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Ana Raquel Gonalves Moniz
A Recusa de Aplicao de Regulamentos pela Administrao com Fundamento em Invalidade
Dissertao de Doutoramento em Cincias Jurdico-Polticas
Faculdade de Direito Universidade de Coimbra
Janeiro 2011
Ana Raquel Gonalves Moniz
A Recusa de Aplicao de Regulamentos
pela Administrao com Fundamento em Invalidade
(Contributo para a Teoria dos Regulamentos)
Dissertao de Doutoramento em Cincias Jurdico-Polticas, elaborada sob a orientao do Senhor Professor Doutor Jos Carlos Vieira de Andrade, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Faculdade de Direito
Universidade de Coimbra
Janeiro 2011
Um Amigo
Esta noite deitei-me triste.
Abri um livro, passei uma folha, outra folha.
Quando cheguei ao fim tinha o corao cheio de folhas e de flores
Matilde Rosa Arajo, O Cantar da Tila
ndice
Introduo .................................................................................................................................................... 5
Parte I
O sentido actual do exerccio do poder regulamentar
1. A Administrao, o direito e o interesse pblico: notas sobre o regulamento no contexto da actual compreenso do Direito Administrativo e da aco administrativa ........................................... 16
2. O recentramento do princpio da legalidade enquanto fundamento do poder regulamentar e o fenmeno da deslegalizao ................................................................................................................. 32
2.1. O princpio da legalidade enquanto fundamento do poder regulamentar: generalidades ........... 33
2.2. O princpio da precedncia de lei ............................................................................................... 41
2.3. O princpio da reserva de lei ...................................................................................................... 51
2.4. O princpio da preeminncia da lei ............................................................................................ 53
2.5. O fenmeno da deslegalizao ................................................................................................... 57
3. As finalidades prosseguidas na atribuio do poder regulamentar: as funes do regulamento ........ 79
3.1. Funo de execuo da lei ......................................................................................................... 81
3.2. A autonomizao de uma funo de interpretao? ................................................................... 88
3.3. Funo de dinamizao legislativa............................................................................................. 93
3.4. Funo de dinamizao da ordem jurdica ................................................................................. 95
3.4.1. Fundamentao e caracterizao ........................................................................................ 97
3.4.2. Limites; em especial, o princpio da reserva de lei ........................................................... 115
3.4.3. Garantias .......................................................................................................................... 131
3.4.3.1. Garantias procedimentais ......................................................................................... 131
3.4.3.2. Garantias processuais ............................................................................................... 157
4. Os limites ao poder regulamentar: uma introduo ao problema dos parmetros de vinculao do regulamento ................................................................................................................................... 168
5. A fora jurdica do regulamento: o regulamento como forma de autovinculao administrativa ... 173
5.1. O relevo da distino entre regulamentos externos e regulamentos internos: o princpio da inderrogabilidade singular .............................................................................................................. 174
5.2. Fora jurdica vinculativa: heterovinculao e autovinculao ................................................ 182
5.3. Autovinculao administrativa atravs de regulamentos ......................................................... 187
Parte II
A recusa de aplicao de regulamentos
1. Autovinculao e recusa de aplicao ............................................................................................. 200
2. A delineao do problema da recusa de aplicao de regulamentos pela Administrao ................ 205
2.1. Recusa de aplicao de normas regulamentares ...................................................................... 205
ndice ________________________________________________________________________________________
850
2.2. Os contornos da figura da recusa de aplicao ........................................................................ 211
2.2.1. A vigncia formal da norma no ordenamento jurdico ..................................................... 211
2.2.1.1. Recusa de aplicao, revogao, modificao, declarao de ilegalidade e suspenso administrativas ...................................................................................................................... 211
2.2.1.2. Recusa de aplicao e caducidade ............................................................................ 231
2.2.1.3. Recusa de aplicao e cumprimento de sentenas declarativas da inconstitucionalidade e da ilegalidade com fora obrigatria geral ...................................... 237
2.2.2. A recusa de aplicao como deciso da Administrao no contexto da realizao administrativa do direito ............................................................................................................ 245
2.2.2.1. Recusa de aplicao e obrigatoriedade das decises judiciais .................................. 246
2.2.2.2. Recusa de aplicao, dispensa e iseno .................................................................. 249
2.2.3. A inadequao prtico-normativa da norma para assimilar o caso concreto.................... 254
2.2.3.1. Recusa de aplicao e interpretao ......................................................................... 254
2.2.3.2. Recusa de aplicao e preferncia aplicativa ........................................................... 275
2.2.3.3. Recusa de aplicao e relevncia do resultado da deciso ....................................... 309
2.3. Recusa de aplicao com fundamento em invalidade, direito de exame (Prfungsrecht) e competncia de rejeio (Verwerfungskompetenz) ................................................................. 320 2.4. Contributos proporcionados pela soluo de problemas prximos .......................................... 330
2.4.1. A recusa de aplicao pelas autoridades nacionais de normas de direito secundrio da Unio Europeia com fundamento na contrariedade com normas de direito originrio da Unio Europeia .......................................................................................................................... 330
2.4.2. A recusa de aplicao de leis inconstitucionais pela Administrao................................ 334
2.4.3. A recusa de aplicao de regulamentos invlidos pelos tribunais .................................... 352
Parte III A invalidade do regulamento como fundamento da recusa de aplicao
1. Fundamentos de recusa de aplicao e limites jurdicos do poder regulamentar ............................ 372
2. Validade e parmetros de vinculao do regulamento .................................................................... 373
2.1. A vinculao do regulamento aos princpios normativos ........................................................ 375
2.2. A vinculao do regulamento Constituio .......................................................................... 383
2.2.1. O bloco da constitucionalidade: significado e funes ................................................ 384
2.2.2. Em especial, a vinculao administrativa aos direitos, liberdades e garantias ................. 388
2.2.3. A vinculao directa Constituio e o problema da autonomia da inconstitucionalidade dos regulamentos ....................................................................................................................... 404
2.3. A vinculao do regulamento ao direito internacional e ao direito da Unio Europeia ........... 418
2.3.1. Regulamento e direito internacional ................................................................................ 419
2.3.2. Regulamento e direito da Unio Europeia ....................................................................... 431
2.4. A vinculao do regulamento lei........................................................................................... 439
2.5. A vinculao do regulamento a outros regulamentos .............................................................. 442
2.5.1. As relaes inter-regulamentares ..................................................................................... 443
ndice ________________________________________________________________________________________
851
2.5.2. O problema da incompatibilidade entre regulamentos ..................................................... 467
2.6. A vinculao do regulamento a outras formas de aco administrativa................................... 469
2.6.1. A vinculao do regulamento ao contrato administrativo ................................................ 469
2.6.1.1. Contratos de delegao do poder regulamentar ........................................................ 472
2.6.1.2. Contratos sobre o exerccio do poder regulamentar ................................................. 474
2.6.2. A vinculao do regulamento ao acto administrativo ...................................................... 496
3. A invalidade do regulamento ........................................................................................................... 501
3.1. Invalidade, violao dos parmetros de vinculao e momentos estruturais do regulamento . 502
3.2. Invalidade e irregularidade do regulamento ............................................................................. 509
3.3. Invalidade e inexistncia do regulamento ................................................................................ 513
3.4. Invalidade do regulamento e respectivas consequncias jurdicas ........................................... 517
3.4.1. A anulabilidade como regra no Direito Administrativo e o dogma da nulidade das normas ...................................................................................................................................... 518
3.4.2. Os regimes delineados no direito positivado .................................................................... 530
3.4.2.1. O regime da invalidade do regulamento por violao da Constituio .................... 530
3.4.2.2. O regime da invalidade do regulamento por violao de outros parmetros de vinculao.............................................................................................................................. 533
3.4.3. Nulidade, anulabilidade ou invalidade atpica? ................................................................ 541
Parte IV O regime da recusa de aplicao de regulamentos pela Administrao com fundamento em invalidade
1. Premissas do problema .................................................................................................................... 552
1.1. Uma compreenso no absoluta do princpio da inderrogabilidade singular ........................... 552
1.2. A pluridimensionalidade da funo administrativa e a realizao administrativa do direito no caso concreto................................................................................................................................... 553
1.3. O decisor pensante, a autonomia de deciso e a interveno da tica na aco administrativa.................................................................................................................................. 558
1.4. A existncia de um conflito real entre normas, gerador da invalidade da norma regulamentar561
2. Condies de exerccio da recusa de aplicao de regulamentos com fundamento em invalidade ............................................................................................................................................ 563
2.1. Condies objectivas: a ponderao entre valores ................................................................... 563
2.1.1. Princpio da justia ........................................................................................................... 565
2.1.2. Princpio da juridicidade .................................................................................................. 572
2.1.2.1. Aplicabilidade directa e vinculao administrativa pelos direitos, liberdades e garantias ................................................................................................................................ 573
2.1.2.2. Unidade do sistema jurdico, coerncia do ordenamento jurdico administrativo e auto-controlo da juridicidade pela Administrao ................................................................. 583
2.1.2.3. Princpios da igualdade, da segurana jurdica, da tutela da confiana e da boa f .. 593
2.1.3. Eficincia ......................................................................................................................... 617
2.1.4. Natureza e consequncia jurdica do vcio ....................................................................... 623
ndice ________________________________________________________________________________________
852
2.1.5. Urgncia e estado de necessidade .................................................................................... 627
2.1.6. Proposta de soluo: proporcionalidade e concordncia prtica ...................................... 639
2.2. Condies subjectivas: organizao administrativa, tipologia e competncia do rgo decisor............................................................................................................................................. 654
2.2.1. Autoria e competncia para a declarao de ilegalidade .................................................. 656
2.2.2. Competncia decisria suprema ....................................................................................... 660
2.2.3. Hierarquia e dever de obedincia ..................................................................................... 662
2.2.4. Superintendncia e tutela ................................................................................................. 680
2.2.5. Autonomia ....................................................................................................................... 685
2.2.6. Independncia .................................................................................................................. 710
2.2.7. Exerccio de competncias parajurisdicionais .................................................................. 724
2.2.8. Exerccio de poderes pblicos por entidades privadas ..................................................... 733
3. Consequncias jurdicas da recusa de aplicao de regulamentos com fundamento em invalidade 748
3.1. Na perspectiva da norma cuja aplicao foi recusada .............................................................. 748
3.2. Na perspectiva da deciso do caso concreto ............................................................................ 751
4. Patologias ........................................................................................................................................ 766
4.1. A recusa ilegal de aplicao de regulamentos com fundamento em invalidade ...................... 767
4.2. A aplicao ilegal de regulamentos invlidos: a existncia de um dever de recusa de aplicao ......................................................................................................................................... 772
5. Justicializao: o controlo jurisdicional da (recusa de) aplicao de regulamentos pela Administrao ..................................................................................................................................... 786
5.1. Causa de pedir ......................................................................................................................... 786
5.2. Poderes de cognio do juiz..................................................................................................... 788
5.3. Contedo e efeitos das sentenas ............................................................................................. 792
Consideraes finais ................................................................................................................................. 799
Resumo Abstract .................................................................................................................................... 803
Bibliografia Citada.................................................................................................................................... 807
Resumo Abstract
A presente dissertao tem por objecto o problema da recusa de aplicao de
regulamentos pela Administrao com fundamento em invalidade. A complexidade da
questo debatida exige, porm, uma reflexo mais profunda sobre o sentido do exerccio do
poder regulamentar, que no desconsidera os recentes fenmenos da pluralizao
organizatria no interior da Administrao e da proliferao dos vrios centros normativos,
aspectos que implicam um aumento exponencial dos regulamentos administrativos.
Assim, na Parte I, procuram delinear-se os traos da localizao e das funes
desempenhadas pelos regulamentos no sistema jurdico, bem como aferir da fora jurdica
que os h-de caracterizar. Destas consideraes decorre que o regulamento assume uma
fora jurdica autovinculativa, que tem uma correspondncia no tradicional princpio da
inderrogabilidade singular.
partindo desta ideia de autovinculao que a Parte II se vai debruar sobre a figura
da recusa de aplicao. A delimitao desta ltima na medida em que implica o
afastamento pela Administrao (por um rgo administrativo), num caso concreto, de um
regulamento (ou norma regulamentar) que no foi formalmente retirado(a) do ordenamento
jurdico exige o confronto com noes paralelas, de molde a permitir a sua correcta
compreenso. Para o mesmo efeito concorre a anlise das questes suscitadas por
problemas prximos do analisado, em particular, a recusa de aplicao pelas autoridades
nacionais de normas de direito secundrio da Unio Europeia com fundamento na
contrariedade com normas de direito originrio da Unio Europeia, a recusa de aplicao de
leis inconstitucionais pela Administrao e a recusa de aplicao de regulamentos invlidos
pelos tribunais.
Considerando que o objecto problemtico da dissertao reside na recusa de
aplicao de regulamentos com fundamento em invalidade, a Parte III versa precisamente
sobre a invalidade do regulamento administrativo: trata-se de aferir quais os parmetros de
vinculao a que este ltimo se encontra adstrito (princpios normativos, Constituio,
direito da Unio Europeia, direito internacional, lei, outros regulamentos e outras formas de
aco administrativa), bem como de determinar quais as consequncias jurdicas
emergentes da respectiva violao.
A Parte IV incide especificamente sobre o regime jurdico da recusa de aplicao de
regulamentos pela Administrao com fundamento em invalidade. Havendo concludo pela
Resumo Abstract ________________________________________________________________________________________
804
vigncia de uma concepo no absoluta do princpio da inderrogabilidade singular, mas
sem prescindir das exigncias da fora jurdica autovinculativa do regulamento
administrativo, conclui-se que o exerccio da competncia administrativa de recusa de
aplicao se apresenta limitado pela imprescindibilidade do preenchimento de um conjunto
de condies objectivas e subjectivas. Daqui resulta que ao decisor imposta a realizao
de complexos juzos atinentes no apenas avaliao da validade das normas
regulamentares prima facie aplicveis aos casos concretos, mas tambm verificao, in
concreto, das mencionadas condies. As dificuldades inerentes a estes juzos no
permitem escamotear a possibilidade da existncia de situaes patolgicas como sucede
com a recusa ilegal de aplicao de um regulamento (vlido ou invlido) ou com a
aplicao ilegal de um regulamento invlido impondo a necessidade da respectiva
fiscalizao jurisdicional.
This essay aims to approach the problem of the decline or reject of enforcement of
regulations considered void by administrative authorities. This difficult question needs a
point of view on the regulatory power, in a context of standard and regulation pluralism
and of public powers proliferation. These are, in fact, the reasons which explain the
increase of statutory instruments in the present legal systems.
On Part I the essential topics about the functions and the place of regulations
among other sources of law are drawn. Furthermore, it is discussed the special legal
strength of regulations: if this is traditionally explained by the so-called princpio da
inderrogabilidade singular (which means that no administrative authority is authorised to
derogate a regulation in a single case), we appeal also to the concept of self-binding force.
Part II reflects upon the idea of the decline of enforcement (or reject of
enforcement), understood as the non-application of a formally in force regulation by an
administrative authority in a single case. The correct meaning of the figure needs a
comparison with other notions, as well as with similar problems, such as the decline of
enforcement by national authorities of acts of the EU Institutions on the grounds of their
invalidity, due to the incompatibility with EU Treaties, the decline of enforcement of
unconstitutional laws by administrative authorities and the decline of enforcement of
regulations by courts.
Resumo Abstract ________________________________________________________________________________________
805
In regard that the thesis object relies on the reject of regulations considered void,
Part III refers to the invalidity of regulations. This subject implies the analysis of the
binding parameters of regulations (normative principles, Constitution, EU law,
international law, legislative acts, other regulations and other forms of administrative
action) and the assessment of the consequences of their infringement.
Part IV reveals the legal framework of the administrative power to refuse the
enforcement of regulations considered void. The non-absolute perspective of the so-called
princpio da inderrogabilidade singular is nevertheless accompanied by the self-binding
force of regulations. Both those ideas suggest that the power to decline enforcement exists
as an administrative competence, although it is limited and demands the accomplishment of
objective and subjective conditions. Behind those conditions stay fundamental
Administrative Law principles and/or rules on material and organizatory matters. This
perception entails that the judgement fulfilled by administrative authorities is complicated,
and engages not only the evaluation of the normative validity, but also the estimation of the
achievement of both objective and subjective conditions. Due to the difficulties of this
judgement it is highly probable that pathologic situations may emerge such as the illegal
refusal to enforcement of a (void or not void) regulation or the illegal application of a void
regulation , which imposes the inevitability of judicial review.
Introduo
[Ao jurista] no se lhe pede que deixe de ser jurista; apenas que, sendo-o, v acreditar que a sua misso mais ampla e digna que a de prestar homenagem passiva a tudo aquilo que se fornece como sendo direito.
Rogrio SOARES, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, p. 162
Afirmar que a actividade normativo-pblica se no reconduz exclusiva ou
predominantemente lei no constitui uma novidade no panorama do direito pblico
actual, onde se deve reconhecer um papel determinante aos regulamentos administrativos.
Muito distantes estamos da concepo liberal-positivista do princpio da separao de
poderes, quando postulava que o poder normativo (o nico poder de criao do direito) se
encontrava conferido ao legislador, corporizado no Parlamento, enquanto rgo de deciso
por excelncia, que, nessa medida, exprimia os seus comandos de forma geral e abstracta
pensamento para o qual, as normas emitidas no seio da Administrao (precipuamente
vocacionadas para a disciplina da respectiva organizao interna ou das relaes com os
seus funcionrios) no consubstanciavam o exerccio de um poder normativo jurdico, mas
constituam uma simples consequncia do funcionamento do poder executivo, ao qual
estava necessariamente vedada qualquer vertente criadora de direito, porquanto a funo
administrativa se reconduzia apenas ao agere em concreto de decises legislativamente j
adoptadas1. Pelo contrrio, uma vez aceite que o princpio da separao de poderes, na
acepo enunciada, no poderia ser levado s ltimas consequncias, compreendeu-se que
o poder executivo teria de exercer tambm uma funo normativa2.
1 Efectuando tambm a contraposio entre decidir e agir no confronto entre os poderes legislativo e
executivo, v. Rogrio SOARES, Princpio da Legalidade e Administrao Constitutiva, in: Boletim da Faculdade de Direito, vol. LVII, 1981, p. 172. Nesta medida, e estabelecendo uma ruptura decisiva com a sobrevivncia de qualquer poder assimilvel ao poder legislativo rgio, o artigo 6. da Constituio francesa de 1791 estabelecia que o poder executivo no pode fazer qualquer lei, ainda que provisria, mas somente proclamaes conformes com as leis, para as regulamentar ou executar. Da que os regulamentos assumissem natureza interna e estivessem fora do direito cf., por todos, Op. cit., pp. 173 e ss.. Tratava-se, alis, de uma tentao de negar a Histria, visto que o poder regulamentar j existia muito antes de constituir objecto de qualquer construo terica v. DOUENCE, Recherches sur le Pouvoir Rglementaire de lAdministration, LGDJ, Paris, 1968, pp. 7 e ss..
2 Colocando neste ponto a tnica do fundamento histrico do poder regulamentar, cf. Afonso QUEIR, Teoria dos Regulamentos, in: Estudos de Direito Pblico, vol. II, tomo I, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra 2000, p. 235; na senda deste Autor, cf. tambm Paulo OTERO, Legalidade e
Introduo _______________________________________________________________________________________
6
A evoluo no sentido da crescente importncia dos regulamentos no contexto do
poder normativo pblico e da actividade administrativa carece de uma adequada
perspectivao que no prescinda de princpios ancilares do Estado constitucional. A teoria
geral do Direito Administrativo exige hoje uma reflexo renovada sobre os regulamentos,
que os perspective quer no horizonte do exerccio do poder normativo-pblico, quer no
plano da sua mobilizao enquanto critrios de deciso para a resoluo administrativa dos
casos concretos. Em causa est a inteleco de dois momentos fulcrais da vida do
regulamento administrativo: primo, o seu nascimento, radicado num acto de produo
normativa, consonante com a perspectivao do papel conformador das relaes sociais
cumprido pelo Estado e pela Administrao e com a concepo do direito enquanto meio
de direco dos processos sociais3 o que postula a necessidade de aquilatar o sentido da
funo que os regulamentos exercem nesse contexto, enquanto um dos instrumentos de
direco, sem descurar o facto de o actual Direito Administrativo abraar outros
instrumentos (para alm dos regulatrios) de interveno pblica, j que o Estado hodierno
no apenas aquele que comanda, mas tambm o que informa, influencia, incentiva ou
fomenta4; secundo, a actuao em concreto do programa normativo que o regulamento
consubstancia, o qual se materializa aquando da respectiva convocao para a soluo dos
casos integrados no seu mbito problemtico o que exige uma clara definio das opes
metodolgicas em sede da realizao administrativa do direito.
Ora, a percepo da dupla matriz que, do ponto de vista do agir administrativo,
reveste o regulamento permite compreender a dupla funo por ele desempenhada: por um
lado, quando perspectivado no plano normativo (i.e., como fonte do direito), constitui,
simultaneamente, um instrumento de autoprogramao da Administrao Pblica
(Selbstprogrammierung/Eigenprogrammierung der Verwaltung) e um padro de conduta
vinculador do agir dos cidados (Breitensteuerungsintrument)5; por outro lado, quando
Administrao Pblica O Sentido da Vinculao Administrativa Juridicidade, Almedina, Coimbra, 2003, p. 383.
3 Cf. MELERO ALONSO, Reglamentos y Disposiciones Administrativas: Anlisis Terico y Prctico, Lex Nova, 2005, p. 84; v. ainda SCHUPPERT, Verwaltungsrechtswissenschaft als Steuerungswissenschaft. Zur Steuerung des Verwaltungshandelns durch Verwaltungsrecht, in: HOFFMAN-RIEM/SCHMIDT-ASSMANN/SCHUPPERT (org.), Reform des Allgemeinen Verwaltungsrechts, Nomos, Baden-Baden, 1993, pp. 65 e ss., pp. 93 e ss..
4 SCHMIDT-ASSMANN, Cuestiones Fundamentales sobre la Reforma de la Teoria General del Derecho Administrativo. Necessidad de la Innovacin y Presupuestos Metodolgicos, in: J. BARNES (ed.), Innovacin y Reforma en el Derecho Administrativo, Global Law Press, Sevilla, 2006, pp. 40 e s..
5 Esta dupla funo identificada, desde SCHMIDT-ASSMANN, pela doutrina alem mais recente v., por exemplo, MSTL, Normative Handlungsformen, in: ERICHSEN/EHLERS (org.), Allgemeines
Introduo _______________________________________________________________________________________
7
concebido como forma de actuao administrativa6, representa um dos modos do agere da
Administrao, e, como tal, uma das formas de prossecuo dos interesses pblicos
colocados a seu cargo. Esta pluridimensionalidade assumida constituiu o mote para o
recentramento da temtica do regulamento administrativo, que abandona uma posio
discreta (rectius, diminuda), seja ao nvel das fontes de direito obliterado pela lei,
enquanto o acto criador do direito , seja ao nvel das formas de actuao administrativa
ofuscado pelo acto administrativo, enquanto conceito polarizador da dogmtica jus-
administrativa7. A adequada teorizao do regulamento administrativo pressupe, pois, um
equilbrio entre aquelas suas dimenses8. A temtica da recusa de aplicao de
regulamentos pela Administrao prope-se justamente dar voz a esta viso dual do
regulamento como fonte do direito e como forma de actuao administrativa que pauta o
respectivo regime jurdico; em especial, trata-se de averiguar em que medida a
Administrao se encontra vinculada aos regulamentos no seio dela elaborados, aquando
da sua tarefa de deciso de casos concretos, cujo mbito problemtico se revela assimilvel
pela norma regulamentar. Distinguir, para este efeito, entre exerccio do poder
regulamentar (corporizado na emisso de regulamentos administrativos) e resoluo
administrativa de casos concretos pela mediao de normas regulamentares no significa
seno contemplar duas faces de um problema mais amplo, que consiste na perspectivao
do sentido do exerccio do poder regulamentar. A problemtica da recusa de aplicao de
regulamentos pela Administrao permitir, pois, reflectir sobre a necessria articulao
entre a intensio dos regulamentos administrativos na complexa teia de normas
Verwaltungsrecht, 13. ed., 2006, p. 548; WOLFF/BACHOF/STOBER, Verwaltungsrecht, vol. I, 11. ed, Verlag C. H. Beck, Mnchen, 1999, p. 351. Cf. SCHMIDT-ASSMANN, Das Allgemeine Verwaltungsrecht als Ordnungsidee, 2. ed., Springer, Berlin/Heidelberg, 2006, pp. 325 e ss.. V. ainda, com outra formulao, GARRIDO FALLA/PALOMAR OLMEDA/LOSADA GONZLEZ, Tratado de Derecho Administrativo, vol. I, Tecnos, Madrid, 2010, p. 276.
6 Sobre as repercusses da identificao de uma determinada actuao com uma forma jurdico-administrativa, cf. HOFFMANN-RIEM, Rechtsformen, Handlungsformen, Bewirkungsformen, in: HOFFMANN-RIEM/SCHMIDT-ASSMANN/VOSSKUHLE, Grundlagen des Verwaltungsrechts, vol. II, Mnchen, 2008, p. 887.
7 No por acaso que SCHMIDT-ASSMANN (Das Allgemeine Verwaltungsrecht, cit., p. 324) coloca agora o regulamento no cume (Spitze) da doutrina das formas de aco administrativa.
8 Que a prpria autonomizao do conceito de regulamento administrativo no seio das formas de aco administrativa j permite atente-se, v. g., no que se passa no panorama jus-administrativo francs, em que, sob o super-conceito de acte administratif se designam actuaes individuais e concretas (correspondentes aos actos administrativos) e actuaes gerais e abstractas (equivalentes aos regulamentos). Cf., por todos, CHAPUS, Droit Administratif Gnral, 15. ed., tomo I, Montchrestien, Paris, 2001, pp. 491 e ss., esp.te pp. 524 e ss. (dentro dos acte administratifs distinguem-se os contratos e os actos unilaterais, abrangendo estes os actos no decisrios e decisrios, incluindo os ltimos os que revestem ou no natureza regulamentar).
Introduo _______________________________________________________________________________________
8
caracterizadora do sistema jurdico contemporneo, a vinculao administrativa pelas
normas infra-legislativas9 e a garantia dos particulares.
Ainda que a noo de regulamento se encontre mais ou menos estabilizada na
doutrina que o identifica como acto normativo, emanado por entidades administrativas
no exerccio da funo administrativa, com um valor infra-legal (fora de regulamento e,
por conseguinte uma fonte de direito derivada10), e dotado de eficcia vinculativa (no
necessariamente externa)11 , a verdade que a mesma se revela hoje susceptvel de
abarcar realidades com funes muito diversas. Com efeito, o papel assumido pelo
regulamento pressupe uma correcta compreenso das relaes que intercedem entre ele, a
lei e as demais fontes do ordenamento jurdico, num contexto de crise do princpio da
legalidade, tal-qualmente este foi compreendido durante o Estado liberal e mesmo aps a
superao deste. Alm disso, a ultrapassagem da concepo da lei como a fonte de
direito conduz a uma pluralidade normativa no seio do ordenamento jurdico, polarizada
em entidades igualmente diversas, dando azo a uma necessria tarefa de regulatory choice
(hoc sensu)12 ora, como veremos, quer em virtude da menor complexidade
procedimental, quer em razo da especializao tcnica dos seus autores, os regulamentos
9 Que no se reconduzem apenas aos regulamentos administrativos cf. os inmeros exemplos
aduzidos por AXER, Normsetzung der Exekutive in der Sozialversicherung, Mohr Siebeck, Tbingen, 2000, p. 22.
10 Caracterizando tambm o regulamento, em face do vnculo que o une lei, como uma fonte de direito derivada, cf. OSSENBHL, Rechtsquellen und Rechtsbindungen der Verwaltung, in: ERICHSEN/EHLERS (dir.), Allgemeines Verwaltungsrecht, 12. ed., Walter de Gruyter, Berlin, 2002, pp. 147 e s..
11 Sobre a noo de regulamento, v., na doutrina nacional, Afonso QUEIR, Teoria, cit., pp. 214 e ss.; Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10. ed. (7. reimp.), Almedina, Coimbra, 2001, p. 95; Srvulo CORREIA, Noes de Direito Administrativo, vol. I, Editora Danbio, Lisboa, 1982, p. 95; Vieira de ANDRADE, O Ordenamento Jurdico Administrativo Portugus, in: Contencioso Administrativo (Breve curso constitudo por lies proferidas na Universidade do Minho por iniciativa da Associao Jurdica de Braga), Livraria Cruz, Braga, 1986, p. 58; Jorge MIRANDA, Regulamento, in: Plis, vol. V, Verbo, Lisboa, 1987, p. 266; Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. II, reimp., Almedina, Coimbra, 2002, pp. 151 e s.; Coutinho de ABREU, Os Regulamentos Administrativos em Direito do Trabalho, in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queir, vol. I, Boletim da Faculdade de Direito, 1984, p. 39; J. Ferreira de ALMEIDA, Regulamento Administrativo, in: Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica, vol. VII, s.n., Lisboa, 1996, p. 194; M. Aroso de ALMEIDA, Os Regulamentos no Ordenamento Jurdico Portugus, in: Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, vol. I, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 503 e ss.. V. tambm o nosso trabalho A Titularidade do Poder Regulamentar no Direito Administrativo Portugus (Algumas Questes), in: Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXX, 2004, pp. 484 e ss..
12 Com a expresso regulatory choice no nos reportamos apenas escolha dos modos ou instrumentos de regulao (cf., v. g., SCHUPPERT, The Ensuring State, in: GIDDENS, The Progressive Manifesto, Polity Network, Cambridge, 2003, pp. 63 e ss.; EIFERT, Regulierungsstrategien, in: HOFFMANN-RIEM/SCHMIDT-ASSMANN/VOSSKUHLE, Grundlagen des Verwaltungsrechts, vol. I, Beck, Mnchen, 2006, pp. 1303 e ss.), mas opo entre os vrios nveis (normativos ou no) para a disciplina jurdica de determinada matria.
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9
levam vantagem significativa como instrumentos de normao no contexto actual13:
superior dignidade e mais-valia da lei parlamentar (fruto da legitimidade democrtica
directa) ope-se a capacidade de adaptao e a flexibilidade das normas infra-legislativas,
s quais acresce, no caso dos regulamentos autnomos, a circunstncia de se assumirem
como manifestaes de autonomia normativa dos entes de que emanam (e, por
conseguinte, do respectivo substrato subjectivo)14. Nesta medida, o regulamento constitui o
produto de um procedimento de normao (Rechtsetzung) contextualizado na complexa
dinmica de produo normativa jurdico-pblica caracterstica do sistema jurdico
actual15.
certo que as mutaes ocorridas no deixaram de possuir refraces
determinantes no plano das formas de aco administrativa e, em especial, dos
regulamentos, a ponto de alguma doutrina se referir transformao ou at ao
debilitamento do regulamento16, de que so expresso, v. g., a diluio de algumas notas
caractersticas dos regulamentos17, bem como a tecnicidade18 caracterstica de alguns deles
13 Nas expressivas palavras de Coutinho de ABREU (Sobre os Regulamentos Administrativos e o
Princpio da Legalidade, Almedina, Coimbra, 1987, p. 13), nos tempos que correm, contam-se por centenas os regulamentos administrativos que em cada ano engordam a nossa ordem jurdica. Na reproduo motorizada do direito administrativo, so eles, de longe, os ganhadores.
14 Assim, HOFFMANN-RIEM, Gesetz und Gesetzesvorbehalt im Umbruch, in: Archiv des ffentlichen Rechts, fasc. 1, vol. 130, Fevereiro 2005, p. 57.
15 Cf. tambm BOGDANDY, Gubernative Rechtsetzung, Mohr Siebeck, Tbingen, 2000, p. 55. 16 Cf., v. g., BASSOLS COMA, El Control de la Elaboracin de los Reglamentos: Nuevas
Perspectivas desde la Tcnica Normativa y de la Evaluacin de la Simplificacin y Calidad de las Normas, in: Revista Aragonesa de Administracin Pblica, n. 33, 2008, p. 53.
17 Se os binmios generalidade/abstraco e individualidade e concretude permitiriam uma distino clara entre regulamento e acto administrativo, a verdade que a identificao em certos actos destas caractersticas distintivas se revela problemtica no sendo de excluir, como sublinha a doutrina alem, a existncia de regulamentos-medida (Manahmeverordnungen ou, no caso dos regulamentos autnomos, Manahmesatzungen), i. e., semelhana do que sucede com os actos legislativos, actos individuais e concretos adoptados no final de um procedimento normativo-regulamentar. Sobre o conceito de regulamentos-medida, cf. AXER, Normsetzung..., cit., p. 40. Trata-se, alis, de problema que no privativo do direito alemo e que, no mbito deste, se afigura transversal a todos os ordenamentos jurdicos. Sobre as dificuldades suscitadas pelo conceito de norma, cf. AXER, Normsetzung, cit., pp. 35 e ss. (numa perspectiva jus-administrativa).
Alis, e agora na ptica inversa, a dificuldade em distinguir entre norma e acto aparece reconhecida pelo prprio legislador processual, quando admite a impugnao de actos administrativos, para l do prazo de trs meses, quando se demonstre que a tempestiva apresentao da petio no era exigvel ao cidado normalmente diligente por o atraso se revelar desculpvel, atendendo s dificuldades que, no caso concreto, se colocavam quanto sua qualificao como acto administrativo ou como norma [cf. artigo 58., n. 4, alnea b), do CPTA]. Em idntico sentido, a conjugao dos n.os 2 e 3 do artigo 89. do CPTA viabiliza que, no obstante a absolvio da instncia decorrente da inadequao do pedido formulado em processo impugnatrio, nomeadamente por erro na qualificao do acto jurdico impugnado como norma ou como acto administrativo, o autor apresente nova petio, considerando-se esta ltima apresentada na data em que o tinha sido a primeira, para efeitos de tempestividade.
18 E j no estamos aqui a reportar-nos s normas tcnicas, ainda que emanadas por entidades pblicas e dotadas de relevncia jurdica. Pense-se, v. g., nas normas tcnicas (NP) elaboradas pelo Instituto
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10
(maxime quando emanados por autoridades reguladoras independentes) ou o incremento
exponencial da actividade normativa da Administrao.
A prpria separao entre poltica e administrao, com repercusses ntidas no
horizonte da organizao administrativa, vai acabar por contender com a temtica do poder
regulamentar: a tendncia para a desgovernamentalizao conduz ao fenmeno da criao
de entidades administrativas independentes (em especial, as autoridades reguladoras), que
permitem no s libertar o Governo para a tomada de decises de natureza poltica
(decises governamentais), como tambm garantir o exerccio neutral e imune s presses
polticas da funo regulatria19; ora, daqui decorre a atribuio de amplos poderes
normativo-regulamentares (muitos deles de natureza independente) a entidades
administrativas desprovidas de legitimidade democrtica, criando como que um direito
paralelo concorrente, em muitas circunstncias, com a prpria legislao, assumindo-se,
como tal, numa autntica delegated legislation20. Alm disso, a complexidade inerente
rede ou teia regulamentar caracterstica do actual ordenamento jurdico administrativo que
Portugus da Qualidade, na qualidade de Organismo Nacional de Normalizao cf. artigo 7., n. 2, alnea c), do Decreto-Lei n. 140/2004, de 8 de Junho. V., a ttulo de exemplo, o elenco de normas aplicveis concepo, instalao e manuteno das balizas de futebol, de andebol, de hquei e de plo aqutico e dos equipamentos de basquetebol publicadas em anexo ao Decreto-Lei n. 100/2003, de 23 de Maio, e que, nos termos do artigo 2., dele fazem parte integrante.
O problema da vinculatividade ou da refraco jurdica das normas tcnicas vai para alm daquelas que sejam elaboradas pela Administrao e atinge as normas de natureza tcnica acolhidas pelas entidades administrativas ou pelo mundo jurdico, independentemente de as mesmas terem como suporte uma fonte de direito (cf., v. g., Freitas do AMARAL, Manual de Introduo ao Direito, vol. I, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 540 e ss.; Pedro GONALVES, Entidades Privadas com Poderes Pblicos, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 721 e ss.; Casalta NABAIS, Direito Fiscal, 6. ed., Almedina, Coimbra, 2010, p. 199, sobre as normas tcnicas da contabilidade; cf. tambm, em termos mais gerais, THIBIERGE, Au Cur de la Norme: Le Trac et la Mesure, in: Archives de Philosophie du Droit, vol. 51, 2008, p. 362). Eis o que sucede no mbito da avaliao do pressuposto da ilicitude nos termos do n. 1 do artigo 9. do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Pblicas (aprovado pela Lei n. 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n. 31/2008, de 17 de Julho): estando em causa uma operao material causadora de danos, a verificao daquele pressuposto passa justamente pela prova da violao das regras de ordem tcnica assim acontece, v. g., no mbito da responsabilidade mdica, em que assume importncia decisiva o respeito por regras tcnico-cientficas, pelo que a prova da ilicitude implicar a prova da violao das leges artis, atentos os conhecimentos existentes no momento da prtica do facto (sobre esta questo, v. o nosso trabalho Quando Caem em Desgraa os Discpulos de Hipcrates Algumas Questes Sobre Responsabilidade Civil Mdica da Administrao, in: Cadernos de Justia Administrativa, n. 50, Maro/Abril 2005, pp. 17 e s., embora a propsito do artigo 6. do j revogado Decreto-Lei n. 48051, de 21 de Novembro de 1967).
19 Sobre a desgovernamentalizao das administraes estaduais e a separao entre poltica e administrao, v. Pedro GONALVES, Direito Administrativo da Regulao, in: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, vol. II, FDUL/Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pp. 548 e s..
20 Neste sentido, v. POLITI, Regolamenti delle Autorit Amministrative Indipendenti, in: Enciclopedia Giuridica, Istituto della Enciclopedia Italiana Treccani, Roma, 2001, vol. XXVI, p. 6. Cf., entre ns, Pedro GONALVES, Direito, cit., p. 555. Aludindo concepo do regulamento como uma espcie de para-legislao, A. Salgado de MATOS, Princpio da Legalidade e Omisso Regulamentar, in: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, vol. I, FDUL/Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 197.
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11
justifica uma ateno especial ao problema da recusa de aplicao de regulamentos pela
Administrao: com efeito, longe vo os tempos em que esta questo revestia um interesse
menor, por coincidirem o rgo emissor e aplicador do regulamento21.
necessidade de uma tematizao renovada do poder regulamentar no alheia
uma certa concepo do Direito Administrativo como um direito perturbado no contexto
actual22. Sem ignorarmos as novidades introduzidas sobretudo a partir do ltimo quartel do
sculo XX, julgamos ainda fazer sentido uma reflexo a partir das formas clssicas do agir
administrativo e de uma concepo de Administrao que, apesar da diversidade de tarefas
que se lhe encontram cometidas, ainda constitui uma instncia de realizao do direito no
caso concreto, maxime atravs da prtica de actos administrativos. Sem que tal signifique
olvidar que, nos tempos hodiernos, a actividade da Administrao no passa, em exclusivo,
pela tarefa de aplicao do direito ao caso concreto.
Especial relevncia para a nossa perspectiva interessada assume a ideia da actual
pluridimensionalidade da funo administrativa, a qual no refractria identificao de
trs momentos fundamentais, com relevncias diferentes para a temtica que nos ocupa: o
momento poltico-administrativo, o momento da emisso normativa (Rechtsetzung) e o
momento da deciso administrativa (Rechtsanwendung)23. Se o primeiro respeita
definio das polticas a implementar pela Administrao (correspondendo a autnticas
decises de governo) apenas tocando a problemtica do poder regulamentar, na medida
em que contribua para a definio do seu alcance no contexto do actual Direito
Administrativo , a questo da recusa de aplicao de regulamentos pela Administrao
representa o ponto charneira entre os outros dois momentos. Estamos, pois, diante de uma
21 Era com este fundamento que, v. g., em 1968, OSSENBHL (Verwaltungsvorschriften und
Grundgesetz, Verlag Gehlen Bad Homburg v.d.H., Berlin/Zrich, 1968, p. 293, n. 44) entendia que o problema do reconhecimento da Verwerfungskompetenz relativamente a Verordungen no tinha importncia prtica, no se afigurando necessrio debat-lo. Mesmo nas circunstncias prefiguradas, importa sublinhar que a questo da recusa de aplicao de normas regulamentares pelos rgos decisores no se afigurava totalmente despicienda: o problema da rejeio de normas regulamentares pela Administrao colocava-se (e coloca-se) perante um caso concreto e, a menos que, antes da deciso, se adoptasse um regulamento com eficcia retroactiva que anulasse ou substitusse as disposies invlidas constantes do primeiro, tornava-se sempre premente saber se a situao em causa poderia ou no ser decidida com base na soluo prevista nas normas invlidas.
22 A levar muita doutrina a aludir existncia autnoma de um Novo Direito Administrativo com caractersticas prprias (assim, entre ns, Suzana Tavares da SILVA, Um Novo Direito Administrativo?, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2010), susceptvel de gerar a elaborao de manuais (cf., v. g., FRANCO, Manuale del Nuovo Diritto Amministrativo, IPSOA/Wolters Kluwer, Vicenza, 2007).
23 Debruando-se sobre trs momentos anlogos enquanto funes jurdicas, cf. VOGEL, Juristische Methodik, De Gruyter, Berlin/New York, 1998, pp. 171 e ss. (embora nem sempre em termos coincidentes com os do texto; especfico deste Autor o alinhamento do conceito de rechtliche Gestaltung, para se reportar actividade jurdica prospectiva, concretizada, designadamente, na elaborao de planos).
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12
consequncia quer da concepo dos regulamentos como formas, por excelncia, de auto-
programao da Administrao Pblica, quer da difcil tarefa de distino entre emisso
normativa e aplicao do direito24.
Assim, e como procuraremos defender, as realidades emergentes das tendncias de
evoluo recentes do Direito Administrativo revelam-se susceptveis de absoro mediante
uma renovada compreenso do regulamento administrativo (com implicaes essenciais no
plano das respectivas funes e fora jurdica) e do poder regulamentar, enquanto
prerrogativa de autoridade constitucional e/ou legislativamente concedida aos rgos da
Administrao para a emisso de normas dotadas de vinculatividade jurdica.
A temtica que nos propomos analisar mergulha fundo no Direito Administrativo e
exige ainda uma ateno a aspectos fundamentais da organizao administrativa, bem
como a perspectivao dos rgos administrativos como decisores, aos quais se encontra
cometida a tarefa de realizao administrativa do direito no caso concreto. Por um lado,
no pode ignorar que a questo da recusa de aplicao, na medida em que associada
deciso de casos concretos, transversal a todos os entes que integram a Administrao
Pblica, em sentido organizatrio, a incluindo no apenas as pessoas colectivas pblicas,
mas tambm as entidades privadas com poderes pblicos: embora susceptvel de respostas
diferenciadas, em funo da tipologia e das competncias conferidas a cada rgo, a
resposta interrogao sobre a possibilidade da recusa de aplicao exige uma
perspectivao integrada. Por outro lado, a acentuao da tarefa da realizao
administrativa do direito que a problemtica da recusa de aplicao traz subjacente
constitui uma nota no despicienda, porquanto representar o reconhecimento de uma
igualmente renovada compreenso das funes adstritas aos rgos da Administrao.
Efectivamente, admitir que estes possam fiscalizar a validade de normas regulamentares e
agir em conformidade com o juzo assim formulado afastando, na deciso do caso
concreto, a norma viciada implica um novo entendimento acerca das competncias
cognitivas e decisrias que se lhes encontram atribudas, muito afastado da concepo
weberiana do burocrata ou de uma compreenso positivista do exerccio da funo
administrativa.
24 A miscigenao entre formas jurdicas e a complexidade das funes colocadas a cargo da Administrao (tal-qualmente o demonstra a configurao actual dos regulamentos, como teremos oportunidade de assinalar) levam a doutrina a aludir s formas de aco (Handlungsformen), como alternativa referncia exclusiva s formas jurdicas (Rechtsformen). Cf. HILL, Normsetzung und Andere Formen Exekutivischer Selbstprogrammierung, in: HOFFMANN-RIEM/SCHMIDT-ASSMANN/VOSSKUHLE, Grundlagen des Verwaltungsrechts, vol. I, Beck, Mnchen, 2006, p. 961; HOFFMANN-RIEM, Rechtsformen, cit., pp. 891 e ss..
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13
Eis que chegmos ao mago da nossa questo: quid iuris, se um rgo
administrativo tiver de decidir um caso concreto, cuja relevncia problemtica assimilada
por uma norma regulamentar invlida?
Apesar do interesse, simultaneamente dogmtico e prtico, que esta interrogao
suscita, a mesma no tem merecido grande ateno no direito portugus25. Esta indiferena
fruto da ausncia de uma teorizao do problema das invalidades normativas (sobretudo
da invalidade do regulamento), bem como da negligncia a que se encontra votada a
compreenso da tarefa decisria de casos concretos como realizao administrativa do
direito encontra uma repercusso na actual praxis jus-administrativa, onde os rgos
ainda hesitam em controlar a juridicidade dos regulamentos administrativos, apegados que
esto formulao tradicional (sem dvida, tranquilizadoramente anestesiante) do
princpio da inderrogabilidade singular. Todavia, nas rarssimas vezes em que a
jurisprudncia tem sido instada a pronunciar-se sobre o problema26 chegou a revelar
25 Ao contrrio do que sucede noutros ordenamentos paradigmaticamente, no direito alemo:
embora estudado ex professo desde meados do sculo XX (data de 1976 o estudo de PIETZCKER relativo recusa de aplicao de normas infra-legais pela Administrao Zur Inzidentverwerfung Untergesetzlicher Rechtsnormen durch die Vollziehende Gewalt, in: Archiv des ffentlichen Rechts, vol. 101., 1976, pp. 374 e ss.), o problema da recusa de aplicao foi relanado na Alemanha a partir do incio dos anos 80, em resultado das decises judiciais que negavam a possibilidade de a Administrao urbanstica recusar a aplicao de um plano, com fundamento na respectiva nulidade: ao invs de ignorar o plano, a Administrao deveria revogar (nos termos gerais aplicveis revogao de actos administrativos) o acto que o tinha aprovado, de forma a que aquele deixasse, apenas nessa altura, de ter eficcia ou, em alternativa, desencadear o processo de fiscalizao de normas previsto no 47 da Verwaltungsgerichtsordnung (VwGO). Cf. VOLHARD, Amtspflichten bei Nichtigen Bebauungsplne Zur Verwerfungskompetenz der Verwaltung, in: Neue Zeitschrift fr Verwaltungsrecht, n. 2, ano 5., Fevereiro 1986, p. 106). V. tambm PIETZCKER, Inzidentverwerfung Rechtswidriger Untergeseztlicher Rechtsnormen durch die Verwaltung, in: Deutsches Verwaltungsblatt, n. 16, ano 101., Agosto 1986, pp. 806 e ss..
26 Cf. os Acrdos do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 19.01.2005, e de 02.03.2006, ambos referentes ao P. 51/03, que aludem, lateralmente, questo, quando defendem que a ilegalidade de normas de natureza regulamentar aplicadas por actos administrativos pode ser invocada pelos meios prprios para impugnao de actos administrativos, quer de natureza administrativa, quer de natureza contenciosa. Em qualquer dos Acrdos, tratava-se de determinar se se poderia, em sede de recurso hierrquico, invocar, como fundamento da invalidade do acto administrativo, a circunstncia de este se ter reconduzido aplicao de regulamentos ilegais: se a autoridade recorrida argumentava que, no havendo os interessados impugnado as normas administrativas em causa (despachos normativos) atravs do meio processual adequado, as mesmas se deveriam considerar firmes ou consolidadas, no tendo aqueles legitimidade impugnatria, o STA veio sublinhar que os actos normativos (in casu, provenientes da Administrao central) so impugnveis a todo o tempo (impedindo qualquer consolidao na ordem jurdica, diversamente do que sucede quanto ao acto administrativo) e que a circunstncia de o interessado poder solicitar ao tribunal a declarao de ilegalidade de normas no impede que possa invocar essa ilegalidade, incidentalmente, no mbito quer da impugnao contenciosa, quer da impugnao administrativa do acto administrativo de aplicao acabando por concluir que os interessados tinham o direito de discutir, no referido recurso hierrquico, a legalidade dos despachos normativos e tendo pretendido faz-lo, no se admite que, com base na sua hipottica legalidade firme ou consolidada, se lhes recuse legitimidade para impugnarem os actos que foram objecto do recurso hierrquico.
Mais recentemente, o STA analisou, ex professo, a recusa de aplicao de regulamentos ilegais, mas nem sempre adoptou uma posio uniforme: no Acrdo de 02.04.2008, P. 1418/03, o Tribunal pronunciou-
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14
alguma abertura (essencialmente alicerada no princpio da juridicidade e na vinculao
administrativa ao direito, ou, mais amplamente, no princpio do Estado de direito), mas
sem abrir as asas em voos mais altos (na medida em que, quando a admite, circunscreve a
possibilidade de recusa de aplicao aos autores do regulamento ou aos rgos com
competncia revogatria).
Num regresso bipolaridade da temtica que principimos por sublinhar, temos que
a dilucidao do problema da recusa de aplicao de regulamentos pela Administrao
com fundamento em invalidade postula uma anlise que vive de uma alternncia entre a
concepo do regulamento como forma de actuao administrativa (pondo a tnica no
momento da sua emisso) e como critrio de deciso (sublinhando o momento da
respectiva aplicao). Deste modo, e adoptando uma perspectiva propositadamente
cruzada, as Partes I e III incidem sobre o regulamento no momento do seu nascimento,
enquanto as Partes II e IV atendem ao regulamento quando este convocado para a
deciso dos casos concretos. Se, na Parte I, procuraremos identificar o sentido do exerccio
do poder regulamentar no actual cenrio jurdico-dogmtico (tomando-o como ponto de
partida para a recompreenso do lugar do regulamento no esquema normativo e no
contexto das formas de aco administrativa), na Parte III, avaliaremos a questo da
validade e invalidade do regulamento, sob a ptica dos respectivos parmetros de
vinculao. Por sua vez, a Parte II dedica-se a delinear o conceito de recusa de aplicao,
por confronto com outras figuras, enquanto a Parte IV respeita ao cerne do tema, versando
sobre os condicionalismos a que uma (eventual) recusa de aplicao de regulamentos
invlidos se encontra adstrita, bem como sobre as consequncias jurdicas associadas ao
exerccio (legtimo ou no) daquele poder.
Que o recentramento da teoria dos regulamentos administrativos passa por uma
adequada compreenso das suas funes e da respectiva articulao com outros nveis de
normatividade e que a respectiva mobilizao pelos rgos administrativos para a deciso
dos casos concretos exige uma postura metodolgica activa eis o que procuraremos
sustentar nas pginas seguintes.
se no sentido da admissibilidade, embora condicionada verificao de um conjunto de pressupostos; j no Acrdo de 25.03.2009, P. 55/09, o STA propugnou uma posio oposta (embora estranhamente remetendo, na sua fundamentao, para o citado Acrdo de 02.04.2008), defendendo, com base no princpio da inderrogabilidade singular (concebido como corolrio do princpio da legalidade), que a desaplicao da norma regulamentar invlida no possa ser efectuada sem a sua revogao.
Parte I
O Sentido Actual do Exerccio do Poder Regulamentar
A Administrao abandona o estatuto de Gata Borralheira, com a tarefa servil de ser apenas simplesmente executiva, isto , de pr em concreto as palavras da lei, para se tornar no poder que d sentido nsia do Estado de construir e manter uma sociedade mais justa e equilibrada.
Rogrio SOARES, Administrao Pblica e Controlo Judicial, p.
65
O problema da recusa de aplicao de regulamentos pela Administrao postula,
antes de mais, uma panormica sobre as suas coordenadas constitutivas. Com efeito, a
prpria noo de regulamento e, sobretudo, as funes que este desempenha no
ordenamento jurdico surgem-nos hoje rodeadas de algumas perplexidades. Impe-se, por
isso, uma reflexo sobre a interveno neste plano do princpio da legalidade, enquanto
fundamento do poder regulamentar. A acentuada perspectivao do regulamento sob duas
lupas como fonte de direito e enquanto forma de actuao administrativa de
autoridade (um instrumento de direco geral Breitensteuerungsinstrument) permite,
desde j, sedimentar um ponto de partida para a compreenso desta figura: o de que o
regulamento constitui uma forma de agir da Administrao que no s obriga os seus
destinatrios, como tambm vincula a futura actuao administrativa.
No contexto do problema que nos ocupa (a perspectivao das possibilidades de
no aplicao de regulamentos invlidos pela Administrao), uma abordagem relevncia
e ao sentido actual do exerccio do poder regulamentar destina-se, pois, a identificar o
porqu e para qu da emisso de regulamentos pelos rgos administrativos, com um
objectivo teleologicamente orientado1: a ponderao no sentido da recusa de aplicao das
normas regulamentares dever ocorrer sempre que, no caso concreto, os factores
(normativos e intencionais) determinantes da emisso de regulamentos no se verifiquem;
por outras palavras, se a inteno que justifica a existncia do regulamento no se realiza
1 Est aqui pressuposta uma dicotomia entre poder regulamentar e regulamento administrativo,
tal-qualmente surge esboada por SANDULLI (LAttivit Normativa della Pubblica Amministrazione, Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, Napoli, 1970, p. 10, n. 13), a propsito da diferenciao entre poder e acto: a referncia ao poder dirige-se dinmica de produo de um determinado acto e a aluso ao acto reporta-se esttica, correspondendo ao fruto do exerccio do poder.
Parte I O Sentido Actual do Exerccio do Poder Regulamentar
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16
naquela situao (por motivos teleolgicos ou normativos, incluindo, nestes ltimos,
razes de invalidade), coloca-se o problema de saber se o rgo administrativo deve ou no
solucionar o caso mediante a mobilizao de determinada norma regulamentar. S aps a
inteleco das coordenadas actuais que pautam a morfologia dos regulamentos,
contextualizadas no cenrio de uma evoluo do princpio da legalidade para o princpio da
juridicidade e de uma tendncia para a desregulao, se poder percepcionar qual a medida
de vinculao dos rgos administrativos s normas emitidas no seio da Administrao.
1. A Administrao, o direito e o interesse pblico: notas sobre o regulamento
no contexto da actual compreenso do Direito Administrativo e da aco
administrativa
Afirmar que a Administrao Pblica vem sofrendo profundas alteraes, abrindo-
se para cima ( internacionalizao e europeizao) e para os lados ( Sociedade)2 exprime
um topos amide revisitado. No pretendemos, pois, neste ponto, traar uma histria do
Direito Administrativo ou caracterizar, com exaustividade, o actual estado deste ramo
jurdico-dogmtico. Trata-se, pelo contrrio, de esboar, em pinceladas rpidas e esparsas,
os principais aspectos que marcam os actuais ordenamentos jurdico-administrativos e que,
simultaneamente, apresentam refraces imprescindveis ao enquadramento da temtica do
poder regulamentar, em geral, e da recusa de aplicao de regulamentos com fundamento
em invalidade, em especial aspectos esses que, aqui e alm, sero retomados e
aprofundados a propsito dos especficos problemas que os solicitem.
Sempre se poder afirmar que a evoluo do Direito Administrativo surge marcada
pelo equilbrio entre os dois plos fundamentais que orientam o agir da Administrao
Pblica: o interesse pblico e o direito plos estes que no representam caminhos
alternativos, mas, pelo contrrio, correm paralelamente. Atingir um salutar equilbrio entre
direito e interesse pblico, ou, por outras palavras, lograr a prossecuo do interesse
pblico dentro das margens oferecidas pelo direito constitui o objectivo ltimo da actuao
administrativa. A adequada compreenso do sentido dos termos da vinculao simultnea
ao direito e ao interesse pblico permitir lanar luz sobre alguns problemas relativos
teoria dos regulamentos. Alis, a satisfao dos interesses pblicos intendida pelos rgos
administrativos necessariamente filtrada pelo legislador, que, ao definir (no mnimo) o
2 SCHMIDT-ASSMANN, Cuestiones, cit., p. 34.
Parte I O Sentido Actual do Exerccio do Poder Regulamentar
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17
fim e a competncia do agir da Administrao, fixa a pliade de interesses pblicos a
prosseguir permitindo sublinhar a relevncia da intrnseca e conatural articulao entre
juridicidade e interesse pblico, quer na actividade vinculada, quer no exerccio do poder
discricionrio3, sem prejuzo da acentuao das notas da progressiva perda de capacidade
da lei para governar o interesse pblico e da tendencial substituio de uma legislao
imperativa por uma legislao optativa4.
I. Se todo o Direito tem a ver com interesse, correspondendo este ltimo a uma
categoria fundamental do pensamento jurdico5, afigura-se inegvel o relevo que um
determinado tipo de interesse6 o interesse pblico assume no Direito Administrativo. O
interesse pblico constitui uma manifestao (directa ou indirecta) das necessidades
fundamentais de uma comunidade poltica7, representando o motor dirigente da aco
administrativa, sendo inclusivamente concebido como elemento de legitimao do Estado,
na medida em que, como fim a atingir, vincula todos os poderes pblicos8. O interesse
pblico (concebido como categoria) no oblitera, porm, a presena real de vrios
interesses pblicos, num contexto de politesmo de valores9, dando azo concepo da
Administrao Pblica tambm como administrao dos interesses10.
3 Cf. tambm Orlando de CARVALHO, Contrato Administrativo e Acto Jurdico Pblico, Coimbra
Editora, Coimbra, 1953, pp. 40 e ss., que diferencia o Direito Administrativo de outros ramos do Direito, pela preocupao com a satisfao ptima das necessidades, satisfao essa sempre mediada por um juzo de valor legal princpio evidente, ainda quando a satisfao do interesse pblico exige o recurso ao direito privado.
4 SALA, Accordi sul Contenuto Discrezionale del Provvedimento e Tutela delle Situazioni Soggettive, in: Diritto Processuale Amministrativo, fasc. 2, ano X, Junho 1992, p. 229.
5 SCHMIDT-ASSMANN, Zur Reform des Allgemeinen Verwaltungsrechts Reformbedarf und Reformanstze, in: HOFFMANN-RIEM/SCHMIDT-ASSMANN/SCHUPPERT (org.), Reform des Allgemeinen Verwaltungsrechts, Nomos, Baden-Baden, 1993, p. 37.
6 Relativamente aos tipos de interesse, cf. WOLFF/BACHOF/STOBER, Verwaltungsrecht, cit., p. 418; SCHMIDT-ASSMANN, Zur Reform, cit., pp. 37 e s..
7 Sobre esta noo de interesse pblico, v. Vieira de ANDRADE, Interesse Pblico, in: Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica, vol. V, s. n., Lisboa, 1993, p. 275.
8 V. MICHAEL, Rechtseztende Gewalt im Kooperienden Verfassungsstaat, Duncker & Humblot, Berlin, 2002, pp. 237 e ss., em parte na linha de HBERLE (ffentliches Interesse als Juristisches Problem, Athenum Verlag, Bad Homburg, 1970, pp. 46 e ss., que j entendia o Estado como o destinatrio da tarefa da prossecuo do bem comum). Tal no significa, porm, um total afastamento dos particulares da realizao do interesse pblico: tal suceder desde os casos paradigmticos de delegao de tarefas pblicas a privados (como, alis, j sublinhava Vieira de ANDRADE, Interesse, cit., p. 275) at ao reconhecimento de deveres fundamentais (assim, MICHAEL, Rechtsetzende Gewalt, cit., pp. 257 e ss.).
9 PORTALURI, Potere Amministrativo e Procedimenti Consensuali, Giuffr Editore, Milano, 1998, p. 1.
10 COGNETTI, La Tutela delle Situazioni Soggettive tra Procedimento e Processo, Edizione Scientifiche Italiane, Napoli, 1987, p. 64; PORTALURI, Potere, cit., p. 3 (compreende-se que, neste contexto, o Autor sublinhe que o interesse pblico acaba por perder a sua natureza de sntese da relao entre
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Sem prejuzo de outras expresses do relevo do interesse pblico na vida da
Administrao, afigura-se-nos inegvel o contributo que este oferece para alicerar a
autonomia da funo administrativa no quadro das demais funes estaduais. No se
tratando de defender um entendimento que sucumba tentao, ocorrida na passagem do
Estado-burgus para o Estado-administrativo, de pensar uma vontade administrativa livre
nos limites da lei11, a verdade que a acentuao da realizao do interesse pblico como
tarefa da Administrao concorre para a superao da ideia segundo a qual a funo
administrativa se reconduz mera execuo (no criativa) da lei. aco administrativa
preside, pois, um princpio de optimidade (que implica a adopo da melhor soluo para o
interesse pblico)12 ou um princpio de satisfao ptima das necessidades, enquanto
corolrio da estrutura normativa da Administrao13.
No se ignora como, alis, tambm j se sublinhou que existe uma confluncia
entre interesse pblico e direito, porquanto a finalidade ltima da aco administrativa
consiste na satisfao do interesse pblico no quadro do direito. Revela-se sintomtica, a
este propsito, a consagrao de um princpio jurdico-constitucional de prossecuo do
interesse pblico, tal como resulta do n. 1 do artigo 266. da Constituio14. No mesmo
sentido milita ainda a circunstncia de o interesse pblico ser definido a nvel superior,
atravs de fontes jurdicas [que, neste sentido, detm uma prerrogativa de definio
(Definitionsprrogative)15], quer esteja em causa o interesse pblico primrio (identificado
com o bem comum ou o fim primordial do Estado, o qual, contrariamente tradio
liberal, no assptico, mas juridicamente determinado a partir dos interesses parciais
concretos16), quer se trate de interesses pblicos secundrios (instrumentais do primeiro e
a Administrao e um bem da vida, para passar a responder relao de compatibilidade ou conflitualidade entre os vrios interesses, pblicos e privados Op. cit., p. 197).
11 Cf., assinalando precisamente este aspecto, Rogrio SOARES, Interesse Pblico, Legalidade e Mrito, Atlntida, Coimbra, 1955, p. 109. V. ainda HBERLE, ffentliches Interesse, cit., p. 48.
12 Aludindo ao princpio da optimidade da aco administrativa, cf. Rogrio SOARES, Interesse, cit., p. 142.
13 Nestes termos, v. Orlando de CARVALHO, Contrato, cit., p. 42; v. tambm Rogrio SOARES, Interesse, cit., p. 147.
14 WOLFF/BACHOF/STOBER (Verwaltungsrecht, cit., pp. 416 e ss.) concebem o interesse pblico como princpio de Direito Administrativo ou como princpio estrutural (no escrito, no caso alemo) de todas as formas de agir administrativo.
15 WOLFF/BACHOF/STOBER, Verwaltungsrecht, cit., p. 423. 16 Neste sentido, Vieira de ANDRADE, Grupos de Interesse, Pluralismo e Unidade Poltica, Separata
do vol. XX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1977, pp. 27 e ss., esp.te pp. 31 e s.. A emergncia da sensibilizao como nota caracterstica do Direito Administrativo (que descreve a articulao entre as directrizes jurdicas e a tutela de interesses privados) constitui uma consequncia da perspectivao do princpio do Estado de direito luz da vinculao da Administrao pelos direitos fundamentais cf. SCHMIDT-ASSMANN, Zur Reform, cit., p. 20.
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concretizados pelo legislador)17. Todavia, se a funo administrativa se reconduz
prossecuo de fins heteronomamente definidos, tal no exclui que caiba igualmente
Administrao uma tarefa de co-determinao, em certos termos, do interesse pblico que
lhe cabe realizar, a residindo a rea tpica da funo administrativa. Alis, a exclusividade
administrativa da apreciao do mrito no constitui seno uma consequncia da
autonomia do interesse pblico, inclusive perante a sua juridificao.
Quando procuramos surpreender o relevo do interesse pblico na temtica do poder
regulamentar, encontramos refraces nos j assinalados momentos determinantes da vida
do regulamento: a emisso normativa e a mobilizao para a resoluo de casos concretos.
Quanto ao primeiro aspecto, deparamo-nos logo com a considerao (mais ou menos
evidente) de que, constituindo o regulamento uma forma de aco administrativa, servir
sempre, como tal, o interesse pblico determinante da atribuio do poder regulamentar. O
interesse pblico apresenta-se, assim, como critrio e parmetro da actividade
administrativa18 e, por conseguinte, tambm da emanao de regulamentos, que
manifestam uma expresso de um ponto de vista do bem comum e uma concretizao do
interesse pblico19. Trata-se de uma considerao especialmente valiosa nas reas de
discricionariedade regulamentar (cf., infra, 3.4.), em que o legislador confere ao rgo
administrativo um leque de opes, entre as quais aquele dever plasmar normativamente a
que melhor satisfaz o interesse pblico, o que equivale a atribuir Administrao o poder
de, atravs da emisso regulamentar, definir a hierarquia de meios dirigidos realizao do
fim pblico20. Por outro lado, e tendo em conta que, na maioria das vezes, o interesse
pblico que a Administrao intende prosseguir no se revela unitrio, os regulamentos
correspondem ao exerccio normativo do equilbrio de uma constelao de interesses
pblicos multifacetados eis o que sucede paradigmaticamente no caso dos planos
urbansticos.
17 Sobre a distino entre interesse pblico primrio e interesses pblicos secundrios, v. Rogrio
SOARES, Interesse, cit., pp. 101 e ss., 106 e ss., 149 e s.; e Direito Administrativo, polic., s.d., pp. 3 e ss.; Vieira de ANDRADE, Interesse, cit., p. 277.
18 Cf. tambm Vieira de ANDRADE, Interesse, cit., p. 280. 19 V. HBERLE, ffentliches Interesse, cit., p. 400; trata-se de um aspecto que atinge uma especial
nfase no caso dos planos Op. cit., pp. 402 e ss.. 20 Cf., a propsito da competncia para a definio da escala de meios hierarquizados para a
satisfao de fins objectivamente estabelecidos, Rogrio SOARES, Interesse, cit., p. 146. A este propsito referia-se HBERLE (ffentliches Interesse, cit., pp. 71 e s., 74, 79) a uma forma de delegao da competncia do bem comum (Delegation Gemeinwohlzustndigkeit).
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Importa, contudo, acentuar que os interesses pblicos secundrios no tm de
corresponder sociedade poltica nacional, compreendida no seu todo, podendo respeitar
apenas a certos sectores da comunidade, territorial ou corporativamente delimitados. Ora,
pluralidade de interesses pblicos secundrios e necessidade de dar voz aos interesses
prprios ou especficos daquelas comunidades, polarizados em entidades administrativas
autnomas, subjaz o reconhecimento de autonomias normativas e, como tal, de
regulamentos autnomos um dos vectores determinantes da pulverizao regulamentar,
caracterstica do actual sistema jurdico, com influncia no alcance a conceder s funes
do regulamento.
Por ltimo, o princpio da prossecuo do interesse pblico e a posio que este
ocupa no Direito Administrativo implica que a Administrao no possa ficar indiferente
satisfao das necessidades queridas e previstas pela lei21. Esta concluso atrai um olhar
diferente sobre a existncia de um dever de regulamentar: sem prejuzo das consideraes
que teceremos ulteriormente (cf., infra, 3.1.), o incumprimento de um dever de emisso de
um regulamento no afecta apenas as relaes deste com a lei, mas consubstancia uma
transgresso do imperativo da realizao dos interesses pblicos que o legislador pretendia
ver realizados pela entidade pblica atravs da emisso de normas.
O ditame da satisfao do interesse pblico adquire uma projeco igualmente
relevante no momento da convocao do regulamento para a deciso do caso concreto. Em
primeiro lugar, o interesse pblico volve-se em fundamento da interpretao das normas22,
ancorando a vigncia de um princpio de interpretao em conformidade com o interesse
pblico. Em segundo lugar, e quando, de todo em todo, se revele invivel a
compatibilizao entre o respeito pelo interesse pblico subjacente norma e a deciso do
caso concreto pela mediao desta ltima, torna-se possvel equacionar o problema de uma
eventual recusa de aplicao da norma regulamentar (no apenas, como nas hipteses
sobre as quais especificamente nos debruaremos, com fundamento em invalidade, mas
tambm) nas situaes em que a mobilizao da mesma implicaria a adopo de uma
soluo contrria ao interesse pblico que aquela visava tutelar (cf., infra, Parte II,
2.2.3.3.).
21 Neste sentido, j Orlando de CARVALHO, Contrato, cit., p. 41. 22 Assim, Orlando de CARVALHO, Contrato, cit., p. 65; cf. tambm WOLFF/BACHOF/STOBER,
Verwaltungsrecht, cit., p. 417 (aludindo ao interesse pblico como princpio geral da aplicao, interpretao e ponderao do Direito Administrativo).
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II. Voltemo-nos agora para a outra margem do problema. A submisso dos poderes
pblicos lei e ao direito constitui o elemento fundamental do nascimento do prprio
Direito Administrativo. A centralidade assumida pela lei no dealbar do Direito
Administrativo resultava da funo que a mesma exercia como expresso da vontade
geral (tal como a definia o artigo 6. da Dclaration des Drois de lHomme et du
Citoyen23) e elemento de garantia dos (sbditos agora elevados categoria de) cidados
face aos abusos dos poderes pblicos, assumindo-se concomitantemente a funo
administrativa como a execuo dessa vontade geral24.
Se se no pode ignorar o papel fundamental da lei enquanto pressuposto e
fundamento da actividade administrativa e, nessa medida, salientar a importncia da
emergncia do princpio da legalidade enquanto primeira conquista do liberalismo25, j
no restam dvidas de que submisso do Estado ao direito possui um alcance muito mais
amplo. A estadualidade de direito (Rechtsstaatlichkeit), o princpio da juridicidade,
imprimem um novo alcance na compreenso da vinculao da Administrao ao direito, a
ponto de se poder afirmar que nos deparamos com uma estrutura de racionalidade prpria,
precipuamente orientada em torno da funo garantstica da lei e da proteco dos direitos
fundamentais, sem perder de vista a ineliminvel dimenso da separao de poderes,
enquanto forma racionalizada de organizao dos poderes pblicos26. Parafraseando Vieira
de Andrade27, dir-se-, pois, que o princpio da juridicidade representa e descreve de
modo mais exacto a ligao entre a Administrao e o Direito que o tradicional princpio
da legalidade28. Com Schmidt-Amann29, poderemos afirmar que o Direito
23 No que foi acompanhada, entre ns, pelo artigo 104. da Constituio de 1822, de acordo com o
qual Lei vontade dos cidados declarada pela unanimidade ou pluralidade dos votos de seus representantes juntos com Cortes, precedendo discusso pblica.
24 Assim j MONTESQUIEU, De LEsprit, cit., Livro XI, Captulo VI, 16.. 25 Cf. M. Galvo TELES, A Concentrao da Competncia para o Conhecimento Jurisdicional da
Inconstitucionalidade das Leis, in: O Direito, ano 103., 1971, p. 177. 26 Neste sentido, SCHMIDT-ASSMANN, Das Allgemeine Verwaltungsrecht..., cit., pp. 47, 80 e ss.. 27 Vieira de ANDRADE, O Dever da Fundamentao Expressa de Actos Administrativos, Separata do
vol. XXXVII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1992, p. 14. 28 E no se pense que esta mutao de paradigma assume uma importncia meramente terico-
dogmtica; pelo contrrio, ela contribui para a formulao de novos problemas (e para a procura de novas solues) no mbito do Direito Administrativo. Se a afirmao do princpio da juridicidade da Administrao constitui hoje um topos da teoria geral do Direito Administrativo (e, por esse motivo, a sua invocao no representa qualquer novidade), j a forma como compreendido pode revelar-se determinante na soluo de algumas questes prticas: atente-se, v. g., na questo (referida mais detidamente infra, Parte II, 2.4.2.) da recusa de aplicao de normas legais pelos rgos administrativos com fundamento na sua inconstitucionalidade. Reduzindo (em muito) a complexidade, dir-se- que uma concepo do princpio da juridicidade que aglutine quer o princpio da constitucionalidade, quer o princpio da legalidade stricto sensu
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Administrativo se pauta hoje pela trade constituda pelo princpio do Estado de direito,
pelo princpio democrtico e pela deciso constitucional no sentido de uma estadualidade
aberta (offene Staatlichkeit).
A acentuao do princpio da juridicidade deve, porm, percepcionar-se como
sublimao do princpio da legalidade administrativa adequadamente compreendido a
partir da superao da concepo positivista da identificao da lei com o direito , e no
como uma substituio da ideia de legalidade pela acentuao exclusiva de uma lgica de
resultado30. Como principimos por afirmar, interesse pblico e juridicidade no
constituem caminhos opostos, mas vias paralelas.
) Com especial nfase em matria de regulamentos, a aluso ao princpio da
juridicidade e estadualidade de direito tem como primeira projeco a ideia de afirmao
da funo administrativa face ao poder legislativo (e tambm ao poder jurisdicional). A
evoluo do sentido tradicional do princpio da legalidade para o princpio da juridicidade
no se confina concepo segundo a qual a Administrao no se encontra apenas
submetida lei, como a todo o direito, mas contende igualmente com a forma como, a
nvel interno, encarada a relao entre aquela e o legislador. Efectivamente, o princpio
da juricidade demonstra quo ultrapassada est qualquer concepo que pretenda reduzir a
funo administrativa a uma simples execuo da lei maneira da fascinante simplicidade
tpica do Estado liberal31, e, concomitantemente, circunscrever os regulamentos a normas
no jurdicas. A Administrao, no desempenho da sua ineliminvel tarefa de prossecuo
do interesse pblico, consubstancia uma funo estadual autnoma, no integralmente pr-
determinada pela lei. Nas expressivas palavras de Hans Peters32, a afirmao segundo a
qual a Administrao trabalha hoje em conformidade com a lei (gesetzmig) em
qualquer sentido amplo, que executa sempre apenas a lei e que para qualquer actividade
possui uma autorizao legal afigura-se () como uma auto-iluso por amor de uma
apontar para uma resposta positiva, ao passo que uma compreenso que isole e autonomize o princpio da legalidade pender para responder negativamente.
29 SCHMIDT-ASSMANN, Zur Reform, cit., p. 17. 30 Cf. Pedro GONALVES, Direito, cit., pp. 552 e s.. 31 Referindo-se simplicidade exercida pelo fascnio da trade de ideias tpicas do Estado liberal
(unidade da Administrao, formalidade das suas aces, aplicao do direito como mera execuo), cf. SCHMIDT-ASSMANN, Cuestiones, cit., p. 29.
32 Hans PETERS, Verwaltung ohne gesetzliche Ermchtigung?, in: Verfassungsrecht und Verfassungswirklichkeit Festschrift fr Hans Huber zum 60. Geburtstag, Verlag Stmpfli & Cie., Bern, 1961, pp. 217 e 220, respectivamente.
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opinio pr-concebida (Selbsttuschung einer vorgefassten Meinung zuliebe), repelindo a
actual configurao do Estado de direito qualquer concepo que admita a interveno
administrativa unicamente onde a lei formal necessita de execuo (stricto sensu).
impossvel conceber hoje a Administrao como estrita execuo da lei,
assistindo-se ao fim da domesticao parlamentar e jurisdicional da Administrao. A
actividade da Administrao orienta-se antes pelo binmio juridicidade/legitimao. A
categoria determinante consiste hoje na responsabilidade (Verantwortung, responsibility):
para alm de alicerar a autonomia da funo administrativa no quadro da repartio de
responsabilidades entre as vrias funes estaduais, pressusposta pelo princpio da diviso
de poderes33, o apelo responsabilidade no domnio em que nos movemos implica uma
considerao das exigncias colocadas Administrao no exerccio das suas tarefas
(aquilo pela qual ela responsvel e por cuja execuo responde34), para determinar qual o
sentido a conferir s respectivas formas de actuao, designadamente ao regulamento, bem
como para aquilatar em que medida podem os rgos administrativos assumi