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A TEMPORALIDADE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA
João Adolfo Hansen
Quero agradecer o convite da Vera e de vocês e queria lhes
dizer inicialmente que, para falar desse tema ligado ao tempo, hoje,
eu começava chamando a sua atenção para a própria posição em que
eu falo, ou seja, é necessariamente uma posição aquém do que
acontece. Eu acredito que falo, nesse sentido, pelo meio e acho que
também dentro de uma situação que na maior parte permanece por
mim, pelo menos, ignorada. Tenho nitidamente a sensação, ao falar
de um assunto como esse, de falar entre aquilo que ignoro
totalmente e aquilo que conheço muito mal.
Acredito que esta, aliás, é uma das principais determinações de
qualquer fala sobre a cultura hoje. Certas noções que até ontem
pareciam muito evidentes e que eram noções produzidas a partir da
segunda metade do século XVIII, noções iluministas como a de
crítica, negatividade, transformação, superação, totalização,
totalidade, finalidade e sentido da história , perderam a força e a
fala que fala sobre elas tem que necessariamente reconhecer sua
parcialidade quando fala delas. Nesse sentido, a fala sobre elas tem
que reconhecer também que perdeu toda pretensão de prescrição.
Se vocês pensam, por exemplo, que até ontem, enquanto essas
categorias aparentemente eram óbvias, o fato de haver
supostamente uma causa e um sentido final para a história também
determinava a idéia de uma prescrição do que deveria ser a ação em
termos de uma ação adequada a esse sentido. Na medida em que
hoje uma categoria como totalidade ou totalização desaparece da
discussão da cultura, e também desaparece a idéia de um sentido
final para a história, toda idéia de uma fala prescritiva quer dizer,
de um "dever ser" também desaparece.
. Conferência pronunciada no dia 29 de outubro de 1999 no Ateliê da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.. Professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Autor de A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII (Companhia das Letras) e de O O: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas (Hedra).
Assim, tenho a impressão de que a gente deveria lembrar
também uma noção exposta há muito tempo por um autor que hoje
está bastante esquecido devido a essas mudanças na cultura que é
Marx e que há uma afirmação dele no início dos Grundrisse, dos
rascunhos que ele faz sobre O capital, em que ele diz que, no
desenvolvimento histórico, geralmente a última fase é muito
unilateral em relação às anteriores porque ela supõe que as
anteriores foram etapas para ela mesma e que, nesse sentido, ela
geralmente tem uma incapacidade de criticar a sua pretensão de
universalidade e de se criticar a si mesma. Nesse sentido, diz o
Marx, o presente é unilateral. E ele é unilateral porque produz
unilateralidades, ou seja, ele se apropria do passado de modo
unilateral e ele é de algum modo cego em relação a si mesmo porque
ele não tem uma evidência evidente dos processos que ocorrem nele
enquanto presente.
Nesse sentido, eu gostaria de lembrar a vocês uma hipótese
que é feita por um historiador alemão, que é Koselleck, que,
discutindo o processo histórico, propõe que a gente pense a história
segundo uma categoria que é o tempo. E ele propõe o tempo não
necessariamente de modo kantiano, como uma categoria prévia de
todo pensamento, mas como uma categoria social. Ele propõe que a
categoria de tempo permitiria observar determinados períodos
históricos, observando por meio dela duas coisas fundamentais: o
modo como é recortada uma experiência do passado, em termos de
experiência, e ao mesmo tempo o modo como se recorta uma
expectativa de futuro. Koselleck trabalha fundamentalmente, nessa
noção, com as histórias de Antigo Regime, com as histórias hoje
chamadas "barrocas", com as histórias dos séculos XVI, XVII e XVIII,
e ele mostra, por exemplo, como essas histórias reciclam uma noção
que a gente encontra nas letras latinas, principalmente no Cícero,
que é a velha idéia de que a história é mestra da vida. O Koselleck
propõe: o que permite, por exemplo, que um homem do século XVII
pense que a experiência histórica, aquilo que já houve, possa ser,
enquanto experiência do passado, modelo para o presente e ao
mesmo tempo modelo para a mestra da vida regulação de uma
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expectativa do que vai acontecer no futuro? E ele evidencia uma
coisa que deve ser evidente para quem trabalha com esse assunto
ligado aos séculos XVII e XVIII: que nessas sociedades ditas
“barrocas” o fato justamente de elas suporem que há um fundamento
primeiro, único e último da história que é Deus fazia com que elas
pensassem que a presença divina, que já aparece no passado,
aparece também no presente e no futuro. E, nesse sentido, a
hipótese de que os bons e grandes exemplos vividos por homens
ilustres, profetas, heróis etc. antigos, que evidenciam a presença de
Deus no tempo, na medida que Deus “é” sempre, eles também são
repetidos no presente e no futuro. Nesse sentido, na hipótese que o
Koselleck mostra, para uma formação histórica como a formação de
Antigo Regime, havia uma espécie de nexo quase imediato entre a
experiência do passado e a expectativa de futuro devido justamente a
essa hipótese teológica de que o tempo tem um sentido religioso e de
que Deus se repete nele sempre.
É isso que permitiria, por exemplo, no nosso caso específico,
brasileiro, português, a gente entender a experiência de um padre
Antônio Vieira, no século XVII, que escreveu um livro chamado
História do futuro. A gente, desde a Revolução Francesa, sabe que
uma hipótese de escrever uma história do futuro é uma hipótese
cabalística, para nós, ou supersticiosa ou, por definição, improvável
porque a gente tem uma experiência, desde a Revolução Francesa,
de que a história não se repete. Ou, se ela se repete, é como farsa da
tragédia que ela foi a primeira vez.
Agora, o Koselleck faz justamente essa hipótese, que é muito
interessante pensar: essa idéia de que a cultura enquanto
produção social, enquanto representação social, enquanto
expectativa social e enquanto consumo social do passado e produção
de valores no presente articulada a uma expectativa de futuro
também deveria ser historicizada pelo modo como a gente pode
pensar a categoria do tempo e que, numa sociedade de Antigo
Regime, pré-iluminista, pré-Revolução Francesa, que acredita no
Cícero a história é mestra da vida , a história se repete sim. A
história se repete e o lapso que há entre o passado e o futuro é
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praticamente zero. Ou seja, o fator de imprevisibilidade do futuro
tende a zero. Por exemplo, para um homem do século XVII
provavelmente era bastante evidente a idéia de que, se aconteceu
assim, vai voltar a acontecer assim no futuro.
Agora, vocês estão lembrados, por exemplo, de uma hipótese
crítica dessa hipótese feita pelo Kant na Antropologia, que é um livro
que ele escreve logo depois da Revolução Francesa, em que ele diz
que até então toda a experiência histórica ele está se referindo às
sociedades que chama de “despóticas”, de Antigo Regime tinha
sido subordinada ao modelo teológico do sentido do tempo. E ele diz:
toda a sociedade estava subordinada ao tempo, na medida que
teologicamente o tempo é uma emanação de Deus e, portanto, a
história humana faz parte de um projeto divino incluído no tempo. O
Kant vai afirmar, no fim do XVIII, vocês sabem disso, que, a partir
daquele momento em que ele escreve, a história não necessitava
mais de Deus, Deus está morto, e que, nesse sentido, não há
fundamento absoluto para ela e que a história agora passa a ser
apenas um processo quantitativo que subordina o tempo a si mesmo
e que estabelece, por definição, um lapso de indeterminação entre a
experiência do passado e a experiência do futuro. Na hipótese
kantiana, já no fim do século XVIII, a idéia iluminista, a idéia de que
o futuro é imponderável, a idéia de que nós não sabemos
absolutamente o que é o futuro, mas que o futuro depende de um
cálculo humano que quantifica as diversas variáveis tentando
justamente orientar o tempo no sentido dele, futuro, donde vem o
sentido do tempo.
Provavelmente a gente aprende com a Revolução Francesa e
com os filósofos iluministas, e depois com o marxismo, no século XIX
e ainda no XX, essa idéia de que o tempo tem um sentido. Agora,
esse sentido não é mais divino nem teológico, ele é apenas humano e
resulta de uma produção de eventos meramente humanos. A
discussão é saber se esses eventos são produzidos por tipos
individualizados ou por massas proletárias ou por fatores anônimos
como a economia ou a política, de maneira indeterminada. Mas
sempre há esse dado nuclear comum que é a idéia de que o tempo
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avança numa linha reta, o passado não se repete porque ele foi
negado pelas práticas do presente, o presente ainda é um estágio
onde nós estamos mas ele é um estágio de contradição e ele ainda
não realizou a plenitude do tempo, a plenitude da razão que vai se
encarnar nele pra valer, e que então a idéia de que o tempo no
presente é, por definição, vocês sabem, o espaço de uma
negatividade. Quer dizer, a cultura tem uma função não só de
representar o social etc., mas a cultura também tem uma função com
a idéia de crítica, ou seja, a idéia de fazer das contradições do
presente o material de uma negação que postula uma transformação
que vai superar o presente, fazendo o futuro vir rapidamente. Essa é,
por exemplo, a hipótese utópica do início do século XX a hipótese
dos surrealistas em 24, a hipótese dadá ou a hipótese cubista ,
provavelmente a idéia de que as formas de representação burguesas
ou acadêmicas ou oficiais que nós encontramos na cultura são
passadistas, ligadas excessivamente a um passado entendido como
um passado conservador ou reacionário ou próprio de uma vida
administrada. E essa idéia, então, de que a arte ou a cultura tem uma
função de, pela racionalização negativa da forma, pela recusa da
familiaridade da forma com o mundo administrado, propor uma
atividade crítica, que provavelmente atinge o espectador o
conscientizando politicamente de uma necessidade de superação
daquele estado presente em função do futuro.
Vocês se lembram, por exemplo, que o poeta Maiakovsky vai
dizer, quando ele é encarregado pelo Lenin de fazer aquele
programa gráfico e ao mesmo tempo poético de arte revolucionária
na União Soviética no início dos anos 20, que o verdadeiro tempo da
revolução é o futuro ou seja, tudo vem do futuro, o futuro é o
tempo donde vem o tempo. Ou seja, é como se houvesse uma
memória do futuro, quer dizer, a gente vive o presente, já que a
gente é iluminista, em função de uma crítica do presente, de uma
negação contínua do presente, em função de algo que deve ser um
futuro que ainda não veio por isso provavelmente ele é “u-tópico”;
na verdade, ele é “a-tópico”, ele não tem lugar; mas ele é “u-tópico”,
ou seja, ele está fora do topos, ele está fora do lugar.
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Provavelmente, a idéia tradicional, então, se vocês pensarem,
por exemplo, a constituição de um tipo no fim do século XVIII que é
“o artista”, outro tipo que se constitui que é “o crítico’, outro tipo
que se constitui que é “o intelectual’, são todos tipos, segundo o
iluminismo, dotados de um função de produzir a cultura, num sentido
amplo, ou, no caso mais específico da cultura, de produzir as artes
no sentido de uma crítica contínua que postula sempre uma
superação do estado presente porque o presente, por definição, é um
estado insatisfatório.
Vocês se lembram daquela hipótese, por exemplo, “o sonho da
razão engendra monstros”. Vocês se lembram da pintura do Goya,
aquela idéia de que o presente é o estado do mito, o presente é o
tempo da ignorância, da superstição, e que a crítica iluminista, por
ser racional, vai produzir uma abolição radical do mito fazendo com
que os valores da res publica, como dizia o Kant, quer dizer, da
“coisa pública”, da verdadeira democracia contra o despotismo, se
estabeleçam. Agora, o Gilles Deleuze dizia uma piada muito
engraçada. Ele dizia assim: sim, o Goya estava certo, o sonho da
razão produz monstros, mas a insônia também. Dizendo assim que,
quando a razão fica louca e ela fica , ela pode ser uma razão
industrial que calcula, por exemplo, quantos judeus a gente vai
queimar por segundo num forno. E ele chama a atenção, por
exemplo, para um campo de concentração, que é racionalmente
construído como razão instrumental, razão iluminista levada às
últimas conseqüências do industrialismo, queimando pessoas. E que
é uma razão absolutamente frenética, uma razão levada à insônia
máxima, não é uma razão que está dormindo, mas é uma razão
acordadíssima.
Nesse sentido, justamente, vocês concordem comigo, nos anos
60 principalmente, nós encontramos várias atividades na cultura,
sobretudo vindas da França, mas também na Alemanha, na
Inglaterra, na Itália e depois nos Estados Unidos, um movimento na
cultura que inicialmente começou em disciplinas que começaram a
criticar o positivismo de historiadores e o positivismo de modo geral
dos cientistas sociais e são disciplinas vindas da lingüística, da
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psicanálise, da etnologia, da antropologia que começaram a chamar
a atenção desses cientistas sociais e dos historiadores para a
particularidade das práticas e começaram a criticar principalmente a
idéia de que haja um sentido dado ou de que haja uma unidade dada
na idéia de sujeito ou de consciência ou de ideologia ou de
representação etc..
Isso constitui aquilo que um filósofo alemão que dá aula em
Stanford hoje, que é o Hans Ulrich Gumbrecht, chama de “campo
não-hermenêutico”, no caso da cultura, e que está ligado justamente
a uma crítica do iluminismo. Quer dizer, a idéia de que esse modo de
organizar o tempo como sucessão, evolução, transformação,
superação dialética e como contradição supõe que haja um sujeito
unitário, pleno, que é sujeito de conhecimento na relação com um
objeto qualquer por conhecer. Supõe, ao mesmo tempo, que é a
consciência o lugar onde as operações de conhecimento acontecem.
Supõe, ao mesmo tempo, que há uma relação quase de equivalência
entre o sujeito que conhece o objeto por conhecer. E supõe, ao
mesmo tempo, que o tempo é um contínuo e que ele tem uma
unidade. O que é uma idéia hegeliana, vocês se lembram: essa idéia,
no caso das artes, de classificar períodos históricos, com uma única
unidade então, “o barroco”, “o clássico”, “o árcade”, “o
romântico”. Vocês sabem disso, é óbvio: vários historiadores
começaram a mostrar, desde os anos 20 do nosso século, que dentro
de um recorte temporal limitado a gente observa várias
temporalidades, que é impossível unificar o tempo debaixo de uma
etiqueta única porque a gente observa, por exemplo, que há uma
temporalidade da linguagem, há um tempo próprio dos processos
econômicos, há uma temporalidade específica das práticas sexuais
ou das relações de parentesco, há uma temporalidade própria da
política e que há vários tempos num mesmo tempo que impedem a
gente de supor essa idéia de uma unidade evolutiva.
Vocês se lembram, por exemplo, dos estudos do Braudel sobre
o Mediterrâneo, sobre o Felipe II, como ele mostra que há um
longuíssimo tempo, que dura milhares de anos, que é o próprio
tempo da rotação das culturas ou da Terra. Depois como há um
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tempo mais curto que se coloca sobre esse, que é um tempo político
uma monarquia, que dura duzentos anos. E depois um tempo
quase conjuntural, um tempo rápido, dos eventos, das pequenas
guerras. E depois um tempo micro, que seria o tempo dos processos
quase individuais. Essa idéia de historiadores é muito interessante
pensar. Ela começou a introduzir, desde os anos 20, na historiografia
francesa por exemplo, Febvre, Bloch , essa idéia de que a gente
deveria abandonar esse modelão historiográfico vindo do século XIX,
que é o modelo hegeliano, de um evolução contínua, de uma história
que tem um sentido já dado e de uma única linha no tempo,
mostrando, por exemplo, que essa história é etnocêntrica, ocidental,
basicamente alemã, inglesa e francesa e que ela exclui outras
historicidades. Ela coloca o Oriente para fora, ela coloca as ditas
“sociedades primitivas” para fora etc.. Essa crítica que começou a
colocar justamente essa idéia de que [?] descontínuo, que até então
era uma coisa que assustava os historiadores, deve ser considerada
já um abalo na idéia de que o tempo é um contínuo evolutivo de
transformações e que o tempo tem um sentido já dado como uma
origem e como um fim.
A gente vai encontrar, por outra parte, por exemplo, em toda a
atividade da psicanálise e do desenvolvimento da psicologia no
século XX, uma crítica à idéia burguesa de um indivíduo definido
como unidade e identidade psicológica sempre irrepetível. A
psicanálise freudiana ou lacaniana mostra, por “a” mais “b”, que o
sujeito é um acidente numa cadeia significante onde ele ocupa uma
posição imaginária permitida a ele pela cultura e que ele pode ser a
cada momento vários e sempre outro e que o sujeito não tem
nenhuma unidade substancial.
Ao mesmo tempo a gente encontra, na filosofia, nos anos 50 e
60, uma recuperação muito forte das hipóteses do Nietzsche e depois
do Heidegger sobre o não-sentido fundamental da história, essa idéia
de uma anarché. Quer dizer, na hipótese tradicional, iluminista, a
história tem uma arché existe uma origem básica e, portanto,
existe um fim. Agora a gente vai observar, nos anos 60, essa idéia de
uma anarché, de uma não-origem, e que vai produzir, por sua vez, a
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idéia de um não-sentido dado e a crítica da idéia de evolução, da
idéia de progresso, da idéia de identidade, da idéia de unidade, ou
seja, como eles diziam, é um antiplatonismo generalizado feito como
crítica radical à essa idéia de que a consciência é núcleo fundante do
processo de conhecimento, porque agora se diz: não, a consciência é
o efeito de uma estrutura lingüística ou de uma estrutura familiar ou
de uma estrutura política ou de uma estrutura econômica ou de uma
estrutura “x”. Aí acaba a idéia, por exemplo, de que a consciência
seja o núcleo. Ao mesmo tempo se diz: é falsa a idéia de que haja um
sentido já dado no objeto, de que apenas o sujeito reconhece o
sentido dado. Na hipótese nietzscheana, por exemplo, o
conhecimento não é re-conhecimento, mas é força, o conhecimento é
uma violência que se exerce sobre um objeto qualquer que é
totalmente estranho a nós. A hipótese, então, de que a própria idéia
de verdade, que a gente aprendeu com os gregos que é algo
substancial, é um produto histórico e que é uma radical, vamos dizer,
historicização de tudo.
Isso levou, vocês sabem muito bem, a uma crítica que vem
sendo feita até hoje nas discussões ditas “pós-modernas” nos anos 80
que é uma crítica do método tradicional de interpretação da cultura
constituído no século XIX, principalmente na Introdução às ciências
do espírito, do Dilthey. Vocês se lembram, por exemplo, que no fim
do século XIX o Dilthey, o filósofo alemão, faz uma hipótese: qual é a
relação que nós estabelecemos com uma obra de arte? Na hipótese
do Dilthey existe um sujeito criador, que é pensado à moda clássica,
como um sujeito unitário, um indivíduo dotado de sentido crítico
profundo e psicologicamente original. Esse indivíduo então
formaliza, numa obra, a sua experiência individual. Mas que, por ser
genial, consegue formalizar na individualização da obra uma
experiência que é social e que por isso transcende a mera
individualidade e pode ter interesse para outros. Nós, como leitores
ou como espectadores, diz o Dilthey, estabelecemos, enquanto
sujeitos que também somos como o autor, uma relação de diálogo
com a obra. Ao estabelecermos essa relação, nós vamos buscar
aquilo que a superfície da obra oculta e nós vamos perguntar para a
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obra o que ela quer dizer ela tem uma intenção secreta, ela tem
uma intenção profunda. Então nós vamos interpretar a obra. Ou seja,
a obra está dobrada a palavra latina: interpretare, ou seja, ficar no
meio da dobra e desdobrar para fora. O que é interpretar? É buscar
na obra aquele sentido oculto na sua profundeza e que corresponde a
um sentido oculto na natureza humana e que aquele homem, artista
individual, por ser um cara genial o modelo é romântico , ele
expressa, ele representa, ou seja, apresenta de novo, ele re-
apresenta, ele re-vela, ou seja, quando mostra, ele ao mesmo tempo
oculta re-velar. A atividade do crítico, então, é estabelecer uma
relação de comentário com o objeto, mostrando para o público no
caso, a gente , que não foi capaz de ver aquele sentido profundo, o
verdadeiro sentido profundo da obra. Porque, quando se descobre
esse verdadeiro sentido profundo, imediatamente a obra se revela
como crítica do presente e possibilidade de superação crítica,
propondo o advento do futuro.
Agora, esse modelo de interpretação foi pelos ares justamente
com a constituição, nos anos 60, desse chamado “campo não-
hermenêutico” porque é a idéia de que é sexo explícito não há
nada para ser interpretado porque não há profundo. E a idéia de que
a gente deveria trabalhar com relações e não propriamente com essa
hipótese de buscar na profundidade suposta do objeto uma
interpretação que a gente traria para fora. Isso produz,
imediatamente, a hipótese de que não há um sentido dado no
processo histórico ao qual a interpretação está relacionada
tradicionalmente. Na medida que não há esse sentido dado, também
não há motivo para fazer interpretação porque a gente não tem que
procurar o verdadeiro sentido para engatar teleologicamente,
finalisticamente, na crítica da história e no avanço, no progresso
histórico. A hipótese agora é a de que o sentido é contingente, o
sentido é apenas um efeito que se produz aqui e agora como mera
relação entre o sujeito que age — e esse sujeito sabe que ele é
apenas uma parcialidade, ele não é nada unitário, profundo, ele é
apenas uma função sintática — e o objeto.
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Isso produz, no campo da crítica de arte e de literatura, um
grande deslocamento que vem sendo cada vez maior dos anos 80
para cá. Provavelmente porque a própria história, enquanto
disciplina, os historiadores principalmente, levando em conta essa
modificação do campo do conhecimento, eles começaram a chamar a
atenção para o fato de que, em vez de estabelecer uma relação com o
objeto que deveria ser interpretado, seria preciso começar a discutir
as condições de possibilidade do aparecimento daquele objeto.
Então, por exemplo, no caso da literatura, nós percebemos um
movimento assim: nos anos 60, 70, houve uma espécie de grande
concentração na análise “imanente” do discurso ou numa análise que
buscava sentidos de um discurso. Subitamente isso ficou esquecido e
os estudos se bandearam para uma coisa hoje chamada “estudos
culturais”, em que os historiadores da literatura, em vez de
discutirem o romance de Machado de Assis, estão discutindo as
condições materiais do fim do Império, do desenvolvimento da
imprensa ou das técnicas produtivas do livro ou as condições
materiais da circulação da leitura ou a oralidade ou o analfabetismo
no Brasil para discutir o texto de Machado de Assis no contexto
dessas práticas. Ou então se deslocou para uma história da recepção,
quer dizer, vamos ver não propriamente qual o sentido dessa obra.
Porque na hipótese do Dilthey a gente estabelece uma relação com a
cultura independentemente da materialidade dela, a gente vai buscar
na cultura um significado que é transcendental, que é o significado
da comunicação de dois sujeitos plenos independentemente de
qualquer elemento material. Que é a idéia tradicional: o que quer
dizer esse texto? A idéia de que um texto tem um significado
universal sempre.
Agora, todo o movimento dos anos 60 para cá, levando em
conta a crítica desse modelo interpretativo, por exemplo, os alemães
ligados à teoria da recepção... Aquela hipótese, por exemplo, que o
Jauss fez que o Joaci aqui conhece, ele trabalhou uma coisa
parecida nas Cartas chilenas... O Jauss diz, vocês se lembram: o
Goethe escreveu, no fim do século XVIII, uma peça que é a Ifigênia
em Táuride. A Ifigênia, se a gente a lê interpretativamente, nós
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vamos dizer: o que quer dizer a peça Ifigênia? Na hipótese do Jauss,
vocês se lembram, o sentido cultural da Ifigênia seria a somatória
das leituras que foram sendo feitas desse texto desde que o Goethe o
publicou no fim do século XVIII. Então a idéia agora é a de que é
fundamental levar em conta as condições práticas de apropriação do
objeto, que o objeto não tem um sentido produzido.
Não sei se vocês concordam, mas nas discussões que há hoje
no campo da cultura nós percebemos que mudou alguma coisa no
modo como se orienta a experiência do tempo. Quer dizer, nós
evidentemente não somos agentes do Antigo Regime, nós não
acreditamos em Deus, por definição nós somos ateus. Acho que
mesmo quando a gente é religioso, a gente é ateu prático. Ao mesmo
tempo, acho que o capital revoluciona o mundo de novo hoje com
essa revolução tecnológica, por exemplo, da informática. É uma coisa
que a gente não sabe o que é, mas é absolutamente espantoso. Outro
dia fiquei muito deprimido porque li uma notícia de um assaltante de
banco no Canadá que roubou um carro também e fugiu. E ele foi
localizado por satélite, um satélite leu a placa dele numa floresta no
norte do Canadá e ele foi preso. É muito assustador porque o
Lampião, que era um cara vivido, dizia: “Deus é grande, mas o mato
é maior”. Hoje, não, Deus é muito grande.
Eu penso na idéia do Deleuze, de que a nossa sociedade hoje
não é mais uma sociedade disciplinar, mas de controle. Deleuze
propõe que o modelito da sociedade hoje é o cartão de crédito. E ele
lembrava, por exemplo, como o cartão de crédito produz dinheiro
virtual e também como ele produz tempo virtual. E, como produz
tempo virtual para cada um de nós, ele nos obriga, no presente, a
que a gente se comprometa com todos os engates conservadores em
que estamos metidos. A gente continua casado com a mesma mulher,
com o mesmo homem, tem o mesmo amante, o mesmo namorado, a
gente continua tendo o mesmo patrão, continua fazendo as mesmas
coisas com a idéia da responsabilidade. Quer dizer, eu tenho que
pagar isso daqui no mês que vem. Então o Deleuze demonstra como
talvez o cartão de crédito mostra justamente um novo modo de
organização do tempo que pressupõe uma outra coisa. E isso é que é
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terrível, segundo os críticos do pós-moderno: a idéia de que o
presente não passa, de que o presente é eterno. Na hipótese
iluminista, o futuro é o tempo donde vem o verdadeiro sentido da
história e, portanto, o presente é só uma passagem, o presente deve
ser declarado rapidamente passado. Quer dizer, quanto mais a gente
matar o presente, mais rápido o futuro vem. Que é a idéia da
revolução. A revolução é isso. Agora, no nosso tempo, desde os anos
80, sumiram radicalmente das discussões termos como revolução,
luta de classes não sei se vocês concordam e, hoje, uma pessoa
que ouse falar de revolução ou de luta de classes imediatamente será
classificada como desadaptada ou neurótica ou romântica ou pouco
realista. O nosso presidente propôs: “esqueçam o que eu escrevi”,
em nome de um realismo político que a gente sabe que não é só um
realismo mas que é um cinismo radical.
Agora, os críticos justamente criticam a hipótese de que o
nosso presente parece que virou um presente de um valor de troca e
de fetichismo radical da mercadoria, onde a gente tem apenas um
processo contínuo de troca, um troca-troca absolutamente
generalizado, e que, como a gente não tem idéia de futuro parece
que o presente se repete , todos os passados são empilhados como
se eles estivessem à nossa disposição. Então, por exemplo, alguns
urbanistas têm chamado a atenção para o espaço contemporâneo das
metrópoles, para como se vive hoje uma espécie de simultaneidade
estilística, principalmente na arquitetura, de citação de estilemas de
estilos históricos. Então a gente está num espaço que é neobarroco,
babilônico, romano, grego, renascentista, neoclássico, romântico,
Bauhaus, funcional, Corbisier e pau-a-pique. Agora, isso é
meramente um modismo? Alguns dizem que não, não é um modismo,
que isso está correspondendo a uma estrutura mais funda, mais
radical do próprio modo de organização da percepção nas mudanças
econômicas, políticas e culturais do presente, que estão fazendo com
que o tempo seja vivido de um outro modo. Por exemplo, o
Gumbrecht chama a atenção para o fato de que quem está em Nova
York fazer uma ligação para Paris e o Oceano Atlântico não ser um
obstáculo espacial. Há uma simultaneidade radical, é como se eu
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estivesse falando com o meu amigo no quarto ao lado ou aqui,
com vocês. O que significa isso? Aquilo que alguns estudiosos
chamam de “glocal”, quer dizer, é um global que está no local, uma
simultaneidade do espaço de todas as versões, a possibilidade de a
gente ter acesso simultâneo a todas as versões.
A gente tem nisso duas posturas básicas, não sei se vocês
concordam. Existe uma possibilidade, na medida que hoje a cultura
acumula, empilha, tem um padrão de arquivo, vai juntando e citando
aparentemente de modo desierarquizado... Quando eu era moço,
havia uma discussão básica para a gente que era a distinção entre
kitsch e cultura alta. Então a gente dizia: “ah, isso é kitsch”; “isso é a
grande poesia”; “ah, essa música é boa, essa outra é kitsch”. E a
idéia de uma cultura erudita oposta à indústria cultural. E a idéia
ainda de uma cultura popular oposta a uma cultura não-popular. E a
idéia ainda de uma validade de termos como “direita” e “esquerda”
na determinação de posições políticas. Agora, a gente sabe que,
desde os anos 80, esses termos desapareceram. E principalmente
nos midia a gente percebe uma absoluta e radical indeterminação do
valor estético, por exemplo. A gente tem, numa mesma página tipo
Folha de S. Paulo mas também seria New York Times ou Figaro,
em qualquer parte do mundo , ao mesmo tempo, uma notícia sobre
o Caetano Veloso falando do amor dele pelo Fernando Henrique e, do
outro lado, um trecho de Mozart, o Macaco Simão falando mal do
Mário Covas, um anúncio do Brad Pitt e depois uma pequena notícia
de culinária. Há trinta anos atrás uma página como essa seria
violentamente criticada por sociólogos, historiadores, críticos etc.
como uma contrafacção e como algo kitsch e radicalmente de mal-
gosto e como uma coisa ridícula, absurda. Agora, não, a gente tem
uma espécie de absoluta equalização, não há intervalos. E há uma
espécie de desierarquização do valor artístico.
Isso produz um problema crítico que é divertido e que é o
seguinte: os críticos iluministas, que ainda estão aqui, os críticos
marxistas, gente que lê muito Adorno ou que tem a cabeça formada
pelo Walter Benjamin, quando vêem esse espetáculo pensam assim:
“nossa, que horror, que horror”! Ao mesmo tempo, quando vêem, por
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exemplo, o novo romance do menino-Folha-de-S.-Paulo, que usa a
Folha como meio de marketing para publicar seu novo romance que
vai falar das relações incestuosas homoeróticas que agora é
politicamente correto , eles dizem assim: nossa, que péssimo esse
romance, uma porcaria! Por quê? Nós lemos Kafka, quando éramos
jovens. Kafka! Ao mesmo tempo, eles vão a uma exposição de pintura
e vêem lá, por exemplo, que o Fulano está repintando a repintura da
pintura de Beltrano, que ele está fazendo uma paródia da estilização
da citação etc.. Então eles falam assim: putz, mas não tem invenção
nenhuma, esse cara não tem nada, nós gostávamos do Picasso, do
Klee, essa gente sim, é inventiva. Agora, isso é um problema crítico
muito interessante porque esses críticos ficam numa atitude de
choro, nostálgica, de melancolia tipo “como era verde meu vale”,
dizendo assim: aquele tempo sim, que era bom, e agora vivemos uma
decadência radical dos valores. E eles inclusive produzem uma
contradição no próprio discurso que é a idéia de propor produtos da
alta modernidade — Kafka ou Picasso, poderia ser Matisse ou Joyce
ou Eliot — como modelos para o poetinha ou escritores de hoje.
Agora, se a gente é moderno contra o pós-moderno, a gente não pode
propor que o moderno seja modelo de coisa alguma porque, por
definição, o moderno é uma idéia iluminista que faz com que o
moderno tenha que se negar a si mesmo. O moderno não admite
cânones, o moderno não tem modelo. Então o crítico que diz assim:
“isso não presta” e Kafka é o modelo para dizer que isso não presta,
é de uma violenta contradição porque ele está propondo que um
artista moderno como Kafka seja um acadêmico, seja um clássico que
sirva de modelo para uma outra produção. Isso é um lado, que tem
esse choramingo na cultura e que hoje vem, eu acho, principalmente
da área do marxismo. Marxistas que ficam chorando, dizendo que é
muito triste... Realmente, a sociedade neoliberal é um horror! Mas
não adianta ficar nessa posição só de choro.
Outro problema é o seguinte: como tudo está equivalente, a
gente corre o risco de cair num radical relativismo cultural e bater
palma para tudo, ficar apenas numa posição de descrição e achar
que tudo é legal. O problema que há hoje, no modo como
15
enfrentamos essas questões e também a questão da organização do
tempo na experiência histórica da cultura contemporânea, na minha
opinião — que é só uma opinião —, é que não temos categorias para
descrever o que acontece. Quer dizer, a realidade é muito maior do
que a gente pensa. E ela provavelmente é muito mais rápida. A gente
ainda está aplicando categorias iluministas, que são as nossas, para
pensar processos que já deixaram o iluminismo para trás. Se a gente
fica na posição de crítico modernista, nostálgico de bailado,
nostálgico da grande arte do século XX — que é uma grande arte,
realmente —, a gente fará enunciados melancólicos e regressivos
sobre o presente. Se a gente fica na posição de meramente
relativizar tudo, a gente acaba aderindo à essa espécie de liquidação
geral que é apenas um marketing da cultura como mercadoria, como
regressividade etc.. A questão que se tem, então, que é crítica e
teórica, e provavelmente epistemológica, é como nós vamos pensar a
cultura hoje de modo que não seja meramente regressivo, propondo
voltar a uma coisa que já passou, e que também evite meramente
aderir ao que está aí.
De qualquer forma, parece que, na experiência do tempo hoje,
o futuro está bloqueado. Por que? Talvez porque o presente não
passa. E por que ele não passa? Aí temos duas hipóteses: uma, que
vem da área do marxismo e da crítica muito bem fundada ao mundo
neoliberal hoje, é a idéia de que o presente não passa porque os
processos econômicos e políticos produzem, nos indivíduos, um
desinvestimento básico das relações de crítica. Por exemplo, quando
o trabalho tem que se aliar ao capital para garantir emprego, a idéia
de revolução que até ontem animava o movimento operário foi para
o espaço. Ao mesmo tempo, a idéia de que numa cultura como essa o
capital está revolucionando a cultura e que, nesse sentido, o
presente não passa e o futuro está bloqueado porque o que está
dominando, por enquanto, é esse presente mercantil, financeiro, da
troca econômica que transforma a cultura em valor de troca. A gente
está percebendo isso, por exemplo, nos programas do Banco Mundial
para a universidade ou para o ensino brasileiro, essa idéia de que só
interessa, enquanto ensino, enquanto educação, aquilo que seja
16
imediatamente rentável. O Bill Gates esteve em Stanford há coisa de
cinco anos atrás e reuniu todos os artistas, arquitetos, músicos,
pintores que dão aula lá, reuniu também o pessoal de letras, os
filósofos, historiadores, todas as humanidades e as artes e disse
assim para eles: vejam, eu ganho trinta milhões de dólares por mês.
É um argumento divino, é absolutamente absoluto. E aí ele disse
assim: vocês ainda perdem tempo em ensinar a estrutura do teatro
de Shakespeare? Vocês discutem se Macbeth é ou não um criminoso,
se ele é ou não maquiavélico? Isso é bobagem. Vocês, com o saber
que têm, devem ensinar seus alunos a produzir enredos que imitem
Shakespeare porque a gente tem um grande campo de indústria de
divertimento pela frente. Que é o modelo japonês também, vocês
sabem. Os japoneses estão fazendo uma aposta que a grande
economia do século XXI será o signo. Daí o investimento numa
educação que já está treinando gente lá para produzir divertimento
para as massas, porque eles estão fazendo uma hipótese de que a
informática está liberando as pessoas do trabalho imediato e que o
crescimento dessa gente que presta serviços, terciários etc. será
infinito. Agora, a cultura está nessa chave, segundo uma crítica
marxista mostraria, justamente por essa idéia capitalista radical de
que a cultura eficazmente sempre foi uma mercadoria, um presunto,
e que só interessa quando o presunto é imediatamente rentável,
ponto. Essa é uma hipótese. Os críticos mais otimistas — e que são
pós-modernos — estão dizendo: olha, chega de melancolia, a coisa
mudou, o futuro está bloqueado porque a gente tem um excesso de
futuro. O presente é tão múltiplo, tem tantas pluralidades, tantas
articulações que a gente não sabe qual é o futuro porque acabou
aquela idéia iluminista de que o futuro era um só e que seria um
futuro superando o presente como revolução. A gente tem milhões de
futuros hoje, por isso o futuro aparece bloqueado — ele está
indeterminado, nós não sabemos qual seja.
Então, nesse espaço, a gente tem uma discussão acho que
brava da cultura, se a gente pensar que, ao mesmo tempo, os
processos econômicos neoliberais estão pondo cada vez mais gente
para fora da economia, da produção, da educação, da saúde etc. e
17
simplesmente lavando as mãos. Quer dizer, até ontem havia um tipo,
que era o intelectual iluminista ou o intelectual crítico, que ainda
ousava ter a idéia de que ele podia falar por essas massas. Hoje essa
é uma idéia que envergonha, ninguém tem coragem de falar por
ninguém — achar que eu vou doar consciência para um proletário do
verdadeiro dever histórico dele, isso deve envergonhar realmente
qualquer um. Mas é um equívoco que houve. Ao mesmo tempo,
quando desaparece essa idéia da crítica ou do intelectual como um
tipo crítico, que tomava partido político na questão da cultura,
também desaparece essa velha representação do tempo como
contradição, negação, transformação, superação e revolução. Hoje
essas idéias estão aparentemente ausentes na cultura não só no
Brasil, é um fenômeno mundial. Então a gente está numa situação
em que teríamos que discutir o que significa um novo modo de
vivenciar o tempo e que cada vez mais a espacialização, a
simultaneidade substituem as idéias de contínuo ou de superação e
que a negação desaparece e se vive uma espécie de plena
possibilidade afirmativa daquilo que foram chamadas as diferenças.
Agora, cada vez mais, a gente tem diferenças que são legiões. Quer
dizer, desde gays, lésbicas, homoeróticos, passando por negros,
judeus abandonados, crianças, FEBEM, vocês têm tudo. São tantas
minorias... Agora, a sociedade de classes, obviamente, está aí e está
cada vez mais eficaz. O capital está aí, nós temos uma sociedade
ainda baseada na idéia de exploração. Provavelmente, então, o que a
gente não tem, na rapidez dessa mudança, são as categorias que
permitissem a gente pensar o tempo.
Agora, na idéia do Koselleck, que eu acho uma hipótese muito
interessante, pensando no modo como entendemos a experiência,
quer dizer, de que modo classificamos e definimos a categoria de
experiência, o que entendemos por experiência. Ao mesmo tempo,
como acumulamos a experiência, que função tem nela, por exemplo,
a memória? O que é a memória, hoje, quando ela está num disco
rígido ou em disquete? É interessante pensar. Que relação
estabelecemos com a experiência não só do presente mas
principalmente do passado em processos da nossa vida no presente
18
em termos de uma expectativa de futuro? Quer dizer, qual o nosso
horizonte de expectativas do futuro? Como nós pensamos o futuro? E
se nós não o pensamos, por que não pensamos o futuro? E aí esses
elementos — a categoria experiência, a categoria horizonte de
expectativa, a categoria previsibilidade e imprevisibilidade do futuro
— permitiriam a gente pensar uma outra coisa que é fundamental
para pensar o tempo o que é o evento, o que é o acontecimento. Na
nossa sociedade não acontece nada — não sei se vocês concordam
—, o tédio é mortal — eu pelo menos sinto. Acho que existe uma
espécie de grande agitação da troca, todos correm de um lado para
outro, a simultaneidade é cada vez mais radical, mas não acontece
nada que seja uma transformação do estado de coisas. Um enunciado
como esse — vocês poderiam dizer para mim — é iluminista, você
ainda está com o modelo anterior, porque hoje talvez não se devesse
nem colocar isso, que não acontece nada. O não acontecer nada
talvez seja próprio da troca porque há apenas a manutenção do
circuito, sem que aconteça nada no circuito que está circulando, mas
nada de novo vem de fora ou de dentro que o interrompa. Nesse
sentido, algumas pessoas críticas — não sei se elas são iluministas
—, têm o direito de dizer, eu acho, que é muito tedioso, é muito
chato, é muito repetitivo.
A gente tem alguns eventos programados. Por exemplo, a
gente pode matar um presidente. É o modelo norte-americano de
produzir um evento. Ou então, por exemplo, a gente é um serial
killer, a gente sobe numa torre e com um rifle mata os nossos
colegas na universidade ou na escola. Agora, será que isso é um
evento? A polícia, na periferia de São Paulo, em Carapicuíba, mata
de sete a oito por noite. Não é um evento. É um acontecimento, mas
não é um evento porque isso não é dado nos midia e isso não afeta,
aparentemente, a estrutura da vida. O que é um acontecimento?
Parece que a idéia de acontecimento está relacionada também
sempre a uma certa expectativa que a gente tem em relação ao
futuro, ao modo de trabalhar com a experiência do passado e do
presente e ao modo como orientamos, no sentido político da
intervenção, essa experiência e essa expectativa no nosso presente.
19
Isso determinava o evento. O que é o evento? É aquilo que acontece
podendo não acontecer. Ou seja, ele é uma ruptura, o acontecimento
é uma ruptura.
Nesse campo não-hermenêutico atualmente vêm vindo vários
estudos justamente sobre novos objetos. E um dos objetos que vem
sendo estudado em Princeton, por exemplo, é a teoria da emergência
ou a teoria do evento. Quer dizer, a idéia de inventar uma nova
ciência, uma heurística, que deve tentar pensar novos objetos que
são meio impensados ainda hoje mas que já estão entre nós. Por
exemplo, o criminoso que é preso no Canadá porque o satélite leu a
sua placa; o cartão de crédito que produz tempo virtual; o fato de a
gente ter cada vez mais fenômenos neofascistas; o fato de que, ao
mesmo tempo que se vive um absoluto fim dessa idéia iluminista, a
gente estar cada vez mais vivendo os cultos de Ísis, cada vez mais há
cultos esotéricos, cultos do diabo, essas seitas de televisão que se
proliferam. Quer dizer, há vários eventos, ou melhor, vários
fenômenos acontecendo na cultura que mereceriam ser discutidos
como objetos novos, mas geralmente o que está acontecendo é que,
para falar deles, o crítico ou fica numa atitude melancólica — “oh!,
isso não presta, é uma decadência!” — ou ele fica numa atitude de
mera validação. E talvez a gente devesse recuar o pressuposto e
tentar discutir quais são as possibilidades efetivas de encontrar
categorias novas de pensar os objetos. Por exemplo, a universidade
não pensa o cotidiano. A universidade pensa só um saber erudito já
acumulado que é um saber geralmente morto. A universidade, onde
tem cabeças, geralmente não pensa o aqui e agora de uma prática
cotidiana. Ela tem que pensar o século V antes de Cristo,
evidentemente, ela tem que fazer isso, que é a função dela. Mas não
só isso. Ela precisaria inventar uma heurística, uma arte de inventar
problemas futuros que a gente nem imaginou ainda. Aí seria legal,
porque resposta a gente não tem nenhuma. Isso é legal também, isso
é magnífico, é um tempo de uma absoluta indeterminação.
De qualquer forma, é interessante pensar: talvez pensar
seriamente a presença do presente, quer dizer, o que é a presença
do presente. Provavelmente a presença do presente é, na minha
20
hipótese, uma desierarquização dos valores, uma absoluta
simultaneidade das relações, uma ausência do futuro que está
bloqueado , um acúmulo radical de todos os passados que estão
armazenados e citados à vontade e, principalmente, uma indefinição
do que seja, por exemplo, o corpo. A gente teria que pensar também
o corpo. O que é o corpo, quando ele se move, quando ele entra em
contato com o computador? O que é o sujeito, nessas várias
conexões? A gente teria que discutir até se hoje ainda vale o nosso
modelo lingüístico significante, significado que dá conta, como
uma semiótica, dos fenômenos culturais, ou se a gente não deveria
recuperar aquilo que o Jean François Lyotard propunha como uma
energética, uma teoria de pulsões, uma teoria libidinal da produção
cultural.
Mas isso são hipóteses. Eu acho que falo muito. Inclusive tinha
um texto feito e não o segui, eu me perdi falando outras coisas.
Espero não ter sido excessivamente perdido. Desculpem-me, eu falei
de maneira arbitrária. Talvez eu tenha sido apenas pós-moderno.
Obrigado. [Aplausos. Pausa.]
Então, vocês acham que deu para situar alguma questão? A
minha idéia foi lhes propor assim, de repente, três hipóteses sobre a
temporalidade pensada como uma articulação social. Quer dizer,
essa hipótese de que fala o Koselleck, do tempo Antigo Regime, um
tempo teológico, em que Deus está presente; o tempo iluminista, que
a gente encontra nos iluministas e no marxismo, essa hipótese de
uma crítica e da superação; e o tempo pós-moderno, que parece não-
tempo, que parece uma eternidade. Como dizia o Drummond, como
ficou chato ser moderno, agora serei eterno. É mais ou menos essa
situação em que somos póstumos em relação a nós mesmos, nós já
morremos e nós continuamos vivos — isso é que é legal.
VERA PALLAMIN — Professor, uma das coisas que nós temos
discutido muito aqui na FAU é justamente a ausência de crítica no
campo da arquitetura. O discurso crítico, quando vem, na verdade
ele vem frouxo. Normalmente o que a gente sente mais falta, em
termos gerais, é essa grande ausênsia. Isso por um lado. Por outro, a
21
ausência de categorias, tal como o senhor disse, eu tenho a
impressão que na arquitetura é um dos pontos mais críticos até pela
própria questão propositiva da arquitetura. Normalmente ela não
pensa suas categorias. [Pergunta parcialmente inaudível]
Eu posso falar a partir sempre do que eu vivo — e o que eu vivo
muita vez é muito restrito. No caso da arquitetura, tenho seguido às
vezes um debate. Conheço, por exemplo, as discussões feitas aqui
pela Otília Arantes, que eu acho que vem numa chave marxista e às
vezes até um pouco nostálgica, crítica mas melancólica, às vezes um
pouco reclamando do leite derramado, embora seja muito eficaz.
Eu me lembro de uma banca de que eu participei, de uma
orientanda da Otília, que é uma arquiteta mas que defendeu uma
tese sobre o Barragán na área de estética, na Filosofia, aqui na USP.
E que, para discutir a arquitetura do Barragán, ela lançava mão das
teorias do Baudrillard e de outras teorias de críticos do pós-
modernismo e críticos pós-modernos sobre arquitetura. E eu me
lembro que uma das principais categorias críticas que ela
trabalhava, ao estudar o Barragán, era a idéia da desaceleração. Ela
propunha, por exemplo, a hipótese de uma crítica que não trabalhava
mais com os conceitos macro — “a revolução”, “a humanidade”, “a
luta de classes”, “o proletariado”, “a burguesia” — que, no limite, são
generalidades muito generosas mas muito amplas, e a idéia de uma
crítica no micro, a idéia de uma crítica da prática situada, datada
daquele tipo de agente histórico para aqueles receptores naquela
situação. Então é a idéia de uma crítica que, por exemplo, levantasse
as condições de possibilidade de produção daquele objeto num
determinado estado da cultura naquela situação, com tais
determinações materiais, com tais limitações. Então a tese dessa
professora — é a Hygina Moreira Bruzzi, de Belo Horizonte — é
muito bonita, muito eficaz, porque ela fazia uma hipótese das
apropriações que o Barragán fazia da arte moderna e, ao mesmo
tempo, da velha arquitetura asteca-tolteca mexicana, da arquitetura
indígena. Ao mesmo tempo ela mostrava as condições de trabalho de
um arquiteto como ele, da formação dele como arquiteto no México,
22
quer dizer, num país latino, com uma determinada tradição, e a
relação que ele estabelecia com a arquitetura européia e a norte-
americana. Ao mesmo tempo ela introduzia, para discutir a
arquitetura produzida por ele, categorias que ela importa da teoria
crítica francesa do pós-moderno, em que ela propunha essa hipótese
da desaceleração. Eu me lembro que era uma das coisas
fundamentais do trabalho dela. A idéia, por exemplo, de que as
nossas sociedades são cada vez mais rápidas, de que nós vivemos um
presente contínuo e que, aparentemente, embora o futuro não venha
nunca e o passado esteja acumulado, nós temos menos tempo no
tempo, cada vez mais nós estamos mais afobados, cada vez mais
ocupados e cada vez mais distraídos da distração pela distração —
como diz o Eliot. Então a hipótese da Hygina é que uma arquitetura
como a do Barragán era uma intervenção política muito forte numa
prática do espaço porque ela permite desacelerar pelo modo como
ele faz o corpo se relacionar com a forma no espaço. Ela exige, por
exemplo, uma atitude contemplativa, que é uma atitude radicalmente
anticapitalista. É uma atitude até antifascista — se se pensar que a
regra básica do fascismo é “mexa-se!”, a energia. Quer dizer, é um
cara platônico, ele exige que a gente pare e fique olhando e que fique
pensando, a gente não sabe muito bem, porque ele é insípido,
neutro, chato, a gente fica parado. E ela dizia que isso era a eficácia
política dele. E, nesse sentido, acho que ela fazia um trabalho crítico
particular. Quer dizer, ela não está interessada em pensar se o
Barragán libera o proletariado mexicano, mas ela pensava que o
Barragán, naquela prática de arquiteto que é uma grande prática
, tem uma técnica muito precisa, tem um projeto muito preciso e
ela, como professora de filosofia fazendo uma tese na área de
estética, podia demonstrar que tem um sentido político, mas numa
espécie de redefinição do político, quer dizer, o político como
intervenção pontual num processo micro. Que é uma idéia
provavelmente importada do Michel Foucault, do Deleuze, essa idéia
de que o sistema como um todo é radicalmente forte mas é
totalmente frágil nas conexões. E então, como vivemos na conexão,
eu posso, por exemplo, brigar com a minha mulher, que é uma
23
neurótica, eu posso exigir dela que não seja neurótica, posso brigar
com o meu patão, posso brigar com meu professor, com meu colega,
posso conseguir pequenas coisas no micro porque a idéia de que vou
salvar a sociedade é uma idéia mitológica, eu não vou conseguir
nada disso. Então essa hipótese do Deleuze é muito interessante,
essa hipótese da intervenção micro. Talvez por aí fosse uma hipótese
de buscar as categorias críticas, talvez na própria prática, no
cotidiano da prática, a gente pudesse descobrir categorias.
Evidentemente sem nenhum sentido épico ou heróico.
Eu me lembrei do trabalho da Hygina porque ele junta duas
coisas: uma reflexão estética e filosófica ao trabalho sobre a
arquitetura, que é muito bonito. Vale a pena ler o trabalho dela,
defendido com a Otília Arantes.
VERA PALLAMIN [Pergunta inaudível]
Às vezes tem um purismo nos críticos marxistas e eu acho
que eles são muito coerentes e eles têm razão. Quer dizer, a
atividade vai ser provavelmente uma reforma. É como pôr luz na
favela. Eles vão continuar favelados, vão continuar vivendo ali, o que
eles vão ter é provavelmente a luz na favela. Vai ser um conforto
para eles, do ponto de vista dos agentes. Agora, do ponto de vista da
estrutura geral, a sociedade de classes permanece a mesma e as
pessoas continuam dominadas como faveladas. Então essa crítica é
clássica, é apenas uma atitude reformista, no limite encontra a idéia
da caridade cristã. Agora, aí é uma questão quase ética, que depende
de escolhas individuais inclusive. Quer dizer, se vale a pena ou não
ingressar num projeto desses. A gente pode ter uma atitude
radicalmente teórica, crítica e totalmente fundada e dizer: não, eu
não acho que vale a pena, não vou participar disso porque isso vai
apenas realimentar a estrutura geral de dominação, ponto. E pode
ser aqueles que dizem assim: “bom, apesar de tudo a realidade está
sempre se movendo, sempre a gente pode contar com o que é
eventual e por que não entrar nisso, quem sabe?” Geralmente os
pequenos movimentos que cresceram mudaram muita coisa na
24
história, a gente sabe disso. Por exemplo, a política de reforma
agrária é conservadora? É. Será que não valeria a pena?
Quer dizer, são coisas para discutir. Eu não saberia dizer para
ninguém: você deve fazer tal coisa. Acho isso de uma imoralidade
radical. Então a hipótese é: você pode fazer, quem sabe? Mas é uma
questão ética, que é um outro problema também, se é possível uma
ética hoje. Porque não tem fundamento para uma ética. Qual seria?
GUIOMAR DE GRAMMONT E a questão do neobarroco? Como
você vê essa analogia diante do fato de que no barroco você tem um
tempo muito determinado, embora tenha também essa idéia de um
presente congelado, e o fato de que hoje a gente tem um futuro
absolutamente indeterminado? [Pergunta parcialmente inaudível]
É um campo muito amplo, esse. Me parece que nas discussões
da cultura contemporânea que propõem que a nossa sociedade é um
“neobarroco”, um “novo barroco”, ela já tem uma hipótese feita do
que seja barroco. Quem diz que a gente é um novo barroco acredita
que haja uma coisa chamada “barroco”. Geralmente, na definição
desse barroco, nas posturas neobarrocas eu penso no Calabresi e
outros , se supõe que barroco é uma arte excessiva, tumultuada,
informal, com predomínio da linha curva, exagerada, acumulada, às
vezes afetada, até de mal-gosto, kitsch e que tem uma mania de falar
de tudo, de incorporar tudo e que tem horror do espaço vazio, horror
do vácuo e que é uma sobreacumulação, uma arte acumulada. Agora,
o crítico neobarroco vê um altar feito pelo Francisco Xavier de Brito
o altar da Igreja do Pilar, em Ouro Preto, por exemplo. Aquilo é
absolutamente acumulado, realmente. Existe ouro pra todo lado, anjo
pra todo lado, Deus pra todo lado, um acúmulo radical. O crítico, ao
mesmo tempo, vê, por exemplo, um objeto feito por um autor
contemporâneo, um autor francês eu esqueço o nome dele , que
fez uma cadeira radicalmente antifuncional, toda acumulada de
botões e pregos e espetos parece um objeto do Man Rey, um
negócio todo desconforme. Aquilo é tão acumulado de coisas, tão
exagerado, que o crítico diz: este é um fenômeno evidentemente
25
próprio do barroco, isso é neobarroco. O crítico tem uma outra
hipótese aí também implícita que é a idéia de que há uma forma
universal de mentalidade, de que aquilo que aconteceu no século
XVII provavelmente se repete no século XX porque provavelmente é
um universal do espírito humano. Existe o espírito humano o que é
discutível , depois há uma universalidade da forma e aquilo que foi
usado no XVII pode ser usado de novo a ponto de ser “neo”.
Agora, a primeira dúvida que a gente tem é a seguinte: que
aquela arte tipo Francisco Xavier de Brito, no século XVIII mas que
no Brasil é XVII, o nosso século XVII dura duzentos anos, até a
Missão Francesa, 1817 pelo menos... O crítico que diz isso está
supondo o seguinte também: que existe, acima da diferença
histórica, na analogia, um dado essencial que é uma “expressão
barroca”. Agora, o crítico do crítico poderia lembrar o seguinte: que,
no século XVIII, trata-se de uma monarquia absoluta e, no século XX,
trata-se de um processo capitalista pós-industrial; que, no século
XVII, trata-se de uma sociedade de ordens, baseada na idéia de
hierarquia e de fidalguia e que, no século XX, essa idéia está morta
desde a Revolução Francesa; que, no século XVII, trata-se de uma
sociedade que acredita que Deus é causa e fim do tempo e que, no
século XX, evidentemente, Deus é apenas uma presença da condição
da lógica, da condição do silogismo, quer dizer, creio em Deus, logo
eu penso posso pensar assim. Então talvez as diferenças sejam
muito maiores do que as identidades.
Agora, por que há interesse em dizer que a gente é neobarroco,
no Brasil? Essa é uma outra questão. A gente sabe que na América
espanhola por exemplo, em Cuba ou no México ou na Colômbia
os processos de emancipação política tiveram que afirmar, como
afirmaram no Brasil, uma originalidade local. Então Lezama Lima,
em Cuba, fala em “el señor don barroco”, quer dizer, “o senhor
barroco”. É justamente essa capacidade cubana de juntar a cultura
indígena, a cultura africana e a cultura espanhola, misturar tudo isso
e dar uma solução local que, desde o início, sendo uma cultura
crioula, diz ele, afirmou valores locais contra a dominação espanhola
e, depois, contra a dominação norte-americana. Então a gente tem a
26
idéia de um neobarrco afirmado em programas nacionalistas de
tradições locais contra a dominação interna e a externa.
Mas tem também outras coisas e no Brasil isso é tenebroso
, que é a idéia de uma historiografia que nós temos, que é uma
historiografia conservadora, que afirma que os processos da nossa
colonização e do nosso Império e da nossa República sempre foram
harmônicos e feitos com a máxima delicadeza e que o que
caracteriza o Brasil é fundamentalmente a integração cultural, a
integração social e o respeito pela diferença. Quer dizer, aqui
sempre cabe mais um. Agora, quando a gente vê um altar do Brito,
aquilo tem uma citação de estilemas romanos, medievais,
renascentistas, uma citação de mil coisas que aparentemente estão
coexistindo ali, integradas. Na verdade, aquilo está hierarquizado.
Agora, quando a gente diz que nós somos neobarrocos como o altar
do Brito era barroco, nós estamos falando também que o que
caracteriza a nossa mente, a nossa cultura, é esse padrão de
integração da diversidade de maneira harmônica, apenas acumulada.
Ao mesmo tempo vocês percebem, por exemplo, quando o Fernando
Henrique se alia com Antônio Carlos Magalhães, quando a chamada
crítica intelectuália do Sul se alia com a oligarquia nordestina, o
discurso que veio validando isso foi o discurso justamente da
integração e de um tradicional destino do povo brasileiro para ficar
acima das discussões, das divisões etc.. Quando nós dizemos que nós
somos neobarrocos nós justificamos uma tradição de dominação.
Então tem um uso político da coisa que é um uso que produz
tradições no sentido da validação dos interesses contemporâneos.
Então, nesse sentido, a gente pode ser violentamente crítico disso
dizendo: olha, aqui está havendo uma apropriação desses restos dos
séculos XVII e XVIII, usados por tal crítico que tem tal compromisso
com tal grupo, propondo isso em função de tal interesse e está
produzindo esse efeito. No Brasil acho que vai por aí viu, Guiomar?
essa idéia do neobarroco. Se bem que anda meio desaparecida.
Barroco tem aqui também um dado nobilitador. Barroco virou
um fenômeno burguês. Você imaginar, por exemplo, o grande
espetáculo mítico que a FIESP produziu ano passado e validado
27
inclusive por intelectuais da USP, isso que é mais assustador...
Fizeram aquele evento no prédio da FIESP e a gente entrava num
templo, parecia um templo maia o modo como a gente entrava
naquele espetáculo... Mas era uma ostentação de poder econômico.
Quer dizer, quem tem hoje no país essas peças. Era assim uma coisa
esmagadora, associada à tradição católica, à idéia de que somos
naturalmente católicos, naturalmente religiosos e naturalmente
subordinados como membros de um corpo místico, como se a gente
fosse barroco. É uma coisa espantosa. É por isso que estava
brincando com vocês, mas é real: as grã-finas mineiras hoje que
dizem, nas colunas sociais de Belo Horizonte, as socialites:
Aleijadinho? O meu é Aleijadérrimo! Vejam a barbárie que é uma fala
como essa. Porque provavelmente ela está dizendo: eu sou casada
com banqueiro e eu posso comprar. Ou então: eu sou amante de tal
ministro e ele me consegue etc. É abissal a barbárie, é assustadora,
mas é o que está aí.
Então o barroco tem esse uso de validação de classe. Eu acho
que é muito forte isso hoje na cultura, porque ele produz uma
tradição num país que procura doidamente tradições, ele nobilita. A
gente vê isso até numa indústria que existe nos arredores de cidades
como São Paulo, uma indústria de coisas barrocas. Vocês já viram:
móveis barrocos, artifícios barrocos, objetos barrocos que as pessoas
compram para ter provavelmente uma origem, uma tradição. Uma
coisa kitsch radical, mas está aí. Eu penso que é por aí, Guiomar, não
sei. Tem mais coisa mas eu falo demais. O Guimarães Rosa dizia que
é melhor falar bobagens do que calar besteiras. O Rosa é um cara
sábio, não é? [Pausa]
E então? Vocês estão plenos de tempo... Acabou?
PESSOA NÃO IDENTIFICADA A gente, quando sai do colegial,
nem sabe o que é barroco. Na verdade, “barroco” não existe, na
época eles não chamavam... [Pergunta parcialmente inaudível]
Não, não chamavam. A melhor definição que ouvi do termo
“barroco” foi em Mariana, de um menininho, daqueles guias, levando
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um grupo de turistas ali na Sé de Mariana. Ele bateu a mão na
parede assim e falou: tá vendo?, isto tudo é barro, aqui não tinha
pedra quando eles fizeram isso e então eles encheram de barro, é
por isso que a gente chama de “barroco”. E as senhoras
concordaram. Achei uma definição radicalmente funcional. Funcional
e funcionalista. Putz, esse menino tá com tudo! É linda, a definição,
muito bonita. Agora, o nome a gente encontra atestado pela primeira
vez eu acho que em 1593, num texto de um português, o... ai!, aquele
do Colóquio dos simples e drogas e cousas medicinais da Índia... o
Garcia de Orta. Ele usa esse termo para nomear umas pérolas que
traziam da Índia, da região de Baróquia, e que em português foram
chamadas “barrocas”. Então é o nome de uma pérola irregular. Aí ele
começa a nomear brincos de homem e de mulher. “Usava barrocos”,
quer dizer, usava brincos de pérola.
Agora, no século XVII, o termo sai do português, entra no
espanhol barroco e vai para o francês baroque e entra no
inglês baroque , para o alemão barock , para o italiano
baròcco e vai para outras línguas da Europa, passando a significar
qualquer coisa que seja irregular. Então a gente encontra, por
exemplo, no teatro francês do século XVII, a idéia de que uma
determinada personagem tem um “rosto barroco”, quer dizer, que
tem um rosto irregular, que o rosto é feio. A palavra quer dizer feio,
mal-gosto. Esse termo vai assim até o fim do século XIX.
Provavelmente é o Wölfflin que usa, pela primeira vez, quando ele
propõe aquela hipótese de que existe, entre a coisa neoclássica do
XVIII e o maneirismo italiano do XVI que eles chamam de uma
outra arte o termo “barroco”. Ele e o professor dele, o Buckhardt,
que já havia usado esse termo. Agora, os homens do século XVII que
faziam arte — os poetas, pintores, escultores — se diziam
“engenhosos”, “agudos”, “prudentes” ou então nomeavam suas
práticas segundo o estilo retórico que aplicavam. Então um Fulano
que escreve por frases curtas, em ordem direta, com no máximo
quatro palavras por frase e sem adjetivos, ele é “ático”. Um Fulano
que gosta de um período composto por quarenta e sete orações, com
29
ordem invertida, com muito adjetivo, é “asiático”. São os termos que
a gente encontra.
Agora, esse modelito barroco, neoclássico, romântico etc. vem
da história hegeliana do século XIX e da história da arte que quer
enfiar tudo dentro de uma etiqueta. A hipótese talvez crítica é que a
gente não necessita da etiqueta e que é mais interessante ir às
próprias práticas artísticas e reconstruir, na hipótese de fazer uma
arqueologia, o modo como aqueles artesãos e poetas pensavam a sua
própria prática. Hoje, nesse campo não-hermenêutico... [interrupção
na gravação] ...história que vem do iluminismo, a gente está
refazendo essas histórias. A história da arte está nessa de novo, essa
idéia de que é preciso buscar a materialidade da prática para dizer
alguma coisa sobre o objeto — embora aqui no Brasil, pela própria
inércia da universidade, ainda domine no ensino esse modelão século
XIX e também interesses políticos na dominância desse modelo. No
Brasil, o fato de a gente permanecer, no campo da história literária
ou da história da arte, mantendo o modelo do século XIX de crítica
evolutiva justifica politicamente o compromisso, por exemplo, das
elites burguesas e do Partido Comunista com elas no sentido de um
etapismo de classe. A idéia, por exemplo, de que é cedo para fazer a
revolução — sempre me foi ensinado isso, quando eu era moço
porque a gente precisa ainda se aliar à burguesia nacional contra a
verdadeira burguesia internacional que nos explora. É preciso fazer
a revolução burguesa no Brasil para depois pensar nessas coisas. Por
enquanto, então, nós devemos manter as tradições. Por enquanto nós
mantemos os esquemas evolutivos de ensino da história. Na nossa
universidade tem um currículo cego, mudo, que passa no modo como
a gente ensina os conteúdos. A própria idéia de disposição
cronológica na história da arte clássico, barroco, neoclássico etc.
ensina isso, ela forma a cabeça com essa idéia de que existe uma
evolução. Que interessa a processos do presente. Agora, a gente
poderia criticar isso daí mostrando o compromisso disso com elites
brasileiras desde o século XIX e mostrando que geralmente são
hipóteses historicamente infundadas, que é apenas um modelo de
historiografia que dominou os outros, por várias razões ideológicas e
30
políticas, mas que não é o modelo único ou verdadeiro ou acabado de
história, que a gente pode fazer outras hipóteses. Principalmente
quando se leva em conta que, num recorte de tempo, a gente
encontra uma grande pluralidade de tempos que a gente precisaria
explorar. É por aí, eu acho.
VERA PALLAMIN [Pergunta inaudível]
A discussão desses jogos de linguagem acho que ela vem... [fim
do lado B da fita 1]
...sobre alguma coisa. Então é a idéia de que todo enunciado
tem uma referência — aquilo sobre o que se fala — e tem um sentido
— aquilo que se atribui àquilo de que se fala. Sentido e referência e a
significação associada aos dois, na relação dos dois a gente tem a
31
significação. Ao mesmo tempo, a lingüística mostra que o outro
elemento da fórmula — alguém diz para alguém — envolve
justamente o emissor e o receptor que, logicamente, são aquele que
emite e aquele que recebe, mas em termos concretos são indivíduos
situados em práticas concretas ou são instituições — a Rede Globo,
por exemplo, transmitindo o jornal hoje à noite ou o presidente
falando. Então a lingüística dá conta de duas grandes possibilidades
de estudo do discurso. Quando eu tento estudar, por exemplo, a
relação de sentido referência-significação, trabalho ou com as
técnicas de construção do discurso, com a sintaxe, ou com as
técnicas de significação do discurso, como a semântica. Agora,
quando a gente vai discutir as relações entre emissor e destinatário,
entre o que fala e o que ouve, a gente está numa pragmática, na
discussão da prática.
A "teoria dos jogos" — theory games — veio justamente de uma
especialização da lingüística norte-americana e francesa na
pragmática, na discussão do que acontece quando alguém fala e
alguém ouve. Então vocês lembram, por exemplo, aquela idéia de
que há enunciados meramente constativos — eu digo: chove — e se
eu digo que chove alguém que ouve pode dizer: “verdadeiro ou
falso”. Agora, há enunciados que são basicamente performativos que
visam não propriamente constatar um fato mas visam interferir
numa ação, produzir uma ação. Eu digo: cala a boca. A pessoa não
pode perguntar: “verdadeiro ou falso?”. Ela não pergunta, é uma
evidência que eu estou mandando calar a boca. Ela pode discutir a
minha autoridade para mandá-la calar a boca, mas não o fato de eu
estar mandando calar a boca. Há ainda enunciados performativos
que são puramente atos ilocucionários. Por exemplo, eu digo de mim:
estou tão triste hoje à noite! Mas estou falando isso porque eu quero
que ela me console. Na verdade, não estou triste, eu estou querendo
que ela me beije, por exemplo, ou que me compre uma pizza. Então
essas várias possibilidades de uso da linguagem em função de uma
modificação do comportamento do agente ou do destinatário ou da
própria situação em que os dois estão envolvidos.
32
A lingüística foi toda para essa questão principalmente porque
era uma discussão de uma teoria da tradução. Por exemplo, o que
acontece se eu, norte-americano, vou numa embaixada diplomática à
China comunista e eu vou traduzir simultaneamente do chinês para o
inglês quando o ministro chinês estiver falando para um diplomata
americano que tem que tomar uma decisão rápida? A gente sabe que
os chineses têm atos ilocucionários, perlocucionários etc. próprios da
cultura deles. Eu, americano, tenho outros. Se eu fizer uma tradução
equivocada posso produzir uma guerra nuclear. Então a questão,
para variar, foi de novo política, quer dizer, era uma aplicação da
lingüística na discussão desse campo ligado à tradução mas tentando
regular, inicialmente, relações políticas, relações diplomáticas. Daí o
positivismo lógico, por exemplo, inglês foi para a idéia de inferência,
conclusão, exclusão, das várias operações lógicas que a gente pode
produzir no discurso a cada momento que a gente fala. Mas sempre
envolvendo eu-tu/tu-eu.
No anos 60 e 70 a gente encontra essa teoria aplicada no
ensino da teoria literária na França e na discussão psicanalítica.
Principalmente o Lacan, que começa a discutir essa hipótese eu
não sei se chateio vocês, se eu estou falando demais , mas aquela
idéia que o Lacan faz: será possível construir uma gramática da
loucura? Porque a loucura é uma retórica, ele diz, a loucura é uma
agitação, quer dizer, o louco é falado, o louco produz imagens, coisas
aparentemente sem nexo. Será possível o psicanalista fazer uma
sistematização de todos os discursos da loucura que permita a ele
prever um discurso louco? E o Lacan fez a hipótese de que era
impossível sistematizar um discurso da loucura porque, por
definição, a loucura cai fora de qualquer sistematicidade, a loucura,
por definição, se define como não-racionalidade. Se a gente vai
racionalizar a loucura, a gente estaria numa contradição. Então a
hipótese do Lacan é: o psicanalista fica com o ouvido atento ao ato
de fala do louco, que é um jogo de linguagem. Então ele deve
dominar técnicas que lhe permitam compreender não teoricamente a
loucura mas entender aquele ato particular, aquela prática
particular.
33
Essas hipóteses que vinham da psicanálise, a gente sabe,
entraram na teoria literária, via lingüística, e entram numa grande
discussão sobre a categoria do personagem, a categoria do sujeito e
sobre a própria idéia de “verdade”. Quer dizer, alguém diz para mim:
“eu te amo”. A pragmática mostra que a pessoa pode estar dizendo:
“eu te odeio”. Então qual o critério de validade daquilo que está
sendo dito? Agora, no fim dos anos 70, vocês se lembram, o Jean
François Lyotard fez um enunciado, que causou um grande
escândalo, em que ele diz o seguinte: no modelo iluminista de
história — e que é o modelo marxista — a gente tem uma meta-
narrativa, todas as narrativas, todos os acontecimentos, todos os
eventos podem ser incluídos numa macro-narrativa que dá conta
deles. Que é a idéia da narrativa da sociedade como luta de classes,
do sujeito histórico da luta que é o proletariado, do inimigo histórico
que é a burguesia, das fases do comunismo primitivo até chegar à
ditadura do proletariado e das categorias — ideologia, alienação,
falsa consciência, valor de troca, valor de uso, mercadoria,
fetichismo — que faz o marxismo clássico. O Lyotard dizia: o estado
atual da realidade mostra que é impossível subordinar a realidade a
uma meta-narrativa. Não há hoje mais uma meta-narrativa que
consiga dar conta da pluralidade da realidade. É como se ele
dissesse que a realidade tinha ficado infinitamente maior do que
qualquer discurso. E que o discurso que até então dava conta dela
era extremamente redutor. Ele dizia: o marxismo é uma redução, a
realidade tem outras coisas que não cabem nesse modelo. A hipótese
que ele fez, então, era aquela idéia de recusar o modelo do signo —
significante/significado — e cair na idéia de um investimento libidinal
dos sujeitos agentes enquanto pulsão, a cultura como pulsão — troca
de pulsão de morte, pulsão de vida, investimento anal, investimento
oral, esquizoanálise, esquizofrenia, todas essas discussões que vêm
fortes na cultura. E, ao mesmo tempo, a idéia de que qualquer
discussão da cultura deveria então, antes de começar a falar
qualquer coisa, perguntar para o objeto: segundo quais regras você
se propõe para mim? Porque isso faria o seguinte: se eu vou discutir
um discurso católico, e se eu sou ateu, se exijo dele que ele seja ateu,
34
eu não estou entendendo, na hipótese do Lyotard, as convenções que
ele propõe enquanto discurso católico. É quase a idéia de que eu
deveria admitir que ele é um jogo particular de linguagem — o
discurso do cristianismo — que não pode ser reduzido às categorias
de um discurso ateu. Se fizer isso eu estou cometendo um erro
epistemológico, eu teria que tentar entender o discurso
antropologicamente, eu teria que tentar pensar católico mesmo
quando eu não o sou para entender o catolicismo. É essa idéia que
vinha da antropologia também, de que o observador não é neutro,
mas que ele faz parte do objeto que ele observa. E que então, por
exemplo, se vou ver os índios bororo, eu não posso olhá-los de fora
mas tenho que me esforçar o máximo possível para tentar pensar
como um bororo pensa quando ele faz aquele XY ritual. Agora, a
idéia do Lyotard era que a cultura toda se determinava como jogos
de linguagem específicos. Então havia o regime literário, a ficção, a
idéia, por exemplo, de que desde o século XVIII a gente vive isso no
Ocidente. Quer dizer, a gente tem um grupo de discursos que a
gente nomeia “ficção” e “literatura”. Então a gente lê ou se aproxima
desses discursos com determinadas regras pragmáticas. Elas são até
inconscientes, mas a gente usa certas regras. Tem um outro grupo
de discursos que a gente chama “política”. A gente lê de outro jeito.
Outro grupo é “moral”, outro é “religião”, outro é “mito”, outro é
“história”. A hipótese do Lyotard é que eu não poderia ler o discurso
da história nem o da literatura ou o da religião incluindo todos num
macro-discurso que seria o discurso marxista. Quer dizer, esse
discurso, na hipótese dele, é um discurso redutor. A idéia dele era
que a realidade é tão múltipla, tão plural que seria necessário
sempre levar em conta a particularidade do objeto e o tipo de regra
particular que ele propõe para o observador.
Daí a hipótese dos theory games, dos jogos de linguagem. Quer
dizer, eu acho que é uma importação lingüística da pragmática, ela
passa pela teoria psicanalítica sobre a não-unidade do sujeito, inclui
as hipóteses antropológicas dos anos 60 e 70 — e até antes, Lévi-
Strauss também —, também a idéia da física de que o observador faz
parte do campo, que o observador está dentro do objeto, e que então
35
é necessário um saber da... De novo a idéia do micro e da
particularidade do objeto. Você encontraria isso na discussão que o
Lyotard tem também sobre o pós-moderno. Ele foi evidentemente
criticado pelo Habermas, que viu nisso uma afirmação de fim da
história e de negação do sentido. A hipótese do Lyotard era a de que
ele não estava negando o sentido mas, ao contrário, afirmando que o
sentido é múltiplo, que há uma proliferação de sentidos e que a
postura dele era uma postura anti-teológica. Isso ele vai dizer: que o
marxismo é uma última teologia, que o marxismo é o resquício de
religião que ainda sobra na gente enquanto pensamento.
Quer dizer, é um campo de forças, é um campo de lutas, é um
saco de gatos, não é uma coisa amena, é uma briga realmente. Acho
que passa por aí, não sei se te respondo também. [Pausa.]
Quer dizer, talvez a gente tenha observado na cultura uma
espécie de esvaziamento. O Gumbrecht fala muito bem disso. Ele diz
que houve uma destotalização, que na hipótese clássica existe uma
totalidade prévia — que é “o real”, “o sujeito”, “o objeto” — e existe
uma totalização a posteriori que a gente produz no ato do
conhecimento. Na hipótese do Gumbrecht, nesse campo não-
hermenêutico, teria acontecido no Ocidente, dos anos 70 para cá,
nisso que a gente chama pós-moderno, uma destotalização. As
categorias de totalidade e destotalização, que são centrais no
marxismo, foram para o espaço. Ao mesmo tempo isso teria
produzido uma desreferencialização. As categorias evidentes de
referência, de objetividade, de evidência foram para o espaço. Ao
mesmo tempo isso teria produzido uma dessemantização. A idéia de
que agora a gente não vai procurar o conteúdo, o significado, a
semântica mas a relação, a função, a sintaxe. E isso teria produzido
também uma desumanização. Quer dizer, seria o fim do humanismo,
o fim do modelo de homem que dominou no iluminismo. Aquela idéia
do Michel Foucault, de que o homem morreu. Morreu o modelo
iluminista de homem, que durou do fim do XVIII até metade do
século XX.
Evidentemente essas posturas são extremamente polêmicas e
há muita crítica a elas. Mas elas estão fortíssimas na cultura,
36
inclusive porque eu acho que elas têm capacidade — o marxismo não
tem, o marxismo só descreve negativamente — de descrever o campo
da cultura hoje. Elas não têm muita capacidade de propor
alternativas, elas dizem: “é assim mesmo”. E, nesse sentido, elas são
muita vez extremamente conformistas. Agora, a crítica que se faz,
justamente, é como produzir novas categorias teóricas e críticas
numa situação em que aparentemente a teoria e a crítica foram para
o espaço. Parece meio contraditório. Mas é divertido. [Pausa.]
No más?
PESSOA NÃO IDENTIFICADA — Sérgio Buarque de Holanda faz um
paralelo entre a América espanhola e a América portuguesa e coloca
que a portuguesa.... [Pergunta parcialmente inaudível]
Bom, que a história brasileira não é um mar de rosas, a gente
sabe. Não sei se é preciso falar. Eu só pontuo um caso, eu acho
interessante. Em 1556 o Estácio de Sá, que era sobrinho do Mem de
Sá, parece que na região de Ilhéus, na Bahia, fez uma fila de sete
milhas de índios mortos porque eles se recusavam a obedecer a
autoridade dos jesuítas, do padre Nóbrega. Eu acho que um pequeno
exemplo desse mostra como é uma história muito harmônica, porque
os índios ficaram muito quietos. E a gente tem outras referências
assim bárbaras, não só com índios. Basta pensar, por exemplo, o que
é ser um branco pobre numa sociedade escravista. Pensem o que é
ser negro nessa sociedade. E pensem, por exemplo, o terrível que é o
Brasil. Eu acho que é uma bobagem essa idéia de uma colonização
harmônica, genial, generosa, cordial. De modo algum.
Agora, a gente sabe que, em 1924, quando os modernistas
foram a Minas — então foi o Oswald de Andrade, o Blaise Cendrars,
o Mário de Andrade, a Tarsila — eles foram parar em Ouro Preto,
que era uma cidadezinha ainda abandonada porque Belo Horizonte
tinha já virado capital, e era uma cidade acho que modorrenta, acho
que desde o século XVIII ela estava meio morta, e eles então —
Oswald de Andrade principalmente, que na Europa estava vendo as
cores puras do cubismo — quando viram as fachadas coloniais de
37
Minas e viram aquelas casinhas muito geometricamente dispostas e
aquelas cores contrastantes — o azul, o ocre, o vermelho —, fizeram
uma hipótese de que os homens do século XVIII que haviam feito
aquilo eram cubistas. E eles fizeram uma hipótese de que o Brasil já
era moderno. Aquela idéia — aliás, o Antônio Cândido vai afirmar
isso — de que aquilo que na Europa teria sido um processo de crítica
artística que tinha durado pelo menos desde o século XVIII, pelo
menos desde os românticos, de radicalização crítica, de rupturas, e
que tinha chegado até essa postura anti-figurativa típica das
vanguardas do início do século, chegando à idéia de uma cor pura —
por exemplo, na pintura cubista ou no fauve —, no Brasil seria um
dado constitutivo da nossa raça, da nossa formação. É como que,
para um brasileiro, aquilo que para um europeu seria algo difícil de
entender pela primeira vez, aqui seria algo conatural, é como se o
Brasil tivesse uma vocação modernista. Daí então a hipótese que eles
fizeram de que eram “os primitivos de uma nova era”, como diz o
Oswald de Andrade, usando a idéia do primitivo como o início mas
também o primitivo como aquele que tem o olhar puro, simples,
direto e que está inaugurando o moderno aqui. Daí a idéia de que,
por sermos barrocos, nós já éramos modernos, antigamente.
Nesse sentido, eu acho que você encontra, por exemplo, a
hipótese que eles fizeram de que teria havido uma tradição interna
no país, vinda desde os jesuítas, e que teria tido uma fusão muito
feliz, produzindo um tipo de arte mulata, mestiça, que teria sido o
barroco — a hipótese, por exemplo, do Mário de Andrade, a
representação máxima seria um expressionista, um Aleijadinho — e
que esse processo teria sido atalhado, cortado pelo meio pela Missão
Francesa. A idéia de que quando o d. João VI mandou vir os
franceses, em 1817, estes impuseram artificialmente às elites um
gosto neoclássico francês que não correspondia absolutamente à
tradição real do lugar. Mas os franceses imediatamente disseram:
“bom, essa arquitetura portuguesa é de péssimo gosto, isso é uma
coisa de bugre, isso é uma coisa de negro, isso é uma coisa inferior,
vamos pôr o neoclássico”. Os pintores acadêmicos franceses
disseram: “não, vamos fazer a pintura neoclássica, chega dessa coisa
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horrível, católica, monstruosa, de mal gosto” — como a gente
encontra realmente nos cronistas. A idéia então dos modernistas era
que era preciso criticar um passadismo mas identificado
provavelmente com essa macaqueação da Europa e que a gente
encontrava nos parnasianos — por exemplo, um Olavo Bilac, um Rui
Barbosa, um Coelho Neto. Nesse sentido, uma atitude passadista
sendo criticada por um Sérgio Buarque. Mas ao mesmo tempo a
hipótese: é preciso recuperar o passado naquilo que ele tem de
autenticamente brasileiro como constituição da nacionalidade. Quer
dizer, os modernistas não foram contra o passado, eles foram contra
uma atitude passadista que, segundo eles, macaqueava inutilmente
Paris sem ter nada a ver com o Brasil. Daí a supervalorização que
eles fizeram do barroco, que a gente encontra, por exemplo, na
pintura da Tarsila e no Oswald de Andrade — aquela idéia de uma
síntese e que, ao mesmo tempo, vai buscar lá as fontes. Como ele diz:
“bárbaro e nosso”.
PESSOA NÃO IDENTIFICADA — [Pergunta inaudível]
Justamente. Como diz o Oswald de Andrade: “pintura que não
tinha carneirinho, lã de verdade, não era pintura”. Eu tenho a
impressão de que o Sérgio Buarque vai nessa chave, quer dizer, de
recuperar, na hipótese que eles faziam, de recuperar uma tradição
local.
PESSOA NÃO IDENTIFICADA — [Pergunta inaudível]
É, a interpretação dele também é histórica. Você deveria
também levar em conta que, no momento em que ele está propondo,
é provável que fosse o tipo de documentação que ele tivesse ou então
o interesse mesmo de afirmar isso nesse momento. A gente deveria
talvez determinar mais para saber porque ele está fazendo esse
enunciado, que parece que a mínima evidência contradiz. Que é
também o Gilberto Freyre, por aí. A idéia de um escravismo ameno.
A mucama, a mulata... A Maria Sílvia de Carvalho Franco mostrou
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muito bem como isso é uma bobagem, aquela hipótese do Freyre,
vocês lembram, aquela idéia de que a ama-de-leite negra ou a
mucama ou o moleque que teria vivido junto com os senhores
durante todo o período da colonização e do Império brasileiro teria
adoçado as relações humanas. A Maria Sílvia de Carvalho Franco, no
livro dela lindíssimo que é Homens livres na ordem escravocrata,
vocês conhecem, mostra uma coisa muito interessante: que em
situações de crise os senhores, que eram plantadores de café ou de
cana, imediatamente vendiam os escravos da família, que estavam
mais perto — inclusive o sinhozinho vendia a negra que tinha dado
de mamar para ele —, porque o interesse era o lucro. Ou então eles
mandavam imediatamente para o eito. Quer dizer, a mucama, a
mocinha negra aparentemente frágil criada para servir a mesa ia
carpir na roça nas condições mais adversas porque o que interessava
era manter a produção funcionando para exportar o produto. Então,
nesse sentido, a Maria Sílvia fala de uma bonita, a expressão
“unidade contraditória de benevolência e violência” que articula as
relações sociais no país. Porque ela mostra que isso que articulava a
relação do senhor branco com o negro também articula as relações
de favor entre o senhor branco rico e os brancos pobres que, não
sendo escravos, têm que sobreviver, mas que por isso têm que se
subordinar aos senhores numa estrutura de favor, de compadrio, de
pistolão.
Eu falo muito, mas só mais um exemplo. Aquele historiador
americano, Stuart Schwartz, conta que, quando quis estudar o
assunto que ele estuda, que é Portugal e a colônia Brasil, ele estava
em Stanford e fez uma hipótese: “tenho que aprender a língua”. Ele
já falava espanhol e então pensou: “bom, vou aprender uma coisa do
mundo ibérico, vou aprender português”. E ele diz que nas aulas de
português eram aulas de conversação tinha uma professora
carioca que deu um diálogo para eles, alunos americanos, falarem e
que o diálogo era mais ou menos assim, João e Zé conversando:
Zé, você já conseguiu emprego? Você estava desempregado.
Ah, eu já!
Mas como?
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Ah, eu tô namorando a prima da mulher do ministro.
E ele diz então que eles, americanos, não entendiam. Diz que o
exemplo ele não entendia, ele sabia palavra por palavra mas não
entendia a relação. “O que quer dizer? Não entendo!” E diz que a
professora carioca, muito gozadora, tipicamente carioca, olhava para
eles e dizia assim [imitando o sotaque carioca]: “mas vocês não
sabem?, isso é o jeitinho, isso é o pistolão, isso é o compadrio, isso é
a estrutura do favor”. Devia falar assim, eu suponho. Diz que então
ele fez uma hipótese ele é um homem muito inteligente, o Stuart
, diz que ele pensou assim: “se isso é exemplo de gramática hoje,
qual será a gênese disso?”. Então ele foi estudar justamente a
burocracia no Brasil colonial. E ele descobriu que o Direito
português e que o modo como a Justiça portuguesa durava vinte,
trinta, quarenta anos para resolver uma causa em função da
burocracia fazia com que a Justiça fosse feita no modelo do
linchamento, os senhores tomando a Justiça nas próprias mãos. E
aquele provérbio colonial: para os amigos pão, para inimigos pau. E
aí ele foi discutir o que é ser pobre e branco nessa sociedade, como
necessariamente se está numa situação de subordinação. E daí a
idéia dele é que provavelmente o Brasil ainda mantém hoje essa
estrutura em muitas relações sociais e na cultura diferentemente,
por exemplo, da América inglesa, dos Estados Unidos, onde essa
hipótese das relações pessoais interferirem na coisa pública, por
definição, é uma hipótese excluída. E como aqui a gente o tempo
todo confunde público e privado provavelmente por causa dessa
formação colonial quatrocentos anos em que a gente confunde a
esfera pública com as relações pessoais. Como então ser amigo da
mulher do ministro me ajuda no meu emprego, no meu trabalho, na
minha influência. Enquanto que nos Estados Unidos teoricamente
não, a gente tem uma competição aberta ao talento e vença o mais
forte, é um darwinismo explícito. Aqui não, aqui é um darwinismo
implícito, quer dizer, a gente precisa ser amigo da mulher do
ministro e ela ajuda a gente a passar os concorrentes para trás. Quer
dizer, as duas soluções não são boas. A nossa é uma solução mais
pessoalizada.
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Acho que é nesse sentido que você pode pensar às vezes que o
Sérgio Buarque estava propondo a idéia de uma amenidade. Porque
a gente tem essa idéia do jeitinho, a idéia de que a gente vai evitar o
conflito que na sociedade americana é explícito, a gente vai pro
pau mesmo, na coisa pública, a gente vai brigar pelo nosso direito ,
aqui parece que tem essa hipótese de que o direito é algo que a
gente recua porque vai buscar uma prática conciliatória, nós vamos
tentar dar um jeitinho. Nesse sentido eu acho que muita vez os
historiadores estão dizendo também que aqui era harmonioso. Não
sei se estou sendo muito generoso com eles, mas acho que pode ser
isso. [Pausa.]
Fini? Acabaram? Finito? [Pausa.]
Nada mais? Nada? Quer dizer, acabou o tempo?
Foi legal. Espero ter dito alguma coisa que tenha tido algum
interesse durante alguns segundos.
VERA PALLAMIN Bom, professor, muito obrigado por ter vindo.
[Fala parcialmente inaudível]
Eu que agradeço, foi muito gentil, muito legal. Obrigado.
E isso aqui, o que é, Vera?
VERA PALLAMIN São as publicações da FAU.
Ah, vou abrir, as publicações da FAU. Que bom, hein?
Pesquisas do LAPS, Sinopse... Vocês publicam bastante, hein?
Cadernos Técnicos, Caramelo essa daqui dá vontade de lamber e
Paisagem e ambiente. Ótimo!
Muito obrigado. [Aplausos]
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