A TRADIÇÃO APOCALÍPTICA E AS ORIGENS DA COSMOLOGIA RABÍNICA

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    A TRADI O APOCAL PTI CA E AS ORI GENS

    DA COSMOLOGI A RAB NI CA

    Edgard Leite

    Resumo

    A cosmologia judaica foi fortemente influenciada em suas origens pelas cosmologias

    babilnica e egpcia, mas jamais elaborou um modelo cosmolgico definido. No entanto, a

    influncia maior da cosmologia aristotlica acabou por introduzir no judasmo, atravs da

    literatura apocalptica, um modelo cosmolgico no-matemtico, mas fundado em uma

    hierarquia de qualidades, que guarda relaes quer com a hierarquia de pureza sacerdotal

    quer com a hierarquia de virtudes aristotlica. Dessa maneira o judasmo rabnico adequou-

    se s grandes linhas do pensamento cosmolgico existentes no limiar da idade mdia.

    Palavras-chave: Judasmo rabnico; apocalptica; histria da teologia judaica.

    Abs t rac t

    The Jewish cosmology was strongly influenced in its origins by Babylonian and Egyptian

    cosmologies, but never developed a clear cosmological model. However, the greater

    influence of Aristotelian cosmology introduced in Judaism, through the apocalyptic

    literature, a non-mathematical cosmological model, based on a hierarchy of qualities, which

    keep relations with the hierarchy of priestly purity and the Aristotelian hierarchy of virtues.

    By this way the rabbinic Judaism adapted itself to the prevailing cosmological thinking on

    the threshold of middle age.

    K e y w o r d s : Rabbinic Judaism-Apocalyptic-History of Jewish theology.

    Professor de Histria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Estado doRio de Janeiro; integrante do conselho acadmico do Centro de Histria e Cultura Judaica.

    ORACULA 6.11 ( 20 10 )I SSN : 1 8 0 7 - 8 2 2 2

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    Cosmo log ias do med i te r rneo o r i en ta l

    A descoberta da lgica do movimento dos corpos celestes pgina importante na

    histria intelectual da antiguidade. Igualmente o esforo no sentido de definir a estruturado cosmo e como esses movimentos regrados nela se inserem. Desde o neoltico so

    evidentes os sinais que atestam, em diversas sociedades, o entendimento da existncia de

    marcadores naturais, que matematicamente se relacionavam. Estrelas, planetas, Sol e Lua

    apresentam regularidades em seus deslocamentos aparentes cuja compreenso foi

    necessria para as mais diferentes perspectivas de interao do humano com o meio. Reais

    ou imaginrias. O desenvolvimento do Estado e o surgimento de funes especficas

    ligadas observao astronmica amplificaram muito a reflexo sobre o significado detodos esses movimentos, conduzindo sistematizao de conhecimentos e elaborao de

    modelos cosmolgicos.

    Parece que os egpcios foram, no mediterrneo oriental, os primeiros a

    institucionalizar algum tipo de calendrio, expresso da observao e reconhecimento dos

    ciclos dos dois maiores objetos celestes: o Sol e a Lua. Estabeleceram, evidentemente

    atravs da observao e de uma criteriosa medio, no apenas com preciso o ciclo solar

    de 365 e dias, como tambm o ciclo anual lunar de 354 dias. De fato, a Lua, com sua

    regularidade, um importante marcador. Mas os perodos dos dois corpos celestes, e o do

    Sol de importncia maior no ciclo das estaes, no coincidem. Os problemas relativos

    composio dos dois calendrios levaram-nos a organizar o ano solar com meses de 30 dias

    e semanas de 10 dias, com um ms extra a fim de harmoniz-lo com o lunar de tempos em

    tempos.1

    Semelhantes observaes foram realizadas na Mesopotmia, especialmente durante oimprio babilnico. O qual culminou tradies astronmicas que remontavam antiga

    Sumria. O avano maior da matemtica babilnica, em comparao com a egpcia,

    permitiu o estabelecimento das correlaes de diversos eventos astronmicos com

    preciso, e acabou por fundar e influenciar toda astronomia mediterrnica posterior. Os

    1 NORTH, John. Cosmos: An Illustrated History of Astronomy and Cosmology. Chicago, University of Chicago,2008, pp. 27-25.

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    babilnios se referiam a essa complexa relao entre os corpos celestes de escrita

    celestial.2

    Foram marcos importantes na histria da astronomia as tbuas relativas s posies

    do planeta Vnus3, dos planetas em geral (ou aqueles que mudam suas posies4), o

    estudo das estrelas tendo a astronomia estabelecido a existncia de 36 estrelas principais

    e as tabelas de eclipses lunares. E extrapolando muitas das sobrevivncias empricas

    prprias da primeira astronomia, por exemplo, a necessidade de observao visual da lua

    nova para assinalar o incio do ms lunar, os babilnios desenvolveram seus prprios

    mtodos matemticos para calcular tal momento 5. Os babilnios, juntamente com os

    egpcios, foram os primeiros a dividir os dias em dois ciclos de doze horas e a estabelecer

    os doze signos do zodaco.6

    Em que pese tais avanos matemticos, no entanto, no parece que a cosmologia

    egpcia ou babilnica avanasse muito na formulao de um modelo de cosmos mais

    preciso capaz de exteriorizar tais avanos, repousando as cosmografias no espao do mito.

    De fato, os egpcios se restringiram ao seu esquema quadrado, entendendo que os corpos

    celestes mveis eram conduzidos pelo cu em um rio que corria em torno da terra. Os

    babilnios, dando forma de modelo a suas cosmogonias, tambm entendiam que haviaguas no cu, restos do ser primordial Tiamat morto e dilacerado pelo deus Marduk. A

    tradio mesopotmica acabou por aceitar, no Enuma Elish, dois cus acima da terra e uma

    regio subterrnea. Tradies posteriores estabeleceram a existncia de trs cus e trs

    terras escalonadas, sendo que a humanidade habitaria a terra superior. 7 Tradies

    anteriores, sumrias, falavam de sete cus e sete terras superpostas, realando, segundo

    Rochberg, a grande importncia dada na mesopotmia ao nmero sete.8 O valor desse

    nmero ser importante tambm na tradio judaica, e principalmente rabnica, posterior. 9

    2 ROCHBERG, Francesca. The Heavenly Writing: Divination, Horoscopy and Astronomy in Mesopotamian Culture.Cambridge: Cambridge, 2004, p. 1.3 NORTH, Cosmos: An Illustrated History of Astronomy and Cosmology, pp. 41-42.4 ROCHBERG, Francesca: Mesopotamian Cosmology. In HETHERINGTON, Norriss: Cosmology, Historical,Literary, Philosophical, Religious and Scientific Perspectives. New York, Garland Library, 1993, p. 142.5 NORTH, Cosmos: An Illustrated History of Astronomy and Cosmology, p. 53.6 NORTH, Cosmos: An Illustrated History of Astronomy and Cosmology, p. 70.7 PRITCHARD, James (ed.). The Creation Epic (Enuma Elish). In:Ancient Near Eastern Texts Relating to theOld Testament with Supplement. Princenton: Princeton University Press, 1969, p. 60; ROCHBERG,

    Mesopotamian Cosmology. In: HETHERINGTON, p. 43.8 ROCHBERG, Mesopotamian Cosmology. In: HETHERINGTON, p. 44.9 GINZBERG, Louis: The Legends of the Jews.Vol. 5. Baltimore: John Hopkins, 1998 [1925], p. 9.

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    O acmulo desses saberes matemticos e mticos, especialmente o babilnico,

    forneceu elementos importantes para a astronomia grega. Entre 600 e 450 a.E.C. os

    pensadores gregos lanaram as bases para uma concepo muito racional do universo que

    avanou no entendimento daquilo que Plato denominou de beleza matemtica dos

    corpos celestes10. Ela pode ser entendida como uma autntica revoluo cientfica.

    Embora a centralidade do sol tenha sido proposta por Aristarcos de Samos (310-230

    a.E.C.), o sistema de Eudoxus de Cnidos (410 ou 408 a.E.C. 355 ou 347 a.E.C.) que

    colocava em evidncia a centralidade da terra e sua insero dentro de conjunto de esferas

    concntricas, acabou por predominar na cosmologia do mediterrneo.

    Eudoxus props a existncia de quatro esferas nas quais se localizariam cinco

    planetas (Mercrio, Venus, Marte, Jpiter e Saturno), e mais trs esferas para o Sol e a Lua

    (entendidos tambm como planetas). Isto porque o grande problema da astronomia, com

    relao aos planetas, foi, por sculos, solucionar a questo das irregularidades aparentes de

    seus itinerrios e isso s podia ser feito propondo diversos tipos de movimentos circulares

    concomitantes ou simultneos. Foi somente ento que o tema dos sete planetas, e suas

    esferas concntricas tornou-se ponto relevante do pensamento cosmolgico mediterrneo.

    Isso era uma novidade, porque, no saber astronmico mesopotmico, no havia qualquer

    relao entre os nveis, ou cus, e os planetas. A questo do nmero de cus ousubterrneos sempre esteve relacionada, basicamente, necessria locao dos deuses e dos

    mortos ou ao valor simblico dos nmeros.11

    Colocada a questo do ponto de vista matemtico, os estudos sobre as rbitas

    conduziram a aperfeioamentos crescentes no mbito da especulao sobre as esferas. Pela

    primeira vez, portanto, foi gerado um modelo correspondente ao resultado das

    observaes. Aristteles (384 a.E.C. 322 a.E.C.) respondendo a tal aprimoramento das

    medies, props a existncia de 55 esferas que envolveriam a terra, 22 delas apenas para

    explicar as particularidades dos movimentos planetrios 12. Mas sem dvida a maior

    contribuio de Aristteles nesse assunto foi no apenas a proposio de um modelo capaz

    de solucionar o problema dos movimentos e que correspondesse s medies , mas

    10 TESTER, S. J. A History of Western Astrology. Suffolk, Woodbridge,, 1987, p. 16; KRAGH, Helge.Conceptions of Cosmos. Oxford: University of Oxford, 2007, pp. 23-25.11 COLLINS, Adela Yarbro: The Seven Heavens in Jewish and Christian Apocalypses. In: COLLINS, John J.e FISHBANE, Michael. Death, Ecstasy and other Worldly Journeys. Albany: New York University, 1995;KRAGH,

    Conceptions of Cosmos, p. 29.12 KRAGH, Conceptions of Cosmos, p. 31.

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    tambm o estabelecimento de um determinado entendimento qualitativo do

    funcionamento do cosmo. Isto , sua defesa de uma causa ltima, que colocaria o mundo

    em movimento. Que estaria, hierarquicamente, no colocada no centro do cosmo, na terra,

    mas em seu exterior, atravessando de fora para dentro a estrutura das esferas.

    As concepes de Aristteles, asseverando que o cosmo possua uma escala

    crescente de perfeio, de baixo para cima, ou do centro para a periferia exterior, fundaram

    uma concepo de universo e tambm de sociedade que foi aceito pelo Ocidente at o

    limiar do mundo contemporneo. Concepo que Arthur Lovejoy, h muito tempo,

    denominou de grande encadeamento do ser: um universo estruturado por um vasto e

    infinito conjunto de elos, organizados em ordem hierrquica que emergia dos nveis mais

    inferiores at alcanar o ens perfectissimum, Deus.13 De certo que, pensando o cosmo,

    Aristteles pensava em sua sociedade e sua proposio forneceu um paradigma de grande

    significao para o mundo helenstico, o romano e o cristo europeu posterior. Inseridos

    no Cosmo de forma hierrquica, os homens seriam tambm naturalmente hierarquizados.

    Da astronomia antiga emergiu assim um modelo cosmolgico e um modelo social.

    Cosm olog ia b b l i ca

    Os judeus tambm desenvolveram suas prprias concepes cosmolgicas. Bereshit

    insinua uma cosmologia que parece uma viso pobre ou rudimentar das concepes

    egpcias e mesopotmicas, mais precisamente as babilnicas. Evidentemente que as

    preocupaes maiores dos redatores do Pentateuco estavam na saga de Moiss e em questes

    legais, e menos na especulao cosmolgica. Alm do mais, considerando que o texto

    adquire sua forma final no V sculo a.E.C., de se supor que seus redatores ainda no

    tinham contato com a grande revoluo cosmolgica grega.

    No entanto, eles no incorporaram um campo de conhecimento que j estava ento

    em pleno desenvolvimento as astronomias babilnica e egpcia e nem os problemas que

    tal campo pretendia resolver, como, por exemplo, aqueles relativos determinao

    matemtica do dia preciso da lua nova. Isso particularmente interessante porque os

    judeus herdaram dos babilnicos a celebrao da lua nova e o valor de sua marcao para o

    incio do ms. Mas insistiram na sua determinao visual. Lembremo-nos que as elites

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    sacerdotais que redigiram o Pentateuco passaram setenta anos no exlio babilnico. A

    ausncia de preocupaes astronmicas mais elaboradas pode atestar tanto a ausncia de

    contato com os ncleos produtores de conhecimento astronmico na Babilnia quanto a

    desconsiderao pelo problema em si. Nesse ltimo sentido, mais claro, h uma

    advertncia, feita pelos sacerdotes, no Pentateuco: Levantando teus olhos ao cu e vendo

    o sol, a lua, as estrelas e vendo todo o exrcito do cu, no te deixes seduzir para ador-los

    e servi-los! (Dt 4:19). Isto , a astronomia talvez fosse vista exclusivamente como

    astrologia, ou seja, como uma forma de idolatria.

    Mas de qualquer forma o cosmos bblico , em princpio, um cosmo em nveis ou

    plataformas, aos moldes babilnicos. O Deus dos judeus estabeleceu um firmamento no

    meio das guas... que separou as guas que esto sob o firmamento das guas que esto

    acima do firmamento (Gn 1:6-7). Numa linha anloga a de egpcios e mesopotmicos,

    portanto, as guas circundam o cu por fora dele. Isto depreende a existncia de vrios

    firmamentos: aquele que separa as guas e provavelmente outros entre as guas inferiores

    e a terra e o primeiro firmamento, nos quais devem transitar o Sol e a Lua, por exemplo.

    E, quem sabe, ainda outro, implcito, que estaria alm das guas superiores. Muitos sculos

    depois esse tema ainda repercutiria no Talmude: os sbios judeus dizem: o sol se move de

    dia por baixo do firmamento e pela noite acima do firmamento; os sbios das naesdizem: o sol se move de dia por baixo do firmamento e pela noite por baixo da terra. 14

    Tal perspectiva mostra que os judeus no eram totalmente ignorantes das diferenas entre

    as cosmografias. Mas sustentavam aquela que, provavelmente, parecia mais coerente com

    sua cosmogonia.

    A palavra hebraica para cu, shamaim, no seu plural parece tratar, em princpio, dessa

    multiplicidade de firmamentos. Tal idia, prpria da Babilnia, teve longa vida no

    pensamento judaico do perodo do segundo templo e est presente em Paulo. Este se

    refere aos cus, no plural (2Cor 5:1, Col 1:5, por exemplo). Na tradio talmdica posterior,

    h muita certeza sobre essa multiplicidade, entendendo os rabinos que os cus variavam de

    dois a sete15. As plataformas do universo estender-se-iam tambm para baixo. Para alm

    das guas inferiores encontrar-se-ia um abismo, o sheol, o lugar dos mortos, acompanhando,

    mais uma vez, concepes ento conhecidas no mediterrneo oriental.

    13

    LOVEJOY, Arthur O. The Great Chain of Being. New York: Harper and Row, 1960, p. 59.14 PESAHIM. In: EPSTEIN, I. (trad.). Babylonian Talmud. London, Soncino Press, 1952, p. 94b.

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    Viagens on r i cas na l i te ra t ur a apoca l p t i ca

    O perodo do segundo templo (516 a.E.C. 70 E.C.) , como se sabe, de grande

    importncia para a histria judaica. Primeiro sob os persas (at 330 a.E.C), depois sob os

    gregos e por fim independentes sob a tutela de Roma (a partir de 160 a.E.C.), os judeustravaram conhecimento com as grandes correntes de pensamento dos principais centros

    culturais da poca.

    difcil precisar como as idias cosmolgicas das naes influenciaram a

    cosmologia judaica, ainda mais considerando que as bases da cosmogonia bblica eram tidas

    como sagradas. Todo desenvolvimento possvel nessa rea estava, portanto, limitada pelos

    elementos gerais da tradio. No entanto, sabe-se hoje que diferentes grupos intelectuais

    divergiam e convergiam dentro do universo cultural judaico, propiciando diferentes reaes

    s influncias e contribuies externas e s necessidades internas. Isso tambm assinala um

    grau diferenciado, portanto, de dilogos, reaes e solues. Jamais houve um judasmo,

    como defendeu Neusner, mas sim vrios judasmos.16

    Naquele perodo, as discusses cosmolgicas foram tratadas, basicamente, no tipo de

    literatura denominada apocalptica. Foi nesses textos que se desenvolveu o tema da

    viagem exttica, ou onrica isto , realizada num momento de sonho ou de devaneio, e,atravs dela, estabeleceram-se diversas avaliaes cosmolgicas. A perspectiva em si no

    era, evidentemente, original. Do ponto de vista da viagem a outros mundos, ela tinha suas

    razes na literatura semtica anterior, mesopotmica.17 Do ponto de vista da experincia

    exttica, fora precisamente atravs dela que a literatura proftica entendia ser possvel o

    contato direto dos profetas com Deus.18

    Mas existem algumas particularidades dessas viagens no contexto da apocalptica.

    Inicialmente, necessrio recordar que embora a literatura proftica normalmente e a

    literatura sacerdotal eventualmente entendessem o sonho ou o devaneio como estados

    privilegiados para o dilogo com o Alm, isso no queria dizer que atravs dessas

    15 RABINOWITZ, Louis Isaac. Cosmology. In: SKOLNIK, Fred. Encyclopaedia Judaica. Vol.V. New York:Macmillan, 2007.16 NEUSNER, Jacob e CHILTON, Jacob.Judaism in the New Testament: Practices and Beliefs. London: Routledge,1995, p. 23.17 ABUSCH, Tzi. Ascent to the Stars in a Mesopotamian Ritual: Social Metaphor and Religious Experience.

    In: COLLINS e FISHBANE, p. 15; COLLINS, John J. The Apocalyptic Imagination: An Introduction to the JewishApocalyptic Literature. Grand Rapids: Eerdmans, 1998, p. 26.18 LEITE, Edgard. Sonhos nos textos bblicos e na literatura talmdica. In: Revista Horizonte66 (2007).

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    experincias poder-se-ia ascender a Deus, ou se deslocar para fora desse mundo. Na viso

    do Pentateuco e no dos profetas, nos sonhos e devaneios Deus quem desce, no o homem

    quem sobe. Ezequiel tem a viso da merkav, a carruagem celestial, na Babilnia, s

    margens de um rio, e no nos cus. O mistrio dos espaos superiores divinos repousaria

    permanentemente em Deus.

    H de fato, uma advertncia no Deuteronmio sobre esse assunto: Ele no est nos

    cus, para que fiques dizendo: Quem subiria por ns at os cus, para traz-lo a ns, para

    que possamos ouvi-lo? (Dt 30:12). E o objetivo da construo da torre de Babel: Vinde,

    construamos... uma torre cujo pice penetre os cus! (Gn 11:4) explicitamente

    condenada por Deus com conseqncias terrveis. A experincia ascensional no , nessa

    tradio, reconhecida em princpio como vivel, necessria, possvel ou aceitvel. Alis,

    sobre os dois personagens bblicos que ascenderam aos cus, Elias e Enoc, os textos como

    um todo guardam grande silncio ou mistrio sobre seu destino e experincias. A literatura

    sapiencial, to oposta aos sacerdotes em tantas assertivas, guarda, no entanto,

    correspondncia com eles na medida em que faz repousar os segredos do universo alm da

    capacidade humana de entendimento ou observao. Onde estavas, quando lancei os

    fundamentos da ter? Dize-mo, se que sabes tanto. Quem lhe fixou as dimenses? (J

    38:4).19

    Assim, as viagens onricas possuem um perfil diferente das experincias onricas em

    geral, pelo menos diante de vrias tendncias teolgicas do perodo do segundo templo.

    Elas deslocam o homem em direo ao espao de Deus e tornam possvel a observao

    direta do cosmo. Isso j ocorrera, como se sabe, entre os gregos, no mito de Er, narrado

    por Plato (428 a.E.C. 347 a.E.C.) na Repblica. Er, durante um estado catalptico,

    ascende ao cu, e tem uma viso maravilhosa das rbitas que os planetas desenvolvem em

    torno da terra.20 A natureza epistemolgica da experincia , no entanto, onrica, subjetiva.

    Muito diferente, claro dos modelos construdos depois por Aristteles, muito racionais e

    objetivos, oriundos de observaes do mundo real. No entanto, para os padres judaicos

    dominantes na literatura sacerdotal, tal tipo de deslocamento espacial onrico, na direo de

    Deus, apresentava uma grande inovao, repousada, paradoxalmente, nos elementos gerais

    da experincia proftica. Pois permitia formular um saber cosmolgico.

    19

    SCHWIENHORST-SCHNBERGER, Ludger. O livro de J. In: ZENGER, Erich. Introduo ao AntigoTestamento. So Paulo: Loyola, 2003.20 NORTH, Cosmos: An Illustrated History of Astronomy and Cosmology, p. 74.

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    Ambientes divergentes judaicos, desconsiderando reticncias e proibies de outros

    grupos, no perodo do segundo templo, engendraram um conjunto significativo de textos

    relativos a viagens onricas. Na verdade, segundo Collins, na literatura apocalptica o meio

    principal de revelao so vises e jornadas para outros mundos.21 So deslocamentos

    repletos de reflexes cosmolgicas, isto , abordavam um tema muito rarefeito da tradio

    mas muito abordado pelos sbios das naes naquela poca.

    A viagem onrica pareceu ser, assim, entre outras coisas, um mecanismo, construdo

    aos moldes da experincia proftica, atravs do qual se poderia estabelecer modelos

    cosmolgicos e preencher lacunas geradas quer pela precariedade dos modelos bblicos

    quer pelo desenvolvimento do conhecimento da poca. De uma forma geral, no que nos

    interessa no momento, forneceu elementos no bblicos para modernizar e fundamentar a

    cosmologia posterior, e, como pretendemos demonstrar, especialmente as concepes

    cosmolgicas rabnicas.

    Ent endendo a est r u tu ra do un i ve rso na l i t e ra tu ra apoca lp t i ca

    Alguns dos textos apocalpticos, inicialmente I Enoch, lidam com os complexos

    problemas do calendrio, em torno do qual h um conflito em todo perodo do segundo

    templo. I Enoccontrape-se ao imprio do calendrio lunar de 354 dias adotado por muitas

    correntes judaicas de ento, afirmando a necessidade de adoo do calendrio solar de 364

    dias. Embora Enoc, a personagem bblica, tenha vivido 365 anos, o que sugere um perodo

    j conhecido h muito pelos povos do mediterrneo oriental, I Enoc defende um ciclo

    defasado em um dia (74:12). E no h qualquer previso, no texto, para corrigir o desajuste

    inevitvel que seria de um dia por ano. As questes sobre essa controvrsia permanecem

    ainda hoje obscuras.22

    No entanto, cabe anotar que a questo tinha implicaes diretas noque diz respeito ao estabelecimento do calendrio religioso, e est inserida nos grandes

    debates em torno da legitimidade do segundo templo.

    Do ponto de vista da cosmologia, a literatura apocalptica avana em tentativas claras

    de estabelecer modelos. I Enocapresenta um esboo ainda muito vago do assunto e algo

    contraditrio diante dos elementos da tradio. Enoc conduzido pelo anjo Uriel pelo

    21 COLLINS, John J. The Apocalyptic Imagination, p. 5.

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    universo e aos confins da terra. O texto adverte, em sua primeira parte, O livro dos

    Guardies (1-36), que os conhecimentos astronmicos, astrolgicos e metereolgicos

    (astrologia, constelaes e nuvens... sinais da terra, sinais do sol, curso da lua) foram

    ensinados pelos anjos rebelados Baraquial, Kokabel, Ezequeel, Araquiel, Samsiel e Sariel,

    aos homens (8:1). Mas tal advertncia, porm, no inviabiliza que outras partes do livro

    apresentem saberes sobre o assunto, divinamente revelados. H que se ter em conta que I

    Enoc uma obra composta em diferentes perodos, escrito originalmente em hebraico e

    aramaico, cuja redao deve ter sido iniciada em torno de 400 a.E.C., o bsico de seu

    ncleo fundador concludo at 300 a.E.C.23 e suas ltimas partes no sculo I a.E.C. E

    provvel que suas diversas partes fossem originalmente textos que circulavam

    separadamente.24

    Enoc, de uma forma geral, tem como objetivo a viso e a experincia do trono

    celestial, a merkav. Tema que, a partir de Ezequiel, domina a mstica judaica.25 Na sua

    viagem, o patriarca chega primeiro a um muro de cristais circundado por lnguas de fogo

    (14:9) e depois a um segundo palcio, feita de chamas de fogo (14:11). O tema dos

    palcios celestiais, hehalot, tambm ser importante em toda mstica judaica posterior26. Ele

    circula pela terra, v as montanhas, os lugares de onde surge o vento e aponta regies do

    mundo, que v do alto, como o mar da Eritria (32:2) o que parece indicar umconhecimento da geografia popular grega.27

    So nos captulos 72-82, no entanto, o chamado Livros dos Luminrios, uma parte

    supostamente mais antiga, (em torno do sculo IV a.E.C.), onde aparecem maiores

    afirmaes de cunho cosmolgico. A idia de que o Sol caminha numa carruagem, levado

    pelo vento, e retorna a leste pelo norte e volta surgir por seis portais, estabelece um modelo

    cosmolgico mais ou menos claro (72:5-11). A Lua tambm conduzida pelo vento em

    carruagem. I Enoc afirma, de forma interessante, que ela est relacionada ao sol, e dele

    recebe luz (73). Desses portais, a leste e a oeste nascem e se pem tambm as estrelas. Tal

    viso de mundo, muito rudimentar, como de resto o clculo dos dias do ano do ponto de

    22 VANDERKAM, James C. The Origin, Character and Early History of the 364-day Calendar: aReassessment of Jauberts Hypotheses. In: Catholic Biblical Quarterly41 (1979).23 BOCCACCINI, Gabriele. Roots of Rabbinic Judaism. Grand Rapids: Eerdmans, 2002, p. 101.24 NICKELSBURG, George.Jewish Literature between the Bible and the Mishnah. Philadelphia: Fortress, 1981, p.48.25 GREENHALD, I. Apocalyptic and Merkavah Mysticism. Leiden: Brill, 1980; COLLINS, John J. The ApocalypticImagination, p. 53.26 SCHOLEM, Gershom.As grandes correntes da mstica judaica. So Paulo: Perspectiva, 1995, p. 41.

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    vista matemtico inferior ao dos defensores do ano lunar, na medida em que errado-, no

    parece indicar grandes intimidades com o conhecimento da poca. Mas original, em

    termos judaicos, de qualquer forma, que ele localize espacialmente o trono de Deus numa

    grande montanha, concebendo o mundo de uma forma parecida quela prpria dos judeus

    que entendiam, desde o princpio do primeiro templo, que o sagrado repousava nos

    lugares altos. Transfigurando o espao da terra para o espao csmico. Exteriorizando,

    portanto, conhecimentos e pressupostos em modelo cosmolgico.

    Um texto um pouco mais complexo II Enoc, que data do I sculo E.C., com

    elementos talvez anteriores, tambm conhecido como Livro dos Segredos de Enoc. Com

    uma cosmologia mais elaborada, nele descrito como Enoc ascende a Deus, passando por

    sete cus. No primeiro, encontra os anjos que governam as estrelas e os elementos. No

    segundo, o local de punio dos anjos rebeldes. No terceiro, o paraso, que tanto o Jardim

    do den quanto um local de retribuio futura e, em um de seus cantos, um local de

    punio. No quarto, o espao por onde se movem o Sol e a Lua e se do os elementos

    determinantes do tempo. No quinto, encontra os guardies. No sexto, os sete anjos que

    supervisionam a ordem do mundo. No stimo, por fim, a corte celestial, onde Enoc passa a

    um estado angelical.28 Aparentemente, II Enocj expressa uma cosmologia mais ordenada e

    clara, ainda influenciada por concepes babilnicas arcaicas, isto , sem estabelecerclaramente a doutrina das esferas planetrias, embora, paradoxalmente, em 27:1, mencione

    as sete estrelas, cada uma em seu cu. Talvez uma interpolao.

    Um texto posterior III Baruch, cuja elaborao , comumente, datada de c. 130 E.C.

    III sculo E.C. um livro que recupera o tema das viagens onricas no contexto das

    afirmaes cosmolgicas, ecoando a linha enquica. Ele trata, no entanto, da mtica

    ascenso do escriba Baruch ao cu. Nesse texto so descritos cinco cus. No primeiro,

    Baruch encontra uma grande plancie, onde esto os homens que construram a torre de

    Babel. No segundo, esto aqueles que planejaram a construo da torre. Igualmente, como

    os primeiros, metamorfoseados em criaturas antropozoomorfas. No terceiro, ele v um

    drago, que tanto devora as almas dos pecadores quanto, aparentemente, as guas

    excedentes dos oceanos. Ali descobre que um galho da rvore do conhecimento do bem e

    do mal flutuou nas guas do dilvio e que No, ao plant-lo, introduziu a uva e o vinho

    entre os homens. Tambm ali se movimenta a carruagem do Sol, conduzida por quarenta

    27 NICKELSBURG, p. 54.

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    anjos. Baruch ouve o barulho dos anjos abrindo as 365 portas por onde o astro se desloca

    (mais corretamente, do ponto de vista astronmico). Baruch tambm v a carruagem da lua

    e das estrelas. As fases da lua so punies por ela ter iluminado Ado no momento do

    pecado original.

    No quarto cu est o paraso, cheio das almas dos justos. No quinto est o porto

    alm do qual est Deus.29 A ausncia de preocupaes astronmicas, o afastamento de

    qualquer influncia contempornea cientfica atestam uma concepo absolutamente

    qualificadora do modelo do cosmo. Parece, no entanto, consolidar aquela primitiva

    tendncia, sugerida em I Enoc, de entender o universo como tendo, em sua culminncia, o

    templo sagrado celestial. A exemplo, provavelmente, do Templo de Jerusalm.30 Tal

    transfigurao parece marcar, doravante, as concepes cosmolgicas apocalpticas que se

    desenvolvem no meio judaico.

    Assim se d com III Enoc, ou o Livro Hebraico de Enoc. Trata-se de uma obra

    elaborada entre III sculo E.C. e V sculo E.C. em comunidades judaicas da Babilnia 31.

    Separado por quase mil anos do Livro dos Luminrios, III Enoc parece propor uma

    continuao saga do patriarca, dessa vez apresentando a jornada onrica do Rabi Ishmael

    Ben Elisha, dito sumo-sacerdote, aos cus. L ele descobre que Enoc, tendo sidoarrebatado, na verdade transformara-se no anjo Metraton (4:2), o pequeno Iaveh (12:5),

    cujo trono est localizado porta do stimo e mais elevado dos sales, no qual est a

    merkave a presena de Deus. O tema da angelologia muito desenvolvido em III Enoc,

    mais do que em qualquer outro apocalipse judaico anterior.

    Aceitando a tese dos sete cus, assim, III Enocenumera os anjos de cada um deles,

    explicando que cada um tem a seu servio 496.000 seres celestiais. Designa-os de cima para

    baixo: no stimo cu estaria Miguel; no sexto, Gabriel; no quinto, Shataqiel; no quarto,

    Sahakiel; no terceiro, Badariel; no segundo, Badakiel e no primeiro, Pazriel (17: 1-3). No

    entanto, III Enocesclarece que o Sol, movido por 96 anjos, a Lua, por 88, as constelaes,

    por 72, os planetas, por 365.000 entidades celestiais, movimentam-se apenas no segundo

    28 COLLINS, John J. The Apocalyptic Imagination, pp. 244-245.29 HARLOW, Daniel C. The Greek Apocalypse of Baruch (3 Baruch) in Hellenist Judaism and Early Christianity. Leiden: Brill, 1996; WRIGHT, J. E. Baruch Ben Neriah, from Biblical Scribe to Apocalyptic Seer. Columbia:University of South Carolina Press, 2003.

    30 COLLINS, John J. The Apocalyptic Imagination, p. 54.31 ALEXANDER, P. S. The Historical Setting of the Hebrew Book of Enoch. In: Journal of Jewish Studies28.2(1977): 5.

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    cu (17: 4-8). Assim, tambm no parece que aqui a tese das esferas tenha sido adotada. O

    significativo, no entanto, que todos os anjos, de cada cu, guardam rgida hierarquia entre

    si (18). O tema das hierarquias celestiais j estava sugerido desde III Enoc, e parece ser um

    dos elementos mais significativos da cosmologia apocalptica.

    Dia logando com as cosm o log ias das naes : u m a d imenso

    A ausncia de uma concepo final na apocalptica sobre o modelo cosmolgico,

    realmente no permitiu uma alternativa aos impedimentos sobre o assunto determinados

    pela tradio. A tradio rabnica, quando confrontada com a necessidade de estabelecer tal

    modelo, tender, no entanto, a buscar na apocalptica as fontes principais para isso. Talvez

    por serem os nicos elementos confiveis em termos tnicos, e no estarem de forma

    aparente contaminados com idias das naes, essencialmente, helensticas. No Talmude

    (concludo em torno de 700 E.C.), se dir que a terra suspensa sobre pilares, os pilares

    sobre a gua, a gua sobre as montanhas, as montanhas sobre o vento, o vento sobre a

    tempestade e a tempestade suspensa no brao de Deus. 32 Tal conservadorismo

    particularmente interessante quando consideramos que as instituies de pesquisa na

    Europa crist acabaram por consolidar suas convices em torno das esferas planetrias

    como est culminado na experincia intelectual carolngia.33 Mas, como bem explicou o

    Rabi Aiha, no Talmude, existem coisas sobre as quais a pessoa no tem permisso para

    falar.34

    Deve-se anotar, no entanto que, em termos de calendrio, o judasmo medieval

    avanar com o conhecimento matemtico. Principalmente porque parecer evidente a

    necessidade de resolver os problemas relativos coerncia das convergncias entre eventos

    astronmicos de diferentes ordens, principalmente os relativos ao ciclo lunar e ao ciclo dasestaes. A tradio rabnica assegura que um calendrio luni-solar aprimorado o atual

    dos judeus - foi introduzido por Hillel II em torno de 500 E.C. Aperfeioado durante a

    Idade Mdia, tal calendrio de fato conseguiu estabelecer uma relao matemtica de

    32 HAGIGAH. In: EPSTEIN, p. 11.33 EASTWOOD, Bruce: Roman Astronomy and Cosmology in the Carolingian Renaissance. Leiden: Brill, 2007.34 HAGIGAH. In: EPSTEIN, p. 13.

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    convergncia aceitvel entre os dois ciclos.35 Mas, mesmo assim, abriu mo de estabelecer

    um modelo cosmolgico correspondente e explicativo.

    No entanto, a recusa em aceitar a exteriorizao dos fundamentos cientficos em

    modelo cosmolgico, no significa que a apocalptica e a mstica judaicas no tenham

    propiciado a entrada de importantes concepes gregas, principalmente, dentro do

    pensamento judaico, e ordenado, de maneira definitiva suas concepes cosmolgicas. E

    que isso tenha, de uma forma ou de outra, emergido na cosmologia rabnica. Como Swartz,

    de fato, observou: palavras ou nomes gregos, normalmente de forma alterada, ocorrem

    nos textos hekhalot.36 As preocupaes, mesmo que pontuais ou deformadas, com a

    racionalidade matemtica do cosmo, presentes na literatura apocalptica e mstica talvez de

    fato quisessem representar outros movimentos de incorporao de concepes externas

    dentro do mundo judaico. Com efeitos gerais sobre o pensamento rabnico posterior.

    Quando a discusso foi tratada no Talmude, o Rabi Lakish defendeu a existncia de

    sete cus. O primeiro tem como funo cobrir a luz durante a noite, donde desaparecer

    pela manh. No segundo esto os planetas. No terceiro, brota o man para os justos. No

    quarto est a Jerusalm celeste com seu Templo, no qual Miguel atua como sumo-

    sacerdote. No quinto esto os anjos que cantam hinos a Deus. No sexto esto os elementosdo clima, tormentos, granizos e chuva. No stimo esto os justos e, no alto, entre as

    nuvens, o trono de Deus, cercado por serafins.37 Ginzberg levantou vrias evidncias na

    literatura rabnica medieval da crena em sete terras, tambm dispostas em plataformas. De

    cima para baixo existiriam: primeira, a nossa terra; segunda, uma terra habitada tambm por

    seres vivos (365 espcies mais uma vez o nmero) embora todos monstruosos; terceira,

    uma terra onde se encontravam mananciais e rios; quarta, uma terra tambm repleta de rios

    e cursos de gua; quinta, uma terra que continha os sete nveis do inferno, comeando pelo

    Sheol e terminando na Geena; sexta, uma terra habitada pela glria divina. Depois da

    stima terra estava o brao de Deus.38

    35 WIESENBERG, Ephraim. Calendar. In: SKOLNIK, Fred. Encyclopaedia Judaica. Vol. IV. New York:Macmillan, 2007.36 SWARTZ, Michael. Jewish Visionary Tradition in Rabbinic Literature. In: FONROBERT, Charlotte (ed.).The Cambdrige Companion to the Talmud and Rabbinic Literature. Cambridge: Cambridge, 2007, p. 238.37 HAGIGAH. In: EPSTEIN, p. 12b.38 GINZBERG, Louis. The Legends of the Jews. Vol. 1. Baltimore: John Hopkins, 1998 [1909], p. 10.

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    A tradio talmdica nos legou igualmente o relato das experincias onricas do Rabi

    Joshua Ben Levi. Teria sido ele, assim se acreditava, o nico homem que visitou o paraso

    em vida e que de l trouxe um relato. Segundo ele, o paraso teria sete nveis. No primeiro

    nvel estariam osgerim, os que se tornaram judeus. Cercados por paredes de vidro e portes

    de cedro, seriam liderados pelo profeta Abdias, ele mesmo um proslito. O segundo,

    ornado apenas por prata pura, seria habitado por todos aqueles que se arrependeram

    sinceramente dos seus pecados. No terceiro, igualmente adornado de ouro e prata,

    viveriam Abrao, Isaac, Jac, e todos os israelitas que saram do Egito e a gerao que

    habitou o deserto. Tambm ali estaria o rei David e todos os reis que governaram Jud,

    com exceo de Menass. Tal nvel seria presidido por Moiss e Aaro e nele todos os

    mveis e utenslios seriam feitos dos mais preciosos metais e madeiras. No quarto,

    sustentado por paredes de rubi, estariam os que viveram uma vida religiosamente correta.

    No quinto, ornado de prata, ouro e vidros preciosos e perfumado pelo melhor dos

    perfumes, viveriam o Messias e o profeta Elias, permanentemente visitados por

    personalidades eminentes da histria de Israel. No sexto, estariam os que perderam a vida

    em decorrncia de atos piedosos. E no stimo e mais elevado dos nveis viveriam os que

    morreram devido a males enviados por Deus para expiar pecados de Israel.39

    Esses conjuntos de proposies cosmolgicas mediadas pelo onrico, realizadas nocampo do ilusrio ou do alucinatrio40, na sua pluralidade contm uma certa teoria sobre a

    ordenao geral do universo. Sua base a arcaica viso escalonada de mundo babilnica.

    Seu modelo mais profundo a da hierarquia de purezas prpria do projeto sacerdotal. Mas

    na sua dimenso global guarda correlao com concepes externas. Principalmente

    porque coloca no apenas acima, mas tambm abaixo e em torno a presena motora de

    Deus, o seu brao.

    Essa perspectiva oriunda da literatura apocalptica. Pois parece claro que a

    apocalptica realizou um processo importante de associao entre o pensamento judaico e o

    pensamento cosmolgico das naes. Para alm das plataformas superpostas de Bereshit,

    h nela uma clara tendncia de considerar, de uma forma diferente, a estrutura hierrquica

    de pureza, prpria do projeto sacerdotal. O Pentateuco de fato acreditava que ela estava

    presente, de forma decrescente em grau de pureza, no sagrado dos sagrados, no Templo,

    39

    KETUBOT. In: EPSTEIN, p. 77b; LEITE, Edgard. Joshua Ben Levi, o paraso e os proslitos. In:Quinzena na ARI. XI-4. Rio de Janeiro, 2006.40 LEITE, Edgard. O Pentateuco: uma introduo. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 43.

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    na cidade de Jerusalm, emEretz Israele depois no mundo. Do ponto de vista social, eram

    crescentemente impuros os que se localizavam abaixo do sumo-sacerdote: os demais

    sacerdotes, os levitas, o povo de Israel, os mamzerim, as mulheres, os goyme os diferentes

    tipos de animais, puros e impuros.41

    A literatura apocalptica aplica essa hierarquia organizao do cosmo. A viso do

    universo como um templo prescinde da teoria das esferas planetrias dos gregos. Mas ao

    estabelecer a tese de uma hierarquia de qualidades no cosmo acaba por aproxim-la, de

    forma profunda, das concepes aristotlicas e gregas de hierarquia do universo a partir do

    primeiro mvel. E, principalmente, assim o faz ao propiciar a fuso entre as hierarquias

    de pureza sacerdotais e as hierarquias aristotlicas de perfeio. Observemos que o paraso

    de Joshua Bem Levi no hierarquiza mais os justos pelo seu grau de pureza, como nas

    determinaes sacerdotais, e sim pelo seu grau de perfeio. Isso d novas perspectivas ao

    universo escalonado babilnico e de Bereshit. Acima de tudo porque estabelece com clareza

    o carter externo ao universo da fonte de energia motora, que no apenas pura, mas

    perfeita.

    O grande encadeamento do ser, que passar a organizar o pensamento medieval

    encontrar, portanto, uma semente importante na apocalptica e um desdobramentodefinitivo no pensamento rabnico. E se a cincia das esferas no for integrada de forma

    unnime, ao menos, no pensamento rabnico, a doutrina de uma hierarquia universal de

    perfeio, que sobe dos nveis inferiores ao ens perfectissimus, provavelmente o foi. Como, de

    resto, em todo pensamento ocidental.

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