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333 Bruno Moraes Faria Monteiro Belem* A teoriA dos princípios e o suporte fático dAs normAs de direitos fundAmentAis ThE ThEOry OF PrinCiPLES AnD ThE FACTUAL SUPPOrT OF ThE FUnDAMEnTAL riGhTS TEOrÍA DE LOS PrinCiPiOS y EL APOyO FáCTiCO DE LOS DErEChOS FUnDAMEnTALES Resumo: As regras são aplicadas na forma do “tudo ou nada”, ou se aplicam ou não se aplicam na sua completa extensão. Por outro lado, os princípios apresentam uma aplicabilidade variável, condicionada pela importância que se lhe é atribuída no caso concreto. A partir da distinção estrutural entre regras e princípios se visualiza a im- portância de se examinar o suporte fático das normas de direitos fundamentais. A configuração do suporte fático das normas sobre direitos fundamentais influencia diretamente na sua forma de apli- cação, na própria possibilidade de restrição aos direitos fundamen- tais e na possibilidade de haver colisões entre estes. A adoção de um modelo que assimile um suporte fático amplo das normas de direitos fundamentais de liberdade exige do Estado um maior es- forço argumentativo para a restrição de direitos fundamentais. Abstract: The rules are applied in the form of "all or nothing", they are applied or not apply in its full extent. On the other hand, the *Especialista em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especia- lista em Direito Constitucional pela UFG. Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-GO. Professor de Direito Constitucional (Uni-Anhanguera).Procurador do Es- tado de Goiás e Assessor Técnico na Secretaria de Estado da Casa Civil.

A teoria dos princípios e o suporte fático

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As regras são aplicadas na forma do “tudo ou nada”, ou se aplicam ou não se aplicam na sua completa extensão. Por outro lado, os princípios apresentam uma aplicabilidade variável, condicionada pela importância que se lhe é atribuída no caso concreto.

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Bruno Moraes Faria Monteiro Belem*

A teoriA dos princípios e o suporte fático dAsnormAs de direitos fundAmentAis

ThE ThEOry OF PrinCiPLES AnD ThE FACTUAL

SUPPOrT OF ThE FUnDAMEnTAL riGhTS

TEOrÍA DE LOS PrinCiPiOS y EL APOyO

FáCTiCO DE LOS DErEChOS FUnDAMEnTALES

Resumo:

As regras são aplicadas na forma do “tudo ou nada”, ou se aplicam

ou não se aplicam na sua completa extensão. Por outro lado, os

princípios apresentam uma aplicabilidade variável, condicionada

pela importância que se lhe é atribuída no caso concreto. A partir

da distinção estrutural entre regras e princípios se visualiza a im-

portância de se examinar o suporte fático das normas de direitos

fundamentais. A configuração do suporte fático das normas sobre

direitos fundamentais influencia diretamente na sua forma de apli-

cação, na própria possibilidade de restrição aos direitos fundamen-

tais e na possibilidade de haver colisões entre estes. A adoção de

um modelo que assimile um suporte fático amplo das normas de

direitos fundamentais de liberdade exige do Estado um maior es-

forço argumentativo para a restrição de direitos fundamentais.

Abstract:

The rules are applied in the form of "all or nothing", they are

applied or not apply in its full extent. On the other hand, the

*Especialista em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especia-lista em Direito Constitucional pela UFG. Mestrando em Ciências Jurídico-Políticaspela Universidade de Lisboa. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais daOAB-GO. Professor de Direito Constitucional (Uni-Anhanguera).Procurador do Es-tado de Goiás e Assessor Técnico na Secretaria de Estado da Casa Civil.

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principles have a variable applicability, which is conditioned by

the importance that is assigned to it in this case. From the struc-

tural distinction between rules and principles emerges the im-

portance of examining the factual support of fundamental rights

standards. The configuration of the factual support of the stan-

dards on fundamental rights has a direct influence on your ap-

plication form, the very possibility of restricting the fundamental

rights and the possibility of collisions between such fundamen-

tal rights. The adoption of a model that assimilates a broad fac-

tual support standards of fundamental rights requires from the

State a greater effort to create restriction on fundamental rights.

Resumen:

Las reglas se aplican en forma de "todo o nada", o se aplican o

no se aplican en toda su extensión. Por otro lado, los principios

tienen una aplicación a una variable, que está condicionada por

la importancia que se le asignan en este caso. A partir de la dis-

tinción estructural entre reglas y principios se permite ver la im-

portancia de examinar el apoyo fáctico de las normas de derechos

fundamentales. La configuración del apoyo fáctico de las normas

sobre los derechos fundamentales tiene una influencia directa en

su formulario de solicitud, la posibilidad de restringir los derechos

fundamentales y la posibilidad de colisiones entre esos derechos

fundamentales. La adopción de un modelo que asimile un suporte

fáctico amplio de las normas de los derechos fundamentales de

libertad requiere del Estado un mayor esfuerzo argumentativo

para la restricción de los derechos fundamentales.

Palavras-chaves:

Teoria, direitos fundamentais, suporte fático.

Keywords:

Theory, fundamental rights, factual support.

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Palabras clave:

Teoría, derechos fundamentales, apoyo fáctico.

introduÇÃo

no Direito, a partir da segunda metade do século XX,percebe-se uma forte aproximação entre ética e direito, do queresultou a relação direta entre valores, princípios e regras, assimcomo a edificação da teoria dos direitos fundamentais sobre aideia de dignidade da pessoa humana. nesse contexto de supre-macia dos direitos fundamentais, os olhos se voltam para os de-veres fundamentais do Estado de respeitar, proteger e promoveros direitos de liberdade ou as liberdades públicas (direitos de pri-meira dimensão ou geração) e também os direitos sociais, eco-nômicos e culturais (direitos de segunda dimensão ou geração).

A participação do Estado, seja através do dever de res-peitar – fundamentalmente ligado a obrigações negativas (um nãofazer) –, seja através dos deveres de proteger e de promover, es-sencialmente relacionados com obrigações positivas (um fazer)–, tem como foco alcançar uma transformação social e permitir aemancipação de parcela da sociedade. num ou noutro ambiente,o discurso acerca dos princípios, da supremacia dos direitos fun-damentais e do reencontro com a Ética deve ter repercussãosobre o ofício dos advogados, públicos ou privados, juízes, pro-motores de justiça, vale dizer, dos operadores do Direito em geral,assim como sobre a atuação do Poder Público e sobre a vida daspessoas (BArrOSO; BArCELOS, 2003, p. 337).

O objetivo deste breve ensaio é, através da análise daestrutura das normas de direitos fundamentais, designadamentedaquelas que definem direitos de liberdade (liberdades públicas),

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contribuir para a compreensão da dinâmica entre o reconhecimentode tais direitos e a sua eficácia ou efetividade. num exercício dedelimitação negativa do objeto desta exposição, deve-se advertirque o enfoque que pretendo adotar será o jurídico-dogmático. Porisso, não serão objeto deste trabalho a análise dos fundamentos fi-losóficos ou políticos que sustentaram o reconhecimento das nor-mas de direitos fundamentais como princípios e do papel que ovalor da dignidade da pessoa humana possui nessa nova realidade.

o modeLo dos direitos fundAmentAis enQuAnto princípios

não se pretende, aqui, realizar uma distinção detalhadaentre regra e princípio. Assume-se como certa uma diferenciaçãoqualitativa, que leva em conta a forma de aplicação de cada umadessas espécies normativas – sendo certo que tal distinção de-corre da estrutura normativa que cada qual ostenta.

Assim, as regras garantem direitos ou impõem deveresdefinitivos, passo que os princípios garantem direitos ou impõemdeveres prima facie, ou seja, situações protegidas nos limites daexistência de uma outra norma de mesmo grau hierárquico emsentido contrário. Essa distinção leva em conta a forma atravésda qual a norma é aplicável.

Disso decorre que, a partir da simples verificação dospressupostos fáticos e jurídicos selecionados pelo legislador naregra, esta automaticamente deverá produzir os seus efeitos,pois expressam mandamentos de definição. A norma que deter-mina a cobrança de iPVA sobre a propriedade de veículo auto-motor aéreo, aquático ou terrestre, quaisquer que sejam as suasespécies, por exemplo, é uma regra.

Por isso se diz que as regras são aplicadas na forma do

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“tudo ou nada” (DWOrKin, 2002), ou se aplicam ou não se apli-cam na sua completa extensão. Por isso se fala do conflito entreduas regras, ou seja, se duas regras prevêem consequências di-ferentes para o mesmo ato ou fato, uma delas deve necessaria-mente ser afastada do ordenamento (seja pelo critériohierárquico, cronológico ou da especialidade).

Enquanto a dimensão fundamental das regras é a da va-lidade, a dos princípios, segundo ronald Dworkin, é a do peso.isto é, os princípios apresentam uma aplicabilidade variável, queé condicionada pela importância que se lhe é atribuída no casoconcreto. Com base nessa distinção, robert Alexy (2000), na suateoria dos princípios, afirma que os princípios são mandamentosde otimização, ou seja, normas que exigem que algo (a sua con-sequência jurídica) seja realizado na maior medida possíveldiante das possibilidades fáticas e jurídicas. Daí que a verificaçãodos pressupostos fáticos e jurídicos selecionados pelo legisladorem determinado princípio implica que os efeitos nele estabeleci-dos sejam implementados na maior extensão possível, segundoas condições do caso concreto.

isso porque, ainda segundo Alexy, ao contrário do queocorre no conflito entre regras, o caso de colisão entre princípiosdeve ser solucionado através da fixação de relações condiciona-das de preferência entre eles, técnica denominada de sopesa-mento, ponderação ou proporcionalidade em sentido estrito.

Por exemplo, para se saber se a cobrança de estaciona-mento em centros comerciais é constitucional – desconsideradaaqui a questão atinente à competência legislativa – é possívelvislumbrar uma colisão entre a norma-princípio que define a livreiniciativa e o direito de propriedade e a norma-princípio que de-fine a liberdade de locomoção e o interesse estatal no planeja-mento urbano e na organização do trânsito. no caso delimitações estabelecidas pela municipalidade ao direito de cons-truir, pode-se identificar uma colisão entre a norma-princípio do

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direito fundamental de propriedade e da livre iniciativa e o inte-resse coletivo em se promover o adequado ordenamento territo-rial e do controle de impactos de vizinhança e de trânsito.

nesses dois casos, deixando-se de lado normas sobrecompetência legislativa, tem-se que a validade ou a invalidade daintervenção estatal decorrerá de um juízo ponderativo realizado apartir de condições de preferência, ou seja, condições a favor deum ou de outro interesse em dado caso concreto. Aqui não se pre-tende analisar a norma da proporcionalidade como método para asolução de colisões entre princípios, o que se almeja é tão so-mente sinalizar para a distinção que há entre regras e princípios.

É com foco nessa distinção que a teoria dos direitos fun-damentais, à moda alexyana, considera que os direitos funda-mentais têm, em sua maioria, estrutura de princípios, pois exigemque algo seja realizado na maior medida possível, segundo ascondições fáticas e jurídicas do caso concreto.

A partir dessa premissa, ou seja, da distinção estruturalentre regras e princípios, se visualiza a importância de se exa-minar o suporte fático das normas de direitos fundamentais.

o suporte fático dos direitos fundAmentAis

noções introdutórias

A configuração ou a extensão do suporte fático das nor-mas sobre direitos fundamentais influencia diretamente na suaforma de aplicação – subsunção, sopesamento, concretização,etc.; nas exigências de fundamentação nos casos de restrições adireitos fundamentais; na própria possibilidade de restrição a di-reitos fundamentais e na possibilidade de haver colisões entre tais

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direitos fundamentais. A verificação desses fatores, que às vezesé tida como pacífica em muitos trabalhos e decisões judiciais, de-pende sempre de uma precisa determinação do conceito de su-porte fático. A adoção de um modelo geralmente é feita de formaimperceptível ou mesmo involuntariamente, mas produz conse-quências do ponto de vista metodológico e prático relevantíssimas.

Aqui o suporte fático será, numa concepção restritiva,adotado apenas para simplificar o discurso, considerado comosinônimo de âmbito de proteção1. A definição do âmbito de pro-teção de um direito fundamental responde à seguinte indagação:quais atos, fatos, estados ou posições jurídicas são protegidospela norma que garante o referido direito? (SiLVA, 2010, p. 72)

É através do exame do suporte fático do direito de liber-dade de manifestação artística, por exemplo, que podemos saberse tal direito protege a conduta do artista que deseja pintar um murocolocando um cavalete no meio de uma esquina movimentada, res-tringindo, com isso, o trânsito de pedestres ou mesmo de veículos.

É por meio do exame do suporte fático do direito de pro-priedade e da livre iniciativa que se pode perquirir se a vedaçãoda cobrança de estacionamento em centros comerciais privadosou a imposição de limitações de altura ao direito de construir edi-fícios em determinadas áreas da cidade seriam inconstitucionais.

É a partir da extensão que se queira dar à liberdade deexpressão que se pode concluir pela validade ou invalidade doato estatal que impede a publicação de um livro contendo ideiasantissemitas.

É ainda segundo o entendimento que se adote acercado suporte fático da liberdade religiosa que se pode avaliar aconstitucionalidade de uma lei que proíbe discursos ou prega-ções supostamente homofóbicas.

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1 não se ignora, contudo, que o âmbito de proteção, entendido como aquilo que se pre-tende proteger com determinada norma jurídica, é um dos elementos do suporte fático,ao lado da intervenção. Para mais desenvolvimentos, cf. Silva (2010, p. 68 e ss.).

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Os exemplos fornecidos dizem respeito às liberdades pú-blicas, que têm como função primordial proteger algo contra inter-venções indevidas. nesse caso, a consequência jurídica da normagarantidora, que é a cessação da intervenção no âmbito de prote-ção do direito fundamental, somente é produzida se houver um atointerventivo ilegítimo no âmbito de proteção da mesma norma2.

não se esquecer de que aqui essa construção refere-seàs liberdades públicas como direitos de defesa, ou seja, em re-ferência à dimensão negativa dos direitos fundamentais, valedizer, a dignidade da pessoa humana como limite às intervençõespositivas do Estado. Fica de fora, nessa breve exposição, o es-tudo da dignidade da pessoa humana como tarefa, ou seja, nasua dimensão positiva, isto é, como o direito a prestações mate-riais ou jurídicas em favor das pessoas (SArLET, 2007, p. 378).

Essa percepção exige a definição do que é esse algo,qual a sua extensão e quais os tipos de possíveis intervenções.Assim, como definir o suporte fático de normas que garantem aliberdade de expressão ou o direito à privacidade? Tanto aquiloque é protegido (a livre expressão do pensamento ou o direito àintimidade), como aquilo contra o quê se protege (uma interven-ção, estatal ou privada) fazem parte do suporte fático dos direitosfundamentais (SiLVA, 2010, p. 71).

Do ponto de vista prático, a inclusão ou a exclusão dedeterminada conduta do âmbito de proteção de dada norma dedireitos fundamentais influencia o método de interpretação e

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2 Virgílio Afonso da Silva esclarece que o suporte fático de um direito fundamental deveconjugar todos os elementos que, quando preenchidos, dão ensejo à realização daconsequência jurídica da norma que garante esse direito, seja ela uma norma de di-reito fundamental de liberdade seja ela uma norma de direito fundamental social. Con-soante o pensamento do mesmo autor, com relação às normas de direitos sociais, nasua dimensão positiva, tanto o conceito de âmbito de proteção como o de intervençãodevem ser alterados. O âmbito de proteção então passa a ser composto pelas açõesestatais que fomentem a realização desse direito (direito à saúde, por exemplo). A in-tervenção, por seu turno, deve ser entendida como uma ação estatal promotora, ouseja, um agir. Já o que deve ser fundamentado é uma omissão ou uma ação insufi-ciente, e não mais uma ação dita como restritiva (cf. SiLVA, 2010, p. 72 e ss.).

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aplicação do direito e depende do modelo de suporte fático ado-tado. Essa opção reflete, de maneira especial, na fundamentaçãodo ato de intervenção estatal e, em consequência, no ônus ar-gumentativo do autor deste ato.

Para saber se tais condutas são protegidas pela referi-das normas sobre direitos fundamentais pode-se adotar um dedois modelos básicos: i) ou se inclui no âmbito de proteção todaação, fato, estado ou posição jurídica que tenha qualquer carac-terística que, isoladamente considerada, faça parte do “âmbitotemático” ou do “âmbito da vida” de um dado direito fundamental(modelo do suporte fático amplo); ii) ou, ao invés disso, se realizapreviamente uma espécie de triagem capaz de excluir algumascondutas que se acredita não serem protegidas pelo direito (mo-delo do suporte fático restrito) (SiLVA, 2010, p. 78).

A adoção de um ou de outro modelo repercute direta-mente no método de interpretação e aplicação do direito utilizadopara se saber se dada intervenção estatal deverá ser conside-rada uma mera restrição – fundamentada constitucionalmente –ou uma violação. A depender do modelo adotado, não é possívelsequer assimilar a ideia de restrição, de modo que qualquer in-tervenção, nesse caso, deverá ser tida como mera delimitaçãodo direito fundamental em causa.

Para se compreender o que acaba de ser afirmado, épreciso examinar os dois modelos de suporte fático das normasde direitos fundamentais: o restrito e o amplo.

Suporte fático restrito

Através desse modelo se excluem, a priori, determinadascondutas do âmbito de proteção dos direitos fundamentais. na ju-risprudência do STF aparece, com frequência, ainda que sem re-ferência expressa a uma teoria sobre o suporte fático dos direitos

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fundamentais, argumentos que se baseiam em uma exclusão ini-cial de alguma ação, estado ou posição jurídica do âmbito de pro-teção de certos direitos.

Assim, é possível citar o caso em que o min. Celso deMello afirmou que a “cláusula tutelar da inviolabilidade do sigiloepistolar” não pode proteger a prática de atos ilícitos, como osdelitos contra a honra3. O min. Moreira Alves declarou que práti-cas de discriminação contra judeus ou outros grupos étnicos oureligiosos não estão incluídas no âmbito de proteção do direito àliberdade de expressão4. Ou seja, para ele, o direito à livre ex-pressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestaçõesde conteúdo imoral que impliquem ilicitude penal.

Adepto do modelo de suporte fático restrito, José CarlosVieira de Andrade (2004, p. 294) traz, ainda, os seguintes exem-plos: i) a liberdade religiosa não protege a conduta de efetuar sa-crifícios humanos ou de furtar o material necessário à execuçãode uma obra de arte.

nos três exemplos mencionados anteriormente parte-sede uma concepção restrita do suporte fático dos direitos funda-mentais, do que resultou o argumento de que não há que se falarem restrição a direitos, nem em sopesamento de princípios, masapenas em delimitação do âmbito de proteção da norma.

O problema é revelar os critérios utilizados para se fixaros limites de cada direito fundamental, ou seja, onde começa o di-reito de um e onde termina o direito do outro. A partir desse modeloficam, desde logo, excluídas algumas condutas do âmbito de pro-teção dos direitos de liberdade. Em outras palavras, o modelo desuporte fático restrito, que comprime o âmbito de proteção de dadodireito fundamental, tem o expresso objetivo de evitar colisõesentre direitos fundamentais e, com isso, excluir o sopesamentocomo forma de interpretar e aplicar o direito (SiLVA, 2010, p. 89).

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3 hC 70814 / SP, Primeira Turma, relator: Min. Celso de Mello, DJ 24-06-1994.4 hC 82.424 / rS, Plenário, relator: Min. Moreira Alves, DJ 19-03-2004.

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Por isso que aceitar os pressupostos teóricos da teoriados princípios nos moldes desenvolvidos por Alexy implica, ne-cessariamente, a rejeição das teorias restritas sobre o suportefático, pois neste modelo os limites (e não as restrições) seriaminternos ao próprio direito, e não externos. Admitir o método daponderação como meio de solucionar colisões entre direitos pres-supõe a adoção da ideia de que as normas com estrutura de prin-cípios são mandamentos de otimização e, por isso, sujeitas arestrições externas.

Virgílio Afonso da Silva (2010, p. 96) tece profundas crí-ticas ao modelo de suporte fático restrito. O autor denuncia, emprimeiro lugar, o conservadorismo fomentado por tal modelo, namedida em que um enfoque originalista ou histórico-genético fazcom que a proteção dos direitos fundamentais fique represadaao contexto em que ocorreu a promulgação da Constituição, im-pedindo a atualização do âmbito de proteção dos direitos funda-mentais a uma realidade cambiante.

Além disso, meio que por intuição, o modelo de suportefático restrito produz uma exclusão a priori e em abstrato de cer-tas condutas, que não ficariam protegidas pelo direito. A condutade se mostrar as nádegas em público é um bom exemplo. Emabstrato tal conduta poderia ser considerada ilícita, mas, deacordo com as circunstâncias fáticas verificadas no caso do di-retor de teatro Gerald Thomas, o STF a considerou protegidapela liberdade de expressão, motivo por que não vislumbrou aocorrência de ilícito penal.

Outra crítica que se faz à teoria do suporte fático restritodiz respeito à fragilidade na distinção entre regulação (interven-ção no meio) e restrição (intervenção no conteúdo), em se tra-tando, por exemplo, da liberdade de reunião. Assim, não seriapossível afirmar, sem grandes ressalvas, que intervenções naforma de exercício deste direito fundamental não possam implicarrelevantes restrições ao seu conteúdo, o que poderia ocorrer

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caso a Administração resolvesse pura e simplesmente proibir reu-niões e debates públicos no centro da cidade e durante o dia. Tal“regulamentação” poderia ser vista como uma “restrição”, muitoembora versasse tão somente acerca do local e do horário.

Suporte fático amplo

A grande diferença entre o modelo de suporte fático res-trito e o de suporte fático amplo é que o primeiro parte da defini-ção daquilo que é definitivamente protegido, excluindo-se outrascondutas que, por outro lado, são definitivamente desprotegidas;ao passo que o segundo modelo define apenas aprioristicamenteo que é protegido prima facie e, feito o sopesamento, poderá serprotegido definitivamente. O primeiro pergunta: o que é protegidodefinitivamente por esse direito? O segundo pergunta: o que éprotegido prima facie por esse direito? nesse caso não se con-fundem a restrição permitida e a violação. Esta, por não ter pas-sado no teste da ponderação entre os bens ou interesses emcausa, deve ser afastada pelo aplicador do direito.

Os defensores do modelo de suporte fático amplo dizemque as exigências que ele impõe à argumentação implicam um maiorgrau de proteção aos direitos fundamentais (SiLVA, 2010, p. 111). issoporque se amplia o âmbito de proteção e, com isso, transforma emrestrição (externa) o que antes era uma mera delimitação (interna).

no julgamento da ADi n. 2.566, o STF apreciou a cons-titucionalidade de lei que vedava o proselitismo de qualquer na-tureza na programação das emissoras de radiodifusãocomunitária5. Segundo os pressupostos do modelo de suportefático amplo, se chega à conclusão de que a liberdade de ex-pressão protege a conduta de fazer proselitismo. Com o mesmoraciocínio, a liberdade de expressão protege, prima facie,

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5 ADi 2566 MC/DF, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 27-02-2004.

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inclusive, a manifestação de pensamentos caluniosos.A adoção de um modelo de suporte fático amplo não in-

viabiliza as restrições aos direitos fundamentais, mas apenasimpõe um maior ônus argumentativo para as intervenções esta-tais. Dessa forma, o que se tem é um reforço dos direitos de li-berdade através da realização de uma garantia mais eficaz.Assim, a relação entre os direitos e seus limites ou restrições ficasubordinada à regra da proporcionalidade, tema que refoge aoslimites impostos a esta apresentação. Cumpre assentar apenasque a norma da proporcionalidade constitui um método de inter-pretação e aplicação do direito compatível e coerente com a te-oria dos direitos fundamentais enquanto princípios.

Em suma, um modelo que se baseia na redução a priori

do âmbito de proteção de direitos fundamentais tende a significartambém uma garantia menos eficaz desses direitos na atividadelegislativa e na atividade juridicional, pois exclui da exigência defundamentação uma série de atos que inegavelmente restringemdireitos, ainda que de forma legítima.

repercussÕes práticAs e metodoLÓGicAs dA AdoÇÃode um modeLo de suporte fático AmpLo

A principal repercussão metodológica produzida pelaadoção de um modelo de suporte fático amplo das normas de di-reitos fundamentais de liberdade é a adoção da ponderaçãocomo forma de solução das colisões entre direitos fundamentaisou entre um dado direito fundamental e outro interesse qualquerigualmente protegido por normas constitucionais.

isso porque, partindo do pressuposto de que o direitofundamental tem estrutura de princípio, admite-se que ele deve

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proteger um rol extensivo de condutas. na solução da colisão,então, o aplicador deverá decidir se o grau de restrição a umdado direito fundamental de liberdade (direito de propriedade eà livre iniciativa no caso da vedação de cobrança pelo estacio-namento ou no caso de limitações ao direito de construir) é jus-tificado pelo grau de satisfação de outro direito ou interesse(direito de locomoção dos demais indivíduos, planejamento ur-bano, segurança no trânsito, etc.).

Por isso, considera-se a adoção do modelo de suportefático amplo mais coerente com a teoria dos direitos fundamen-tais como princípios que, dada a sua morfologia, devem ser rea-lizados na maior medida possível, de acordo com as condiçõesfáticas e jurídicas no caso concreto.

Ao contrário das teorias que se baseiam em um suportefático restrito para os direitos fundamentais, um modelo baseadono suporte fático amplo não se preocupa com o que deve ou nãoser incluído no âmbito de proteção de uma dada norma de direi-tos fundamentais e com a extensão do conceito de intervençãoestatal, mas com a argumentação possível no âmbito da funda-mentação constitucional das intervenções (SiLVA, 2010, p. 94).nesse caso, o que ocorre é um deslocamento do foco da argu-mentação: em vez de se focar no momento da definição daquiloque é protegido e daquilo que caracteriza uma intervenção esta-tal, há uma concentração da argumentação no momento da fun-damentação da intervenção.

concLusÃo

A adoção de um modelo que assimile um suporte fáticoamplo das normas de direitos fundamentais de liberdade exige

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do Estado um maior esforço argumentativo para a restrição de di-reitos fundamentais, seja qual for o âmbito de atuação, se jurisdi-cional, administrativo ou legislativo. Daí se falar, na linha do quedefende o professor Juarez Freitas, no direito a uma boa admi-nistração através do reforço da motivação dos atos estatais, no-meadamente as intervenções tidas como restritivas.

A adoção de um modelo de suporte fático amplo, que semostra coerente com a utilização da ponderação como método deinterpretação e aplicação do direito, a um só tempo impõe ummaior ônus argumentativo nas atividades interventivas do Estadoe, por consequência, permite uma maior controlabidade da ativi-dade estatal. Ao fim e ao cabo, o que se pretende é fazer com queas restrições aos direitos fundamentais sejam devida e suficiente-mente fundamentadas, sendo certo que a melhor prova da ausên-cia de motivação válida de uma intervenção estatal é que ela sirvaa qualquer decisão, o que vale por dizer que não serve a nenhuma.

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