A velha

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  • 7/26/2019 A velha

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    A velha

    Sempre em algum horrio do dia mas nunca pontualmente, a velha vinha com

    sua cadeirinha de plstico colocar-se ao lado de fora de sua casa. Tinha aquele gosto de

    velha antiga e pobre: gostava de ficar do lado de fora vendo a rua, conversando com os

    vizinhos, vendo o movimento de todos. Enfezava-se com qualquer coisa que impedisse

    sua viso da rua e mandava sua filha tirar qualquer planta muito alta que estivesse no

    terreno logo ! frente de sua casa. Apenas cercado com uma cerca de arame fino e bem

    espa"ado, o terreno permitia um prazer quase se#ual ! velha: atrav$s do terreno via no

    s% a sua pr%pria rua como a rua de trs.

    &aminhava lentamente e com dificuldade, apoiando-se na cadeira para seguir

    adiante rumo ao seu lugarzinho cativo em frente ! pr%pria casa. Seus passos, enquanto

    segurava a cadeira, eram lentos, sim, mas eram tamb$m duma esperan"a triste e muda,

    como se ' nos passos encenasse parte de seu ritual de observar ! rua. (uando

    finalmente chegava no ponto onde achava bom apoiar sua cadeira, sentava-se e ali

    permanecia olhando para l e para c.

    Era bai#inha e troncudinha, cabelos castanhos, usava %culos e, al$m disso, era

    parcialmente surda, de modo que para falar com ela era necessrio falar bem alto. E,

    curiosamente, muitos falavam com ela, quer na esperan"a de que ela ouvisse e

    respondesse algo, quer por obriga"o, afinal ela era vizinha e com vizinha deve-se

    manter boas rela")es. *e manh, uma criancinha fofa, dessas que t+m uma educa"o

    suficientemente repressiva para ainda ser espontnea, vinha falar com ela e a abra"ava

    de uma forma entregue e feliz. ovozinha/0 chamava-a a crian"a com sua efusividade

    honesta, achando que com isso, fazia um bem tremendo e ignorando que a velha, apesar

    de aparentar estar feliz, s% a respondia por educa"o. 1o fundo, no fundo odiava servelha, dei#e estar ser a vovozinha0 de algu$m. Ela era uma dessas pessoas revoltadas

    com o tempo e essa revolta era uma das suas motiva")es para seu ritual cotidiano.

    1o sa2a de casa nem para buscar sua aposentadoria. Arrumou um esquema com

    o gerente do banco para sua filha poder ir buscar no seu lugar. Alegou artrite, artrose e

    indisposi"o quando sa2a no calor. Tudo mentira: na verdade no queria olhar para a

    cara de idiota de seu gerente, nem ver aquele olhar de menino criado por v% quando

    'ulga encontrar outra vov% para si. Era a mesma ternura dos seus netos e da ternura dos

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    seus netos ' estava um pouco cheia. Sentia falta da crueza de tratamento que os homens

    a dispensavam na sua 'uventude.

    (uando sentada, gostava particularmente de brincar com a vizinha que, 'ulgava,

    devia odiar sair de casa. 1o importava muito quando ou como, se de carro, a p$, se em

    dire"o ao mercado, ! padaria ou ao centro: ao menor sinal da vizinha colocar o corpo

    pra fora de casa e aparentar sair 3 no precisava nem sair de fato, bastava parecer que

    iria-, disparava vai chover ho'e/0. 4ercebeu que sua brincadeira perdera a acidez inicial

    e tornara-se um ritual quando sua vizinha passou a responder apenas com um sorriso e

    um aceno. 4ena, pensou. 1em mesmo de incomodar era capaz. 5al sabia ela que

    secretamente sua vizinha odiava sua mania de velha de repetir sempre as mesmas

    coisas. Toda vez que sorria era por falta de arma melhor. E um sorriso !s vezes pode ser

    mais violento do que um tapa na cara.

    4or muito tempo os vizinhos 3 essa vizinha inclusa - se perguntaram por que a

    velha sempre sentava fora de casa e ficava espiando a rua sem fazer anda de grandioso.

    6ns achavam que era s% mania de velho. 7utros, que era a 8nica diverso dela. 9avia

    ainda aqueles que achavam que era pra irritar a filha, porque velho parece crian"a,

    basta dar uma ordem que para eles decidirem desobedecer0. 6ma pessoa levantou a

    hip%tese de que a velha no estava ali espiando, mas esperando. Esperando o qu+, a

    morte0 disseram alguns. 1o, o filho morto voltar/0 respondia prontamente a pessoa.

    ; que a velha havia perdido o filho de uma forma trgica e como para as pessoas

    tudo que $ estranho ou $ trauma ou $ loucura, essa e#plica"o parecia fazer muito

    sentido. *e fato, era verdade. Seu filho morrera ! $poca de carnaval, h esolveu brincar carnaval longe de casa e, no meio da festa no viu um fio

    desencapado do poste e nele pisou. >esultado: morte ainda mais instantnea e brutal do

    que todas as outras mortes.

    ?radualmente os vizinhos apegaram a essa hip%tese e passaram mesmo a terpena da velha. Agora, eventualmente, davam-lhe gua, sentavam-se perto dela para

    conversar e ouvir sua hist%ria, paravam as plantas altas do 'ardim. Afinal, deve ser

    realmente muito triste perder o filho assim, coitada0. 1ada move mais as pessoas a

    a'udar as outras do que a culpa que resulta da transforma"o do escrnio em pena e

    nenhum sentimento $ mais narcisista do que a pena.

    4or vezes ela espantava algumas dessas pessoas. *etestava perceber que sentiam

    pena dela, especialmente quando no havia motivo, dizia. 5as quem sente pena tem queagir e gritar ao mundo que a sente. E se o alvo da pena no se reconhecer no sentimento

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    de piedade, mais coitado ainda se torna. 1o bastasse sofrer, a coitada ainda no

    reconhece que sofre0. Aquele de quem sentimentos pena se reduz, assim, a um idiota

    que no reconhece o pr%prio sofrimento. E com a velha no era diferente: ao menor

    sinal de que estava doente, triste ou quaisquer coisas assim, ' a enchiam de mimos e

    cuidados. 6ma das vezes, quando a manicure fazia suas unhas, notou que a tocava com

    um cuidado desnecessrio. oc+ no pode me machucar nem se quiser ento tire essas

    cut2culas direito, disse para a manicure que, envergonhada, tirou alguns bifes que

    propositadamente dei#ara na velha com medo de feri-la. A s8bita revela"o de for"a da

    velha a encheu de coragem de e ternura pela velha, de modo que via nela uma esp$cie

    de inspira"o ou modelo para si. Tamb$m dela pensavam que era uma fraca e tamb$m

    ela se achava mais forte do que aquilo que os outros viam. A revolta da velha foi para

    ela como uma revela"o.

    *as pessoas que a velha no e#pulsava, apenas a vizinha com quem ela brincava

    de forma cida de fato a traziam alguma alegria. A vizinha em questo no parecia se

    apiedar dela e usar o sorriso como arma era a marca de um inimigo respeitvel, 8nico

    digno dos seus segredos de mulher velha. ; melhor ter um inimigo sincero, que

    combate fogo com fogo a ter um amigo frou#o.

    &onversava por horas com a vizinha sobre tudo. Sobre seu filho morto, sobre

    sua filha irritante que sempre pedia que ela no fosse pra fora, sobre sua sa8de

    debilitada... 5as conversava, sobretudo, sobre os bailes que frequentava. Ah, os bailes/

    1a minha $poca eu ia a muitos bailes, dizia e seus olhos mostravam que subitamente

    estava num baile de novo.

    - *ancei com muito rapaz na vida, viu, de forma at$ assanhada mesmo/ Era

    chamada pra muita festa... 1aquela $poca as bandinhas portuguesas que tocavam nesses

    bailes sempre chamavam as mocinhas mais bonitinhas pra conseguir alguma coisa com

    elas... &omigo conseguiam muito, eu gostava de ser a assanhada quando ningu$m estavaolhando. Tinha um militar l que era bonito, forte... Ai, uma del2cia/ (uando eu via eu

    ' sabia que a noite ia ser boa, ia dan"ar muito, ro"ando bastante nele e rindo como se

    estivesse envergonhada. (ue pena que ele acabou sendo transferido, era o homem

    perfeito: safado, bonito e muito atrevido...e tinha dinheiro, n$ 5ilitar... Adoro at$ ho'e

    os militares/ Eles sabem pegar a gente assim, sem muita frescura, n$ oc+ sabe do que

    eu to falando... 1o tem essa coisinha de cuidado desses menininhos de ho'e em dia.

    ira e me#e minha neta reclama comigo dos meninos 3 porque mesmo com

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    bobalho tamb$m, mas eu sempre escolhi esses que gostavam de desafiar a gente. @az a

    gente se sentir viva/

    A vizinha ouvia a essas confiss)es com o mesmo ar de triunfo de quem depois

    de muita incerteza confirma que o outro o ama. Sabia que tinha mais na velha

    debochada do que uma senhora vi8va respeitvel e cada hist%ria s% fazia confirmar isso.

    &erta vez achou curioso que a velha nunca tivesse ido aos bares de terceira idade

    ou a baile nenhum depois de velha e achou por bem perguntar.

    - 5eu tempo ' passou, aquele calor de antes no tem mais no... 6ma pena, mas

    ' foi. Sabe aquele fogo que a gente sente dan"ando Sinto mais no.

    - 5as se um homem 3 homem, no esses meninotes - pegar a senhora de 'eito

    pra dan"ar o fogo reacende, u$.

    A velha ficou indiferente ! resposta da vizinha e o assunto foi caminhando em

    outras dire")es. &onversavam sobre os netos da velha - que fez questo de mostrar fotos

    de cada um deles 3 e a vizinha reclamou que talvez nem visse os seus. *epois falaram

    da 'uventude da vizinha, do seu passado como professora e de como as cosias haviam

    mudado. *espediram-se de tarde, porque ambas tinham coisas a fazer em casa.

    noitinha, a rua estava desesperada e a vizinha, estranhando, foi ver o que era.

    Acontece que velha havia sa2do de casa para comprar coisas no mercado e no havia

    voltado ainda. Estavam todos desesperados com o desaparecimento da velha que, a essa

    altura, ' era quase um patrimBnio da rua. Todos pensaram no pior: sequestro,

    assassinato, assalto, ataque card2aco e at$ suic2dio para um dos mais dramticos, tudo

    parecia uma hip%tese vivel para algu$m com uma e#ist+ncia to miservel e to

    vulnervel. A vizinha, entretanto, manteve-se calma. Sentia que alguma coisa naquela

    tarde estava diferente na velha e que por essa coisa nada de ruim havia lhe acontecido.

    Sentia que, naquela tarde e, como sempre havia sido em sua vida de professora, suas

    palavras mais despretensiosas fizeram um bem ! velha que nenhum dos vizinhos, comsuas penas e seus afagos, tinham sido capaz de fazer durante todo esse tempo: tinha

    tocado o 2ntimo daquela alma de mulher velha e feito despertar ali aquele fogo que ela

    'ulgava ser patrimBnio e#clusivo na 'uventude. Tinha feito a velha querer dan"ar de

    novo.