando vier o juizcelestial para ressuscitar os mortos.

    Bultmann est convencido de que a representao global da salvao no NovoTestamento est de acordo com este mesmo conceito cosmomitolgico. Acaso a no

    questo de plenitude dos tempos, de misso de Deus atravs de seu Filho, o qual, sendoum Ser divino preexistente, aparece no mundo em forma de homem, carrega o pecado,reconcilia, vence os demnios, morre e ressuscita, devendo vir nas nuvens do cu como

    juz do mundo? So todas as coisas prprias do conceito mitolgico. Ora, este conceitono mais possui fra convincente. Assim, o problema encontra uma formulao clara e

    precisa. A pregao crist moderna acha-se, pois, diante da questo: quando exige a fpor parte do homem, tem ela o direito de obrig-lo a aceitar tambm o antigo conceitocosmomitolgico? E, na negativa, Bultmann lana sua segunda pergunta: Existe,acaso, alguma verdade na pregao do Novo Testamento, toda vez que esta dependedeste conceito mitolgico? Sendo assim, cabe teologia extrair da pregao crist oelemento mitolgico e comprovar se o contedo essencial do Evangelho no mais

    barreira para o homem moderno. Dentro das perspectivas bultmannianas, baseadas nacosmologia atual, que pode significar o desceu aos infernos, subiu aos cus do credo,fora do contexto do velho conceito cosmolgico? Ficaram sem sentido os relatos dasubida e da descida de Cristo; igualmente sem sentido, a esperana da volta do Filho doHomem nas nuvens do cu, e o arrebatamento dos fiis, nas alturas, ao encontro dele.

    Bultmann faz questo que se fale aqui com sinceridade absoluta. Evidentemente areligio mtica oriental desfalece na medida em que a higiene e medicina progridem; damesma maneira, ns no podemos nos contentar com as idias mitolgicas do NovoTestamento, vivendo sob a influncia de outra cosmologia. No temos o direito dedeixar a comunidade na incerteza acerca do que ela deve ou no deve considerar como

    verdade. No h outra soluo, exceto a desmitologizao, soluo insinuada j peloprprio Novo Testamento. Entretanto, surge espontaneamente a pergunta: Eliminando-se o material mitolgico, no se ataca o prprio kerygma? Pergunta particularmentesensata, em vista da experincia repetidamente feita nos tempos passados. Caber lugarainda para um Heilsereignis, para uma salvao, depois de enveredarmos por essescaminhos? Quando no mais pensar mitologicamente, o homem moderno encontrar nokerggma alguma mensagem autenticamente verdadeira? Poderemos continuar pregandocom autoridade, uma vez desprendidos da velha mitologia, do apocalipsismo judico edo gnosticismo? Numa palavra, poder-se- falar de uma histria de Cristo, de umainiciativa de Deus em Cristo, sem que se incorra em conceitos e expressesmitolgicas?

    O Novo Testamento apresenta mitologicamente a histria de Cristo. Ser isto umanecessidade expressiva, ou uma simples modalidade esttica? Conforme Bultmann, acaracterstica do Novo Testamento nele se misturarem a fico mitolgica e a verdadehistrica. Assim, Jesus Cristo , por um lado, o Filho de Deus, ser divino preexistente,ou seja, uma figura mitolgica; por outro lado e de maneira simultnea, ele umhomem histrico, Jesus de Nazar, cujo pai e me todos conhecem. Do mesmo modo,ao lado da cruz histrica, temos a Ressurreio mitolgica. Eis o problema queatormenta Bultmann. Para Paulo, essa confuso entre mitologia e histria constitui omistrio: Deus revelado na carne. No assim para Bultmann: admite ele que oelemento mitolgico (em particular a preexistncia do Cristo) no carece de sentido,

    porquanto expressa a importncia da Pessoa do Cristo. Coisa bem evidente no casotpico da cruz e da ressurreio! A cruz torna-se mitolgica por ter sido o Filho de Deus

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    preexistente quem morreu nela e por ter sido o sangue de tal vtima um alcancesubstitutivo e libertador da morte. O homem moderno nada pode aceitar dentre todasessas coisas. Mas o Novo Testamento transforma a cruz histrica, elevando-a adimenses csmicas. Na realidade, a cruz um fato histrico; na Biblia, este fato seapresenta de tal modo que alcana projees decisivas, csmicas e escatolgicas.

    Note-se, portanto, que desmitologizando a pregao crist no desaparece a prpriapregao, muito ao contrrio: a compreenso histrica faz com que, nestas formasmitolgicas e atravs de sua ingenuidade, descubramos o sentido da cruz: Deus tratandoo mundo com graa e plenitude de perdo. A cruz constitui um fato propriamentehistrico de grande importncia. O vestido mitolgico expressa esta importncia. Noh, porm, motivo para que aceitemos este vestido.

    Na ressurreio, entretanto, trata-se de coisa bem diferente. Isso porque mais alm daexpresso significativa da cruz, no h nada histrico: Cristo, na realidade, noressurgiu dos mortos. A ressurreio indica que a cruz de Cristo no se pode

    compreender como uma morte puramente humana, mas como o juzo libertador de Deussobre o inundo. Eis por que cruz e ressurreio dependem inseparavelmente uma daoutra. No so dois eventos histricos da salvao que, na realidade histrica, sesucederam um ao outro. A ressurreio no um milagre, a despeito de ser apresentadacomo tal no Novo Testamento (nas lendas do sepulcro vazio e nas aparies). Taislendas so formas posteriores, ainda desconhecidas por Paulo. Na ressurreio no setrata de um fato histrico, qual seja a volta de um falecido; a ressurreio objeto eexpresso de uma f. O evento pascoal no representa uma ressurreio histrica; saparece como histrica a f dos primeiros discpulos. A f crist no est interessadano fato histrico da ressurreio. Interessa, o sentido do modo de agir de Deus na cruz.A f na ressurreio no insinua outra coisa, no obstante o Novo Testamento, inclusive

    Paulo, insinuarem tal fato atravs de um acontecimento historificado. No entanto, isto uma argumentao fatal, pois, nas narrativas bblicas, no se trata de qualquerressurreio histrica, mas do sentido e do alcance da cruz. Deus age na cruz e sua aono mitolgica, mas histrica; no sobrenatural, mas realmente histrica. Deusreconciliou o mundo consigo. Pregue-se, portanto, Jesus, o homem histrico, em suasignificao histrica na ordem da salvao. Jesus o Verbo escatolgico pronunciado

    por Deus ao mundo. Este o escndalo que s pode ser vencido pela f. Jesus um ato,uma ddiva de Deus. Desta maneira que esto ligadas morte e ressurreio do Cristo.Quem percebe esta ligao compreender bem a Paulo. Paulo aponta a ressurreio deCristo como um fato objetivo, sustentando-a em sua fidedignidade histrica comreferncia a mltiplas testemunhas. Paulo interpreta a morte do Cristo segundo as

    categorias do mito gnstico, mas no desta maneira que o homem pode seralcanado: Paulo postula, antes de tudo, a f nos fatos, na encarnao, na preexistncia,na ressurreio do Verbo. Entretanto, fatos no tm carter alusivo. Alis, pouco im..

    porta o revestimento gnstico; importa a significao final da cruz. A pregao dacruz que pode emocionar o homem: a palavra da cruz colocada no caminho dohomem, qual iniciativa salvadora de Deus. Esta a verdade de todos os tempos, quesurge e fica a resplandecer quando desnudamos a mensagem neotestamentria de seusouropis mitolgicos.

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    Sem dvida, na teologia de Bultmann que se entrev o ponto culminante da crisedoutrinrja das duas naturezas. Essa teologia tem a pretenso de se aproximar da

    pregao evanglica, de finalidades precisas pastorais, com a preocupao daveracidade devida ao homem moderno; este cresce num ambiente cosmolgico bemdiferente da cosmologia usada no Novo Testamento. Bultmann no d importncia

    pregao do Cristo histrico, como se costumava fazer no sculo XIX, na tentativa demostrar o homem Jesus em suas qualidades superiores. Reconhece francamente que, noNovo Testamento, questo de preexistncia, de Encarnao, de Ressurreio histricae de Ascenso; no intenta qualquer esforo para alterar os fatos ou contestar suacompreenso histrica passada: assim, a preexstncia do Logos foi entendida e dada

    por histrica pelos escritores do Novo Testainento. Bultmann, porm, rejeita ahistoricidade destes fatos que no passam de mitos.

    Quem no v as conseqncias dessas premissas para a teologia de Bultmann? Fora deJesus, o homem crucificado, nada sobrevive ao naufrgio da Cristologia. A cruz doCristo, entretanto, no significa o malogro do Nazareno, mas a iniciativa divina para a

    reconciliao do mundo. Nada resta da problemtica vere Deus et vere homo. Lendo oprlogo joanino com o Logos revelando-se na carne, com o Verbo feito carne,Bultmann sacode a cabea, declarando: Fala-se aqui a lngua mitolgica, a linguagemgnstica, cujo credo central professava precisamente que um Ser Divino, Filho doAltssimo, seria revestido de carne e sangue para nos dar a revelao e a redeno.

    Foi totalmente eliminado o mistrio do Filho do Homem, proclamado por Paulo e aIgreja. Subsiste um kerygma finalmente purificado dos resduos mitolgicos; prega-se amensagem pura! desta maneira que a libertao que muitos esperavam da teologiakerygmtica foi ilusria: a concepo kerygmtica no abre qualquer sada sdificuldades. A problemtica CRISTO continua, inclusive dentro do kerygima,

    evidente que toda a concepo bultmanniana est influenciada pela moderna ideologiacientfica. A despeito das diferenas considerveis entre Bultmann e o sculo XIX,

    perdura aqui o apriorismo racionalista, excluindo Deus da natureza para fazer do mundoum mecanismo fechado. Bultmann usa exatamente os mesmos argumentos que osmodernistas forjaram contra a possibilidade da Encarnao ou da Ressurreio de JesusCristo. Bem examinados os pontos, verifica-se que Bultmann chega a postular adesmitologizao em virtude da conceituao cientfica. Mesmo se admitirmos suasrazes pastorais e missionrias (necessidade de preservar o homem atual de rejeitar oEvangelho por causa da sua ndole mstica), no podemos dissimular o orgulhoteolgico manifesto em toda esta empresa. A longa luta em prol do dogma eclesistico

    das duas naturezas leva aqui constatao de que se estava combatendo em torno de ummito, O que a Igreja compreendia como a ao divina na Histria levado degradaode um mito. Esta teologia leva a crise ao seu auge. Postergada a pregao da EscrituraSagrada e do dogma nela revelado, Bultmann coloca a cruz como fato irracional dadeciso mediante a qual o homem chega autocompreenso de si mesmo. A Histria dasalvao reduz-se, estreita-se na significao da cruz, mas da cruz desligada de todasas suas relaes. A iniciativa salvadora de Deus no perde, desta maneira, sua plenitudesignificativa para o homem nascido no atual sistema cosmolgico. O Cristo da Bblia,objeto da atenta reconsiderao bultmanniana, tinha-se tornado desprezvel por causa deseu revestimento cosmomitolgico, hoje intolervel.

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    Para finalizar, demos alguma ateno s formas peculiares da crise em foco, na Holandateolgica dos sculos XIX e XX.

    A doutrina das duas naturezas no podia sair ilesa da luta modernista que est sendotravada na Holanda h um sculo. Scholten, pai do movimento modernista entre ns,

    tinha a pretenso de explicar a Cristologia luz da teologia Reformada. Aparentasustentar a doutrina clssica das duas naturezas. Enumera as sucessivas heresiascondenadas pela Igreja, cita as decises cristolgicas de Nicia e Calcednia. Procuralogo verificar se o Protestantismo conservou ntegro os princpios destes conclios:responde negativamente, pois o Luteranismo tendia nitidamente para o Monofisismo, eo Calvinismo nunca conseguiu superar a posio nestoriana.

    Esta Cristologia da Reforma, a despeito de suas intenes antinestorianas, continuousendo deficiente. Torna-se, pois, necessrio eliminar esta deficincia, prestando atenoao princpio decisivo, base de toda Cristologia: unio, em Cristo, das naturezas divina ehumana, a partir do depoimento joanino o Verbo se fez carne. desejvel uma

    unanimidade mais plena entre as Cristologias luterana e reformada-holandesa. Isso spoder suceder quando nos negarmos a ver os conceitos Deus e Homem comocontraditrios. Em Cristo h unidade do Divino e do Humano. Cristo o Deus- Homem,mas este Deus-Homem no independente, nem isolado, nem nico: toda a comunidade chamada a tornar-se Deus-Homem, como Jesus Cristo. Assim, na raiz do Modernismoholands, encontramos a famosa Cristologia especulativa hegeliana. A sntese do Divinoe do Humano, segundo a dialtica de Hegel, toma o lugar da confisso tradicional deCristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Nada estranho, pois que Scholten seoponha to veementemente ao Docetismo. Ele defende o que humano em Cristo,

    porque na humanidade est a base da sonhada sntese entre o Divino e o humano.

    * * *

    O dogma das duas naturezas continuou a ser, na evoluo posterior do Modernismoholands, o ponto nevrlgico da questo. Em toda parte percebia-se a tenso entre a f ea cincia moderna, que culminaria na rejeio da f. Surgiu um Modernismo direitista ealarmado, que intntou debelar o anterior. Roessingh rios permite ver as qualidades destemodernismo direitista quando denuncia o Monismo e o antisupernaturalismo dosmodernistas da primeira edio e anuneia sua determinao de ser especificamerztecristo. Refere-se a uma mudana de rumo que diz respeito especial confisso deCristo; afirma que retornaria a uma teologia cristocntrica e construiria uma Cristologiasadia, muito embora sobre alicerces crticos. Roessingh reata a tradio crist, porquenela se vive mais intensamente o trgico antagonismo entre pecado e graa,antagonismo esse quase eliminado pelo Modernismo anterior. Nosso corao reclama atradio crist; quase contra nossa vontade, principalmente quando pregamos, sentimo-nos reconduzidos velha manso da ortodoxia.

    Entretanto, Roessingh no dissimula sua ligao com as tradies liberais. Por um lado,intenta escapar ao antisupernaturalismo, ao Monismo e ao determinismo natural, queno deixa lugar personalidade e religio; reconhece que h hiatos no enlaamentocausal dos acontecimentos, influncias de outro mundo sobre o nosso, intercmbiosreligiosos entre o homem e Deus. Por outro lado, no restaura o valor do milagre bbliconem a arbitrariedade de Deus nem a plena f nos milagres do Novo Testamento. Se bemque resista ao Monismo, sua inteno simplesmente possibilitar uma vida religiosa

    prpria, mesmo que totalmente fora do campo da vida histrica. Admite o sobrenatural

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    sem as conseqncias histricas do sobrenatural. Pensa ter salvo o intercmbio entre ohomem e Deus, mas no resiste ao embate da crtica histrica.

    Contudo, convm ressaltar que Roessingh focaliza e reivindica o carter especialmentecristo do Modernismo direitista. Colocado em face tradio crist das duas naturezas,

    tenta construir uma Cristologia, sem abandonar sua ideologia moderna. No fundo, eleno est satisfeito com a figura de Cristo dos antigos liberais, pois nela falta o traoprincipal: a graa de Deus em Cristo. A despeito das crticas contra a histria biblica,Roessingh experimenta Cristo como o poder de Deus. Cristo realidade, mais real doque qualquer coisa na Histria. Dai surge o problema da relao entre f e histria,

    problema que, cada vez mais, absorver a ateno de Roessingh. Urgia tambm definiro que, em nossa f pessoal, poderia produzir Cristo tal como descrito pelascomunidades da Igreja primitiva. Cada vez menos furtava-se a esta pergunta, sendo-lhefinalmente dada uma resposta enigmtica: Eu respondo: Nada e tudo. Nada faz emmim a descrio de Cristo conforme as primitivas comunidades. Tudo devo descriode Cristo segundo as primitivas comunidades. O nada me distingue da rotina ortodoxa;

    o tudo me distingue da grei liberal.Quem entendeu esta resposta: nada e tudo, penetrou no mago da Cristologia deRoessingh. O nada protesta contra qualquer tentativa de encontrar, na totalrelatividade da Histria, o ponto absoluto e inelutvel que evidencie a f. Roessinghdeclara enfaticamente que nunca seguir tal caminho: o fundamento de nossa f nuncase achar em algum ponto histrico; a Histria nada significa em relao f(declarao que no significa, em Roessingb, que a historicidade crist no passa desimbolismo, de idealizao ou de mito). O tudo prestemos ateno a este tudo

    protesta contra o racionalismo apriorstico. Qual o sentido desta resposta paradoxal?

    Depois de declarar a Histria sem valor para a f, Roessingli revaloriza, em seguida, aHistria. Cabe perguntar se por acaso ou por conservantismo que a vida religiosasempre volta a concentrar-se na historicidade. Existe, de fato, uma intuio dasignificao histrica, pois a Histria metafisicamente translcida; contm muitomais do que acasos ligados causalmente. O esprito nela trabalha a fim de se realizar.

    No privilgio da ortodoxia discernir e declarar onde isso acontece; nem se deixacristalizar, num fato emprico, a norma absoluta. Mas mesmo assim no se pode negarque existem centros de vida divina dos quais ns vivemos. Para mim, Cristo ocentro da Histria. Portanto, minha viso das revolues espirituais passadas, todas asminhas reaes diante da realidade, fazem-me proclamar que em Cristo acho o supremovalor de toda a Histria. Cristo a revelao de maior densidade metafsica. S

    mediante Cristo que compreendo os elementos do mistrio trgico do mundo e davida. Escolho, pois, ele. Estarei enganado? Os homens tantas vezes se enganam em suasvalorizaes. Este , porm, o risco que a vida nos traz, fazendo com que nossa atitude

    para com a Histria continue viva, conquistadora e enriquecedora. Centralizando minhaf em Cristo, renovo-me a mim mesmo. Com razo, Roessingh pode falar de umaateno religiosa revelao histrica, mediante a qual Deus vem ao nosso encontro.Este acrescenta ele o significado de Cristo para mim.

    Centro da histria, ponto de convergncia de minha vida, centro de valorizao,encarnao da norma. Eliminaria a base de minha vida se deixasse de me arriscar emCristo. No existe dificuldade para Hoessingh compreender a hornogeneidade do

    ncleo cristolgico de todos os tempos. Cristo o Senhor de cada um e do universointeiro; o Cristo csmico e domina a Histria universal. O Novo Testamento causa tal

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    impacto em Roessingh que este no duvida, s vezes, em negar competncia cinciaprofissional. Parece-me bem duvidoso que o problema da historicidade, latente nadescrio do Cristo bblico, seja da alada exclusiva das disciplinas crticas. Outrasvezes, porm, assaltam-no as dvidas e a insegurana com respeito a Cristo. Eis por queRoessingh declara que o caminho do Cristo, partindo do Novo Testamento e entrando

    na Histria, comporta um salto; finalmente a Cristologia fica isolada da Histria. Mas,ainda que a historieidade de Jesus desaparecesse, Cristo continuaria sendo o centro devalor da Histria. Causa repulsa a Roessingh a atitude ctica diante do NovoTestamento, porm merece ser considerada com toda a seriedade.

    Para a teologia de Roessingh a problemtica se firma na tepo entre a evidenterelatividade da Histria e a super-eminente realidade de Cristo nesta mesma Histria.Deparamos com a luta emocionante entre o testemunho bblico e a mentalidademoderna rebelde a qualquer revelao genuinamente histrica. Em 1924, Roessinghescrevia uma carta bem significativa: Procuro uma sntese entre os princpios dafilosofia idealista e os princpios do Cristianismo Reformado... possvel, porm, que

    tal sntese nunca seja encontrada.Estas palavras, datadas da fase final de seu pensamento teolgico, caracterizam bem sua

    posio. O Idealismo sempre predominou na histria da Cristologia, marcando certadistncia do sentido profundo da Histria, procurando transcender a significao dosfatos concretos. A revelao absoluta de Deus atravs da Histria particular foi sempretida como ameaa contra a autonomia da razo humana, essa revelao sendo sujeita razo e ao jugo dos fatos contingentes. Roessingh pretende, pois, salvar a autonomia doesprito humano, preservar contra o Monismo a personalidade e a religio. Nessa lutatrgica, entretanto, afiguravam-se-lhe como inimigos de nossa autonomia racional tantoa autoridade bblica como o valor absoluto conferido ao fato da Salvao. No foi em

    vo aluno do grande Hermann, o lutador contra qualquer forma de heleronomia.Roessingh optou, pois, entre o Idealismo e a Reforma, pelo caminho da sntese. Adespeito do resultado incerto, continuou pesquisando infatigavelmente. Na teologiadialtica, valoriza e enfatiza grandemente o paradoxo pecado-graa, valorizao, alis,limitada: Queiramos ou no, temos Erasmo por predecessor. Quem poder bani-lo?Solicitado, certo dia, a definir o liberalismo espiritual, ele se pronunciou com soberanaclareza: A Igreja Catlica Romana e demais grupos unidos dogmaticamente, possuem,agora e por muito tempo ainda, todas as prerrogativas psicolgicas na orientao e nodomnio das massas. Mas, nos alicerces mais profundos de seus grandiosos sistemas,deixaram de ser verdadeiros, findaram pertencendo j ao passado. Toda a evoluo da

    filosofja moderna, da Histria e da critica biblica constrange imperiosamente aorompimento radical com todos os fortes e abenoados ncleos do passado.

    Segundo nossa opinio, o conflito espiritual de Roessingh atinge o seu climax noantagonismo entre o seu conceito de autonomia racional e a revelao de Deus no Cristohistrico. Procura ele contornar o problema valorizando o Cristo csmico pelaautonomia da razo. Mas, afinal de contas, estamos sempre s voltas com o velho

    problema do valor do testemunho do esprito. Que vale o testemunho do esprito, que caro confisso reformada? Scholten opinava que esse testemunho do esprito eradirigido antiteticamente contra qualquer autoridade externa. Por sua vez, Roessingh

    pensa do seguinte modo: O critrio ltimo, a autoridade final qual terei de render-me,

    est no testemunho de meu prprio esprito. O que parece ser mais evidente na agoniade Roessingh seu ceticismo acerca de uma possvel sntese entre Idealismo e Reforma.

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    * * *

    Em 1925, na flor de seus 39 anos, morreu Roessingh. Sua vida curta bastou parareatualizar o velho conflito: Ortodoxia versus Modernismo. Desaparecido o jovemcampeo, como evoluiria o Modernismo direitista? A pergunta surgiu espontaneamente

    em todas as igrejas holandesas. W. J. Aalders, referindo-se Cristologia de Roessingh,escreveu: Certamente o crepsculo est brilhando. Mas quem dir se crepsculo danoite ou se alvorada? Heering tentou resolver o caso de modo crtico, pronunciando-se a favor da noite: a teologia de Roessingh falhava na categoria bsica da f e darevelao. Roessingh no construiu sobre os alicerces do Evangelho, descuidou dokerygina bblico. Como resistiria o edifcio?

    No obstante isto. Heering aceita o conceito da autonomia racional, rumando, por suavez, pelo caminho da heterodoxia. Nega-se, certo, a continuar divagando pelasmargens de um ceticismo irrestrito, pois existe uma base de certeza na Revelao, noEvangelho. Heering parece ter avanado bastante, mais do que Roessingh, no caminho

    da Cristologia: impresso essa que se fortalece quando ouvimos o prprio Heering,julgando os motivos bsicos da Cristologia de Boessingh demasiadamente fracos paraconstiturem verdadeiros centros de valor e alicerces seguros. A pretenso de He.ring avanar bem mais e considerar criticamente a vinda de Jesus ao mundo, ou seja, oaparecimento do Eterno no contingente. O que importa a revelao de Deus naHistria, a iniciativa divina de salvao, derramando o Amor no criado sobre estamiservel humanidade em marcha, aproximando-se de ns para atrair-nos a si. Opinaque o reconhecimento desta realidade salvfica no depende, em absoluto, da doutrinada Igreja relativa Encarnao. Pelo contrrio, essa doutrina est em contradioflagrante com a realidade da vida de f. Foi ela gradativamente formada como umateoria emitida pela comunidade primitiva, sem quaisquer razes no Novo Testamento. O

    venervel Irineu assumiu a paternidade desse filho ignorado dos Evangelhos Sinticos.Quando Heering, na encruzilhada de sua reflexo, depara com o Evangelho de Joo, elerejeita o prlogo: este prlogo, embora uma profunda meditao acerca da revelao deDeus em Cristo, no faz parte do depsito revelado; foi a Igreja que, apoderando-sedesta especulao, inferiu dela a Divindade e, em seguida, a Humanidade de Cristo e,finalmente, a unio hiposttica de ambas as naturezas. Foi formado um dogma com

    pretenses a exaurir os mistrios divinos. Heering no pde aceitar tal arbitrariedade,no aceita falar em Divindade de Jesus, mas consente em falar no Ser-como-Deusde Cristo, pois assim se elimina o espectro da segunda Pessoa da Trindade.

    Escutemo-lo formular seu ponto de vista: Por mais que nos ilumine o conceito de que o

    Ser-como-Deus de Cristo eterno e santo, por muito que acreditemos no Filho assimdefinido, declaramos honestamente que nunca houve urna necessidade religiosa que nosobrigasse a preocupar-nos com a origem de Jesus, sua preexistncia e Encarnao, numa

    palavra, com tudo quanto se vincula Encarnao no sentido realstico da antigaortodoxia. Raramente escritor moderno emitiu conceito mais arrasador, nem juzo maisinvlido, porquanto este mesmo Heering, dispensado de se preocupar com a origem deJesus Cristo, dispe-se a edificar urna Cristologia na qual Cristo aparece comoencarnao do esprito de Deus. Ainda mais surpreendente o apelo que estevisionrio moderno faz ao respeito pelo mistrio! precisamente o respeito do mistrioque nos impede de considerar a filiao divina de Cristo como realisticamente

    biolgica; pois tanto o Ser como o aparecimento de Cristo so mistrios, conforme

    ensina a Igreja. O paradoxo grande: um Heering afasta-se, invocando o mistrio, estemistrio mencionado pelas Escrituras, a respeito do qual no cessa de balbuciar a

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    comunidade crist de todos os tempos. Importa pormenorizar mais as reflexes deHeering. Francamente, gostamos mais da quase constante hesitao de Roessingh e desua repugnncia a qualquer sntese. Heering no hesita. Entretanto, sua severidade emcondenar a carncia de base e de critrio no seu antecessor recai sobre ele prprio comredobrada fora. Raramente se pronunciou na histria do Modernismo, juzo mais

    injusto do que esta condenao contra Roessingh, pelo menos quando a consideramos luz da prpria criao teolgica de seu acusador. De fato, Heering levou o crepsculoat as trevas da noite.

    * * *

    Temos assinalado alguns pontos altos na crise doutrinria das duas naturezas. Vejamosagora algumas reaes contra essa crise gravssima. No imaginemos que tudo foisilenciosa cumplicidade: houve, e ainda h, fervorosa oposio ao assalto macio dacritica. Isso porque, alm da teologia reformada dos sculos XIX e XX, fiel defensora

    do Credo tradicional, multiplicaram-se as tentativas de ver e explicar melhor a posioortodoxa. Na antiguidade j se havia pensado que uma crtica honesta da palavranatureza bastaria para resolver o problema. Hoje em dia compreendemos que se tratada prpria verdade professada no dogma e que as palavras expressam, a despeito de suafragilidade humana, a prpria iniciativa de Deus. Sirvam de exemplo as respectivasCristologias de Gerretsen e de Aalders. Gerrelsen ainda est influenciado pela tradiocrtica; no percebe a diferena bsica que separa rio de Atansio, por partirem ambosde um postulado que no tico, mas metafsico, a respeito do conceito de Deus: oconceito tico funda-se no amor e na vontade de Deus, enquanto que a doutrina daIgreja parte do ontolgico, areal seco onde a vida no brota. O esprito helenisticosepultou bem profundamente, sob o conceito de natureza, a simplicidade evanglica.

    A teologia tica, alis, colaborou no recuo do dogma das duas naturezas. Porm eestamos pensando especialmente em Aalders e Korff hoje em dia a expresso dateologia tica tem mudado consideravelinente. Aalders compreende a deciso de Niciacomo um triunfo sobre a idolatria. Considera-se o mistrio da Pessoa de Cristo emharmonia com a confisso da Igreja, especialmente com a definio de Calcednia que,em suas quatro decises negativas, estaciona no mistrio do Filho do Homem. Aunidade de Pessoa na dualidade de naturezas, em Cristo, constitui a reivindicao bsicade Aalders contra a crtica moderna. Korff apoia em tudo a reivindicao de Aalders,considerando a doutrina ortodoxa no como mera especulao, mas como credoreligioso: houve uma vinda de Deus ao mundo, em Jesus Cristo; eis o que a Igreja quisexpressar na sua confisso das duas naturezas unidas hipostaticamnente.

    Entretanto, no cantemos vitria prematuramente! Certamente, a doutrina da velhaIgreja ainda no foi posta de lado, como mera especulao metafsica. Pelo contrrio!Por motivos vrios, o interesse pelo credo cristolgico da Igreja antiga foi aumentadonovamente na Holanda e fora dela. A teologia dialtica, de Barth e Brunnerespecialmente, tomou posio contra a Cristologia do sculo XIX, e defendeu asdeclaraes ecumnicas, com evidente inteno de distanciar-se da dogmtica deHarnack e outros. J em 1927, em sua obra sobre o Mediador, Brunner combatiadeclaradanzente as idias harnackianas. A situao tornou-se to tensa para a equipe deBarth, que urna crtica acerba, partida de certo campo teolgico desligado de qualquertradio reformada, comeou a fazer obstruo sistemtica, nada poupando. A reao,

    porm, tomou vulto. Na Holanda ouviram-se vozes novas, como,por exemplo,a de G.Sevenster que, na sua Cristologia do Novo Testamento, chega concluso de que a

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    antiga exegese ortodoxa tinha base bem real nas Escrituras. Sevenster denunciou aarbitrariedade da oposio Jesus-Paulo que, entre os modernistas, era considerada comoabsolutamente inegvel; observou que cabia constatar muito mais harmonia nosEvangelhos do que supunha a crtica de outrora; demonstrou que os EvangelhosSinticos repetidamente afirmam a preexistncia de Jesus e que no era possvel, com

    base nos textos sagrados, falar de filiao adotiva, no caso de Jesus. Sem qualquerexagero entra em cena uma exegese totalmente renovada. Comparem-se, a titulo deexemplo, as enormes diferenas entre Sevenster e Heering. A renovao penetrou at nocampo dogmtico. O Dr. Vos, longe de atacar a f nas duas naturezas de Cristo,defende-a contra todo mal-entendido. Cada vez que a Igreja fala da unio hipostticadas duas naturezas, sentimos sua reverncia perante o mistrio... Mantenhamos o fato deque Cristo, na unidade de sua Pessoa, era simultaneamente Deus e homem... pois aquino se trata duma pretensa projeo da f da comunidade, mas de uma realidademisteriosa, amplamente testemunhada pelas Escrituras... Vos no teme recorrer aosargumentos gastos da velha ortodoxia, caros a Kuyper, e que so as afirmaes de Jesussobre sua relao com o Pai e sua pretenso de perdoar pecados. Jesus fala com

    autoridade divina. De duas uma: ou ele fala a verdade ou profere mentiras. Se proferementiras, ainda existe a alternativa: mente consciente ou inconscientemente. Se menteconscientemente, o impostor mximo de todos os sculos e, se inconscientemente, amaior vtima da megalomania religiosa. Preferimos acreditar que Cristo disse a verdade,que tinha autoridade divina para ensinar, porquanto era Deus. Em franca oposio aHeering, Vos formula a tese de que a doutrina da Encarnao realmente bblica.Reaparece o tradicional apelo s Escrituras. Ouvem-se novamente palavras cheias delouvor a Cristo, tiradas dos Evangelhos e das Epstolas. Considera-se a preexistnciadivina de Jesus Cristo como includa formalmente no testemunho do Novo Testamento. preciso ensinar a preexistncia: se Cristo Deus, necessariamente existia antes daEncarnao. Enfaticamente reata-se o vinculo indissolvel entre a divindade de Cristoe sua pre existncia eterna.

    * * *

    A essa altura, ningum se surpreender que justamente Heering o pontfice doModernismo direitjsta elevasse protestos contra o enfraquecimento da viso crticanos telogos atuais. Este retrocesso preocupa-o francamente. Estabeleceu, entre outras,as seguintes teses: 1. A teologia liberal protestante redescobriu, nos ltimosquarenta anos, muitas e importantes verdades evanglicas (obscurecidas pela Igreja),motivando isso uma reestruturao,na qual a Cristologia teve papel importante. Motivos

    internos, de ndole crtica, tornaram necessria esta reformulao. 2. A honestjdadecritica impe-lhe, hoje em dia, o dever de resistir presso da tradio eclesistica,refortalecida por circuntncias do momento.

    Heering tinha por alvo evidente o de acautelar os telogos modernos contra a foraabsorvente da doutrina tradicional: devido confuso espiritual hodierna, eles sedeixam impulsionar em direo tranqilidade da tradio. Assim, o homem que em1913 advertia contra o Modernismo da esquerda, por causa da superficialidade deste,agora, em 1948, est a clamar veementemente contra a tradio, em nome da crtica.Contra a teologia semicritica, defenderei a tradio da crtica absoluta e da purezaintelectual. Denuncia o deslizamento para a direita, particularmente de Sevenster, cuja

    Cristologia me decepcionou profundamente, porquanto nela se aceita, praticamente doprincpio ao fim, a velha tradio, apelando para o Novo Testamento como se nele

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    subsistisse ainda a Cristologia do passado. Tenso e intranqilidade acompanham aCristologia: ainda no vislumbramos o fim da lula. Muitos dos problemas hojediscutidos atestam que a luta da Ortodoxia contra o Modernismo no est relegada ao

    passado. Consideremos apenas o caso do nascimento virginal de Jesus, ou dareconciliao redentora, e outros, levantados pela teologia barthiana. interessante

    notar, aqui e acol, certa insegurana na teologia modernista, que exerce, s vezes, umaautocrtica de se admirar; mais interessante ainda constatar que a inseguranamodernista provm da pesquisa mais profunda das Escrituras. Um indcio da foraconvincente e da clareza do Verbo de Deus bblico que a Escritura renasce a cada vez,a despeito de nossos sbios esquemas. Entretanto, a Igreja no ter vocao de anexaroutros sua ortodoxia, at que ela mesma dispense o nome modernista. Fica, porm,comprovado que o credo ortodoxo e a confisso tradicional de Cristo possuem papel

    providencial, nesta poca de confuso e perigos o papel de atualizar e personalizar apergunta de Cesaria de Filipos: Que dizes tu a respeito do Filho do Homem?Convm, pois, proclamar bem alto que a crise doutrinria da Cristologia , bem mais doque questo terica, crise religiosa. A Igreja, mesmo com o risco de ser acusada de

    arrogante, no pode abandonar a seriedade de Joo nem esquecer as advertncias dePaulo.

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    CAPTULO III DECISES ECUMNICAS

    Sumrio:

    Igreja e heresia A orientao das decises Nicia Postulado da Cristologia deAno Ontologia ou vontade de Deus? Cristo, a criatura perfeita Pai e Filho rio apela para a Biblia Nicia replica Homoousios, histria de uma palavrarejeitada e logo reabilitada Novidade da situao no tempo de rio OGuosticismo e o homoousios Centram Nicaenum Nada de sofismas! Ointeresse religioso O Conclio de Constantinopla Apolinrio, soldado de Atansiocontra rio Apolinrio interpreta Jo 1.14 O problema da unio das duas naturezasLogos e homem perfeito mutvel a natureza divina? Uma antropologiatricotomista A idia da substituio O motor e o movido A resistncia daIgreja pura A genuna Encarnao Apolinrio e o Monofisismo A Igrejaantidocetista Um nome decisivo: Calcednia A Escola de Antioquia O homemperfeito Unio moral Nestrio Eutiques Esto misturadas as duas naturezas emCristo? Quatro advrbios em Calcednia Calcednia adora o mistrio OMonofisismo Deciso contra o Monotelismo Perspectiva dos historiadores do

    Dogma Os msticos sonham com a unio Equilbrio das decises eclesisticas Decises antigas e rebeldias ulteriores.

    No captulo anterior tratamos da crise dogmtica das duas naturezas e, por diversasvezes, defrontamo-nos com a crtica adversa ao credo antigo. Muitos estimam ser aconfisso tradicional inadequada expresso contempornea da f crist. Urge, pois, ter

    primeiramente um conhecimento das decises eclesisticas dos primeiros sculos, quesurgiram com a necessidade de expressar em palavras concretas os artigos desta f,atacada por toda espcie de heresias. Sem dificuldade descobrimos os motivos queorientaram a Igreja nesses conflitos. Passando por alto os detalhes especficos, diremossumariamente que a Igreja defendeu tanto a Divindade como a humanidade de Cristocontra os embates da negao.

    A luta em torno de Jesus Cristo alcanou culminncia suprema no decorrer do sculoIV. Nessa poca a Igreja devia resistir aos erros de rio, o qual negava a divindade deJesus Cristo: o Conclio de Nicia condenou-o em 325. Condenou, pouco depois, aApolinrio (Cone. de Constantinopla, 381), que, a juzo da Igreja, no conferia valorsuficiente verdadeira humanidade do Salvador. Com base nestas condenaes, iniciou-se uma reflexo sobre as duas naturezas de Cristo, surgindo as heresias de Nestrio e deEutiques. Em 451, o Conclio de Calcednia chegou importantssima fixaocristolgica, a qual pe termo s divergncias e rene na mesma f os cristos. O queseguiu Calcednia foi apenas elaborao e aprofundamento das decises conciliaresmencionadas. Tentaremos, de modo suscinto, sublinhar o significado dessas lutas edecises.

    * * *

    A. NICIA

    O ano 325 figura na Histria da Igreja como o mais decisivo na expresso daCristologia. Marcou a vitria sobre uni dos mais graves ataques feitos genuinidade daf. No se confundam, entretanto, as decises conciliares de Nicia com o famosoSmbolo de Nicia (Nicaenum) que um dos trs simbolos clssicos do Cristianismo,

    pois aquele data da segunda metade do sculo IV, sendo redigido parcialmente em

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    Constantinopla. Interessamo-nos aqui pela deciso conciliar proclamando a Divindadede Cristo contra rio.

    Na escola de Luciano de Antioquia que encontramos as razes remotas do Arianismo.Harnack qualifica Luciano de Arius ante Arium. Luciano baseava-se na Cristologia

    adocianista de Paulo de Samosata, o qual ensinava que o homem Cristo fora adotadopor Deus. Definitivamente influenciado por Luciano, rio entrou em conflito com aIgreja, desligando-se dela para sempre no Conclio de Nicia. Em sua base profunda,este rompimento referia-se propriamente Divindade de Cristo, terminantementenegada por rio, como se constou da leitura dos escritos do heresiarca na assembliaconciliar. Reinava ento a convico de que, vistas a eternidade e unicidade de Deus,no cabia falar de seres criados consubstanciais a Deus, mas apenas de seres criados aolado e sob a dependncia de Deus. rio aplicou o princpio a Jesus Cristo, negando,

    portanto, ser o mesmo coeterno e consubstancial ao Pai, declarando ser ele apenas umacriaidra. Escrevendo a Eusbio de Nicomdia, rio se lamenta: Somos perseguidos

    porque afirmamos que o Filho tem urna origem, enquanto que Deus no tem comeo.

    O Pai no foi Pai desde o princpio; houve poca em que o Filho no era ainda criado.Deus s se tornou Pai com a criao de seu Filho. Este Filho, porm, no se origina dasubstncia do Pai, mas somente da sua vontade. Portanto, ele no verdadeiro Deus,mas uma criatura decerto maravilhosamente perfeita e excepcionalmente relacionadacom Deus. Como base de suas opinies, Ano citava numerosos textos bblicos, taiscomo Dt 6.4: O Senhor o nico Senhor; Pv 8.22: O Senhor me possuia no inicio desua obra; Jo 14.28: O Pai maior do que eu. Portanto, o Filho inferior ao Pai. OPai incriado, mas o Filho foi gerado; alis, gerado apenas da vontade e no dasubstncia do Pai. Ano obstina-se contra qualquer forma de emanao e rejeita qualquerexpresso do tipo Luz da Luz, aplicada a Cristo. Devido sua relao privilegiadacom Deus, Cristo merece o nome de Filho de Deus, sem que isto acarrete o fato de que

    seja Deus segundo a natureza divina. rio opta, pois, por urna Cristologia subordinada,em nome do Monotesmo, que no consente outro Deus ao lado do nico Deusverdadeiro.

    Neste contexto, devemos colocar Nicia. Depois de muitas discusses, os Padresconcordaram na seguinte frmula: Cremos em um nico Senhor, Jesus Cristo,unignito Filho de Deus, consubstancial ao Pai, Luz da Luz, gerado, no feito, damesma natureza do Pai. Condenaram a opinio dos que afirmavam que houve umtempo em que o Filho ainda no era. O mais importante, porm, foi a palavra tcnicahomo-ousios (consubstancial) imposta pela definio, pois, nesta palavra evidentementeantiariana, o Conclio definja sua prpria definio. Segundo Ano, o Pai e o Filho no

    tinham a mesma ousia ou substncia comum. Fato bastante importante, pois um snodode Antioquia, em 268, tinha rejeitado expressamente a palavra homo-ousios. Semdvida, os padres conciliares sabiam dessa rejeio; apesar disto, recorreram ao termo

    para evidenciarem sua posio. Cabe perguntar por que Nicia fez desta palavra umquase imperativo categrico ou uma norma da ortodoxia. Pergunta importante, pois oGnosticismo tambm empregava o homo-ousios, aplicando-o preferencialmente aoseons que emanavam de Deus como foras reais. Podia semelhante termo utilizar-seimpunemente numa disputa cristolgica? No sugeria ele a emanao gnstica,condenada pela Igreja? E a expresso Luz da Luz, de sabor to gnstico (os gnsticosensinavam emanao maneira do raio do sol ou dos ramos da rvore), nocomportava iguais perigos?

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    Houve uma razo decisiva para que a Igreja, em 325, usasse esse termo em definio detamanho vulto. Quando o Snodo de 268 rejeitou o vocbulo, as circunstncias eramoutras: nessa poca ameaavam as idias sabelianas, contrrias distino entre as trsPessoas divinas, ponto de vista este confirmado pela atitude dos semi-arianos ps-nicenos, que rejeitavam ainda o homo-ousios como perigosamente sabeliano. Nicia,

    contudo, pensou que o termo era suscetvel de um uso srio e luminoso (como tambm aexpresso Luz da Luz) precisamente no perigo ariano. Cada situao histricaconhece perigos de determinado matiz. Ocorreu, pois, que, em 268, o consubstancialtinha um sabor hertico. Mas, depois de rio ter degradado Cristo at o nvel de umasimples criatura feita sem relao consubstancialao Pai, a Igreja serviu-se hic et nuncdeste mesmo consubstancial que, neste momento e contra este erro, tomava um valordeveras excepcional. Fato bem demonstrado pela atitude dos arianos que, impotentes decontinuar suas ligaes eclesisticas, optaram por excluir-se da comunho universal. Afrmula de compromisso proposta por Eusbio de Cesaria teria evitado este cisma, masela no era clara. Muitos telogos afirmam ser evidente que a Igreja, usando o termoconsubstancial, queria evitar recair na ideologia da emanao dos gnsticos. A Igreja

    propugnava ostensivamente a honra e a Divindade do Cristo e, candidamente, lanoumo da palavra que servia melhor sua inteno. Atansio, porm, antes e aps Nicia,relutava contra esta palavra, talvez por causa do Sabelianismo redivivo em Marcelo deAncira. O prprio dogma, no entanto, estava garantido para Atansio, o qual viu como ohomoousios ia sendo mais e mais valorizado na luta anti-ariana, a despeito de Marcelode Ancira e do Sabelianismo alertado.

    Finalmente, o termo consubstancial tornou-se o centrum nicaenum, o corao daconfisso cristolgica: a Igreja precisava confessar Jesus Cristo como verdadeiro Deus e

    proclamar que, em Jesus Cristo, o prprio Deus aproxima-se de ns. No decorrer dostempos no faltou quem considerasse a controvrsia em torno do homo-ousios como

    sofisticada e abstrata, sem importncia religiosa. Tal crtica desconhece os motivosreligiosos que opuseram Atansio e os Padres conciliares contra a Cristologia ariana. OCredo de Nicia e de Atansio baseia-se diretamente no depoimento escriturstico;

    baicamente no outra coisa seno o eco da adorao que ressoa em todo o NovoTestamento. Usando o termo consubstancial, o Concilio apenas pretendeu traduzir edeclarar o que o apstolo do amor, Joo, escrevera muitos anos antes: Este overdadeiro Deus e a Vida eterna.

    * * *

    B. CONSTANTINOPLA

    De 325 a 381 a controvrsia sobre a Divindade de Cristo continuou, com seus altos ebaixos bem perceptveis na vida agitada de Atansio. O resultado final, contudo,permaneceu inalterado: a definio nicena foi incorporada f crist, enquanto oArianismo, fatalmente inclinado ao Politesmo, no conseguiu enraizar-se na Igreja.Subsistia o perigo, nada imaginrio, de que, satisfeita pela unanimidade a respeito daDivindade do Cristo, a Igreja pensasse ter superado todos os perigos.

    Mas a Igreja no tardou em vislumbrar perigos vindos de outro lado, a saber, dasdoutrinas de Apolinrio. Este no atacou Nicia; pelo contrrio, fez-se clebre comoadmirador incondicional de Atansio e partidrio de Nicia. No obstante, entrou em

  • 7/27/2019 A Pessoa de Cristo - Berkouwer

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    conflito com a Igreja e emitiu opinies destinadas