A Vida dos doze Cézares

Rev. Histria Helikon, Curitiba, v.1, n.1, p.37-55, 1 semestre/2014

Licenciado sob uma Licena Creative Commons

LEME, A. L.

Consideraes sobre o gnero biogrfico em a vida dos doze csares, de

Caio Suetnio (sculo ii d.C.)

Considerations on the biographical genre in the lives of the caesars, of Gaius Suetonius

(century ii a.D)

Andr Luiz Leme

Doutorando em Histria pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Paran

(UFPR), membro da linha de pesquisa Cultura e Poder, e-mail: [email protected]

Resumo

Apresentamos aqui um conjunto de consideraes a respeito do gnero biogrfico na Antiguidade

Clssica, tendo por objeto de anlise a obra chamada A Vida dos Doze Csares, do escritor romano Caio Suetnio Tranquilo (69 aps 121/22 d.C.). Propomos observar de que modo as tradies biogrficas grega e latina teriam afetado a escrita de Suetnio, considerando tambm a estrutura e o

contedo especficos apresentados pelo autor durante a sua construo narrativa; procedimentos

necessrios para que possamos aqui, ao final do presente estudo, refletir sobre as possibilidades de

investigao que a obra de Suetnio, A Vida dos Doze Csares, proporciona aos historiadores da Antiguidade, especialmente para aqueles interessados na anlise do perodo inicial do sculo II d.C.

Palavras chave: Suetnio. A Vida dos Doze Csares. Roma Antiga.

Abstract

Here we present a study about the biographical genre in Antiquity, being our object of analysis the

work called Lives of the Caesars, of the roman writer Gaius Suetonius Tranquillus (69 after 121/22 A.D.). We propose to observe how the Greek and Latin traditions would have affected the

writing of Suetonius, also considering the structure and specific content presented by the author

during his narrative construction. Procedures so that we can, at the end, reflect on the possibilities of

research that the work of Suetonius, Lives of the Caesars, provides for the historians of the Antiquity, especially those who are interested in the study of the early II century AD.

Key words: Suetonius. Lives of the Caesars. Ancient Rome.


Introduo

Em sua tarefa de investigao das mltiplas manifestaes sociais do passado, o

historiador tem necessariamente por base uma anlise sobre as chamadas fontes histricas:

documentos de forma e contedo variveis que trazem ao historiador determinadas

perspectivas da realidade que ele deseja melhor conhecer, estudar. Na concepo proposta

pela teoria da historiografia contempornea, praticamente tudo pode servir de base ao exame

do historiador: fontes escritas, arqueolgicas, orais, iconogrficas, dentre outras. Existem

critrios metodolgicos gerais, de mbito regulador da disciplina, que orientam os

procedimentos de anlise bsicos que o historiador deve considerar em sua tarefa de

investigao das fontes histricas; no entanto, cada tipo (e subtipo) especfico de documento

por vezes exige uma abordagem diferenciada, ou seja, a aplicao e construo de certos

mtodos e teorias/conceitos prprios, visando sempre com isso aperfeioar o trabalho a ser

realizado. Vejamos o caso das fontes escritas, campo documental de maior interesse ao

desenvolvimento do presente estudo. Pois bem, ao analisar uma narrativa, o historiador deve

primeiramente observar o seu modelo de composio: trata-se de uma obra literria, ficcional?

Historiogrfica? Legislativa? Em seguida, levando em considerao o modelo narrativo

utilizado, o contedo especfico apresentado e a poca em que foi composto, o historiador

deve ento considerar a que se prope tal escrito, explicando a sua funo: serviria como

entretenimento? Como um resgate da histria, relembrando/elaborando determinados

exemplos? Como um documento regulador de leis/princpios no mbito do comportamento

social e na relao indivduo/governo? Enfim, so mltiplas as variveis com as quais o

historiador pode se deparar durante a realizao de seu amplo trabalho investigativo, seja em

termos de uma multiplicidade de documentos utilizados ou das perspectivas que ele, a partir

da interpretao das fontes, pode levantar em relao realidade pretrita analisada.

No presente estudo propomos obervar o gnero biogrfico caracterstico obra A Vida

dos Doze Csares, escrita por Caio Suetnio Tranquilo (69 aps 121/22 d.C.), de modo que

possamos destacar as possibilidades de investigao e anlise que, ao historiador da

antiguidade, interessado na busca por documentos para a compreenso do sculo II d.C., essa


obra pode apresentar. Inicialmente, perguntamos: quem foi Suetnio? De famlia equestre1,

Suetnio contemplou uma formao em Roma na rea da retrica e gramtica, exercendo as

profisses de professor e advogado. Personagem de grande envolvimento na cultura e poltica

de seu tempo, Suetnio viveu entre diferentes crculos de amizade e poder ao longo de sua

vida. Manteve contato de grande proximidade com Plnio, o Jovem (61 ou 62 113 d.C.),

com o qual trocou vrias correspondncias. Por conta justamente dessa relao obteve uma

indicao para trabalhar no corpo da administrao imperial, sob o principado de Marco U.

Trajano (53 117 d.C.), prncipe desde o ano 98 d.C. Dentre suas diversas tarefas, estava

encarregado da manuteno e prestao de servios nas bibliotecas pblicas e nos arquivos.

Aps a morte de Plnio, o Jovem, ocorrida em 113 d.C., e com o fim do governo de Trajano,

em 117 d.C., a proximidade e contato de Suetnio com Caio Septcio Claro (sc. II d.C.),

personagem nomeado prefeito do pretrio no ano de 119 d.C., lhe rendeu uma recomendao

para o cargo de administrador da correspondncia oficial do prncipe Adriano (76 138 d.C.),

cujo governo no principado se estendeu de 117 a 138 d.C.

De modo geral, a historiografia tradicional (a qual se faz perceber, principalmente, na

produo didtica) trabalha com esse contexto a partir de uma perspectiva de continuidade,

compreendendo o perodo de Adriano como parte de um fluxo contnuo de bons governantes;

fluxo, inclusive, que teria seu decadente desfecho em Cmodo (161 192 d.C.), o ltimo

dos antoninos e praticamente marco final da Paz Romana. No entanto, a historiografia

recente, como resultado de uma longa trajetria de estudos no campo da histria sobre o

principado de Adriano2, tem despertado o nosso interesse e chamado cada vez mais a nossa

ateno no apenas aos aspectos de estabilidade e prosperidade presentes neste perodo em

geral, mas tambm s dificuldades e vicissitudes prprias a ele; ou seja, aos problemas que

efetivamente existiram e que devemos com toda certeza observar em nossa tarefa de

investigao e escrita da histria. O historiador Domingo Plcido Surez desenvolveu uma

interessante reflexo a respeito dessa questo, instigando nosso olhar crtico para uma viso

mais ampla em torno dessa poca esplendorosa. Segundo o autor (2004, p.19), a definio 1 Parte subjacente do poderamos considerar a nobreza ou aristocracia romana, os equestres

foram aqueles que no decorrer do processo de expanso romana enriqueceram, ganhando poder econmico e projeo poltica. Suetnio, pertencendo especificamente a esse grupo social, no poderia ascender diretamente ao curso das honras, mas nada o impedia de participar da administrao pblica, como funcionrio de algum setor. 2 Nessa longa trajetria de estudos a respeito do Imperador Adriano, destacamos as seguintes obras:

WEBER, W. Untersuchungen zur Geschichte des Kaisers Hadrianus. Leipzig: B. G. Teubner, 1907. ; HENDERSON, B. The Life and Principate of the Emperor Hadrian A.D. 76-138. London: Methuen, 1923. ; PEROWNE, S. Hadrian. London: Hodder and Stoughton, 1960. ; LEVI, M. A. Adriano. Un ventennio di cambiamento. Milano: 1994.


do sculo II como Idade de Ouro depende tanto da historiografia moderna quanto da

propaganda dos intelectuais orgnicos3 da poca; o modelo de estabilidade, atrativo a partir de

uma perspectiva das classes dominantes, serviria, no entanto, como mscara de uma poca de

grande vitalidade, onde as mudanas transcorriam nas profundidades da histria; ou seja, as

mudanas devem ser percebidas atravs das imagens de estabilidade, estas que tanto

influenciaram a percepo moderna acerca do perodo. Levando em considerao esses

pensamentos e reflexes, passamos ao estudo da obra de Suetnio, A Vida dos Doze Csares,

vislumbrando as suas caractersticas.

O gnero biogrfico, presente e passado

Como ponto de partida para este momento, colocamos a seguinte e essencial questo:

o que exatamente entendemos hoje por gnero biogrfico de composio? Um breve olhar

sobre o dicionrio aponta o senso comum em torno de tal definio: a narrao oral, escrita

ou visual dos fatos particulares das vrias fases da vida de uma pessoa ou personagem

(HOUAISS, 2001). Na acepo de Massaud Moiss (2004, p.56), professor especialista na

rea de literatura, o termo biografia designa toda obra que narra, na totalidade ou em parte, a

vida de figuras ilustres. Atualmente verificamos um crescimento significativo na quantidade

de trabalhos biogrficos publicados e disponveis em bibliotecas ou livrarias, demonstrando

que o pblico leitor, em geral, tem procurado constantemente trabalhos desse gnero em

especfico. O professor historiador Benito Bisso Schmidt um estudioso de tal fenmeno

editorial, o compreendendo e explicando em termos de uma demanda por parte dos leitores

em relao a trajetrias individuais que possam servir como inspirao para os atos e

condutas vivenciados no presente (1997, p.2). A questo problema em torno disso que, sob

o mesmo rtulo de biografia, encontram-se narrativas ficcionais (intencionalmente

romanceadas) e histricas. Claro, por parte do grande pblico, a biografia estilizada, com

dilogos e cenas fantasiosamente concebidas, torna-se um interessante atrativo de leitura para

fins de entretenimento e lazer. A biografia histrica, por sua vez, compreende uma orientao

investigativa de carter reflexivo que definitivamente lhe restringe o campo da inveno ou

3 Para um aprofundamento a respeito desse tema, conferir: HIDALGO DE LA VEGA, Mara Jos. El

intelectual, la realeza y el poder poltico. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1995.


imaginao narrativa, sendo desenvolvida e escrita em funo das informaes disponveis e

de possibilidades racionalmente vislumbradas4.

No entanto, no podemos simplesmente deslocar nossa interpretao contempornea

sobre o que o gnero biogrfico para o passado, atitude que poderia incorrer no grave erro

de incompreenso que o anacronismo. Inicialmente, o que devemos compreender que o

modelo narrativo biogrfico, quando de seu surgimento e florescimento na Antiguidade, no

possua uma estrutura fixa, a qual todos os autores restritamente seguiam. Ou seja, era uma

proposta de escrita sobre o passado que, recebendo influncias de outros gneros e ao mesmo

tempo apresentando importantes inovaes, estava em pleno desenvolvimento. Claro, a obra

de Suetnio parte importante nesse amplo processo, para o qual contribuiu a tradio

literria e cultural de vertente grega e latina. Vejamos, no seguimento, os principais elementos

que caracterizaram o gnero biogrfico em seu desenvolvimento na Antiguidade, para na

sequencia refletirmos sobre a estrutura apresentada por Suetnio em seu trabalho.

A etimologia da palavra biografia (, vida e , escrever) um

indicativo de sua origem no ambiente grego antigo, local onde o gnero biogrfico surgiu e

teve seu desenvolvimento inicial. Porm, como ressalta o historiador Peter Burke (1997,

p.91), o termo composto biografia surgiu apenas ao final da antiguidade, tendo em vista que

os autores gregos to somente se utilizavam de expresses como (vida) ou (vidas)

como referncia direta proposta narrativa de suas obras. Enquanto forma de composio

escrita (prosa) que apresentava em foco a vida de uma determinada personalidade,

identificamos a prtica da biografia ligada inicialmente ao encomion (encmio), a saber,

tentativa de elogio e exaltao de certos homens. Possua relao, portanto, com a retrica

demonstrativa, epidctica. Na Grcia do sculo IV a.C. encontramos duas obras referenciais

nesse sentido: Vida de Evgoras, de Iscrates (436 338 a.C.); e Agesilao, de Xenofonte (428

354 a.C.). De fato, so trabalhos que possuem fundamentalmente a inteno de ilustrar as

4

Presenciamos no mbito da teoria da historiografia dos anos 1980, no recorte francs mas de forte influncia em outros pases, um movimento de valorizao dos estudos histricos biogrficos, tendncia ainda hoje crescente. A historiadora Helenice Rodrigues da Silva esclarece que, rejeitando o ideal coletivo inscrito nos sistemas explicativos (marxismo, estruturalismo), as cincias humanas reabilitam o sujeito, e as cincias sociais, o ator. Os anos 80 apresentam-se sob o signo da subjetividade e do individualismo [...]. A manifestao mais explcita da revalorizao do sujeito, transformado em ator de seus atos, de suas idias, de seus gostos, encontra-se nas novas formas de fazer a histria. [...] As biografias dos grandes personagens reabilitam um gnero considerado ultrapassado, e a revalorizao da histria poltica (em reao histria dos Annales e Nouvelle Historie) reflete as novas tendncias antitotalitrias e liberais. In: SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da histria intelectual: entre questionamentos e perspectivas. Campinas (SP): Papirus, 2002, p. 40-41.


qualidades morais e dignificantes dos biografados, traando um perfil elogioso de tais

personalidades. Na estrutura da narrativa so descritas as aes (de maior ou menor amplitude

e importncia) respectivas a cada um desses homens, mas que justamente colaboravam na

construo e evidncia do carter positivo e valoroso deles; tornavam-se, aos olhos do texto,

plenos exemplos de cidados perante a sociedade em que viviam, ou seja, modelos a serem

seguidos.

Nesse primeiro momento de prtica biogrfica verificamos, no universo subjacente

influncia cultural grega, o surgimento do que poderamos chamar de duas principais escolas,

ou seja, tradies com suas respectivas propostas de narrativa biogrfica: a peripattica e a

alexandrina. Ocorrera com os peripatticos o que Jos Lus Lopes Brando (2009, p.18),

professor de literatura clssica, denominou de aperfeioamento da biografia, tendo em vista

o enfoque sobre a vida analisada assumir um aspecto mais formal, objetivo, preocupado em

destacar os vrios tipos de personalidades existentes5. So vrios os exemplos de obras nesse

sentido, dentre as quais destacamos as seguintes: Caracteres, de Teofrasto; Vida de Homens,

de Aristoxeno; e Tiranos da Siclia, de Fnias. O modelo de escrita adotado por grande parte

desses autores trabalha com a trajetria de vida do biografado (nascimento, maturidade e

morte), analisando, do ponto de vista de uma reflexo moral, suas diferentes aes, sejam elas

boas ou ruins. Nelas so retratadas personalidades do universo poltico, filosfico e artstico,

pertencentes a um passado recente ou distante. Estas narrativas so repletas de anedotas e

apresentam uma estrutura de anlise baseada em categorias, tais como a aparncia fsica,

vesturio e tipos de preferncias pessoais do biografado. Na definio proposta pelo

historiador Antonio Ramrez de Verger (1992, p.12), a biografia peripattica realmente

buscou ser:

un poco ms objetiva que la encomistica acudiendo a los aspectos positivos y

negativos de los personajes, pero con su afn por las ancdotas y las digresiones

cay en el sensacionalismo, en el escndalo y, lo que es peor, en la indiferencia ante

la verdad.

Por sua vez a biografia no modelo alexandrino pressupe, em relao peripattica,

um trabalho mais cuidadoso no que diz respeito cronologia e verificao das informaes

apresentadas. Segundo Verger (1992, p.12), los fillogos alejandrinos no estaban interesados

en los aspectos morales o filosficos de estas biografas, sino en la acumulacin de datos

5 Na mesma pgina, em nota explicativa, o autor comenta que Entre os seguidores desta escola, a

biografia tende a reflectir o interesse pela pesquisa histrica e pela filosofia tica, na linha do livro IV da tica a Nicmaco de Aristteles e do impulso do estudo dos caracteres, cujo seguidor mais clebre Teofrasto.


eruditos. Eran, pues, ms ridas, pero, en cambio buscaban ms a la verdad de los hechos.

Seja mais intensamente na vertente peripattica ou alexandrina, o modelo de escrita biogrfico

que surge e apresenta suas linhas gerais na Grcia dos sculos IV e III a.C. ter um forte

prolongamento ao longo de toda a Antiguidade, influenciando direta ou indiretamente o

trabalho de diversos futuros autores.

No entanto, ponto a ser discutido, no podemos simplesmente afirmar que a tradio

latina de escrita biogrfica seja uma total tributria e dependente da cultura grega. De fato,

encontramos no territrio cultural latino o desenvolvimento de prticas (orais e escritas)

especficas que podem ser indicativas de uma tendncia ao surgimento e produo de relatos

de estilo biogrfico naquele prprio ambiente. Enquanto exemplos mais significativos,

podemos citar como precursoras do gnero as seguintes manifestaes: 1) carmina convivalia

cano que, realizada no momento de um banquete, tinha por objetivo rememorar os

grandes feitos de um antepassado ilustre; 2) neniae antiga forma de lamento fnebre que

rememorava os bons feitos de um indivduo; 3) stemmata uma representao da rvore

genealgica de uma determinada personalidade, traando os seus vrios graus de parentesco;

4) elogia inscrio funerria que apresentava os tituli do falecido, ou seja, seus vrios cargos

na poltica e no exrcito, suas aes e virtudes; 5) laudatione funebres um discurso pblico

realizado em honra memria de um personagem falecido; apresentava, sob uma alta carga

retrica, um retrato elogioso de sua vida e de seus feitos. Todas essas diversas manifestaes

aqui descritas podem ser consideradas elementos constituintes de uma tradio especfica

romana de observao sobre um indivduo em particular, a saber, sobre o papel pblico e

privado que ele desempenhou, de modo honroso, em sua existncia na sociedade.

Um dos primeiros bigrafos latinos de grande reconhecimento foi Marco Terncio

Varro (116 27 a.C.), autor de Hebdomades vel de imaginibus, obra na qual apresentou uma

caracterizao de vrias personalidades, gregas e romanas. Segundo Jos Lus Lopes Brando

(2009, p.22), Varro foi o responsvel por ter transferido para a esfera pblica, mais

especificamente para o campo da erudio, uma matria que era antes restrita, apenas de

carter privado/familiar. Do mesmo perodo tambm Cornlio Nepos (110 24 a.C.), autor

de De Viris Iluustribus, obra em que apresenta um conjunto de biografias sobre personagens

gregos e romanos, comparando-os. Seu modelo de escrita demonstra forte analogia ao modelo

peripattico6, seja em termos do tom anedtico e moralizante, seja em termos da estrutura

6 Faamos aqui aluso ao pensamento de Stephen Harrison, para o qual Latin biography was

produced by men who, like historians, were acutely and creatively conscious of their Greek precursors


narrativa que mescla fatos da vida privada e pblica. J no sculo I d.C. ganha destaque no

cenrio erudito romano o trabalho de Plutarco (c. 46 120 d.C.) denominado Vidas Paralelas,

um conjunto de biografias sobre personagens gregos e romanos. Da mesma forma que

Cornlio Nepos, Plutarco tambm apresentou em sua narrativa um modelo que comparava a

vida de um antepassado grego frente de um romano7. Sua obra, por ser de considervel

extenso e apresentar reflexes tericas do autor, de grande importncia para aqueles que

buscam compreender o gnero biogrfico em suas caractersticas essenciais. De fato, logo ao

incio de seu relato sobre a vida de Alexandre Magno (a qual justaposta de Csar),

Plutarco deixa claro aos leitores que no escreveu (histrias), mas sim (vidas),

sendo por esse exato motivo que ele no se preocupou ou pretendeu narrar todas as grandes

aes militares, de Alexandre e Csar, mas apenas os feitos que revelassem de modo mais

claro o carter e a personalidade de cada um8. Portanto, Plutarco avalia a conduta tica dos

homens tendo por base a anlise do comportamento e das aes por eles desenvolvidas. Nesse

sentido o autor estabelece uma estrutura bsica, porm flexvel, para sua narrativa: a famlia e

infncia do personagem; a educao que recebeu: ocasio em que se apontam os elementos

que guiaram sua formao intelectual e tica; as aes que, empreendidas, demonstram a

constituio de seu carter; e, por fim, sua velhice e morte, momento no qual se pode

realmente avaliar, do ponto de vista moral, o conjunto da vida. Contemporneo de Plutarco,

Tcito (55-120 d.C.) tambm escreveu, para alm de trabalhos historiogrficos, uma obra do

gnero biogrfico intitulada Sobre a vida e o carter de Jlio Agrcola. Nela o autor

apresentou um retrato elogioso, praticamente seguindo o modelo de uma laudatione fnebre,

sobre a vida de seu sogro, Jlio Agrcola, importante senador e militar da poca. A narrativa

adotada por Tcito vai alm de um escrito exclusivo sobre a vida analisada, demonstrando

and co-practitioners, and who wrote in a carefully crafted, literary and rhetorical style. In: HARRISON, Stephen (ed.). A Companion to Latin Literature. Oxford: Blackwell Publishing, 2005, p. 252. 7 Segundo Pedro Funari, embora Plutarco afirme ter aprendido tardiamente a lngua latina, no

parece descabido aventar a hiptese que tenha se inspirado em Varro e Cornlio Nepos, como maneira de mostrar que, para cada romana ilustre, se podia comparar um heleno notvel. A comparao sistemtica (snkrisis), de toda forma, representa um novo conceito. In: FUNARI, P. P. A. Jlio Csar, poder, instituies e jurisdies na construo biogrfica de Plutarco. In: Marcella Lopes Guimares; Renan Frighetto (Org.). Instituies, poderes e jurisdies. Curitiba: Juru, 2007, p. 177. 8 Plut. Alex. (I, 1-2) , , , , , , . , , , .


tambm relatos de carter geogrfico/etnolgico sobre a regio onde atuou Agrcola, a

Britnia.

Assim chegamos, em nossa trajetria de estudos sobre o gnero biogrfico na

Antiguidade, poca em que Suetnio comps a obra A Vida dos Doze Csares, a saber,

princpios do sculo II d.C.. Inicialmente, devemos levar em considerao a possibilidade do

autor, durante a sua formao erudita, ter recebido uma tradio difusa no que diz respeito s

diretrizes de como deveria ser elaborada uma biografia. De fato, seja na tradio grega ou

latina, no existia um modelo restritamente fixo, mas sim uma proposta que, em linhas gerais,

definia o que era a essncia de tal gnero: uma narrativa sobre a vida de um ilustre,

contemplando uma anlise moral sobre suas aes e comportamentos. Tal definio

justamente uma forma de diferenciao do presente gnero em relao ao modelo

historiogrfico propriamente dito, este que na tradio grega e romana apresentava um estilo

narrativo que buscava priorizar a trajetria poltico/militar do Estado, em geral. Por

exemplo, para o ambiente grego antigo, lembremos-nos do trabalho referencial de Tucdides,

Histria da Guerra do Peloponeso, no qual o autor intencionalmente adota um modelo

discursivo crtico, de vis poltico-militar, para buscar e apresentar as causas que

desencadearam o conflito entre diversas cidades gregas no sculo IV a.C.; trabalho este que se

tornou um exemplo para os demais investigadores do passado gregos que se seguiram

(MOMIGLIANO, 2004, p.73). Por sua vez, encontramos na tradio do gnero Annales o

modelo narrativo utilizado pelos romanos, desde a poca republicana, para escrever e

preservar a memria dos feitos passados; trata-se uma forma particular de escrita

historiogrfica, a qual procurava sistematizar, dentro da periodicidade de cada respectivo ano,

os principais personagens e acontecimentos do perodo. As personalidades, no quadro geral

dessas narrativas, apareciam somente como parte de um fluxo histrico mais amplo. No

entanto, como ressalta Jos Lus Lopes Brando (2009, p.24), os gneros biogrfico e

historiogrfico nunca tiveram suas fronteiras bem delimitadas 9, ou seja, no podemos

estabelecer uma linha divisria totalmente estanque entre as duas prticas, o que logo se

demonstraria uma atitude reducionista, generalizante. Tendo em vista que os dois modelos

9 Sobre a relao entre os gneros aqui tratados, tambm Stephen Harrison afirma que History,

biography and autobiography are, then, genera proxima closely related genres. They were not clearly distinguished in antiquity and are hard to distinguish even now, though critics offer some useful criteria, such as density of first/third person verbs, the structure and sequence of literary organization (biography tends more toward organization by topic, or rubric, than does history), length, setting and the quality/density of characterization. In: HARRISON, Stephen (ed.). A Companion to Latin Literature. Oxford: Blackwell Publishing, 2005, p. 254.


trabalham com o resgate, construo e preservao de uma memria que se quer verdadeira

acerca dos acontecimentos pretritos, acreditamos que a escolha e emprego de um ou de outro

derivaria muito mais de uma opo por parte do enunciador em relao ao seu campo de

anlises e interesses, ao qual se poderia adaptar melhor uma viso micro ou macro da

realidade passada. Ademais, em termos da recepo/inteligibilidade de tais gneros, tanto a

histria como a biografia teriam praticamente o mesmo potencial para despertar no homem

um sentimento de reflexo introspectiva em relao ao passado e seus referenciais.

Lembremos nesse sentido do seguinte pensamento de Ccero (103 43 a.C.), um dos mais

importantes oradores da histria romana: A histria a testemunha dos tempos, luz da

verdade, vida da memria, mestre da vida, mensageira do passado 10. Ou seja, resgatar o

passado seria uma atitude que visava ao melhor conhecimento do presente. Tais pressupostos

devem estar presentes no momento em que ns, historiadores, analisamos a tradio de escrita

histrica e biogrfica, a fim de que possamos no apenas caracterizar e avaliar gneros de

escrita, mas tambm os possveis interesses de cada respectivo autor em sua escolha por um

determinado modelo narrativo e tema de investigao. Passemos ento agora a observar a

estrutura da obra de Suetnio, vislumbrando de que modo seu trabalho biogrfico se relaciona

com a tradio e o que exatamente seu contedo indica para uma possvel interpretao por

parte do historiador.

Sobre a vida dos doze csares

O primeiro aspecto que observamos no trabalho de Suetnio a ausncia de um

prlogo, ou seja, de uma introduo do autor obra. No se trata de uma falta do escritor, mas

sim de uma consequncia natural do tempo, que infelizmente levou perda desse importante

trecho de seu estudo. De fato, tal parte do texto j no estaria presente no manuscrito mais

antigo da obra a que temos conhecimento, chamado de Fulda Codex, datado do sculo IX.

Este, hoje perdido, teria servido de base modelar para a concepo dos demais, subsequentes,

10

Cic. de Orat. (II, 36) Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur?. Pressuposto, alis, que tambm foi manifestado pela tradio historiogrfica grega antiga, conforme ressalta Arnaldo Momigliano: "O historiador grego quase sempre acredita que os acontecimentos passados tm uma relevncia para o futuro. Na verdade, eles no seriam importantes se no ensinassem alguma coisa para aqueles que leem a seu respeito. A histria relatada tem sempre que prover um exemplo, constituir uma lio, servir de referncia para os desenvolvimentos futuros dos negcios humanos". In: MOMIGLIANO, Arnaldo. As razes clssicas da historiografia moderna. Trad.de Maria B.Borba Florenzano. Bauru/SP: EDUSC, 2004, p. 38.


manuscritos da obra de Suetnio. Quais seriam ento os principais motivos para lamentarmos

a introduo perdida da obra de Suetnio? Pois bem, na introduo encontraramos os

principais elementos indicativos do seu momento de composio, a metodologia de anlise e

escrita do autor, os objetivos da obra e seus destinatrios. Assim, na busca de esclarecimentos

para tais questes nos encontramos merc de opinies indiretas, ou seja, de antigos leitores

da obra que justamente tiveram contato com essa parte do escrito. O caso mais relevante o

do historiador bizantino Joo Lido (490 c. 575), o qual em sua obra De Magistratibus

Reipublicae Romanae comenta que Suetnio dedicou seu trabalho ao ento prefeito do

pretrio, Septcio Claro (c. II d.C.)11

. Tendo em vista que Septcio Claro exerceu tal

magistratura aproximadamente entre os anos de 119 e 122 d.C., podemos utilizar tal perodo

como referencial ao momento de lanamento do trabalho completo de Suetnio. O

contexto, portanto, era o incio do principado de Adriano (76 138 d.C.), governante romano

entre os anos de 117 e 138 d.C. Lembremos tambm que, desde meados do principado de

Trajano (53 117 d.C.), governante romano entre 98 e 117 d.C., Suetnio j trabalhava no

corpo da administrao imperial, exercendo funes relacionadas manuteno e prestao

de servios nas bibliotecas pblicas e nos arquivos. Ou seja, o encontramos j em plenas

condies de acesso a informaes documentais que exatamente poderiam servir de base ao

seu escrito no futuro. Tal privilgio de aproximao aos arquivos teria continuado durante o

principado de Adriano, poca em que serviu como secretrio do imperador, responsvel pelas

correspondncias. O seu desligamento de tais funes ocorreu apenas no ano de 122 d.C.,

momento em que foi acusado, juntamente com Septcio Claro, de manter relaes indevidas

para com a mulher de Adriano, a imperatriz Sabina (83 136/7 d.C.)12. Tal acontecimento

marcou o fim da carreira pblica de Suetnio, sobre a qual simplesmente no possumos mais

informaes ou registros posteriores. Teria a obra de Suetnio, publicada por volta desse

mesmo perodo, alguma possvel influncia nesse sentido? Pois bem, Suetnio apresentou em

A Vida dos Doze Csares a trajetria de vida daqueles que foram os primeiros Csares, ou

seja, os principais personagens do cenrio poltico romano no perodo entre finais do milnio

11

Conforme em: Joannis Laurentii Lydi (II.6) Tranquillus igitur Septimio, qui tum erat praefectus praetorianarum cohortium, Caesarum vitas exponens, praefectum eum praetorianorum ordinum, et phalangun ducem esse ostendit. 12

Historia Augusta (XI, 3) Septicio Claro praefecto praetorii et Suetonio Tranquillo epistularum magistro multisque aliis, quod apud Sabinam uxorem iniussu eius familiarius se tunc egerant quam reverentia domus aulicae postulabat,...


e o primeiro sculo depois de Cristo13

. Foram ao todo doze biografias, dividas em oito livros,

sobre os respectivos governantes:

CSAR

NASCIMENTO/MORTE PERODO DE GOVERNO

Caio Jlio Csar c. 100 44 a.C. 44 a.C. (ditador vitalcio)

Otvio Augusto 63 a.C. 14 d.C. 27 a.C. 14 d.C.

Tibrio 42 a.C. 37 d.C. 14 37 d.C.

Calgula 12 41 d.C. 37 41 d.C.

Cludio 10 a.C. 54 d.C. 41 54 d.C.

Nero 37 68 d.C. 54 68 d.C.

Galba 3 a.C. 69 d.C. junho de 68 janeiro de 69 d.C.

Oto 32 69 d.C. janeiro de abril de 69 d.C.

Vitlio 15 69 d.C. abril dezembro de 69 d.C.

Vespasiano 9 79 d.C. 69 79 d.C.

Tito 39 81 d.C. 79 81 d.C.

Domiciano 51 96 d.C. 81 96 d.C.

A forma como Suetnio construiu o relato de cada respectiva vida possui variaes,

mas mantm uma estrutura de organizao geral. Podemos conhec-la melhor a partir de uma

inferncia do prprio autor, realizada logo ao incio de seu relato sobre a vida de Augusto:

Tendo apresentado assim o conjunto de sua vida, vou agora examinar suas partes, uma a

uma, no por ordem cronolgica, mas por categorias, para assim torn-las mais

compreensveis e inteligveis14. Suetnio, como vemos, prope uma narrativa que

desenvolva: 1) um relato sobre a trajetria da vida em questo, de modo sinttico; 2) uma

anlise particular sobre aspectos dessa vida, criando categorias de observao e classificao

para tal. Quanto ao primeiro aspecto, verificamos que o autor trabalha no sentido de apontar

em relao ao biografado: a descendncia de sua famlia; o momento e local de seu

nascimento; a poca de sua infncia e educao recebida; o incio de sua trajetria na vida

pblica, com os respectivos cargos que assumiu; as condies de sua ascenso ao poder; as

campanhas militares, obras pblicas e espetculos que promoveu; os pormenores de sua

administrao; e os momentos finais de sua vida, at o instante da morte. No que diz respeito

ao segundo aspecto, Suetnio estabelece diversas categorias temticas a serem tratadas em

13

A expresso Csar, derivada a partir do primeiro biografado, Caio Jlio Csar, era utilizada poca de Suetnio como um ttulo referencial quele que era o supremo governante de Roma e seus territrios. 14

Suet. Aug. (IX, 1) Proposita vitae eius velut summa partes singillatim neque per tempora sed per species exsequar, quo distinctius demonstrari cognoscique possint.


relao ao biografado, que abrangem seu tipo fsico; o humor e o comportamento que

apresentava; as predilees que possua, nos mais variados sentidos; e as

situaes/circunstncias peculiares (fontes de curiosidade, espanto, crtica ou admirao)

pelas quais teria passado. Tal sistematizao geral, devemos lembrar, no aparece

restritamente fixa ou sequencial, com o segundo aspecto sempre sucedendo ao primeiro;

ocorre geralmente, para fins de estilo, a mescla de ambos os aspectos no texto. Este, em suma,

demonstra uma considervel desenvoltura e versatilidade, apresentando sempre muitas

informaes e detalhes em cada tpico discutido. Pois bem, devemos lembrar que Suetnio

era famoso em sua poca por ser um conhecedor de diversos fatos e assuntos, um

eruditissimos, segundo a opinio de seu amigo e possvel patrono, Plnio, o Jovem15

. Tal

designao o aproximaria, portanto, a um pesquisador antiqurio, ou seja, a um investigador

interessado em trabalhar e escrever sobre assuntos considerados simplesmente menores e

diversos. Segundo Jos Luis Lopes Brando (2009, p.33), este tipo de estudo interessa-se por

minudncias do passado, eventos fora do vulgar, monstruosidades, histrias locais, listas de

magistrados, nomes prprios, leis, costumes; pela ostentao, em suma, de erudio como um

fim em si. De fato, Suetnio escreveu vrias obras, hoje infelizmente perdidas, em grego e

latim, que contemplavam estudos analtico-descritivos sobre os mais diversos tpicos, dentre

os quais se incluem: histria natural; espetculos romanos; diverses gregas; calendrio

romano; categorias de vesturio; instituies romanas; listagem de reis da Europa, sia e

frica16

. O autor, naturalmente, acaba aplicando e querendo demonstrar toda essa vasta

erudio durante o desenvolvimento de seu texto.

Consequncia dessa metodologia de escrita/apresentao a no observao

cuidadosa da cronologia por parte de Suetnio, especialmente quando temos em vista a

prtica narrativa do segundo aspecto (categorizao temtica) que comentamos anteriormente.

De fato, conforme aponta Jos Luis Lopes Brando (2006, p.146), o interesse de Suetnio por

demonstrar claramente as qualidades de carter do biografado vem justamente em detrimento

da cronologia, que acaba assumindo um papel secundrio17

. Quer dizer, o juzo moral de

15

Plin. Ep. (X. 94. 1) Suetonium Tranquillum, probissimum honestissimum eruditissimum virum.... 16

Conforme esclarece Gian Biagio Conte, our knowledge of his many learned works, in Greek and Latin, is derived not so much from the scanty fragments that are preserved as from the so called lexicon of the Suda (tenth century), which lists their various titles. In: CONTE, Gian Biagio. Latin Literature: a history. Trad: Joseph B. Solodow. Baltimore/Londres: The Johns Hopkins University Press, 1994, p.546. 17

Ainda sobre essa questo, o autor ascrenta, na pgina 147, em interessante tom reflexivo: Sugere-se que uma narrativa cronolgica no permitiria uma to lmpida explanao e percepo do carter do biografado (distinctius demonstrari cognoscique) e que s o mtodo per species se adapta


Suetnio permeia toda a narrativa que ele desenvolve, ou seja, seu texto no seria imparcial

ou isento de crticas personalidade analisada. Cada momento descrito parece encontrar

sentido na subsequente avaliao moral por parte do autor. Ademais, ao longo da tarefa de

situar cada personalidade em suas respectivas aes e comportamentos, Suetnio no deixa de

contextualizar, no mbito macro, o ambiente poltico, social e cultural em que o biografado

viveu, mas realmente sem entrar em detalhes ou discutir exaustivamente as questes que

surgem. Os acontecimentos, nesse sentido, permeiam a vida em anlise, tornando-se

importantes indcios para a averiguao e crtica das atitudes, boas ou ruins, do biografado.

Para justamente realizar essa tarefa de crtica moral em relao s vidas analisadas,

Suetnio tem por critrio distinguir o que h de virtude e vcio nas aes e comportamentos

que descreve. Pois bem, a prtica da virtude diz respeito a toda forma de conduta que se

considera positiva e modelar, enquanto que a prtica do vcio est relacionada s pssimas e

condenveis aes perpetradas18

. Em suma, so categorias adotadas e aplicadas por Suetnio,

de acordo com os seus referenciais de pensamento, que contribuem diretamente na

sistematizao das informaes apresentadas ao longo da narrativa. Portanto, a valorizao

positiva ou negativa de determinado personagem ir fundamentalmente depender da

quantidade e qualidade das virtudes e vcios por ele praticados durante a sua vida.

Suetnio tambm se demonstrou preocupado em salientar ao leitor algumas das fontes

de informao a que ele teve acesso durante a elaborao de sua obra, talvez desejando,

assim, atribuir ao seu escrito uma noo de maior confiabilidade. Utilizou, por exemplo,

fontes arqueolgicas (artefatos, monumentos, inscries), orais (testemunhos) e escritas

(cartas, histrias, editos, testamentos). Tambm cita, nomeadamente, a opinio de diversos

autores, entre os quais destacamos Ccero, Cornlio Nepos e Plnio, o Jovem. Importante

ressaltar que Suetnio no trabalha apenas no sentido de organizar e apresentar determinadas

informaes a respeito dos personagens estudados, pelo contrrio: o autor tambm avalia de

modo crtico as opinies de referncia que extrai a partir de suas fontes principais, anulando,

reafirmando ou mesmo (a partir de sua prpria reflexo) criando determinadas perspectivas

plenamente ao seu objecto de estudo, pois permite concentrar a informao sobre a pessoa do imperador. Atravs da partitio ou diuisio, Suetnio prepara o leitor para uma exposio de tipo erudito: apresenta-se um tema em cabealho que depois ilustrado com os factos (aces ou palavras) que o comprovam. 18

So valores morais e polticos daquela sociedade especialmente relacionados aos grupos de maior projeo social, os quais recorriam e se apoiavam na tradio, mos maiorum, no sentido de tanto defender como criticar determinadas aes e comportamentos no ambiente pblico. Cf. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de histria da cultura Clssica. v.2. 3 ed.. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002.


histricas. Interessante pensarmos que mesmo se utilizando de um gnero narrativo

diferenciado do modelo tradicional historiogrfico, como mencionamos anteriormente,

Suetnio parece no abrir mo de transparecer ao seu escrito a autoridade de um relato

verdadeiro sobre o passado.

Outra constatao interessante, importante ao objetivo do presente artigo, diz respeito

variabilidade do espao dedicado por Suetnio a cada um dos biografados em sua obra:

alguns personagens acabaram recebendo mais ateno e destaque do que os demais, fato este

que no pode passar despercebido de nossa reflexo crtica. O seguinte indicativo grfico

apresenta uma viso geral, em porcentagem, sobre a distribuio de cada biografia no trabalho

completo19

:

Verificamos que Suetnio acabou se dedicando principalmente a pesquisar e escrever

a respeito da vida dos primeiros csares, a saber, Jlio Csar e Octaviano Augusto. Mas o que

exatamente tal preferncia poderia representar em termos dos possveis interesses de Suetnio

para com sua obra? Acreditamos que essa opo de visualizao aponta para um desejo do

19

Elaborado a partir do seguinte nmero, aproximado, de palavras em latim em cada respectiva biografia da fonte: Julio Csar: 9.879 (13,91 %); Otvio: 13.993 (19,70 %); Tibrio 9.397 (13,23 %); Calgula: 7.823 (11,01 %); Claudio: 6.607 (9,30 %); Nero: 8.006 (11,27 %); Galba: 2.876 (4,05 %); Oto: 1.672 (2,35 %); Vitlio: 2.416 (3,40 %); Vespasiano: 3.226 (4,54 %); Tito: 1.498 (2,10 %); Domiciano: 3.607 (5,08%).


autor pela anlise e reflexo do movimento histrico marcante a esse perodo: o nascimento e

fortalecimento de uma nova forma de governo e estrutura poltica, o chamado principado

romano. Levando-se em considerao essa perspectiva, a obra de Suetnio passa a ser vista

no apenas como um simples ou arbitrrio agrupamento de vidas ilustres, mas sim como

um projeto de mbito maior, uma espcie de biografia coletiva20, que em sua principal

funo resgatava e avaliava um importante perodo da histria romana, ou seja, o surgimento

e estabelecimento do poder pessoal e centralizado. Nesse sentido, chegamos seguinte

questo: que motivos principais teriam levado o autor, Suetnio, a nutrir seu empenho na

realizao de uma tarefa como essa? no estudo do contexto que encontraremos informaes

e dados da realidade passada que permitiro a ns, historiadores, uma anlise e reflexo em

torno dessa questo.

Consideraes finais

Atravs de sua obra, Suetnio, conforme ressaltamos,resgata ao passado uma srie de

eventos e personagens relacionados ao movimento poltico de surgimento e estabelecimento

do principado, acontecimento de grande impacto no quadro institucional da poca e que tem

seus efeitos nos tempos de Suetnio. Nesse sentido, apresentar frente sociedade poltica um

quadro histrico geral sobre o que o principado e, principalmente, trabalhar com a vida de

seu mais alto representante, o prncipe, ganha um significado especial quando

compreendemos essa tarefa como parte de um esforo maior: Suetnio desejava refletir e

ponderar acerca de seu presente, avaliando o seu momento tendo por base uma prpria

construo referencial do passado. Passado que, na inteligibilidade do discurso caracterstico

narrativa de Suetnio, no deixava de oferecer incontveis e dignos exemplos sobre o que

exatamente pode ser considerado, no vasto mbito das relaes polticas, uma ao positiva

ou negativa, um comportamento elogioso ou reprovvel. Dessa forma, Suetnio colocava as

aes e os comportamentos de Adriano, ao incio de seu principado, sob a apreciao crtica

do passado, ou seja, de toda a tradio poltica romana que, com Csar e Octaviano, se

renovara.

20

Neste momento ressalto as valiosas contribuies por parte da professora Doutora Ftima Regina Fernandes, oferecidas durante o Seminrio em Tese da Linha de Pesquisa Cultura e Poder, em 2011, no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Paran.


No podemos, neste exato momento, afirmar que Suetnio estava, atravs de seu

escrito, colocando-se totalmente a favor ou contra o prncipe Adriano, recm-estabelecido no

cargo. De fato, essa projeo do passado em direo ao presente, levada a cabo pela obra de

Suetnio, pode assumir um efeito positivo ou negativo na imagem, ainda em construo, de

Adriano; e pode contribuir para reforar a sua legitimidade como novo prncipe, ou estimular

ainda mais as crticas contra a sua pessoa. Tudo isso depende, naturalmente, da correlao de

analogia que se estabelece entre a circunstncia vivida no presente e aquela narrada e

pertencente ao passado, ou seja, quilo narrado que necessariamente lembra algo do presente,

das circunstncias polticas vividas por Suetnio. Explorar e analisar essas correlaes,

rastreando possveis aluses, sejam elas diretas ou indiretas, torna-se um interessante caminho

de estudo para aqueles interessados na investigao do sculo II d.C., especialmente o seu

perodo inicial, momento caracterizado pelo governo do prncipe Adriano. De fato, que

Suetnio deixou-se afetar pelas circunstncias de seu tempo e, nesse sentido, motivou-se

escrita de sua obra, no podemos duvidar; seu grau de comprometimento com este ou aquele

grupo poltico de seu tempo, no entanto, ainda gera muitas incertezas...

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Data de recebimento e aprovao

Recebido: 17/02/2014

Received: 17/02/2014

Aprovado: 24/02/2014

Approved: 24/02/2014

Documents

A Vida dos doze Cézares