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Fábio Roberto Kampmann et al. Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 292 PORTO UNIÃO – SANTA CATARINA A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO NA OBRA DE CARL SCHMITT 1 THE THEORY OF THE CONSTITUTION IN THE WORK OF CARL SCHMITT Fábio Roberto Kampmann 2 Fernando David Perazzoli 3 Orleans Antunes de Oliveira Neto Elisa Mayara Bostelmann Cainã Domit Vieira Sumário: Introdução. Constituição e constituição. Conclusões. Referências. INTRODUÇÃO Carl Schmitt não possui seu significado acadêmico apenas por questões políticas, inevitáveis para alguém que transitou por vias muito próximas àquelas em que se desenvolvia o nacional-socialismo alemão nos anos da segunda grande guerra: sua obra constitui um vasto trabalho dissertativo e criativo acerca de pontos e estruturas jurídicas, filosóficas, éticas e culturais, tendo produzido efeitos concretos tanto no campo da construção quanto no da compreensão acerca daquilo que é o direito. 1 Trata-se de trabalho apresentado pelo Grupo de Estudos no IX Simpósio de Direito Constitucional da Academia Brasileira de Direito Constitucional ABDConst, em Curitiba (PR), nos dias 21, 22 e 23 de maio de 2010. 2 Professor da Universidade Contestado e Especialista em Direito. 3 Mestre em Direito pela UFSC e Professor da Universidade Contestado.

A Teoria da Constituição em Carl Schmitt

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Fábio Roberto Kampmann et al.

Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional

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PORTO UNIÃO – SANTA CATARINA

A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO NA OBRA DE

CARL SCHMITT1

THE THEORY OF THE CONSTITUTION IN THE WORK OF CARL SCHMITT

Fábio Roberto Kampmann2

Fernando David Perazzoli3

Orleans Antunes de Oliveira Neto

Elisa Mayara Bostelmann

Cainã Domit Vieira

Sumário: Introdução. Constituição e constituição. Conclusões. Referências.

INTRODUÇÃO

Carl Schmitt não possui seu significado acadêmico apenas por questões

políticas, inevitáveis para alguém que transitou por vias muito próximas àquelas em

que se desenvolvia o nacional-socialismo alemão nos anos da segunda grande

guerra: sua obra constitui um vasto trabalho dissertativo e criativo acerca de pontos

e estruturas jurídicas, filosóficas, éticas e culturais, tendo produzido efeitos concretos

tanto no campo da construção quanto no da compreensão acerca daquilo que é o

direito.

1 Trata-se de trabalho apresentado pelo Grupo de Estudos no IX Simpósio de Direito Constitucional

da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, em Curitiba (PR), nos dias 21, 22 e

23 de maio de 2010. 2 Professor da Universidade Contestado e Especialista em Direito.

3 Mestre em Direito pela UFSC e Professor da Universidade Contestado.

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A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt

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A ideia de Constituição, como se poderia esperar, não aparece de forma

simples e determinada em sua obra, posto que é, acima de tudo, um termo limítrofe:

é lá, onde a política e o direito encontram uma nebulosa indeterminação, que

Schmitt colocará marcos teóricos e, sobretudo, de onde retirará subsídios para

sustentar que várias dentre as terminologias comumente empregadas no mundo

jurídico – entre as quais o próprio conceito de Constituição, por exemplo – teriam

diferentes significados, muito distantes do que pensam as correntes mais

tradicionais e pretensamente científicas do Direito.

De fato, é ao versar sobre temáticas como soberania, exceção, inimigo

e guerra que Schmitt mostra que o próprio Direito não é outra coisa senão um

momento secundário da história de qualquer sociedade, sendo precedido, sempre,

pela decisão primeira que o possibilitou existir. A ideia de um ordenamento jurídico,

portanto, caminha sempre à sombra da obra schmittiana e, mesmo com toda

oposição de Schmitt à limitação trazida por essa questão estritamente normativa,

percebe-se que a teoria que envolve a descrição das tradicionais normas postas

pelo legislador ordinário não é por ele negada, mas tornada diminuta.

Assim, dentro desse contexto é que surge a primeira problemática de estudo:

como saber onde está a teoria da Constituição na obra de Schmitt?

Observe-se que a mera tentativa de resposta a essa questão já demanda

um conhecimento prévio acerca da obra, eis que nela a ideia de Constituição não se

reduz ao campo jurídico e, tampouco, a uma Carta Constitucional. Por essa razão,

procurou-se em primeiro lugar tomar por ponto de ancoragem a obra “Teoria da

Constituição”, a qual foi estudada a partir da tradução espanhola, eis que inexiste

versão em língua portuguesa.

Em segundo lugar, procurou-se sondar a obra de Carl Schmitt atrás de

referências acerca da temática constitucional. Percebeu-se, assim, que é o próprio

Autor quem guia o pesquisador/estudante para os lugares onde o campo do

“constitucional” está descrito, e isto é feito, essencialmente, pela tentativa de

diferenciação entre os campos do político e do jurídico.

Aliás, esses dois temas – político e jurídico – estarão essencialmente ligados

na teoria da Constituição contida na obra de Schmitt, sendo que seus textos podem

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tanto se voltar ao direito constitucional dentro de uma temática política quanto, ao

contrário, expressar ideias políticas ao se referirem a temas estritamente jurídico-

normativos. Nesse sentido, toma-se como exemplo o Prefácio escrito por Carl

Schmitt à edição de 1963 à obra “O Conceito do Político”, onde está expressamente

consignado:

A publicação sobre o Conceito do Político é uma tentativa de satisfazer às novas questões e de não subestimar nem ao desafio (challenge) nem a provocação. Enquanto a exposição sobre Hugo Preuss (1930) e os tratados O Guardião da Constituição (1931) e Legalität und Legitimität (Legalidade e Legitimidade) (1932) examinam a nova problemática intra-estatal e de Direito constitucional, encontram-se, agora, temas relacionados à teoria do Estado com temas de Direito internacional interestatal; não se trata apenas da teoria pluralista do Estado – ainda totalmente desconhecida na Alemanha daquele tempo –, mas também da Liga das Nações de Genebra. A publicação é uma resposta ao desafio de uma situação intermediária. O desafio que dela mesma parte, é direcionado, em primeiro lugar, aos especialistas em Direito constitucional e aos juristas de Direito Internacional (SCHMITT, 2008. p. 11).

Nota-se, assim, a preocupação de Carl Schmitt em apontar que, na sua

teoria, um livro sobre o “Conceito do Político” é dirigido a especialistas em Direito

Constitucional. Tal especificação, notadamente, atinge o plano central de seu

pensamento: há uma Constituição (neste escrito denominada com letra maiúscula) e

há um constituição (neste escrito denominada com letra minúscula), no sentido de

que a primeira contém o político e é materialmente existente, ao passo que a

segunda pressupõe e depende da primeira, sendo portanto formal e se confundindo

com a tradicional e ainda existente concepção de constituição (escrita, rígida e

produto final de um poder constituinte reconhecido por “originário”).

Dentro desse quadro teórico é que se apontará, com o objetivo de fornecer

ao estudando do direito e, em particular, do direito constitucional, chaves para a

leitura da Teoria da Constituição da obra de Carl Schmitt.

CONSTITUIÇÃO E CONSTITUIÇÃO

As ideias de Constituição e de constituição pensadas por Carl Schmitt

devem ser trabalhadas tendo como norte a existência de um povo em um

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determinado tempo, ou seja, sua existência enquanto coletividade dotada de um

ethos próprio, onde se encontram reunidos princípios, tradições, regras morais e,

sobretudo, um propósito coletivo – são, pois, essencialmente valorativas. Frente a

esse quadro, o direito surgiria, portanto, como a objetivação desses valores e,

sobretudo, da decisão primeira dessa sociedade em se organizar como coletividade.

A Teoria da Constituição, dentro do pensamento schmittiano, é a teoria

daquilo que forma um Estado, isto é, da unidade política de um povo (SCHMITT,

2003, p. 29). Com essa assertiva já é possível perceber que há diferença entre a

ideia material de Constituição4 e o conceito formal de constituição5, o qual a coloca,

neste último caso, como um mero sistema de normas, sem obrigatoriedade de

consonância com a realidade do povo e sem obrigatoriedade de ser ideal

(SCHMITT, 2003, p. 29).

De forma comparativa, se se traçar um paralelo com a teoria normativista

elaborada por Hans Kelsen, verificar-se-á que ideia de constituição como lei de mais

elevado grau (norma) não passaria, nos moldes schmittianos, de uma ideia relativa

da Constituição. Por essa razão, aliás, Schmitt aponta que se poderia tentar

compreender a constituição sob vários prismas, os quais, individualmente, não

seriam suficientes para se alcançar o conceito de Constituição. A título de exemplo,

ao analisar a constituição através de sua maneira de ser, poderia se chegar a três

concepções:

a) a constituição representa a situação de unidade política e ordenação

social de um determinado Estado. A constituição diz o que o Estado, já

organizado, é6.

b) a constituição é a ordem normativa de um Estado, ou seja, diz a forma

de governo e o estatuto da sociedade organizada jurídica e

normativamente. A constituição aponta como o Estado deve-ser7; e

4 Novamente: tratada adiante com letra maiúscula = Constituição.

5 Novamente: tratada adiante com letra minúscula = constituição.

6 [...] la concreta situación de conjunto de la unidad política y ordenación social de um cierto Estado.

[...] El Estado no tiene uma Constitución – según la que – se forma y funciona la voluntad estatal,

sino que el Estado es Constitución, es decir, uma situación presente del ser, um status de unidad y

ordenación. (SCHMITT, 2003, p. 30).

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c) a constituição é o devir histórico e contínuo de um Estado, isto é, algo

em constante mutação8.

Assim, percebe-se que somente pelo prisma normativo não se alcança o

conceito de Constituição, o qual é muito maior do que simples trabalho legislativo9.

Aliás, não é por outro motivo que Schmitt, ao trabalhar com o conceito de

Constituição, aponta que o nascimento do direito se deve à força da autoridade,

isto é, ao poder da ordem do ser que através de uma vontade unitária e soberana dá

origem a um dever-ser (SCHMITT, 2003, p. 34). Esse é, pois, o fundamento onde se

justifica não só a ordem jurídica, mas também a existência do Estado. E é

precisamente nesse ponto que se enlaçam os conceitos fundamentais da teoria

schmittiana: o político, a guerra, o inimigo e a decisão.

Diz Schmitt (2008, p. 20) que o conceito de Estado pressupõe o conceito

do Político. Ocorre que o político na concepção schmittiana não está vinculado a

um conteúdo. Antes, é pura indeterminação e, por isso, poderá ser qualquer coisa,

bastando que exista a força que o permite se afirmar – uma força, aponte-se,

também sem conteúdo, avalorativa, não organizada, precedente a qualquer

instituição, ou seja, tão radical quanto o velho conceito de maldade da teoria do

hobbesiana do Leviatã10, a qual, por sinal, atravessa a teoria schmittiana.

7 [..] una manera especial de ordenación política y social. [...] Constitución és aqui = forma de

gobierno. Em tal caso, la palavra “forma” designa igualmente algo existente, un Status, y no algo

acomodado a preceptos jurídicos o a lo normativamente debido. [...] Tambíem em este punto sería

lo más exacto decir que el Estado és la Constitución. (SCHMITT, 2003, p. 30-31). 8 [...] el principio del devenir dinámico de la unidad política, del fenómeno de la continuamente

renovada formación y elección de esta unidad desde uma fuerza y energía subyacente u operante

en la base. Aquí se entiende el Estado, no como algo existente, em reposo estático, sino como

algo em devenir, surgiendo sempre de nuevo. (SCHMITT, 2003, p. 31). 9 Haveria, porém, uma exceção, pela qual através da analise da força regulamentar de uma

constituição (sem fugir do conjunto de regras que ela encarta, portanto), seria possível

compreender o conceito absoluto de Constituição. Essa compreensão do todo pela análise da

parte é possível se o Estado, em suas normas, for igual à Constituição do povo, a qual é

organizada a partir decisão fundamental que a fez existir. Expressamente, diz Schmitt: [...] el

Estado es tratado como un Deber-ser normativo, y se ve em él sólo un sistema de normas, una

ordenación “jurídica”, que no tiene uma existencia del Ser, sino que vale como debe, pero que no

obstante – puesto que aquí se coloca una unidad cerrada, sistemática, de normas y se equipara

com el Estado – sirve para fundar um concepto absoluto de Constitución. (SCHMITT, 2003, p. 33). 10

Vale apontar que Carl Schmitt não só disserta como, também, encampa algumas ideias

externadas por Thomas Hobbes. Aqui, a título de dar substancialidade à afirmação feita no corpo

do texto, cita-se a passagem da obra “O Leviatã”, supra mencionada: Os desejos e outras paixões

do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o sãs as ações que derivam

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Logicamente, se o campo do político se afirma com base na força, a única relação

que o precede é a relação entre inimigos, ou seja, uma relação de guerra.

E aqui cabe uma indagação: a guerra não se constitui na disputa bélica

entre Estados já organizados para a defesa de seus interesses e de sua soberania?

Segundo a teoria schmittiana não, sendo esse o motivo pelo qual para a

tentativa de compreensão da Teoria da Constituição em sua obra é preciso avançar

além dos próprios limites do campo jurídico e, mais ainda, do político. A guerra, para

Schmitt, é a possibilidade que estabelece, a partir da relação entre amigo-inimigo o

campo político. A guerra, para ele, não seria o acontecimento de combate em si,

mas o estado fático onde a única questão normativa é a possibilidade de dizer, pela

força, qual é o caso decisivo que implicaria em combate e, principalmente, de decidir

se este caso estaria ou não presente na realidade do mundo (SCHMITT, 2008, p.

20). O mundo político, portanto, não poderia ter, aqui, qualquer conteúdo, posto que

se formaria na própria indeterminação da força, no momento crítico. Diz Schmitt:

Também hoje, o caso de guerra ainda é o “caso crítico”. Pode-se dizer que aqui, como em outros casos, é o caso excepcional que tem um significado excepcionalmente decisivo e revelador do cerne das coisas, pois é no combatente real que primeiramente se manifesta a extrema conseqüência do agrupamento político em amigo e inimigo. É a partir desta mais extremada possibilidade que a vida do ser humano adquire sua tensão especificamente política. Um mundo no qual a possibilidade de semelhante combate estivesse completamente eliminada e desaparecida, um planeta definitivamente pacificado, seria um mundo sem a distinção entre amigo e inimigo, por conseguinte, um mundo sem política (SCHMITT, 2008, p. 20).

Como ponto último dessa questão está, pois, a Constituição, que é esse

agrupamento primeiro entre pessoas que se reconhecem consoante um referencial

(amigos) e que, através da força, decidem como a vida será ordenada. Em outras

palavras, sendo vitoriosas, essas pessoas constituirão um mundo político segundo

aquilo que decidiram – a decisão que os permitiu ser se torna, assim, a decisão

política fundamental.

dessas paixões, até o momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba, o que

será impossível até o momento em que sejam feitas as leis. Nenhuma lei pode ser feita antes de

se determinar qual pessoa irá fazê-la. (HOBBES, 2003. p. 99).

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Esse processo pode assim ser resumido:

1°) a força que funda o política está ligada a relação entre inimigos, ou

seja, é a força que se saiu vitoriosa do confronto primeiro entre seres humanos. A

relação entre seres humanos possuirá uma materialidade, será Constituída de

determinada maneira segundo alguns princípios;

2°) o mundo político é aquele onde os que se reconhecem segundo

alguns princípios passam a se organizar. Dá-se condição de existência ao Estado;

3°) surge o Estado, o qual pressupõe o conceito do político, qualquer que

seja o seu conteúdo;

4°) é elaborada a constituição formal, dependente da existência de um

Estado, podendo-se dizer até mesmo que, a rigor do constitucionalismo moderno,

ambos se fundam a partir do político;

5°) a constituição formal está totalmente vinculada à Constituição

Material, posto que dela depende para continuar existindo.

Desta forma, o conceito de Constituição é aquele que captura seus

elementos em um lugar além do texto constitucional, qual seja, a efetiva organização

de um povo sob uma vontade unitária, anteriormente decidida e vitoriosa na relação

(de guerra) amigo-inimigo. Por derradeiro, a relativização do conceito de

Constituição, ao seu tempo, é aquele que fica estritamente vinculado a

características formais (SCHMITT, 2008, p. 37), ou seja, algo que compreende

unicamente aqueles dispositivos convertidos em leis constitucionais e que nivela

todas as regras, independente do conteúdo, como hierarquicamente inferiores à

Constituição.

Na teoria de Carl Schmitt, Constituição é fundamento de unidade, ao

passo que lei constitucional é a particularidade da ideia de Constituição convertida

em texto normativo. Importa notar, no entanto, que a constituição formal não adquire

esse status unicamente pelo fato de que alguém colocou algumas prescrições em

um papel e o chamou de constituição. A rigor, é preciso que vários fatores sejam

conjugados para que se tenha aquilo que na tradição constitucional ocidental

comumente se conhece por constituição escrita, tais como (i) documentação; (ii)

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poder competente; (iii) demonstração de conteúdo; (iv) possuir estabilidade (o que

implica também em dificuldade de modificação) e (v) existir um procedimento de

elaboração material (ser convencionada, pactuada, jurada, etc.) (SCHMITT, 2008, p.

38-39)11. Uma constituição formal, portanto, ainda que aparente ser imensamente

inferior e frágil perto da Constituição, só terá esse um documento constitucional se

cumprir com os requisitos necessários à sua emissão (o que já revela que a decisão

política fundamental, pelo menos no mundo jurídico ocidental, é pelo Estado de

Direito).

Dentro desse contexto é que estão os elementos que ligam as duas

constituições: são os elementos de estabilidade que marcam a ponte entre a

Constituição e a constituição formal, pois compõem o núcleo único que representa a

vontade unitária do povo. Especificamente, o artigo 76 da Constituição de Weimar

(objeto de estudo de Carl Schmitt) seria o caso único de uma lei essencialmente

Constitucional e, ainda, demonstraria que todos os outros dispositivos não

passariam de simples formalidades12.

Por isso, a constituição em sentido positivo pressupõe um ato do poder

constituinte, o qual existe pela decisão de um povo em construir um sistema de

11

Novamente é possível perceber como Schmitt não nega a teoria normativa e a ideia de

ordenamento jurídico, mas o transforma em questão diminuta. 12

Article 76 The constitution may be amended by legislation. Constitutional changes become valid

only if at least two thirds of the members are present and at least two thirds of the present

members vote in favour of the amendment.

Decisions of Reichsrat regarding a constitutional amendment also require a two-thirds-majority. If,

requested by referendum petition, a constitutional amendment shall be decided by plebiscite, the

majority of the enfranchised voters is required in order for the amendment to pass.

If Reichstag decided on a constitutional amendment against Reichsrat objection, the Reich

president may not proclaim the amendment, if Reichsrat, within a period of two weeks, demands a

plebiscite to be held.

Tradução livre: Artigo 76 A constituição deve ser emendada pela legislação. Mudanças

constitucionais tornam-se válidas apenas se pelo menos dois terços dos membros estão presentes

e pelo menos dois terços dos membros presentes votam a favor da emenda.

Decisões do Reichrat considerando a emenda constitucional também requerem a maioria de dois

terços. Se, requisitada por referendo, a emenda constitucional deve ser decidida por plebiscito, a

maioria dos votos permitidos é necessária para a aprovação da emenda.

Se o Reichstag decidiu por uma emenda constitucional contra uma objeção do Reichsrat, o

presidente do Reich não deve proclamar a emenda, se o Reichsrat, dentro de um período de duas

semanas, demanda plebiscito para que seja mantido.

Disponível em <http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_vve.php>. Acesso em: 11 ago. 2009.

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direito (SCHMITT, 2008, p. 45). Desta forma, a constituição não é algo que se dá a si

mesma, como uma autorização ao seu existir, mas algo que é dado por unidade

política concreta e efetiva (SCHMITT, 2008, p. 46). A ideia de uma constituição

positiva, assim, traz como momento anterior uma decisão. Diz Schmitt:

No fundo de toda normatividade reside uma decisão política do titular do poder constituinte, é dizer, do Povo na Democracia e do Monarca na Monarquia autêntica. Assim, a Constituição francesa de 1791 envolve a decisão política do povo francês a favor da Monarquia com dois “representantes da Nação”, o Rei e o Corpo Legislativo. A Constituição belga de 1831 contém a decisão do povo belga a favor de um Governo monárquico (parlamentar) de base democrática (Poder constituinte do povo), ao modo do Estado burguês de Direito. A Constituição prussiana de 1850 contém uma decisão do Rei (como sujeito do Poder constituinte) a favor de uma Monarquia constitucional ao modo do Estado burguês de Direito, com o que resta conservada a Monarquia como forma de Estado (e não apenas como forma do Poder Executivo). A Constituição francesa de 1852 contém a decisão do povo francês a favor do Império hereditário de Napoleão III, etc.

13.

A decisão primeira – bem como os dispositivos constitucionais que

refletem – são mais que a constituição positivada e que as leis. São, antes, as

decisões fundamentais, políticas e concretas. Por essa razão é que teoria do direito

pensada por Carl Schmitt a partir da teoria da Constituição é chamada de

decisionista: o direito só existe por uma decisão que o permitiu existir, independente

do que foi decidido ou da maneira pela qual ele venha a se materializar. Em outras

palavras, a Constituição é intangível, enquanto que as leis constitucionais podem ser

suspensas durante o estado de exceção, e violadas pelas medidas do estado de

exceção14.

13

Tradução livre a partir de: En el fondo de toda normación reside una decisión política del titular del

poder constituyente, es decir, del Pueblo em la Democracia y del Monarca en la Monarquía

auténtica. Así, la Constitución francesa de 1791 envuelve la decisión política del pueblo francés a

favor de la Monarquía con dos “representantes de la Nación”, el Rey y el Cuerpo legislativo. La

Constitución belga de 1831 contiene la decisión del pueblo belga a favor de un Gobierno

monárquico (parlamentário) de base democrática (Poder constituyente del pueblo), al modo del

Estado burguês de Derecho. La Constitución prusiana de 1850 contiene una decisión del Rey

(como sujeto del Poder constituyente) a favor de uma Monarquía constitucional al modo del

Estado burguês de Derecho, con lo que queda conservada la Monarquía como forma del Estado (y

no sólo como forma del Ejecutivo). La Constitución francesa de 1852 contiene la decisión del

pueblo francés a favor del Império hereditário de Napoleón III, etc. (SCHMITT, 2008, p. 47). 14

Tradução livre a partir de: La Constitution es Intangible, mientras que las leyes constitucionais

pueden ser suspendidas durante el estado de excepción, y violadas por las medidas del estado de

excepción. (SCHMITT, 2008, p. 50).

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De qualquer forma, frente a esse quadro é mister consignar que mesmo sendo a

constituição algo inferior e posterior à Constituição, o texto da lei constitucional não

poderá sofrer ataques reiterados e, tampouco, ser vilipendiado ou ter sua vigência

negada pelos poderes constituídos. Visto por outro ângulo, a constituição não

poderá ser modificada pelo Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário. Por essa

razão, quando da obra “O Guardião da Constituição”, Schmitt dissertou sobre a

necessidade de um Poder “Neutro” que, a exemplo do que foi o Poder Moderador na

constituição brasileira de 1824, estaria acima de todos os outros poderes e serviria

para a defesa da decisão política fundamental.

Vale destacar: o decisionismo na teoria de Carl Schmitt não é o

decisionismo político e, tampouco, judiciário. Tanto o mundo jurídico, como a divisão

dos poderes e o próprio campo do político pressupõe uma decisão. O Guardião da

Constituição, ao seu turno, é aquele que poderá, inclusive, suspender a constituição

formal e a atividade de todos os poderes instituídos para proteger a decisão política.

E é aqui que, retomando o conceito schmittiano de guerra e caso crítico, pode-se

entender a complexa sentença que abre uma das mais impactantes obras por ele

escrita (Teologia Política): soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção

(SCHMITT, 2006, p. 07). Ou seja, soberano é aquele que decide qual é o caso que

poderá (re)determinar a decisão fundamental e, portanto, é também aquele que

poderá, ao sentir que esse estado novamente se aproxima (a eminência do

combate), suspender in totum a constituição formal para assegurar a Constituição

Material – assegurar, portanto, que os amigos continuem como amigos e que os

inimigos não vençam.

A par dessas considerações, resta ainda o conceito ideal de constituição

e de direito, o que é construído por Schmitt com base na análise dos efeitos

provocados pelo advento do mundo liberal burguês e na organização do mundo

europeu pós-revolução francesa. Perante esses fatos, o ideal de constituição seria a

elaboração político-jurídica que contemple um sistema de garantias da liberdade

burguesa (SCHMITT, 2006, p. 59), a divisão dos poderes (SCHMITT, 2006, p. 60) e

que seja escrita. (SCHMITT, 2006, p. 61). De qualquer sorte, ainda que ideal, essa

forma de constituição contemplaria uma divisão: de um lado estariam todos esses

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elementos constitucionais reunidos, formando o direito. De outro, a decisão que

permitiu a esses elementos existir.

Outra importante demarcação feita na teoria pensada por Carl Schmitt é a

necessidade de compreensão do que significa Lei Fundamental, haja vista que

somente desta forma se poderá compreender o que é o direito constitucional na obra

estudada. Lei Fundamental, segundo Schmitt, pode ser compreendida segundo nove

acepções15, observe-se:

a) todas as leis ou disposições que aparentem ser de singular

importância política a pessoas ou grupos politicamente influentes em

um momento dado;

b) uma norma absolutamente inviolável, que não pode ser reformada ou

transgredida/transposta;

c) toda norma relativamente invulnerável, que somente pode ser

reformada e transposta em hipóteses rígidas (processo dificultoso);

d) o último princípio da unidade política e da ordenação de conjunto;

e) qualquer princípio da organização estatal (direito fundamentais, divisão

dos poderes, princípio monárquico, o chamado princípio

representativo);

f) a norma última para um sistema de imputações normativas. Nesse

sentido, destaca-se o caráter normativo da lei fundamental, na qual se

acentua sua característica de lei;

15

Tradução livre a partir de: a) [...] todas las leyes o disposiciones que parecen de singular

importância política a las personas o grupos politicamente influyentes em um momento dado; b)

[...] una norma absolutamente inviolable, que no puede ser, ni reformada, ni quebrantada; c) [...]

toda norma relativamente invulnerable, que sólo puede ser reformada o quebrantada bajo

supuestos dificultados; d) [...] el ultimo principio unitario de la unidad política y de la ordenación de

conjunto; e) [...] cualquier principio particular de la organización estatal (derechos fundamentales,

división de poderes; principio monárquico, el llamado principio representtivo); f) [...] la norma ultima

para un sistema de imputaciones normativas. Aquí se destaca el carácter normativo, y em ley

fundamental se acentua ante todo el elemento “ley”; g) [...] toda regulación orgánica de

competência y procedimiento para las actividades estatales políticamente más importantes; y

tambíen, en una Federación, la delimitación de los derechos de ésta respecto de los de los

Estados miembros; h) [...] toda limitación normada de las facultades o actividades estatales; i) [...]

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A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt

Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional

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g) toda regulação orgânica de competência e procedimento para as

atividades estatais politicamente mais importantes. Dentro de uma

Federação, trata-se da delimitação dos direitos desta em relação aos

direitos dos demais entes federativos;

h) toda limitação normativa das faculdades ou atividades do poder

estatal; e

i) a constituição em sentido positivo.

Essas considerações, no entanto, mesmo sendo importantes para uma

compreensão o direito, a título teórico, caracterizam a fragmentação do conceito total

de Constituição e dissolveriam a consciência da existência política (SCHMITT, 2006,

p. 65). Constituição e constituição, portanto, não se confundem, embora esta esteja

contida naquela, que é, como visto, absoluta.

Feitos esses apontamentos, cabe demonstrar, afinal, quando é que a

Constituição nasce, haja vista que é dela, dentro das várias concepções apontadas

por Schmitt, que se desenvolverá a representatividade formal (constituição). Tem-se,

nesse sentido, que uma Constituição poderá nascer de duas formas:

a) mediante decisão política unilateral do sujeito de Poder constituinte; e

b) mediante convenção plurilateral dos vários sujeitos que compõe o

poder constituinte (SCHMITT, 2006, p. 66).

Aliás, é justamente por força dessas categorias que Schmitt diz ser a

Constituição um elemento posterior ao pacto social. O poder constituinte, portanto,

demanda uma unidade de poder, ou seja, que a pluralidade de sujeitos

(potencialmente constituintes) acordem na existência de um só poder constituinte

(SCHMITT, 2006, p. 86). Isso representa, também, que os pactos internacionais não

formam uma Constituição Internacional, posto que não estabelecem que haverá um

só poder constituinte – são, portanto, meras situações de conciliação (SCHMITT,

2006, p. 89). Para Schmitt, poder constituinte é

Constitución em sentido positivo, de donde la llamada ley fundamental no tiene por contenido

esencial una normación legal, sino la decisión política. (SCHMITT, 2006, 62-63).

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[...] a vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando, assim, a existência da unidade política como um todo (SCHMITT, 2006, p. 94)

16.

Também importante é o fato de que, logicamente, Schmitt não visualiza na

elaboração da constituição formal o encerramento da possibilidade de (re)decidir

(cujo sujeito da decisão é representado historicamente pela figura do Poder

Constituinte), o que significa que, mesmo com a existência de um documento escrito

e materializado chamado constituição, a possibilidade de uma nova decisão

fundamental, totalmente diferente da tomada por uma sociedade, está mantida

(SCHMITT, 2006, p. 94). Pensar de outra forma, dentro da ideia schmitttiana,

implicaria reconhecer que a constituição formal teria mais força que a Constituição

Material – o que seria a total inversão das categorias. A força e a autoridade do

Poder Constituinte (independente de quem o constitua) sempre serão, assim, os

fundamentos do direito, da constituição positiva e, por consequência, das leis

constitucionais (SCHMITT, 2006, p. 104).

Ao contrário do que pensa Hans Kelsen, Carl Schmitt não pressupõe uma

norma hipotética como fundamento do direito. O direito, a constituição e a ordem

jurídica, a seu ver, nascem de um poder de fato, o que implica dizer que ela não

depende de nenhum precedente jurídico (SCHMITT, 2006, p. 104-105). O Poder

Constituinte está, nesse sentido, acima de toda determinação legal-constitucional, o

que tem como efeito direto uma solução de continuidade da constituição mesmo em

tempos de crise (SCHMITT, 2006, p. 109-110).

Resta, logicamente, que a mudança do sujeito detentor do Poder

Constituinte seria o momento em que haveria a completa destruição da constituição

e da ordem jurídica (SCHMITT, 2006, p. 110), o que implica no reconhecimento de

que essa destruição não se confunde:

a) com a destruição do texto constitucional formal;

16

Tradução livre a partir de: [...] poder constituyente es la vonluntad política cuya fuerza o autoridad

es capaz de adoptar la concreta decisión de conjunto sobre modo y forma de la propria existencia

política, determinando así la existencia de la unidad política como um todo. (SCHMITT, 2006, p.

94).

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b) com o poder de Reforma Constitucional (revisão), pois esse apenas

representa a alteração de alguns dispositivos constitucionais e é feito

dentro dos limites do próprio texto constitucional; (SCHMITT, 2006, p.

116-126)

c) com a violação das prescrições legais;

d) com suspensão das normas constitucionais em casos especiais (o que

sequer a faz perder a vigência),

e) com a suspensão das normas constitucionais com perda provisória da

vigência (estado de exceção); (SCHMITT, 2006, p. 115-116)

f) com o Conflito Constitucional (que irá versar sobre as possibilidades

de arguição e petição contra o desvio fático a respeito de um comando

constitucional) (SCHMITT, 2006, p. 126-134); e

g) com a ideia de Alta Traição (ataque à constituição no sentido apenas

positivo) (SCHMITT, 2006, p. 134).

Portanto, para Schmitt, uma vez que se decidiu por uma forma de Estado, no

qual se reconhece a liberdade burguesa – consubstanciada em liberdade pessoal,

propriedade privada, liberdade de contratação, liberdade de indústria e comércio,

entre outras – o Poder Constituinte somente mudaria se essa decisão mudasse

(SCHMITT, 2006, p. 137). A decisão fundamental, na história constitucional ocidental

– como já citado alhures – corresponde atualmente à decisão pelo Estado Liberal de

Direito.

A decisão, portanto, é parte do próprio conceito de Estado de Direito, o que

implica dizer que este é apenas uma parte de toda a Constituição Moderna (tomada

em um sentido total) (SCHMITT, 2006, p. 137). E é pela própria ideia decisionista

que o conceito tradicional pelo Estado de Direito (todo Estado que respeite sem

condições o Direito objetivo e vigente e os direitos subjetivos que existem) se

mostraria equivocada (SCHMITT, 2006, p. 141), pois sua formulação colocaria aquilo

que é decidido ordinariamente acima daquilo que se decidiu fundamentalmente

(existência política e segurança do Estado) (SCHMITT, 2006, p. 141).

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É somente com essas pontuações que o conceito de lei, dentro do Estado

Burguês de Direito, pode ser entendido. Afinal, considerar apenas o legislador ou

uma norma hipotética como o elemento pelo qual a lei (objeto supremo do Estado do

Direito) nasce, torna-se válida e passa a comandar o Estado, é insuficiente. Aliás, se

assim fosse, o Estado Soviético e o Estado Monárquico, diz Schmitt, seriam

exemplos claros de Estado de Direito (SCHMITT, 2006, p. 149). Fala-se, pois, em

Império da Lei (SCHMITT, 2006, p. 150) – pela qual o próprio Legislador estaria

vinculado e limitado pela lei – como o primeiro elemento fundante do Estado de

Direito (SCHMITT, 2006, p. 153). Ao seu lado, porém, reside o conceito político e a

Constituição Material, pela qual a vontade de uma sociedade se converte em norma

através de um ato de soberania (SCHMITT, 2006, p. 155). Descaracterizar a face

política da lei teria sido a aposta do Estado de Direito Burguês, para o qual a decisão

soberana apareceria como um conceito marginal ao texto legal, sem ser, contudo,

devidamente explicitada17.

Em síntese, a constituição e a lei, aos olhos da teoria decisionista, não são

somente os instrumentos estatais para intervenção ou limitação da vida, mas um

meio pelo qual será executada a vontade soberana, ou seja, são formas jurídico-

normativas de parte da Constituição Material. Em outras palavras, a constituição, as

leis e o direito demarcam o limite e estabelecem o que formalmente se pode fazer

(SCHMITT, 2006, p. 160-161), mas junto a eles reside, silenciosamente, a decisão

que os permite existir.

CONCLUSÕES

Frente às pontuações anteriormente expostas e na linha de trabalho do

Grupo de Estudos, cabem duas conclusões ao presente trabalho: uma encontrada

na própria teoria schmittiana e outra formulada pelo próprio Grupo de Estudos.

17

El esfuerzo de um consecuente y cerrado Estado de Derecho va en el sentido de desplazar el

concepto político de Ley para colocar una “soberania de la Ley” em el lugar de una soberanía

existente concreta, es decir, y en realidad, dejar sin respuesta la cuestión de la soberanía, y por

determinar la vonluntad política que hace de la norma adecuada un mandato positivo vigente.

(SCHMITT, 2006, p. 155).

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Em primeiro lugar, Schmitt encerra seus postulados sobre a ideia de

Constituição de uma forma bastante problemática: ali, onde a decisão política

fundamental deveria estar regendo a práxis político-jurídica haveria, atualmente18,

uma névoa encobridora.

Schmitt, para quem o mundo se organizaria através da tomada e da divisão

do espaço (em especial do solo), colaciona na sua obra Nomos da Terra que o

declínio do Jus Publicum Europaeum, somado aos modernos meios de guerra e à

aproximação do poder estatal com o mundo econômico, teria ocasionado uma nova

forma de divisão do mundo, sem, contudo, ser possível conhecer quais seriam as

decisões que estariam efetivamente regendo – portanto como Constituição Material

– tanto referida divisão como as regra do jogo político-jurídico mundial.

Especificamente, viu-se na época contemporânea a Europa empregar sem

pudor algum esforços para a utilização dos mares e do ar em uma rodada

imperialista de divisão do espaço mundial (realização do combate entre amigo-

inimigo). Essa empreitada, que ao longo de décadas produziu efeitos no mundo

todo, teria se encerrado com a implosão dos Estados-nação e com o advento das

duas grandes guerras, gerando uma divisão indescritível do espaço geopolítico

mundial e impossibilitando aos dirigentes políticos uma atuação condizente com

suas próprias diretrizes, ideais, programas de governo, princípios e decisões

fundamentais. Trata-se, em outras palavras, de um mundo político onde não seria

mais possível reconhecer o que é, de fato, a Constituição Material de um Estado.

Nesse contexto é que a problemática deixada por Schmitt se externaria: quem seria,

atualmente, o soberano?

A partir dessa indagação é que expõe a segunda conclusão, consoante

discussões encetadas durante os trabalhos do Grupo de Estudos: se um véu hoje

encobre o cenário político, não permitindo aos diversos atores sociais atuar segundo

uma decisão política fundamental (qualquer que seja), o mundo do direito – pelo

menos naquilo que forma o ordenamento jurídico-normativo – está destituído de um

18

Carl Schmitt escreve tendo em mira a bipolaridade do mundo no pós segunda guerra, mas uma

leitura de seus textos nos permite, sem sombra de dúvida, trazer muitas de suas assertivas sobre

o que está acontecendo, para o nosso tempo.

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sentido fundante, eis que a norma vigeria se remeter a um sistema axiológico de

referência pré-definido e conhecido.

Em outras palavras, os marcos teóricos deixados por Schmitt e a

possibilidade de leitura do mundo que ele oferece permitem pensar que o direito –

em especial no campo prático de sua aplicação – é pensado e conduzido por

decisões que não chegam a ser conhecidas (tampouco influenciadas) pela grande

massa de destinatários das normas. O problema, nesse contexto, não seria tanto a

da falta de respeito com a democracia, a inanição ideológica dos partidos políticos, a

dificuldade de organização e articulação social, a inexistência de pensamento na

configuração da atual Sociedade de Massa ou qualquer outro dentre os inúmeros

motivos sobre os quais diariamente se disserta na literatura jurídica – para estes

assuntos existem sempre mãos dispostas a escrever, uma gama de editoras

dispostas a publicar e, sobretudo, um grande contingente disposto a ler. A questão a

que se chega quando se pretende ler o mundo atual a partir da Teoria da

Constituição pensada Schmitt é muito mais profunda, e permite até mesmo colocar

em xeque vários dentre aqueles que há muito tentam dizer o direito. Trata-se, enfim,

de reconhecer: a guarda da constituição e a tentativa de concretização de suas

normas são hoje trabalhos que se realizam sem se saber o porquê.

Essas conclusões – que não são nem um pouco otimistas – devem ser

vistas não como convites ao menosprezo do direito e da academia jurídica, mas

como pontos sobre os quais os olhos dos juristas devem ao menos passar, isto

porque, malgrado os usos que fizeram da teoria schmittiana, os propósitos de sua

escrita e o tom totalitário de suas assertivas, ela nos permite perceber que no limiar

século XXI o direito que se estuda e que diariamente se aplica é algo muito diferente

daquilo que materialmente ele é.

REFERÊNCIAS

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vve.php>. Acesso em: 11 ago. 2009.

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Madrid, España: Centro de Estudios Constitucionales, 1979.

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SCHMITT, Carl. O Conceito do Político / Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

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SCHMITT, Carl. Legality and Legitimacy. Translated and Edited by Jeffrey Seitezer with na

introduction by John P. McCormick. London: Duke University Press, 2004.

SCHMITT, Carl. Terra e Mare. Traduzione di Giovanni Gurisatti, con um saggio di Franco Volpi. Terza

Edizione. Milano: Adelphi Edizione S. P. A., 2006.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

SCHMITT, Carl. Teoría de La Constitución. Presentación de Francisco Ayala. Primera edición em

“Alianza Universidad Textos” 1982. Cuarta reimpresión em “Alianza Universidad Textos”. Madrid.

España. 2003.

HOBBES, Thomas. O Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. São Paulo:

Martin Claret, 2003.