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1 A PRINCESA DO SUL DE BERNARDO E JERÔNIMO: A PELOTAS ESCRAVISTA A PARTIR DE CRÔNICAS E FOLHETINS Mariana Couto Gonçalves 1 Considerações iniciais A cidade de Pelotas 2 , localizada no extremo sul do país, obteve um papel extremamente destacado na Província do Rio Grande do Sul, durante o século XIX, através da produção e exportação de carne salgada. A partir do empeendimento idealizado por José Pinto Martins 3 , no final do século XVIII, através da implantação do primeiro estabelecimento saladeiril na cidade. Nos anos de 1830, o charque se tornou o principal produto de exportação da Província do Rio Grande do Sul tendo Pelotas como polo que concentrou o maior número de charqueadas 4 . Por conseguinte, as charqueadas tornaram-se a principal atividade economica da cidade durante o século XIX culminando com o auge econômico entre os anos de 1860 à 1890 5 , gerando uma elite aristocrática e escravocrata. Neste período, percebe-se uma pujança econômica e social da elite pelotense, crescendo e ampliando seu acúmulo de riquezas, construíndo prédios inspirados na arquitetura europeia, enviando seus filhos para estudar na Europa, importando produtos para seus lazer e para o poder público, tornando-se conhecida como a Princesa do Sul 6 . 1 Mestranda em História do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharel em História pela Universidade Federal de Pelotas. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 2 A Freguesia de São Francisco de Paula foi constituída através alvará de 07 de julho de 1812. Entretanto, ela mantinha- se dependente administrativamente da Vila do Rio Grande. Em 1832, a Freguesia de São Francisco de Paula foi elevada à condição de Vila, emancipando-se da cidade de Rio Grande. A partir deste momento, a Vila contava com uma câmara administrativa, fundou-se a primeira escola e deu-se o início da praça. Em 1835, a Vila de São Francisco de Paula chamava-se Pelotas e obtinha o status de cidade. 3 José Pinto Martins veio para a cidade de Pelotas com o objetivo de fugir da seca que assolava o Ceará durante os anos de 1777, 1779 e 1792. Ao chegar à cidade, implantou a primeira charqueada às margens do Arroio Pelotas e, a partir de sua iniciativa, outras charqueadas foram implantadas no entorno do Canal São Gonçalo e do Arroio Pelotas. 4 MAGALHÃES, Mario Osório. Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: EDUFPel, 1993, p. 33. 5 Ibidem, p. 70 6 Pelotas tornou-se conhecida como a Princesa do Sul através dos versos de Antônio Soares da Silva, em 1863. Atualmente, o termo encontra-se empregado na bandeira da cidade.

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A PRINCESA DO SUL DE BERNARDO E JERÔNIMO: A PELOTAS ESCRAVISTA A PARTIR DE CRÔNICAS E FOLHETINS

Mariana Couto Gonçalves1

Considerações iniciais

A cidade de Pelotas2, localizada no extremo sul do país, obteve um papel extremamente

destacado na Província do Rio Grande do Sul, durante o século XIX, através da produção e

exportação de carne salgada. A partir do empeendimento idealizado por José Pinto Martins3, no

final do século XVIII, através da implantação do primeiro estabelecimento saladeiril na cidade. Nos

anos de 1830, o charque se tornou o principal produto de exportação da Província do Rio Grande do

Sul tendo Pelotas como polo que concentrou o maior número de charqueadas4. Por conseguinte, as

charqueadas tornaram-se a principal atividade economica da cidade durante o século XIX

culminando com o auge econômico entre os anos de 1860 à 18905, gerando uma elite aristocrática e

escravocrata. Neste período, percebe-se uma pujança econômica e social da elite pelotense,

crescendo e ampliando seu acúmulo de riquezas, construíndo prédios inspirados na arquitetura

europeia, enviando seus filhos para estudar na Europa, importando produtos para seus lazer e para o

poder público, tornando-se conhecida como a Princesa do Sul6.

                                                                                                                         1 Mestranda em História do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharel em História pela Universidade Federal de Pelotas. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 2 A Freguesia de São Francisco de Paula foi constituída através alvará de 07 de julho de 1812. Entretanto, ela mantinha-se dependente administrativamente da Vila do Rio Grande. Em 1832, a Freguesia de São Francisco de Paula foi elevada à condição de Vila, emancipando-se da cidade de Rio Grande. A partir deste momento, a Vila contava com uma câmara administrativa, fundou-se a primeira escola e deu-se o início da praça. Em 1835, a Vila de São Francisco de Paula chamava-se Pelotas e obtinha o status de cidade. 3 José Pinto Martins veio para a cidade de Pelotas com o objetivo de fugir da seca que assolava o Ceará durante os anos de 1777, 1779 e 1792. Ao chegar à cidade, implantou a primeira charqueada às margens do Arroio Pelotas e, a partir de sua iniciativa, outras charqueadas foram implantadas no entorno do Canal São Gonçalo e do Arroio Pelotas. 4 MAGALHÃES, Mario Osório. Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: EDUFPel, 1993, p. 33. 5 Ibidem, p. 70 6 Pelotas tornou-se conhecida como a Princesa do Sul através dos versos de Antônio Soares da Silva, em 1863. Atualmente, o termo encontra-se empregado na bandeira da cidade.

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Objetivando manter a crescente produção e exportação da carne salgada, os charqueadores

contavam com um grande número de escravos trabalhando em seus estabelecimentos. A

concentração de negros na cidade foi intensificada a medida que desenvolvia-se a indústria

saladeiril7. Cada estabelecimento contava com uma média de 50,1 escravizados8, cuja maioria era

do sexo masculino devido a penosa jornada de trabalho, de aproximadamente dezesseis horas

diárias9. A safra compreendia os meses de novembro a maio e durante a entressafra os escravos

labutavam em outros estabelecimentos como olarias e fábricas de sabão e velas. O objetivo era

manter os escravos ocupados durante o ano inteiro, gerando um retorno financeiro para os senhores

e um amplo aproveitamento da mão de obra. Para isso, os charqueadores utilizavam de instrumentos

repressivos, como o chicote e o troco, além de feitores e capangas. Sob o olhar do feitor, o estalar

do chicote e o quilombo como ilusão, eles [os escravos] realizaram as tarefas mais duras e

lucrativas da região [...] os árduos trabalhos realizados deram a esses estabelecimentos a alcunha de

“purgatório dos negros” 10.

As charqueadas dependiam da mão de obra escrava na produção e no consumo do produto,

ou seja, abolir a escravidão acarretaria prejuizos economicos determinantes para a cidade e para os

charqueadores. A crise do escravismo e o crescimento dos grupos sociais urbanos contrários ao

cativeiro permitem a ampliação do espaço nos periódicos para as chamadas ideias abolicionistas11.

Neste sentido, a luta abolicionista se alastrará, a partir da década de 80 do século XIX, em todo o

país, intensificando-se inclusive na cidade de Pelotas. A imprensa se tornará imprescindível –

Pelotas contará com dois jornais abolicionostas, A Voz do Escravo e A Penna, que intensificaram as

discussões em torno da causa – apresentando-se como um veículo capaz de gerar debates e

reflexões sobre a emancipação do elemento servil, por intermédio de artigos, denúncias, propostas,

crônicas e etc. Dessa forma, ao escritor Bernardo Taveira Junior encontrou nos periódicos a

possibilidade de relatar o cotidiano escravocrata pelotense, através de crônicas, folhetins e poesias,

                                                                                                                         7 LONER, Beatriz Ana. Negros: organização e luta em Pelotas. História em revista. Pelotas: UFPel, v.5, dezembro de 1999, p. 07-27. 8 ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Demografia escrava das charqueadas pelotenses. In: MAESTRI, Mario; ORTIZ, Helen (org.). Grilhão negro: ensaios sobre a escravidão colonial no Brasil. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009, p. 247-269. 9 MAESTRI, Mario. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993. 10 ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. A produção charqueadora e a mão-de-obra servil. In: BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau (org.). História geral do Rio Grande do Sul: Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006, p. 189-202, p. 202. 11 BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad, 2010, p. 111.

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denunciando os maus tratos que os escravos foram submetidos e lutando a favor da emancipação do

elemento servil.

Bernardo Taveira Junior: Uma voz a favor da liberdade

De ideias avançadas, foi em todo o Rio Grande do Sul um dos mais antigos batalhadores da

abolição da escravatura12. Bernardo Taveira Junior13 viveu cinquenta e seis anos dedicados ao

letramento, atuando como professor, poeta, cronista, folhetinista, teatrólogo e tradutor. O escritor se

insere na história da cidade de Pelotas, em 1866, ao começar sua carreira de professor nos principais

colégios de ensino primário e secundário. Concomitantemente ao ofício de professor, Bernardo

atuava ativamente na imprensa local e regional como colaborador, escrevendo crônicas14, folhetins

e poemas. Por intermédio deste ofício, defendeu a Abolição dos escravos.

Em 1867, públicou um poema intitulado Liberdade destacando o intuito de batalhar pela

liberdade dos escravos: “troa em minha alma a voz da liberdade [...] embora eu veja o mundo

escravo sempre / na minha rude lyra hei de cantar-te / o’ doce liberdade!”15. Posteriormente,

Bernardo Taveira Junior publicou uma série de dez crônicas no jornal Diário de Pelotas intitulada

Emancipação servil. Nesta série, destaca que a emancipação era um passo grandioso para a

civilização e, por isso, dependeria de tempo para ser realizado. Apesar disso, a população deveria

unir esforços e protestar para conquistar a liberdade dos cativos. “O povo é quem sempre opera

grandes revoluções [...] do povo parte sempre a iniciativa das mais generosas ideias”16.

Bernardo Taveira Junior também destacou a relação do escravo como trabalhador, a partir

do sentimento que o cativo, como oprimido, nutre pelo seu opressor. Para ele, o escravo é

condenado a degradação, principalmente pelo castigo que sofre do capataz, produzido por abuso de

força e violência. Essa relação de oprimido/opressor provoca no escravo formas de resistência,

                                                                                                                         12 RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Bernardo Taveira Junior. Revista Província de São Pedro. Ed. Livraria do globo, n. 06, 1946, p. 78-94, p. 79. 13 Bernardo Taveira Junior nasceu em 1836 na cidade de Rio Grande, com dezoito anos foi estudar direito em São Paulo, mas completou apenas os cursos de preparatórios. Com o agravo de seus problemas de saúde e com dificuldades financeiras, Bernardo regressa a Província do Rio Grande do Sul. O escritor morreu em 19 de setembro de 1892, na cidade de Pelotas, diagnosticado de diabetes. Segundo os periódicos da época, ele morreu paupérrimo.  14 As primeiras crônicas de Bernardo Taveira Junior datam da década de 70 do século XIX e encontram-se organizadas no arquivo do escritor disponível no Arquivo Histórico da Bibliotheca Pública Pelotense 15 ARCÁDIA, 1º série, 1867. 16 DIÁRIO DE PELOTAS, 10/05/1870.

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como fugas, assassinatos, furtos e “corpo mole”. Não há escravo, ainda o mais conformado com o

peso do cativeiro, que não tenha a sós consigo os seus ímpetos, os seus momentos de desespero e de

imprecação17.

“Dirão os escravocratas que o possuir escravos ainda é entre nós um direito de propriedade,

o qual deve ser respeitado. Mas esse tão apregoado direito não é, e nunca o foi, ante a lei natural;

não passa de um fenômeno social produzido pelo arbítrio da força e da violência”18. Bernardo

Taveira Junior argumentava em seus textos que apesar da escravidão ser uma herança de gerações

passadas, caberia à população protestar contra esse crime hereditário. Complementa que a educação

seria uma das soluções para o desaparecimento da escravidão, pois o povo saberia seus direitos para

reivindicar e seus deveres para cumprir.

Não obstante, destacamos que os textos de Bernardo Taveira Junior eram lidos por uma

minoria19 letrada e aristocrática, ou seja, provavelmente não concordariam com as manifestações do

autor, tendo em vista que a cidade dependia da escravidão para produzir o charque, movendo a

economia e a renda dos charqueadores. É possível relacionar essas possíveis críticas da sociedade

com uma passagem do escritor: Em Pelotas, ainda nenhuma voz ousará levantar-se em prol do miserando escravo? Tive coragem para isso, tive mesmo a audacia de desafiar as ideias desses homens egoístas e emperrados, e de apresentar-me à descoberto como aldo do que o estolido resentimento da ignorancia os levasse a praticar contra a minha pessoa. Apesar das ameaçasinhas ridículas que indiretamente abalançarão-se à fazer-me nada surdiu. [...] Falarão muito, gritarão ainda mais, tudo porém tem o seu termo: calarão-se à final, sem que se revolvessem a me fazer calar20.

Além disso, destacamos que as primeiras crônicas do escritor a favor da Abolição dos

escravos datam da década de 70 do século XIX e, como vimos anteriormente, a campanha pela

emancipação se alastrará no Brasil apenas na década de 80. Isso posto, aumenta a nossa hipótese

que o escritor tenha sofrido represálias, principalmente porque neste período, Pelotas contava com o

maior contigente de escravos da Província, logo uma voz que levanta-se a favor da liberação destes

trabalhadores não seria bem vista:

                                                                                                                         17 DIÁRIO DE PELOTAS, 12/05/1870.  18 A VOZ DO ESCRAVO, 15/02/1881.  19 Segundo Alberto Coelho da Cunha, em 1872, somando o 1º, 2º e 3º distrito de Pelotas, os leitores entre homens e mulheres somavam 5.938. Em contrapartida, 15.320 pessoas não sabiam ler. 20 DIÁRIO DE PELOTAS, 15/10/1871.  

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Bernardo Taveira Junior destacou-se na vida da Província pela luta que sempre manteve contra a escravatura. Vivendo em Pelotas, centro de grande concentração de escravos, devido às charqueadas, o autor possuía uma vivência bastante grande do problema da escravatura. Por sua posição contrária ao regime escravagista, muitas foram as ameaças que sofreu, embora nunca tenha cessado de, através de seus poemas, lutar pela abolição21.

Em seus textos, Bernardo denunciava o atraso brasileiro em abolir a escravidão. Entre todas

as leis promulgadas22, ele destaca primeiramente a Lei do Ventre Livre como a mais marcante a

favor da luta contra a escravidão, considerando-a como um passo gigantesco a caminho da

civilização. Posteriormente, com o advento da década de 80, a luta contra a escravidão tomou conta

do país, mas em Pelotas a Abolição acirrou os ânimos e influenciou a cena política e social23:

Na verdade, o que ocorre é que a campanha pela Abolição levantava problemas diversos, de difícil resolução numa cidade em que o motor do seu desenvolvimento econômico estava atrelado ao charque, o qual necessitava de escravos para sua produção e ainda tinha o agravante de ter seu mercado de consumo também condicionado pela escravidão, pois era comprado para alimentação de escravos24.

Por conseguinte, a Abolição dos escravos em Pelotas ocorreu em três fases distintas25. A

primeira refere-se a publicação do jornal A Voz do Escravo,em 1881. A segunda diz respeito a

publicação do jornal A Penna, em 1884. Por fim, a última fase contempla os anos finais da

escravidão antes da promulgação da Lei Áurea. Além disso, durante a década de 1880, surgiram

associações que dissemiram as ideias antiescravistas, como por exemplo o Clube Abolicionista

(1881) e Centro Abolicionista (1884).

O jornal A Voz do Escravo nasce de uma associação de três pessoas paradigmáticas: um

jornalista, João José Cezar; um literato e professor, Bernardo Taveira Jr. e um construtor negro

livre, Manoel Conceição da Silva Santos26. O jornal objetivava principiar a campanha abolicionista

em Pelotas:

                                                                                                                         21 BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. Literatura e crítica na imprensa do Rio Grande do Sul 1868 a 1880. Porto Alegre: Escola Superior São Lourenço de Brindes, 1982, p. 57. 22 Em 1830 foi promulgada a lei Feijó que declarava livre todos os escravos que entrassem em território e nos portos brasileiros. Contudo, o tráfico persistia e para combatê-lo foi promulgado, em 1850, a Lei Eusébio de Queirós que objetivava acabar com o tráfico. Posteriormente, em 1871, promulgou-se a Lei do Ventre Livre que declarava livre todos os filhos de escravas nascidos no Brasil. Em 1885, promulgou-se a Lei dos Sexagenários que libertava os escravos maiores de sessenta anos e, por fim, promulgou-se a Lei Áurea em 13 de maio de 1888 que abolia a escravidão no Brasil. 23 LONER, Beatriz Ana. Abolicionismo e imprensa em Pelotas. Anais do II Congresso Internacional de Estudos Históricos: Imprensa, história, literatura e informação. Rio Grande: Ed. da FURG, 2007, p. 57-64. 24 Ibidem, p. 58. 25 LONER, Beatriz Ana. Abolição. In: GILL, Lorena; LONER, Beatriz Ana; MAGALHÃES, Mario Osório (org.). Dicionário de história de Pelotas. Pelotas: Ed. da UFPel, 2012, p. 08-09, p. 08 26 LONER, 2007, p. 59

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Queremos ser o eco transmissor dos sentimentos desses nossos irmãos, que, lá em imundas senzalas esperam em vão por uma voz que os console, e lhes mitigue as dores com o bálsamo da esperança. Não dirige a nossa pena a ambição, e teremos por bem empregados todos os nossos esforços quando puder os apresentar-nos cheios de orgulho diante das demais nações e dizer-lhes: Hoje sim, o Brasil é verdadeiramente um país livre27.

De fato, A Voz do Escravo28 destacou-se na imprensa por proporcionar um espaço de debate

em torno da Abolição, dando voz e/ou atuando como mediador daqueles que não eram ouvidos.

Além de criar o jornal, Bernardo Taveira Junior também colaborava publicando alguns textos. Em

seu primeiro artigo questiona quem pode ser insensível a voz do escravo?29 A elite charqueadora

pelotense, embora em menor número, sobrepunha uma maioria escrava em virtude do poder

economico e social, estabelecendo uma relação de oprimido/opressor. Neste sentido, os

charqueadores tornam-se insensiveis a causa abolicionista e aos próprios escravos, tendo em vista,

que a seu poderio economico passava pelos escravos. A insensibilidade se mostra através

atrocidades que os capatazes realizavam com os cativos, contudo esta prática era vista com “bons

olhos” e de forma natural. Exatamente neste contexto, tem-se o assassinato do escravo Jerônimo,

marcando a luta abolicionista em Pelotas e as páginas da imprensa pelotense.

Jerônimo: o infeliz escravo

O escravo Jerônimo trabalhava na charqueada de Paulino Teixeira da Costa Leite, sendo

assassinado, com apenas dezesseis anos no dia 21 de março de 1881, por Manoel Oliveira, capataz

do estabelecimento, por ordem de Antonio Teixeira da Costa Leite. A notícia da morte do escravo

repercutiu em toda a imprensa local, sendo denunciada pelo jornal A Voz do Escravo, que atuou

como o porta-voz da causa, publicando uma reivindicação destinada ao Ministro da Justiça, em 03

de abril de 1881, na qual relata o crime e cobra justiça das autoridades para que o crime não fique

impune. O passo a passo do assassinato – a realização do crime, as testemunhas, o tratamento que

Jerônimo foi submetido, os questionamentos, reivindicações e punições – foram relatadas pelo

                                                                                                                         27 A VOZ DO ESCRAVO, 16/01/1881, grifo original.  28 A Voz do Escravo foi acusado de tornar-se partidário devido ao apoio na campanha de Fernando Osório para o cargo de deputado geral. Por causa das manifestações políticas constantes, o jornal deixou em segundo plano a campanha abolicionista e foi muito criticado pela imprensa local devido a essa postura. A partir disso, A Voz do Escravo perdeu seu principal redator – João José Cezar. Possivelmente, Bernardo Taveira Junior tenha deixado o periódico em consequência de a campanha política ter tomado o lugar da abolicionista. Diante disso, após algumas publicações o jornal deixa de circular. 29 A VOZ DO ESCRAVO, 15/02/1881.  

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periódico ao longo do ano de 1881. Além disso, o jornal publicava matérias extraídas de outras

redações para o leitor ter um panorama das publicações, mantendo ainda, uma coluna intitulada

Questão Jerônimo, na qual apresentava as últimas novidades do caso. Segundo a testemunha

Geraldo Casal de Lis, em declaração para o jornal Onze de Junho, afirma:

No dia 21 do corrente, às 7 horas da manhã chegou a charqueada do Sr. Paulino Teixeira da Costa Leite, o Sr. Antonio Teixeira da Costa Leite, num carro trazendo em sua companhia o crioulo Jerônimo com as mãos manietadas. Descendo do carro o Sr. Antonio Leite, em frente ao tronco, ordenou ao capataz que mandasse manea-lo de pés e mãos e tirar-lhe a camisa, começando o bárbaro e cruel suplício. Como porém o crioulo Jerônimo não pudesse suportar o castigo, de pé, mandou amarrá-lo em uma tronqueira, com os braços amarrados para cima, continuando o castigo. Achando-se fatigado um dos algozes, veio outro, e depois um terceiro que foi quem finalizou o castigo. Quando principiou o terceiro algoz a castigar Jerônimo, já o pobre infeliz não gemia. Estava moribundo30. Geraldo Casal de Lis relatou a indiferença que Antonio Teixeira da Costa Leite apresentou

frente aos golpes sofridos por Jerônimo, mandando que continuassem a acertá-lo e castigá-lo. Logo

em seguida, quando o escravo estava quase morto, Antonio Leite ordenou que outros escravos

levassem Jerônimo para o tronco, deixando-o ali por horas. No dia posterior ao crime, Jerônimo

deixou o tronco e foi encaminhado para a senzala por ordem de Paulino Leite. A testemunha

descreveu que após algumas horas, Antonio Leite colocou o cativo no carro e trouxe-o para a

cidade, confirmando a sua morte.

Uma das primeiras críticas apresentadas na matéria do jornal A Voz do Escravo refere-se que

ao atestado de óbito expedido pelo médico da cidade. Segundo o médico, Jerônimo havia morrido

por tétano, posteriormente modificou o laudo e afirmou ser por peritonite. O jornal questiona se não

foram os próprios charqueadores que modificaram o atestado para fugirem da vinculação com o

caso. As discussões nos periódicos condenaram a postura do médico, tendo em vista, que para a

imprensa a causa da morte de Jerônimo era óbvia. Para responder a estes questionamentos e alguns

depoimentos, o corpo de Jerônimo foi exumado. Segundo o relato de Geraldo Casal de Lis, o corpo

apresentava sinais de retaliação e do castigo sofrido, sendo possível comprovar que o corpo era

mesmo do escravo e que havia morrido devido aos maus tratos em que foi submetido.

O jornal Correio Mercantil questionou o porquê da exumação, tornando-se o porta-voz dos

acusados, publicando artigos que visavam ludibriar os leitores: temos de um lado a opinião da

medicina legal, que deve inspirar toda a confiança, e do outro a maledicência em sociedade com a                                                                                                                          30 ONZE DE JUNHO apud A VOZ DO ESCRAVO, 03/04/1881.

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especulação, inventando crimes, exercendo vinganças, que não podem merecer a menor

consideração31. A partir desta postura do Correio Mercantil, a folha ilustrada Cabrion publica uma

ilustração que faz alusão a postura do periódico e ao crime.

Legenda: [Na lápide] Aqui já o infeliz Jerônimo vítima do cancro social que civiliza o nosso país

[Na mão do homem do canto direito] Correio Mercantil defensor perpétuo de infâmias. Fonte: Cabrion, Pelotas, n.114, p. 01, 03/04/1881.

O jornalista e editor do Correio Mercantil, Antônio Joaquim Dias, foi acusado pela folha

ilustrada o Cabrion como um dos algozes responsáveis pelo assassinato do escravo. Apesar da

ilustração, Dias não estava envolvido no crime, contudo foi considerado um dos algozes devido a

defesa dos verdadeiros idealizadores – atuando como porta-voz dos acusados – ocultando a verdade,

promovendo uma mentira e persuadindo os leitores. Além disso, segundo o Cabrion, Dias recebia

para defender os mandantes do caso:

                                                                                                                         31 CORREIO MERCANTIL apud A VOZ DO ESCRAVO, 03/04/1881.

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É pois um fato degradante, ou para melhor dizer um crime, que este mercenário se torna saliente querendo ocultar a verdade e patenteando a mentira [...] a infâmia e a ignorância própria de um vendilhão, onde um miserável carrasco. É pois de um fato horroroso praticado pelos Srs. Joaquim e Paulino Teixeira da C. Leite que o vendilhão Dias defende-os como mandatários de tão bárbaro crime32. Além do Correio Mercantil, o jornal A Discussão pouco escreveu sobre o tema,

principalmente porque seu redator Piratinino de Almeida era advogado de Paulino Teixeira Leite. O

Diário de Pelotas, por sua vez, publicou os depoimentos das testemunhas no transcorrer do mês de

abril. Os primeiros a depor33 foram o Vigário da cidade, Dr. Augusto Joaquim de Sequeira

Canabarro e João Cezar Castro. Ambos fizeram um depoimento favorável ao charqueador. A

terceira testemunha34, Manoel da Silva Rangel, foi o responsável por relatar o assassinato ao

público através da denúncia feita no jornal Onze de Junho, afirmou que o exame de corto e delito

foi realizado em outro escravo, castigado dias antes. A quarta testemunha35 Albino Joaquim Fortes,

ex-empregado da charqueada, aponta as crueldades cometidas pelo capataz, aplicando castigos

mesmo sem o consentimento de Paulino Leite. O quinto a depor36 foi Geraldo Casal de Lis, ex-

empregado da charqueada, contou sobre a brutalidade ocorrida no caso. Segundo o Diário de

Pelotas, a defesa fez perguntas insinuando que o crime ocorreu por merecimento.

Após o relato das testemunhas, foram denunciados Antonio Leite, Paulino Leite, Manoel

Pedro de Oliveira e mais três escravos, Antonio, Marcelino e Casimiro. Os escravos e o capataz

foram julgados e condenados a cumprir pena, sendo presos em setembro do mesmo ano, contudo o

charqueador é inocentado e Antonio Leite sai da cidade. Este resultado vai ao encontro da

declaração de Manoel da Silva Rangel que afirma ter escutado do filho de Paulino Leite que ele

sairia ileso porque seu dinheiro abafaria o caso. Além disso, complementa-se com o questionamento

levantado pelo Cabrion sobre o porquê triunfaram os mandantes do crime? Porque Jerônimo era um

pobre preto, um desgraçado, era escravo!37.

                                                                                                                         32 CABRION, 03/04/1881. 33 DIÁRIO DE PELOTAS, 07/04/1881. 34 DIÁRIO DE PELOTAS, 09/04/1881. 35 DIÁRIO DE PELOTAS, 13/04/1881. 36 DIÁRIO DE PELOTAS, 19/04/1881. 37 CABRION, 10/04/1881.

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Bernardo e Jerônimo: Através da imprensa as histórias se cruzam

Bernardo Taveira Junior em suas primeiras crônicas relatou o que para ele seria a vida de

um escravo. Nascido como objeto de um senhor, garantido através de uma legislação que legitimava

as ações de seus senhores. Em seus primeiros anos de vida já vislumbraria a imagem do cativeiro

adquirindo consciência da realidade que está submetido. Embora, em alguns casos, a convivência

do filho de escravo com o filho do charqueador retardasse este processo de conscientização. A partir

disso, transforma-se em escravo “sob todas as amarguras do cativeiro” a partir do tronco, chibata e

da senzala, o crioulo percebe a sua “nova” existência. Para Bernardo Taveira Junior, a partir desse

instante nasce o sentimento de ódio do oprimido pelo opressor, do cativo contra seu senhor, não

passando de um objeto. É uma mercadoria que passa de mão em mão até que os maus tratos ou a

velhice façam-na desaparecer da face da terra38. Além disso, por ser uma mercadoria, é tratado

diferente frente à legislação. O homem livre tem a justiça para apontar as suas falhas e determinar

suas condenações, já o escravo nunca tem a lei ao seu lado, cabendo ao senhor determinar a forma

de punição mais cabível para seus atos, geralmente punindo-o com castigos e maus tratos,

culminando, em alguns casos com a morte, como no caso de Jerônimo.

No exemplar da Voz do Escravo que denuncia o assassinato de Jerônimo, Bernardo Taveira Junior

publicou uma crônica intitulada Sonhos de um escravo. Neste texto, Bernardo apresenta a história de um

escravo que dentro da senzala, acordava de um sonho e contava aos demais cativos:

[...] Ainda há pouco vi um anjo. Atrás dele vinha um cativo como qualquer de nós com os pulsos algemados e os pés acorrentados. O anjo fez adiantar o escravo para o meu lado, e com um instrumento que trazia numa das mãos começou por partir as algemas e as correntes ao cativo. A proporção que os ferros caiam por terra despedaçados, vi desenhar-se aos poucos, uma figura de mulher [...] Quando ele não sentir mais o duro e gélido contato dos ferros que o prendiam, aquela figura de mulher veio colocar-se a direita do anjo [...] Quem é esse anjo? Quem é essa formosa mulher? O que significa tudo quanto estou vendo? Era o que eu perguntava a mim mesmo dominado por uma comoção tão forte, que quase não me deixava respirar. Súbito, ouvi uma voz. Dizia assim: animo, filhos da desgraça! [...] Venho hoje visitar-vos para prenunciar-vos a doce liberdade de que vos hão despojado os déspotas da terra! [...] Olha para este – e apontou-me o cativo a quem o anjo havia quebrado os ferros – é assim que ficareis todos livres39.

Esta crônica relaciona-se com o caso do escravo Jerônimo se a considerarmos uma metáfora.

O anjo quebra as correntes que prendiam Jerônimo e através de sua morte, ele obteve a sua tão

sonhada liberdade. Os escravos que morrem, “deixam para sempre a terra da escravidão, veem-se

                                                                                                                         38 DIÁRIO DE PELOTAS, 12/05/1870. 39A VOZ DO ESCRAVO, 03/04/1881.  

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para sempre livres da tirania dos homens, suas almas voam à suspirada. Chamam, lá, onde não há

opressores nem oprimidos”40. Acrescenta-se ainda, quantos crimes não foram cometidos pelos

escravocratas no Brasil? Quantos ficaram imunes?

Ah! Se possuíssemos o dom de evocar os mortos e de fazê-los falar, nós contaríamos aqui a história de muito cativo assassinado nos golpes do azorrague, de muitos cativos enterrados no seio das matas espessas, no fundo dos valos, no leito dos rios, e nas profundezas dos abismos. Coitados! Arrojou os a impunidade do crime no seio da morte! Acabaram, sem que no extremo alento mão amiga lhe fechasse os olhos, sem as doces palavras da caridade, sem os consolos da religião41.

A partir desta passagem podemos questionar quantos escravos se feriram por intermédio dos

excessos de violência? Quantos escravos morreram por ordens de seus senhores? Quantos buscaram

o suicídio como meio de escapar da escravidão? Todavia, apenas em 1881, com a morte de

Jerônimo que a causa em prol da liberdade dos escravos tomou amplamente as colunas de jornais.

Ademais, destaca-se a importância da denúncia de um caso de excesso de violência para aumentar a

comoção pela causa abolicionista.

Bernardo Taveira Junior, em um folhetim intitulado Oferecido ao remorso vivo: sessão

extraordinária no Palácio de Plutão42, escrevendo sobre o julgamento dos envolvidos na morte do

escravo Jerônimo. Contudo, este julgamento tem como um dos acusados o jornalista Antônio

Joaquim Dias devido a forma que defendeu os mandantes do assassinato e pelas mentiras contadas

aos leitores do seu periódico. Além disso, o julgamento proposto pelo escritor, tem como os únicos

indiciados pelo crime são Paulino, Antonio e o capataz Manoel, os três escravos envolvidos, para o

autor não foram os responsáveis pelo assassinato, diferentemente do julgamento oficial.

Bernardo começa o folhetim dizendo que cinco anos após o assassinato do escravo, o

chamaram para comparecer na sessão dos espiritistas no palácio de Plutão, objetivando indagar

sobre o destino da alma de Jerônimo e de seus algozes. As sombras desses algozes e seus defensores

que foram desaparecendo dentre os vivos neste espaço de cinco anos, vão comparecer diante deste

gravíssimo Tribunal, para que vós, Srs. Juízes, deis, como sempre a sua sabia sentença43.

                                                                                                                         40TAVEIRA JUNIOR apud DIÁRIO DE PELOTAS, 12/05/1870.  41 DIÁRIO DE PELOTAS, 13/05/1870. 42  Para o artigo foi utilizado o folhetim manuscrito. 43 Manuscrito de Bernardo Taveira Junior, p. 4

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No banco dos réus encontram-se: Paulino Teixeira da Costa Leite, Antonio Teixeira da

Costa Leite, o carrasco Maneca – O nome do capataz era Manoel, mas Bernardo o coloca como

Maneca –. Bernardo Taveira Junior apresenta-os aos leitores: Paulino Leite é retratado como

alguém que no final do julgamento perceberia que o dinheiro compra tudo na terra dos mortais, mas

ali não tinha valor nenhum. Já Antonio Leite mandou, com consentimento de seu irmão, arrancar a

pele de Jerônimo para fazer um capacho. E, por fim, Maneca é apresentado como uma pessoa livre

que nunca deveria se prender a cruel e horrível execução ordenada por seus patrões.

O interrogatório é principiado por Paulino. Questionado sobre o porquê Antonio havia se

queixado de Jerônimo e o motivo que o levou a querer arrancar a pele e fazer de capacho, o réu

nada respondeu, apenas gaguejou. Antonio é questionado porque ordenou que maltratassem

Jerônimo, o que ele fez para sofrer tamanha tortura e porque o viu agonizar. O réu ajoelha-se e nada

responde apenas ruge em desespero. O interrogador afirma que este era o som do desespero e que

ele pagará pelo crime que cometeu. O último a ser interrogado, Maneca, é questionado sobre o

porquê ele chamou três escravos para castigar Jerônimo e ele ficou apenas observado, como

cúmplice do crime. Maneca não respondeu, apenas olhou para os irmãos Leite. O interrogador

afirma que através desse olhar ele percebeu a consciência que o capataz detinha. Por fim, é

chamado para o interrogatório o Mondongueiro44:

Tu que pela tua vileza eras corrido de toda a sociedade honesta, que punhas em almoeda o teu pasquim para servir de instrumento ao desaforo, tu a quem os mortais acusarão de passador de moeda falsa, tu, enfim, que foste o Mondongueiro, responde a isto: Que razão tiveste para renderes o teu mercantil aos assassinos do escavo Jerônimo? Para advogares uma causa amaldiçoada de todos os homens de boa consciência?45 Após a acusação, Antônio Joaquim Dias respondeu que tinha fome de ouro, ajoelhou-se e

pediu perdão, pois tinha medo dos Infernos. Em seguida, o interrogatório foi seguido pela acusação

aos legistas que realizaram o corpo e delito, questionando o porquê falsamente foi declarado que

Jerônimo havia morrido de perionite. Por fim, questionou o porquê o Vigário havia associado o seu

nome ao dos assassinos, escutou e baixou o rosto. O silêncio não importa numa defesa; é antes uma

condenação46.

                                                                                                                         44 Mondongueiro era o “apelido” que o jornalista Antônio Joaquim Dias recebeu dos editores da folha ilustrada o Cabrion. 45 Manuscrito de Bernardo Taveira Junior, p. 9 46 Manuscrito de Bernardo Taveira Junior, p. 09  

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Em seguida, Plutão levantou-se e deu fim ao interrogatório dos réus e fez duas perguntas ao

júri: está provado que Paulino, Antonio e Maneca Capataz são os assassinos de Jerônimo? Está

provado que o Mondongueiro e os outros dois empenharam-se para proteger os criminosos e

iludirem as autoridades da Terra? As duas perguntas são respondidas com sim e todos foram

condenados a pagarem pelo crime no Tártaro47. Confirmo a sentença que condena os réus presentes

aos horrores e eternos suplícios do Tártaro48.

Após participar do Supremo Tribunal dos Espiritistas, Bernardo Taveira Junior relata que

por fim passou pelos Campos Elíseos49, local onde as almas desfrutam de felicidade e paz. Neste

lugar, Bernardo encontrou Jerônimo: Cheio de intenso jubilo abraçou-me e disse-me que já cinco anos se tinham passado, desde que ali a achava no gozo de sua plácida bem aventurança. Quando comuniquei-lhe da parte de quem vinha e o fim da minha missão, ele abraçou-se [...] e disse-me: Levai os meus votos de gratidão as autoridades de Pelotas, ao ilustrado jovem Dr. Promotor Público, ao honesto Juiz Municipal, as testemunhas que depuseram contra os meus algozes, a toda a imprensa honrada – os quais todos, por sua energia, honra e integridade, tornaram-se dignos dos maiores louvores e galardões50 Bernardo Taveira Junior conclui o folhetim afirmando que a justiça havia sido feita e que ele

havia cumprido a sua missão junto ao Supremo Tribunal dos Espiritistas.

Considerações finais

Por intermédio de intensos debates na imprensa, os abolicionistas denunciaram, criticaram e

lutaram a favor do negro escravizado, apresentando ao leitor os entraves políticos e sociais que

estavam envolvidos os pelotenses. Bernardo Taveira Junior apresentou o cotidiano do sistema

escravista pelotense e os indivíduos que compunham este sistema através de folhetins e crônicas.

A morte do escravo Jerônimo, foi um marco na história da luta abolicionista na cidade,

intensificando o debate em torno deste paradigma político, econômico e cultural. Através do folhetim

que julga o assassinato de Jerônimo, Bernardo Taveira Junior conseguiu escrever e relatar o ocorrido com o

escravo apontando os charqueadores e o capataz como os verdadeiros culpados do assassinato e não os

                                                                                                                         47 Significativo a inferno. 48 Ibidem, p. 12. 49 Significativo a paraíso. 50 Ibidem, p. 14  

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escravos como concluiu o inquérito em 1881. O folhetim apresenta-se como uma forma de fazer justiça com

Jerônimo, com os verdadeiros culpados e com a população pelotense que clamavam por justiça.

Fontes primárias

1) Arquivo Municipal de Porto Alegre:

A Voz do escravo, Pelotas/RS, 1881

2) Bibliotheca Pública Pelotense:

Cabrion, Pelotas/RS, 1881.

Diário de Pelotas, Pelotas/RS, 1881.

Fundo: Alberto Coelho da Cunha. Série: Série: Geral. ACC – 004. Tabela com a soma dos 1°, 2° e 3° distrito de Pelotas – 1872

Fundo: Bernardo Taveira Junior. Série: Recortes de Jornais. BTJ - 005

Fundo: Bernardo Taveira Junior. Série: Manuscritos. BTJ – 008

3) Biblioteca Rio Grandense:

Arcádia, Rio Grande e Pelotas, 1867.

Bibliografia

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BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad, 2010.

BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. Literatura e crítica na imprensa do Rio Grande do Sul 1868 a 1880. Porto Alegre: Escola Superior São Lourenço de Brindes, 1982.

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LONER, Beatriz Ana. Negros: organização e luta em Pelotas. História em revista. Pelotas: UFPel, v.5, dezembro de 1999, p. 07-27. __________________. Abolicionismo e imprensa em Pelotas. Anais do II Congresso Internacional de Estudos Históricos: Imprensa, história, literatura e informação. Rio Grande: Ed. da FURG, 2007, p. 57-64. __________________. Abolição. In: GILL, Lorena; LONER, Beatriz Ana; MAGALHÃES, Mario Osório (org.). Dicionário de história de Pelotas. Pelotas: Ed. da UFPel, 2010, p. 07-09. MAESTRI, Mario. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1993. RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Bernardo Taveira Junior. Revista Província de São Pedro. Ed. Livraria do globo, n. 06, 1946, p. 78-94.