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Linguagem & Ensino, Vol. 8, No. 2, 2005 (121-144) A semeadura da palavra: fragmentos de poemas campesinos (Sowing the word: fragments from campesino poems) Lucília Maria Sousa ROMÃO Universidade de São Paulo Soraya Maria Romano PACÍFICO Universidade de São Paulo ABSTRACT: In this paper we analyze poems written by individuals with low scholarship, that is, individuals who have learnt to read and write in farming settlements. Results show that, ins spite of their background, they produce texts that establish an inter-textual dialog with well-known texts; they denounce situations that are “out of order” and also, show resistance with respect to certain dominant class values. The analysis of these poems allows us to conclude that, in spite of their low scholarship, these individuals are in an author’s position and have a literacy degree compared to individuals of high scholarship. RESUMO: Neste artigo, analisamos poemas produzidos por sujeitos com baixo grau de escolaridade, a saber, sujei- tos que aprenderam a ler e a escrever fora do circuito da educação formal e, apesar disso, seus textos estabelecem um diálogo intertextual com textos consagrados; denun- ciam situações que estão “fora da ordem” e, também, mar- cam uma posição de resistência em relação a determinados

A semeadura da palavra: fragmentos de poemas campesinos

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Linguagem & Ensino, Vol. 8, No. 2, 2005 (121-144)

A semeadura da palavra: fragmentos depoemas campesinos

(Sowing the word: fragments from campesino poems)

Lucília Maria Sousa ROMÃOUniversidade de São Paulo

Soraya Maria Romano PACÍFICOUniversidade de São Paulo

ABSTRACT: In this paper we analyze poems written byindividuals with low scholarship, that is, individuals whohave learnt to read and write in farming settlements. Resultsshow that, ins spite of their background, they produce textsthat establish an inter-textual dialog with well-known texts;they denounce situations that are “out of order” and also,show resistance with respect to certain dominant classvalues. The analysis of these poems allows us to concludethat, in spite of their low scholarship, these individualsare in an author’s position and have a literacy degreecompared to individuals of high scholarship.

RESUMO: Neste artigo, analisamos poemas produzidospor sujeitos com baixo grau de escolaridade, a saber, sujei-tos que aprenderam a ler e a escrever fora do circuito daeducação formal e, apesar disso, seus textos estabelecemum diálogo intertextual com textos consagrados; denun-ciam situações que estão “fora da ordem” e, também, mar-cam uma posição de resistência em relação a determinados

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valores caros à classe dominante. A análise destes poemaspermite-nos dizer que, apesar da pouca escolaridade, estessujeitos ocupam a posição de autor e possuem um grau deletramento comparado ao de sujeitos que passaram anosna escola.

KEY-WORDS: literacy, authorship, ideology.

PALAVRAS-CHAVE: letramento, autoria, ideologia.

A TERRA FALADA E ESCRITA

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST) abre um horizonte novo na luta do campesinato brasileiro,territorializou-se pelos vários estados brasileiros como afirmaFernandes (1999); conseguiu veículos de comunicação impor-tantes e expressivos (revista, jornal, internet) e deu consistênciaao discurso de reivindicação e luta pela terra. Ao longo dos úl-timos quatro anos, temos nos envolvido com a tentativa decompreender a geografia, a história e o discurso do movimento,sendo assim, é importante definir os objetivos do MST. SegundoRomão (2002, p.179):

Com os objetivos de promover modificações estruturais nasociedade (direito à terra e garantia de saúde, educação,emprego e cidadania), o MST surgiu no início dos anos 80como o único movimento de massa, cujo discurso de lutapela terra se espacializou por todo país.

Além disso, estruturou um dos mais populares projetosde educação no campo, só para se ter uma idéia, até o final de2000, o movimento mantinha 1.800 escolas de Ensino Funda-

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mental em 23 estados brasileiros, envolvendo quase 4.000 edu-cadores diretamente e em torno de 160.000 crianças e adoles-centes. Por conta desse investimento, há um farto materialescrito (livros, fascículos, cadernos, jornais), cantado (cds) efalado (relatos orais), materialidade histórica e discursiva sobrena qual se apóia e se atualiza a memória do MST, com sentidosde luta, resistência e sobrevivência da cultura camponesa. Pre-tendemos aqui fazer uma reflexão sobre o discurso da oralidadee da escrita, além de interpretar poemas de dois camponeses,a saber, Patativa do Assaré e Luis Beltrame. O primeiro époeta cearense, representante da literatura de cordel, já o se-gundo, é um dos mais idosos militantes do Movimento, ambosnunca freqüentaram aulas de redação e a dita escola formal.

O PODER DA PALAVRA

Existe uma linha teórica que postula não existir autoriana língua oral. Dessa posição, privilegia-se a língua escritacomo único parâmetro para a legitimação da competência ecapacidade de organizar idéias. A alfabetização e o uso dapalavra escrita seriam o passaporte para o domínio do poderdizer pela via do registro, documento e todo tipo de materialimpresso, concretizando, assim, as habilidades de raciocínio,abstração, lógica, coerência e clareza do autor.

Restringindo-se a palavra escrita a um grupo de “eleitos”,os alfabetizados, constrói-se um imaginário, que autoriza politi-camente alguns homens a registrarem seus pensamentos eações, ao passo em que se interdita tal espaço a tantos outros,desqualificando a sua única ferramenta de registro: a oralidade.Esse parece ter sido o núcleo duro de um processo que remeteà Idade Média. Naquele período, a Igreja Católica elegia-se

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como porta-voz da vontade divina, reservando aos seus cuidadoso poder da escrita. Os livros sagrados, chaveados pelo clero,concentravam-se nas mãos dos sacerdotes, intransferíveis. AInquisição legitimava a queima e destruição de documentos, li-vros e vozes questionadoras ou desafiantes dos dogmas. Guar-dando para si o espaço de poder dizer e manuscritar, não épreciso destacar que o interesse político latejava nessa estraté-gia com nitidez. Gallo (1992, p.47) afirma que:

A escritura era, na Idade Média, a única escrita possível.Escritura e Escrita se identificavam. Desse modo, enquanto‘sagrada’, a Escritura era inquestionável e imutável, poisera tida como ‘palavra de Deus’. A Escrita (Letra) enquanto‘forma’ da palavra de Deus, também ela, nessas condições,produzia um efeito de sentido único e verdadeiro.

Olhando para o tema da escrita desse lugar, somos afeta-dos pela certeza de que o texto escrito, em quase todos os mo-mentos da história, procura manter a legitimação de uma classesobre outra ou de um grupo sobre outro. Tfouni (1997, p.11)garante que:

Costuma-se pensar que a escrita tem por finalidade difundiras idéias (...) No entanto, em muitos casos, ela funcionacom o objetivo inverso, qual seja: ocultar, para garantirpoder àqueles que a ela têm acesso.

Em outro trabalho, a mesma autora (1992, p.17) propõeque se pense a escrita e a sua relação com o poder instituídoda seguinte forma:

... a escrita pode muitas vezes representar uma ameaça dedestruição de um sistema político, principalmente em

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sociedade onde a desigualdade é grande, e onde uma classetenta impor seu juízo sobre outra (ou, ainda, onde um povo‘mais forte’ tenta subjugar outro, ‘mais fraco’) A dominaçãocultural e política faz-se em grande parte baseada na ‘força’,no ‘poder’ e na ‘autoridade’ da escrita.

Com tais pressupostos, fica fácil assegurar que a visãoteocêntrica secou até a última gota a perspectiva de acesso àescrita e manteve sob o signo do silêncio e do jugo da fé homenspor séculos a fio. No tocante à representação da oralidade,não se viu mudança nos momentos seguintes. Com o antropo-centrismo, a palavra foi impactada pelo peso da razão. Buscou-se a compreensão dos temas humanos, dando aos escritos umensaio de questionamento científico. Entretanto, o acesso àleitura ainda ficou restrito ao grupo dos alfabetizados. A burgue-sia detinha a escola em suas mãos. A centralização política dapalavra escrita só comprovava uma coisa: para a grande maioriada população restava a oralidade, tradição contada geraçãoapós geração. Essa pequena digressão histórica não tem a pre-tensão de esgotar o assunto, pelo contrário, é apenas um exem-plo que ilustra o imaginário e o caráter ideológico que revestemas noções de escrita e oralidade, noções tecidas há séculoscom distorções.

Colocamo-nos, então, no lugar que questiona e subvertetal visão. Por que tomar apenas a escrita como registro a serlido? Como entender a oralidade? Em que medida a alfabeti-zação, o domínio da escrita devem ser mais relevantes do quea fala? Essas perguntas remetem a um comprometimento coma justiça social e com o encurtamento das desigualdades naépoca em que os sentidos da exclusão social e miséria já apare-cem bastante banalizados no país. Resgatar a oralidade, repen-sar o domínio da escrita e questionar o poder da palavra sãotarefas a serem compreendidas dentro de uma moldura, cujo

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quadro precisa necessariamente pincelar as cores da funçãosocial da universidade no país.

É importante que se tome o uso oral e escrito da línguacomo constituintes e integrantes das práticas letradas. Seriaenganoso conceber que há características e categorias rígidasde classificação para a oralidade e a escrita, funcionando sem-pre do mesmo modo. No caso da primeira, sempre expressan-do ambigüidade e emoção e, no segundo caso, indicando raciocí-nio abstrato e formal. Tal visão se expressa nos trabalhos deGreenfield (1972) e Hildyard & Olson (1978) e, em linhas gerais,caberia na síntese de Tfouni (1997, p.34):

Acreditam alguns autores que a aquisição generalizada daescrita traz consigo conseqüências de uma ordem tal queisso modifica de maneira radical as modalidades de comuni-cação dessa sociedade. Passariam a existir usos orais eusos letrados da língua, e estes seriam separados, isolados,caracterizando, assim, a grande divisa.

Favorável à eliminação do conceito de grande divisa,existe uma corrente teórica que postula a integração entre osdois usos da língua, indicando que existe sempre uma afetaçãodo escrito sobre as práticas orais, criando uma via de mão du-pla. Tfouni (op.cit., p.50) afirma que: “o discurso oral, nassociedades letradas, pode estar interpenetrado por carac-terísticas do discurso escrito.”

Também nessa direção caminha Kleiman (1995, p.28)ao postular que:

... nem toda a escrita é formal e planejada, nem toda oralidadeé informal e sem planejamento (...) alguns autores quetrabalham com a interface entre a oralidade e a escrita (...)têm proposto um contínuo, em vez de pólos extremos dediferenciação entre as duas modalidades.

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Com essa dimensão teórica, alargam-se os conceitosde letramento e autoria. Já que o uso social da escrita é dissemi-nado nas sociedades modernas, o indivíduo vive exposto a umaavalanche de portadores de texto, desde outdoors e cartazes,passando por nomes de ruas e pessoas, marcas de produtos,bulas de remédios até chegar aos documentos que norteiam avida humana do nascimento à morte. Do berço à sepultura, aletra inscreve marcas nos alfabetizados ou não. Envolvidosdos pés à cabeça pela tatuagem da letra impressa, o homemdo século XXI não pode ser denominado iletrado pela constân-cia com que convive cercado por palavras escritas e pela fre-qüência com que é estimulado socialmente a decifrá-las.

Posta-se, então, a seguinte pergunta: se todo brasileiroé letrado, o que diferencia os adultos alfabetizados daquelesque não sabem ler e escrever? É possível entender melhor aquestão se tivermos em mente o conceito de graus de letramen-to ou continuum. Segundo Tfouni (1994, p.56):

Em um mesmo momento histórico, não se pode afirmar quetodas as pessoas estejam no mesmo nível de desenvolvi-mento (qualquer que seja o aspecto de desenvolvimentoque se deseje olhar) (...) assim, existem tarefas de leitura eescrita (ou eventos de letramento), que permeiam a vidacotidiana e que se impõem em maior ou menor grau a todosos indivíduos que compõem essa sociedade, sejam elesalfabetizados ou não.

Chartier (2001, p.84-85) caminha na mesma direção quea autora e marca que existe uma seqüência, uma cadeia decontinuidade dentro da cultura do escrito:

E a cultura do escrito vai desde o livro ou o jornal impressoaté a mais ordinária, a mais cotidiana das produções escritas,

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as notas feitas em um caderno, as cartas enviadas, o escritopara si mesmo, etc. Parece-me que na cultura do escrito háum continuum desde as práticas da escrita ordinária até aprática da escrita literária. Finalmente, devemos considerara cultura do escrito em sua totalidade e analisar problemascomo o controle sobre a escrita, a diferença entre as duasaprendizagens, os valores envolvidos em cada uma dasformas de comunicação, etc.

Pensar os conceitos de “mais letrado e menos letrado”nos endereça a situações cotidianas de tal ordem a comprovara hipótese de que não é a alfabetização (ou a escrita) o grandetermômetro do letramento. Um profundo conhecedor das artesplásticas, muito letrado na decifração das formas gráficas edas cores pode apresentar-se pouco letrado diante de uma hortaorgânica. Outro exemplo pode ser visto na situação a seguir:um universitário, que se pretende conhecedor de diversas teori-as obre evolução, pesquisador com grau representativo de letra-mento, perde-se diante do enigmático motor do carro, que re-pentinamente encrenca. Se considerado como altamente letra-do em certa esfera de atuação e conhecimento, há que classifi-cá-lo como analfabeto diante da bomba d´água estourada. Omecânico, pouco escolarizado e “analfabeto”, lê indícios domotor e do imenso corpo do carro, processa uma interpretaçãológica e resolve o problema, pois é altamente letrado para leras peças e o problema do carro.

Esse conceito de graus de letramento nos parece ser achave interpretativa de um processo que temos observado naatuação profissional. Há anos, ministrando aulas de redação,interpretação e produção textual em boas escolas do EnsinoMédio da rede particular, tendo contato com alunos advindosde classes abastadas, expostos a um cotidiano de fartura, possi-bilidades culturais e alto padrão de consumo. Sempre surpreen-

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deu-nos (e ainda me causa espanto) que vários deles não conse-guem articular minimamente suas idéias e posições teóricas.Há vestígios de uma fragmentação tão grande, que nem mesmoos postulados da Lingüística, fundados nas noções de coerênciae coesão textuais, dão conta de sinalizar explicações convin-centes. Embora alfabetizados, convivendo com uma cargahorária de mais de seis horas de aula diariamente, freqüentandocursos extras de diversas ordens, grande parte desses alunosmostram um grau de letramento bastante diminuto.

Além dos alunos do ensino médio, podemos observar,também, que alunos de Psicologia de uma universidade particu-lar de Ribeirão Preto - SP, não assumem a autoria em textosproduzidos por eles, tampouco conseguem argumentar, susten-tar a responsabilidade de um dizer (cf. Pacífico, 2002). Issosignifica que, apesar de esses alunos terem um alto grau deescolaridade, eles possuem um baixo grau de letramento.

Em contraste com o quadro descrito acima, observamosque há pessoas pouco expostas ao uso escrito da língua, semi-alfabetizadas ou não-alfabetizadas, que demonstram um graude letramento mais avantajado que os nossos alunos. No traba-lho voluntário que desempenhamos junto ao MST (Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra), no Centro de FormaçãoDom Hélder Câmara e no Acampamento Sepé Tiaraju em Ser-ra Azul e a um grupo de migrantes que vêm do norte/nordestedo país para a cidade de Guariba - SP, a fim de trabalhar nocorte da cana, percebemos a existência de poetas, cantadorese contadores que, ora compõem e discursivizam oralmente umaretórica política muito articulada, ora registram inquietaçõesexistenciais e vôos poéticos nas suas falas. Patativa do Assaré,poeta de cordel que hoje está sendo estudado na Sorbonne,expressa essa tendência de compreender o letramento indepen-dente do grau de escolaridade e de considerar a oralidade como

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uso social da língua atravessado pela escrita. Tal qual a obrado cearense, existem vários integrantes do MST, que ocupamuma posição-sujeito contestatória, política, poética e de profun-da articulação lógica, sem, no entanto, dominarem o códigoescrito.

Observando tal quadro, estamos convencidas de que épreciso entender as práticas sociais orais como registros afeta-dos pelo uso social da escrita. Tal embricamento propõe, segun-do Tfouni (2001, p.79-80):

giro teórico e metodológico na questão do letramento, vistoque não estamos mais considerando indivíduos empíricosque fazem uso da língua escrita, mas posições de sujeitodentro do continuum do letramento, posições estas quenão são intercambiáveis nem equivalentes, devido aoprocesso de legitimação das práticas letradas.

Ancorando tal discussão nos termos acima, é de se notara intersecção de tais conceitos com as noções de discurso, su-jeito e autoria, tais como a Análise do Discurso de filiaçãofrancesa as processa. Ao compreender o sujeito do discursocomo posição, faz-se o desenho de uma geometria, que assinalazonas de sentido possíveis de ser ocupadas e outras de acessonegado. A interpelação ideológica do sujeito consiste no meca-nismo, que direciona o discurso/ o sentido e o sujeito para umaregião e não para outra. Tal processo é marcado pela determi-nação histórico-social, datada politicamente por uma disputapermanente e tensa entre o que é legitimado ou marginal, aceitoou indesejado, oficial ou negado pela classe dominante em opo-sição à classe dominada.

Ora, sabe-se muito bem que o conhecimento, os dizerese sentidos não são distribuídos de maneira homogênea nas so-ciedades capitalistas (a invenção da democracia serviu mais

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para maquiar o processo de dominação política e econômicado que para repartir espaços legítimos de igualdade e de repre-sentação política); pelo contrário, o que movimenta a dinâmicadas classes sociais, assimetricamente dispostas, é a tensa lutapelos espaços de dizer além do jogo político, que destina algunsao lugar do silenciamento e dá a poucos largos megafones deexpressão.

Assumir a autoria não é espaço discursivo autorizado edisponibilizado para todos de maneira uniforme, neutra ou de-mocrática. Retomo as imagens postas no início dessa discussão:existem certa representação simbólica e uma formação ideoló-gica que atestam ser a autoria o lugar dos alfabetizados, daque-les que dominam a norma culta da língua, que demonstram“bom” desempenho escolar e se assujeitam ao autoritarismodo discurso pedagógico, reproduzindo sentidos já cristalizadose sedimentados pela ordem política vigente.

É claro que para dar conta de preencher todos os requisi-tos acima, os representantes do poder hegemônico, advindosdas classes mais abastadas, se candidatam como fortes perso-nas a ocupar a posição da autoria. A eles é dada a pena (quepena!) para constituir leis, representar a sociedade, escrever ahistória oficial, efetuar pareceres científicos e ocupar o espaçoda autoria. Em consonância com o poder político, legitima-sea falsa imagem de que o autor deve habitar uma torre de mar-fim, edificada pela tríade: gramática, dicionário e escolaridade.Aos não-alfabetizados, restam a indiferença e a anulação dosespaços de expressão. Foi assim com grande parte das comuni-dades indígenas e africanas, cuja tradição oral encerrava relatosdistantes do mundo branco, católico e ocidental, e que, por issomesmo, eram massacradas sob os rótulos de paganismo, selva-geria e atraso cultural. A arrogância com que a elite discursivizaos movimentos populares no Brasil, somada ao prestígio do

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saber da científico e acadêmico (sempre acima da tradiçãooral) indicam a ponta ideológica do iceberg da exclusão queprecisa ser destruído.

Ver a autoria como uma posição discursiva a ser ocupadapor pessoas mais ou menos letradas, sejam alfabetizadas ounão, nos parece ser o primeiro passo para que novos sentidossejam gestados. Tfouni (1994, p.67) enfatiza que:

Em geral, nota-se que as teorias sobre o desenvolvimentoenfatizam muito os ganhos e esquecem-se das perdas. Pen-sando dialeticamente, no entanto, sabemos que sempre quese ganha algo, também alguma coisa se perde. Assim, doponto de vista científico, seria preciso que fossem produzi-dos discursos teóricos também sobre as perdas advindasdo processo do letramento. Por exemplo, investigar comovivem e interagem com uma sociedade letrada esses gruposanalfabetos e alfabetizados (...) como é, e como é usado,seu conhecimento do mundo, como estão organizadas suaspráticas discursivas? Em que situações esse conhecimentopode aflorar, e em quais ele é calado?

Os fios capilares da questão do letramento e da autoriaamarram as seguintes questões: quem produz os portadoresde texto? A quem eles servem? Quando eles podem circular equais deles têm permissão para circular? As respostas paratais questionamentos nos encaminham para uma região de senti-dos que, evidentemente, não vê o texto como mero acúmulode regras formais. As contribuições teóricas de Foucault (1969,p.3) são importantes, ele enxerga a escrita da seguinte forma:

... a escrita se desfralda como um jogo que vai infalivelmentealém de suas regras, e passa assim ao largo. Na escrita, nãose coloca em causa a manifestação ou exaltação do gestode escrever; trata-se de alfinetar um sujeito dentro de uma

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linguagem; trata-se da abertura de um espaço em que osujeito escrevendo não cessa de desaparecer.

Na perspectiva de observar a escrita não como produtofossilizado em si mesmo, mas como algo que pode vir a significar– como funcionamento discursivo, portanto – o autor chama aatenção para o processo de produção de efeitos de sentido. Osujeito-autor e o sentido emergem juntos na tapeçaria do descon-tínuo e da dispersão, trançadas pela tentativa de domesticar econter a deriva.

O princípio da autoria diz respeito à organização do caosna busca de algumas linhas de ordem. Claro que todos essesconceitos devem ser compreendidos no plano discursivo, forada empiricidade, que geralmente invade os estudos sobre a vi-da e obra de autores ilustres. Sobre isso, diz Foucault (op.cit.,p.6):

... o nome de autor não vai, como o nome próprio, do interiorde um discurso ao indivíduo real e exterior que o produziu,mas que ele corre, de alguma maneira, na fronteira dos textos,que ele os recorta, que ele segue-lhes as arestas, que elemanifesta certo conjunto de discursos, e ele se refere aoestatuto desse discurso no interior de uma sociedade e nointerior de uma cultura. O nome de autor não está situadona pessoa física dos homens, ele também não está situadona ficção da obra, ele está situado na ruptura que instauraum certo grupo de discursos e seu modo de ser singular.

Fugindo da noção de autor indivíduo, e fixando o princípioda autoria em um plano discursivo, também os estudos deOrlandi (1996) merecem destaque. Diz ela que:

um sujeito se constitui como autor ao constituir um texto.O autor é o lugar em que se constrói a unidade do texto.

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O princípio da autoria é o organizador da multiplicidadede sentidos latentes prestes a irromperem e a forma do sujeitocriar efeitos de sentido. Estabelece a origem da unidade dotexto, fazendo parte da autoria a heterogeneidade e a dispersão.É de se registrar que duas ilusões constituam tal princípio. Nabusca por um cerco para conter a dispersão, o sujeito-autortenta garantir a unidade do discurso, criando efeitos de clareza,organização lógica, coerência e coesão internas, seqüencialidadee propriedade. Pfeiffer (1989, p.50) coloca que:

... é na confluência, na tensão do sujeito disperso que osujeito-autor funciona, movimenta-se, produzindo o efeitode unidade.

Os dois esquecimentos propostos por Pêcheux (1975)sinalizam uma contribuição rara para entender o princípio daautoria, são eles: primeiro, o sujeito imagina ser a fonte de seudizer, como se o sentido brotasse nele; em segundo lugar, o su-jeito acredita que o seu dito corresponde exatamente ao queele pensa. Sem essas duas ilusões, certamente ficaríamos pe-trificados diante da incompletude e opacidade absolutas, cegosdiante do que não cessa de se calar e de pontos em que nãocessamos de desaparecer.

Nos estudos de Tfouni, em geral, e no ensaio (2001,p.82), em particular, fica colocada a questão da autoria atraves-sada pela abordagem psicanalítica lacaniana. Não é prioridadedesse estudo trabalhar com tal referencial, ainda assim, é possí-vel considerar a afirmação da autora:

O autor é uma posição do sujeito a partir da qual ele conse-gue estruturar seu discurso (oral ou escrito) de acordo comum princípio organizador contraditório, porém necessário,visto que existe, no processo de produção de um texto, um

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movimento de deriva e dispersão de sentidos inevitável,que o autor precisa ‘controlar’.

Com esse recorte, pretendemos fixar que o “controle”(ou tentativa de controle) diante da dispersão e da deriva colocao sujeito do discurso na posição de autor, seja ele alfabetizadoou não. Atravessado pelo significante substantivamente postadoentre a falta e o desejo de completude, bipartido entre o nomee a imagem dos nomes – perdida para sempre – o sujeito forjaum lugar para si.

Qual Penélope tecendo e desfazendo os pontos de umanarrativa de esperas, as tramas dos fios discursivos apertam eafrouxam sentidos possíveis para o sujeito que pesponta, costu-ra e remenda; ainda que sabendo (ou a saber) que ele nuncaverá o tapete pronto. Ainda que a imagem do tapete seja apenasum pretexto para continuar a silenciar, a deixar os dedos corre-rem na falha do ponto (e da letra) que nunca se escreverá,pois não pode ser arrematado(a). Ainda que no desnudamentodo risco, apareça a grafia do autor.

Buscando compreender como esses sujeitos (cujas vozessão, muitas vezes, silenciadas pela sociedade) produzem textose sentidos, passaremos à análise de dois poemas produzidospor adultos com baixo grau de escolaridade, observando seestes sujeitos assumem, ou não, a posição de autor e como sedá a relação deles com a língua escrita na produção textual.Os textos selecionados para análise são recortes dos seguintespoemas: Injustiça, de Luiz Beltrame de Castro, um dos símbolosdas lutas políticas no Brasil dos últimos anos; o outro, A escravado dinheiro, de Antonio Gonçalves da Silva, o Patativa doAssaré, autêntico representante da cultura do povo e expoentemáximo da poesia sertaneja impregnada pela força telúrica doNordeste e pela estrutura da literatura de cordel.

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Injustiça (1980)

Eu fico surpreso e penso,Que neste Brasil imenso

Sempre olho para láVejo a bela natureza,Vejo a grande riquezaDa Serra do Carajás

O tucano bica a genteFica e pega a cuícaEscuto alguém falarE me mata de tristeza

Que não convém a riquezaDa Serra do Carajás

Não é preciso pressa,Nem muita conversa

A maneira é estaE eu vou explicar

Pois o nosso tesouro éA prata, o diamante e o ouro

Eu acho um desaforoVer o americano levar

Eu topo qualquer paradaAté não falo mais nadaPorque a Serra PeladaÉ nossa Serra Vestida

Pois tem a riqueza,Fruto da natureza

Com uma grande belezaDa nossa Pátria querida

Estou velho e não agüentoCom sentimento escrever

Mesmo assim estou escrevendo,

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Com os olhos estou vendoPois eu estou percebendo

Minha lágrima descerA lágrima desce por tudoO que eu vejo acontecer

Nosso primeiro “encontro” com este texto nos permitiuestabelecer um diálogo intertextual com o texto gonçalvinoCanção do Exílio, que fala do amor que o enunciador tempela Pátria, seu nacionalismo exagerado e toca o sentimentode solidão, que a terra estrangeira lhe causa, lugar onde o enun-ciador sente-se privado dos prazeres da Pátria. Neste texto, osigno exílio é o principal contextualizador, indiciando solidão,tristeza, ausência dos valores da terra natal para aquele quetambém se sente privado, agora da posse da terra. Além deexílio, outros signos compõem o relato contextualizador e apre-sentam os seguintes significados contextuais:

Terra: lugar idealizado, onde o enunciador está em con-junção com vida, a beleza, a alegria.

Palmeira: a simplicidade da terra, enfatizando que a bele-za da terra está nas coisas simples.

Sabiá: saudosismo; o canto triste do sabiá figurativiza odesejo que o enunciador tem de voltar à Pátria.

Para nós, o diálogo intertextual que o texto gonçalvinomantém com o texto de Castro pode ser lido, devido à presençados signos “Brasil (terra)”, “pátria”, “bela natureza” “ri-queza”, do hipônimo “tucano (sabiá)”, que remetem aos senti-dos produzidos pelos signos presentes em Canção do Exílio,de beleza da Pátria, simplicidade, primores, riqueza. Em “Injus-tiça”, também, podemos interpretar que o sujeito ama sua Pá-tria e não quer aceitar a “injustiça” de vê-la explorada pelo

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“americano”, visto que o enunciador quer defender a riqueza“Da nossa pátria querida”; riqueza esta, diga-se de passa-gem, a qual ele não tem acesso e que não tem permissão deusufruir.

Observamos que os verbos estão na primeira pessoa dosingular, o que indicia que as ações são marcadas de modo po-sitivo (“Eu fico surpreso e penso”; “E eu vou explicar”;“Eu topo qualquer parada”), mostrando que o sujeito assumea responsabilidade pelo seu dizer (o que é característico daautoria), sem envergonhar-se do uso da língua que ele faz.

Apesar de ser um sujeito com pouca escolaridade, eletoma posse da escrita (“Estou velho e não agüento/ Comsentimento escrever/ Mesmo assim estou escrevendo”) e ausa com o mesmo poder que os escritores consagrados têmpara fazer da escrita um meio de denunciar uma situação, queestá fora da ordem, como vemos, por exemplo, em Cançãodo Exílio, de Murilo Mendes, que também denuncia a invasãode elementos estrangeiros na pátria. Também é possível anotarque há um jogo com as marcas a “Serra Pelada” e a “SerraVestida”, o uso da antonímia indicia que o sujeito sabe jogarcom as palavras, denunciando a exploração da Serra, que eraVestida, rica e passou a ser Pelada, mediante tanta exploraçãopredatória.

Investigando como se dá a compreensão de raciocíniosilogístico em adultos não-alfabetizados, Tfouni (1995, p.72),pôde constatar que há uma maneira “diferente” de compreensãodeste tipo de raciocínio por sujeitos alfabetizados e por aquelesnão-alfabetizados. Enquanto, para os primeiros, a compreensãose dá de forma lógico-dedutiva, “livre da subjetividade”, isto é,“há uma separação entre o sujeito que conhece e o objeto aser conhecido”, para os segundos, o discurso está “ intensamenteembebido na experiência pessoal e na subjetividade, lugar onde

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se inscrevem as atividades de “contar histórias, atividades estasque estão embebidas em práticas sociais que organizam a vidae as intenções desses adultos”.

Isso nos faz refletir sobre a subjetividade no texto deCastro, que mesmo não sendo um texto argumentativo (lugardo raciocínio silogístico), e sim, um poema, permite-nos consta-tar que há, realmente, o predomínio das experiências do sujeito.Embora sabendo que a subjetividade é uma característica pró-pria da poesia, observamos que, nos versos “E me mata detristeza”; “E eu acho um desaforo”; “Pois eu estou perce-bendo/ Minha lágrima descer”, o sujeito fala daquilo que eleconhece e expressa-se usando uma linguagem simples, popular,com construções que seguem a ordem direta da língua, o queindicia que ele não possui um vocabulário elaborado, tampoucousa recursos expressivos próprios das poesias dos grandes es-critores (inversões, figuras de linguagem, ritmo etc).

No entanto, mesmo que sua poesia não apresente ascaracterísticas das obras consagradas e legitimadas pela classedominante como clássicas, de valor cultural, o texto “Injustiça”marca a inscrição histórica do sujeito no “mundo das letras”,da poesia, e, entre tantas coisas e palavras, o grande valordeste texto está na possibilidade que seu autor adquiriu, pormeio da escrita, de fazer-se “ouvir”, ou melhor, fazer-se ler,inserindo-se nas práticas sociais letradas através da poesia.

A escrava do dinheiro

Boa noite, home e meninoE muié deste lugá!

Quero que me dê licençaPara uma histora contá.Como matuto atrasado

Eu dêxo as língua de lado

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Pra quem as língua aprendeu,Eu quero a licença agora

Mode eu contá minha historaCom a língua que Deus me deu.

Mas ante de eu começáEu premeramente vouDizê que o dinhêro éO maió trensformadô,

Apois sabe o mundo interoQue este bichinho dinhêro,

Com sua força e podê,A sua mancha, o seu jeito,

Tem feito munto sujeitoSisudo se derretê.

Segundo Gnerre (1998, p.6): “Somente uma parte dosintegrantes das sociedades complexas, por exemplo, temacesso a uma variedade ‘culta’ ou ‘padrão’, consideradageralmente ‘a língua’, e associada tipicamente a conteúdosde prestígio”. Ainda para este mesmo autor (idem): “umavariedade lingüística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade osseus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da auto-ridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”.

Partindo da citação acima, podemos ler que o título dopoema “A escrava do dinheiro” é indiciário dessa relação deforça entre classes socialmente desiguais, ou seja, metaforizaa divisão entre aqueles que têm o dinheiro e os que se escravi-zam na ilusão de um dia conquistá-lo; conquistas estas que mi-grariam da aquisição do dinheiro à aquisição de bens culturaise saberes, logo, de uma forma valorada de linguagem. O sujeitodo poema parece conhecer esse jogo tenso entre aqueles quedominam a forma legitimada de dizer e aqueles que são interdi-

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tados em seus falares, e, assim, marginalizados ou excluídosdas práticas sociais letradas.

Conhecendo a pluralidade das “língua” de quem tantoregras e normatização aprendeu, o sujeito pede licença paracontar sua história “com a língua que Deus me pedeu”, mar-cando seu espaço de resistência e subversão para falar a partirdo lugar que ele sabe não ser legitimado e tido como correto eliterário, mas mesmo assim, é a partir dessa posição que eleproduz sentido e se inscreve como autor, assumindo-se como“matuto atrasado”. Ele bem reconhece que é preciso pedirlicença, ter autorização para falar desse lugar, pois, caso contrá-rio, corre o risco de não ser ouvido e reconhecido como poeta,visto que a norma culta dita o imperativo de ela ser usada e ospoetas consagrados se alinham a esta variante lingüística.

Além disso, a interpretação do poema nos permite obser-var que há uma ideologia machista sustentando a construçãodos dois primeiros versos, em que se materializam em uma se-qüência gradativa os significantes “home, menino e muié”.Apesar de o poeta ocupar um lugar que desafina dos valorescaros à classe dominante, como vimos acima, aqui ele reproduze faz retornar, como um movimento parafrástico, o imaginárioque legitima o sexo masculino em primeiro lugar e o femininono final da fila; isso é confirmado também pelo uso da forma“menino” e não menina. Leitura esta que nos parece possíveltambém para o título, em que a mulher é escrava do dinheiro,duplamente escrava, portanto, em primeiro escrava do imaginá-rio machista e, em segundo, do fetiche capitalista – o dinheiro.

O poema todo é uma coreografia de resistência em queo sujeito fala na sua língua, do seu modo, com o seu léxico, dosassuntos que lhe fazem sentido. A língua é a moradia da resis-tência desse sujeito. Para fechar essa moldura, o sujeito marcadiscursivamente a forma como ele desvaloriza o dinheiro, afir-

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mando que “O maió trensformadô,/ Apois sabe o mundointero/ Que este bichinho dinhêro,/ Com sua força e podê”.

GERMINAÇÃO DE UM CANTO NOVO

A análise dos dois poemas campesinos e as reflexõessobre letramento e autoria nos indicam que o uso social da es-crita sempre legitimou a classe dominante como aquela capazde e, autorizada, a escrever poemas, criar metáforas e ocuparo lugar de autor de obras a serem legitimadas. A esta classesempre foi atribuído o crédito imaginário de ser detentora dasnormas estéticas e literárias, e aos não-alfabetizados restavao lugar de iletrado, inculto e incapaz, na equação perversa queengendra silenciamento e preconceito. Esperamos desfazertal nó e postular convictamente que o gesto de autoria podetambém nascer da semeadura campesina em sua lida com aterra, materializando-se em cantos novos de resistência, criaçãoe denúncia.

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Recebido: Julho de 2004.Aceito: Setembro de 2004.

Endereço para correspondência:

Lucília Maria Sousa RomãoSoraya Maria Romano PacíficoAv. Dr. Sobral Neto, 681Jardim Boa Vista14840-000 Guariba, [email protected]