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1 A Terra prometida. Viagem na luta dos Sem Terra. de Palma Navarrino fotos Palma Navarrino ”Eu não fotografo os miseráveis. Fotografo pessoas que têm menos recursos, menos bens materiais... Para mim, miserável é quem não faz mais parte de uma comunidade, está isolado, perdeu a esperança. Encontrei muita gente esfomeada. Não eram miseráveis porque pertenciam a uma comunidade, acreditavam em alguma coisa. O único modo de resistir (… ) é acreditar na comunidade.” Sebastião Salgado (sobre a mostra fotográfica Terra dedicada aos Sem Terra) São as primeiras horas de uma ardente tarde de agosto no assentamento Vila Esperança; fora da sua barraca, Antônio, debruçado sobre um mapa do loteamento, conta as histórias de luta do acampamento onde vive, há muitos anos, com sua família. Descreve os lugares, mostra os confins, especifica datas e nomes que nós desconhecemos e, apesar de tudo, as histórias que narra parecem cenas já vistas, remetem a qualquer coisa de familiar, ainda que indefinida. Pouco a pouco compreendo aquilo de que nos fala Antônio: para além da especificidade da luta do assentamento, suas palavras narram a antiga batalha entre as duas almas do Homem, aquela luta pela existência que é uma contradição, porque não existem outras argumentações além da existência mesma, e é antinatural porque traz em si a semente da auto-destruição. Este é o momento que escolheria, se quisesse dar uma imagem do MST. Talvez pela acumulação de tudo o que tinha visto até aquele instante, é como se as palavras de Antônio tivessem desencadeado um mecanismo de escavação e recuperação de cenas e sensações, trazidas agora à superfície, provenientes de não se sabe que ângulos da consciência, e do qual o Movimento emerge como símbolo de uma Luta universal sem tempo nem lugar, que cada vez se reveste de novas categorias “familiares”: o pobre contra o rico, o potente contra o oprimido, o branco contra o negro, o fixo contra o nômade… No nosso caso específico, esta luta tem um antagonista na figura de Chico Gomes - o infame como o chamam aqui no campo – um riquíssimo e poderoso fazendeiro, candidato nas próximas eleiçõs administrativas, que conseguiu manter a propriedade de um pedaço de terra interno aos 12.000 hectares do acampamento, reconhecidos ao MST graças à batalha feita pela expropriação. O assentamento Vila Esperança está localizado exatamente ao lado deste pedaço de terra. Mas, prossigamos com ordem…

A terra prometida

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Sebastião Salgado sobre a mostra fotográfica TERRA, dedicada aos Sem Terra

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1 A Terra prometida.

Viagem na luta dos Sem Terra. de Palma Navarrino fotos Palma Navarrino ”Eu não fotografo os miseráveis. Fotografo pessoas que têm menos recursos, menos bens materiais... Para mim, miserável é quem não faz mais parte de uma comunidade, está isolado, perdeu a esperança. Encontrei muita gente esfomeada. Não eram miseráveis porque pertenciam a uma comunidade, acreditavam em alguma coisa. O único modo de resistir (… ) é acreditar na comunidade.”

Sebastião Salgado (sobre a mostra fotográfica Terra dedicada aos Sem Terra)

São as primeiras horas de uma ardente tarde de agosto no assentamento Vila Esperança; fora da sua barraca, Antônio, debruçado sobre um mapa do loteamento, conta as histórias de luta do acampamento onde vive, há muitos anos, com sua família. Descreve os lugares, mostra os confins, especifica datas e nomes que nós desconhecemos e, apesar de tudo, as histórias que narra parecem cenas já vistas, remetem a qualquer coisa de familiar, ainda que indefinida. Pouco a pouco compreendo aquilo de que nos fala Antônio: para além da especificidade da luta do assentamento, suas palavras narram a antiga batalha entre as duas almas do Homem, aquela luta pela existência que é uma contradição, porque não existem outras argumentações além da existência mesma, e é antinatural porque traz em si a semente da auto-destruição. Este é o momento que escolheria, se quisesse dar uma imagem do MST. Talvez pela acumulação de tudo o que tinha visto até aquele instante, é como se as palavras de Antônio tivessem desencadeado um mecanismo de escavação e recuperação de cenas e sensações, trazidas agora à superfície, provenientes de não se sabe que ângulos da consciência, e do qual o Movimento emerge como símbolo de uma Luta universal sem tempo nem lugar, que cada vez se reveste de novas categorias “familiares”: o pobre contra o rico, o potente contra o oprimido, o branco contra o negro, o fixo contra o nômade… No nosso caso específico, esta luta tem um antagonista na figura de Chico Gomes - o infame como o chamam aqui no campo – um riquíssimo e poderoso fazendeiro, candidato nas próximas eleiçõs administrativas, que conseguiu manter a propriedade de um pedaço de terra interno aos 12.000 hectares do acampamento, reconhecidos ao MST graças à batalha feita pela expropriação. O assentamento Vila Esperança está localizado exatamente ao lado deste pedaço de terra. Mas, prossigamos com ordem…

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O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o maior movimento popular da América do Sul, nascido a partir de urgentes solicitações de saneamento de imensos desequilíbrios sociais que ainda hoje laceram o Brasil, e busca obter uma distribuição mais justa da riqueza através de um processo de restituição da Terra, substituindo-se, de fato, àquela Reforma Agrária de que o País teria urgente necessidade e que, apesar de várias promessas e algumas tentativas feitas, nunca foi realizada. A história secular de colonização europeia e de opressão do povo brasileiro não se completou com a declaração de independência da Coroa portuguesa (1822), nem com a abolição da escravatura (1888), nem mesmo com o fim dos vinte anos de ditadura militar (1984). A mais recente dependência do capital às novas lógicas do neoliberalismo de mercado, acompanhado por escolhas políticas tendentes mais a privilegiar a posição do País no cenário internacional que à subsistência e ao crescimento interno de um povo que ainda deve, em grande parte, resgatar-se da fome e do analfabetismo, têm, efetivamente, alimentado um processo de crescimento desequilibrado, aumentando aquela distância entre ricos e pobres que é tão evidente nas novas opulentas metrópoles carregadas de desocupação, de uma microcriminalidade dilagante e uma humanidade desesperada amontoada nas favelas. Nem mesmo o governo Lula, que tanta esperança tinha dado às enormes multidões de ex-camponeses e desocupados, soube manter plena fé às promessas de saneamento feitas nas campanhas eleitorais, esmagado também pela pesada herança representada pela dívida externa dos governos anteriores ao seu (sobretudo do precedente governo Cardoso). Tendo nascido oficialmente em janeiro de 1984, o MST atualmente está presente em praticamente todos os Estados do Brasil; nos dias de hoje, graças à sua obra de reapropriação da Terra, quase dois milhões de brasileiros reencontraram os meios necessários para um digno sustento da própria família, originando formas de produção e de mercado equo que demonstram que uma economia mais sadia e equilibrada é realmente possível.

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O acampamento é, neste processo, a primeira forma de reivindicação pública. A ocupação inicial, em geral, é feita de noite, para limitar a possibilidade de ações de despejo da polícia ou irrupções de bandas de pistoleiros pagos pelos fazendeiros, e é preparada através de um longo trabalho de formação das numerosas famílias participantes.

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Além da preparação prática, o principal objetivo do MST é a formação de consciência crítica e da ideia de massa como sujeito político, de uma legitimação da luta que encontrou expressão também na Igreja Católica brasileira que, graças à CPT (Comissão Pastoral da Terra), soube colocar ao lado da tradicional visão mais abstrata e trascendental, um novo elemento progressista: não pode haver salvação cristã sem a libertação econômica, social e ideológica, e a ajuda de Deus não pode prescindir do empenho do Homem em abater toda forma de abuso e injustiça social. Neste contexto a Terra constitui instrumento visível de uma dignidade humana conquistada. E’ a Teologia da Libertação do escritor e frade domenicano, Frei Betto. A escolha do terreno no qual acampar deve tomar em consideração seu caráter de improdutividade para poder, neste modo, demonstrar sua expropriabilidade por “inadimplemento de suas funções sociais” segundo quanto estabelecido pelo Art. 184 da Constituição Federal do Brasil. Obtido o reconhecimento - normalmente depois de muitos anos – o acampamento começa a se transformar em assentamento, e, perdendo então seu caráter abusivo, pode contar com uma nova estabilidade temporal. O movimento transforma-se, então, em proprietário da Terra; nas mãos das famílias são postas a cultivação e o usofruto. Nenhum lote é cedido em propriedade às famílias, a fim de evitar infiltrações e interesses externos perigosos para a integridade do próprio Movimento.

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As famílias adquirem também o direito às subvenções governamentais (entre as quais a Bolsa Família, um programa de assistência vinculado a despesas em educação e saúde, nascido como iniciativa do governo Lula). Teoricamente, desde então, são também reconhecidos todos os direitos ao uso de infraestruturas necessárias à vida e à regular organização da comunidade. Na realidade, trata-se com frequência de ter que iniciar uma nova luta, às vezes exaustante.

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Irmã Dorothy é o nome da primeira ocupação do MST que visitamos, no estato nordestino do Maranhão. E’ um acampamento que se encontra muito próximo da cidadezinha Presidente Vargas, ao sul de São Luís. Sobrevivendo já há dois anos é, como todos os acampamentos, constituído de cabanas provisórias feitas de bambu, palha e argila, mas apresenta condições de vida mediamente superiores àquelas da maioria dos acampamentos. Sua organização logística apresenta características peculiares comuns a muitas ocupações do MST.

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7 A escola assume uma função extremamente importante e é uma das primeiras estruturas a ser realizada; aqui se apresenta com uma estrutura semiaberta em pedra, com o teto de palha, e é provista de cadeiras e escrivaninha. E’ usada também como lugar de encontro para as reuniões e assembleias periódicas. Os testemunhos que as pessoas nos dão, espontaneamente, durante estas assembleias ou nas conversas ao interno das famílias, são a expressão de uma adquirida capacidade de análise da sociedade e de reconhecimento de um próprio espaço ao seu interno, desvinculado de qualquer jogo de submissão: Quem ensina não é depositário de um conhecimento superior, mas partecipa de uma troca paritária com quem aprende, até alcançar aquela reciprocidade de papéis teorizada na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. A educação sucessiva àquela básica acontece fora dos recintos da ocupação, nos distritos vizinhos, e muitos são os cursos organizados pelo MST em numerosas universidades brasileiras. Situado nas proximidades de Coelho Neto, confinando com o estato de Piauí, o acampamento Maria Aragones apresenta uma situação completamente diferente. Inicialmente evacuadas pela Polícia, as famílias ocupantes optaram pela transferência do acampamento a um terreno ao longo de uma rodovia, exatamente embaixo dos postes das instalações elétricas, a fim de evitar o risco de serem novamente mandados embora. Efetivamente, as instalações elétricas transformam os terrenos em terrenos de competência do Governo Federal, enquanto o despejo poderia já ser ativado apenas com a decisão do Governo Estadual. As condições de vida neste acampamento são muito mais duras: sua própria localização, nas margens da rodovia, a distância em relação ao pequeno rio, a falta de eletricidade e a escassez de comida, unidas às precárias condições higiênicas, endurecem os traços dos adultos sem, contudo, prejudicar a sensação de imensa disponibilidade e hospitalidade. Como em todos os lugares, uma multidão de crianças enche o ar de vozes festivas, olhares curiosos e sorridentes, brincadeiras que pouco pedem.

A vida aqui lembra muito o nomadismo, as mulheres parecem exercer uma função dominante no trabalho, na administração da família, nos contatos com o mundo exterior; tem-se quase a impressão de uma organização de tipo matriarcal, mas é um caso isolado deste acampamento. Exatamente para contrastar aquele resíduo de machismo típico das sociedades latinoamericanas e a tendência a relegar a mulher apenas à função de responsável pela família (sempre muito numerosa), na organização do Movimento existem regras e percentuais determinadas para que a função delas seja absolutamente garantida, além de qualquer natural propensão social. Maria Aragones vive dos meios de subsistência derivados dos animais criados ao seu interno (frangos, porcos), da ocasional e irregular ajuda alimentar do Governo e da transformação de sementes de um tipo particular de coco, o bacaçu, cujo cheiro penetrante invade todo o campo.

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8 Mais tarde, o óleo obtido será vendido para comprar arroz, feijão e banana. As crianças, quando acabam de sair de uma espécie de poço escuro ao ar livre comem, literalmente, até as cascas das bananas.

O assentamento de Vila de Fátima, perto de Vargem Grande, é unanimemente visto como uma situação ideal relativa ao conseguimento de estabilidade e eficiência. A atmosfera que se respira aqui é de grande serenidade, de forte empenho mas também de tanta diversão, ligada aos muitos momentos de vida social e familiar, de música e dança.

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9 A família que nos hospeda é numerosa e alargada. As relações entre os componentes dos núcleos familiares são particularmente marcadas pela alegria e pela compartilha, e têm como característica comum o grande cuidado e atenção que são dirigidos a nós, hóspedes. Também os assentamentos de Balajaga e de Santo Domingo, sempre no sul do Maranhão, apresentam uma situação bastante positiva em relação a estruturas e disponibilidade dos serviços, com um pequeno centro de saúde para as vacinações, uma escola de tijolos grande e equipada, a igreja, a fábrica para o trabalho manual da mandioca, da apicultura e da piscicultura, água corrente ou, de qualquer modo, facilmente disponível. Chegamos, finalmente, a Vila Esperança, assentamento de nome mas de fato ainda um acampamento, no centro daquela luta absurda e desigual pela obtenção de serviços reconhecidos, água, estrada, eletricidade, direito à educação das crianças maiores. Vila Esperança viveu momentos trágicos também, culminados em 2004 com a morte do jovem Evaldo em uma emboscada organizada por um grupo formado também por ex membros da ocupação que depois passaram a servir o fazendeiro. Luìs, homem de idade indefinível, verdadeiro objetivo da emboscada, que ainda traz as marcas no corpo e na mente, conta-nos sua história em meio a um silêncio carregado de emoção. Consegue descrever aqueles trágicos momentos, mostra-nos as fotografias do corpo de Evaldo, de quando o encontraram, três dias depois da emboscada, quando, finalmente, a polícia interveio. Conta-nos também de como aquela emboscada não se tenha concluído no acontecimento em si, mas represente, de qualquer forma, uma linha divisória na vida da comunidade e tenha a função de papel de furta-cor para medir os diferentes graus de interpretação e de envolvimento na própria luta e confirmar, uma vez mais, o fato que a comunidade não pode prescindir das individualidades que a compõem.

E’ uma sensação que também aflora durante a mística da noite, uma espécie de representação teatral de grande simbolismo, onde é recordada a morte de Evaldo, que permanece ainda hoje praticamente impunida. Ao fim, interventos espontâneos erguem-se das cadeiras; uma mulher fala, com voz decidida, da importância da luta e da união, denunciando uma arrasante conivência de quem, mesmo dentro da ocupação, não condena com força esta morte (“Eu tenho vergonha da impunidade” é uma das palavras de ordem que recordam os tantos massacres impunes a dano dos Sem Terra), e todos se perguntam quanto ainda se possa acreditar na justiça dos homens. O próprio Luís intervém, começando com uma piada que soa como um reconhecimento da grande importância da componente feminina “Talvez não se possa acreditar muito na justiça dos homens, mas naquela das mulheres, parece que sim …”.

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São estes os elementos que mais transparecem quando compartilhamos, mesmo que por breve tempo, o caminho dos Sem Terra: o sentido social da comunidade, o sabor de uma política atuada singularmente, cada um com sua própria contribuição pessoal, ligado às normais atividades da vida cotidiana, mas sempre com aquele sentido de pertença a um conjunto e a uma causa maior. A sensação que se tem, então, é a de que talvez exista esperança, que provém exatamente desta realidade. Também o tipo de organização dos vértices, no MST, é de tipo colegial, transversal a vários níveis, e o Movimento é, realmente, um modelo de organização de Massa. Próprio esta massa “sujeito crítico” (na definição de Frei Betto) é a que parece poder oferecer o apoio necessário aos que fazem política nos altos escalões do poder, dando mensagens puntuais e pretendendo o reconhecimento dos direitos basilares e a auto-determinação desvinculada da lei do mais forte. Numa altura em que a luta pela terra faz parte de uma batalha mais ampla para o armazenamento e distribuição de bens naturais comuns a nível mundial, esta injecção de sentido crítico e consciência pode trazer nova vida a pensar uma diferente organização da sociedade e a mais justas formas de produção e de mercado, para que palavras e conceitos novos como a Soberania Alimentar, a Biodiversidade e a preservação da Mãe Terra não permaneçam palavra morta mas um sério impulso ao processo de renovação e restauração que - agora mais do que nunca - está entre as principais prioridades do nosso planeta. Palma Navarrino