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A Vida , O Universo e Tudo Mais - Douglas Adams

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A Vida, o Universo e Tudo Mais

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Douglas Adams

Para Sally

Capítulo 1

O já habitual grito matinal de horror era osom de Arthur Dent ao acordar e lembrar-sede onde estava.

O que o perturbava não era apenas a cavernafria nem o fato de ser úmida e fedorenta. Erao fato de que ela ficava bem no meio de Is-lington e que o próximo ônibus só iria passardentro de dois milhões de anos.

O tempo é, por assim dizer, o pior lugar ondeficar perdido, como Arthur Dent haviadescoberto. Ele já tinha se perdido váriasvezes, tanto no tempo quanto no espaço.Pelo menos estar perdido no espaço mantéma pessoa ocupada.

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Estava ilhado na Terra Pré-Histórica comoresultado de uma complexa seqüência deeventos envolvendo o fato de ele ter sido al-ternadamente detonado ou insultado em re-giões da Galáxia mais estranhas do que po-deria sonhar. Por conta disso, ainda que suavida no momento fosse extremamentemonótona, continuava se sentindo muitoassustado.

Fazia cinco anos que ninguém o detonava.

Como não tinha encontrado ninguém desdeque ele e Ford Prefect se separaram quatroanos antes, também não havia sido insultadodurante todo aquele tempo.

Exceto uma vez.

Aconteceu numa tarde de primavera cerca dedois anos antes.

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Ele estava voltando para sua caverna, poucodepois do entardecer, quando percebeu es-tranhas luzes piscando através das nuvens.Virou-se para observar, sentindo seu coraçãoencher-se de esperança. Resgate. Uma saída.O sonho impossível de todo náufrago: umanave.

Observou, fascinado e animado, uma naveprateada e comprida descer em meio à brisamorna da tarde, em silêncio, delicadamente,suas longas e esguias hastes desdobrando-seem um suave bale tecnológico.

Assentou-se suavemente no terreno e opequeno zumbido que havia gerado sumiu,como se fosse embalado pela calma da tarde.

Uma rampa estendeu-se.

Surgiram luzes pela abertura.

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Uma silhueta alta apareceu na portinhola,desceu a rampa e parou bem na frente deArthur.

― Você é um idiota, Dent ― foi tudo o quedisse.

Era um alienígena, do tipo bem alienígena.Tinha uma altura peculiarmente alienígena,uma cabeça achatada peculiarmente aliení-gena, pequenos olhos em fenda peculiar-mente alienígenas, estava vestido com umaroupa elaboradamente desenhada e usavaum colar peculiarmente alienígena, e tinhauma cor pálida cinza-esverdeada de aliení-gena que reluzia com um brilho lustroso quea maioria das faces cinza-esverdeadas só po-dia conseguir por meio de muitos exercíciose de sabonetes absurdamente caros.

Arthur olhou-o, atônito.

O alienígena olhou-o de volta.

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O sentimento inicial de esperança e excitaçãohavia sido completamente superado pelo es-panto, e pensamentos de todos os tipos es-tavam, naquele momento, brigando pelocontrole de suas cordas vocais.

― Qqqu...? ― disse ele. ― Mmms... ah...aahn... ― acrescentou em seguida. ―

Qqqm... eeeerrr... ehh... quem? – conseguiufinalmente dizer e depois caiu numa espéciede silêncio frenético. Estava sentindo os efei-tos de não ter dito nada a ninguém por maistempo do que podia se lembrar.

A criatura alienígena franziu o rosto breve-mente e consultou uma espécie de pranchetaque estava segurando com sua mão fina e es-guia de alienígena.

― Arthur Dent? ― disse ele.

Arthur assentiu, balançando a cabeça.

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― Arthur Phillip Dent? ― prosseguiu o ali-enígena, com um tom de voz de firme.

― Ahhh... ah... sim... éééé... éééé ― confirm-ou Arthur.

― Você é um idiota ― repetiu o alienígena ―,um bundão completo.

― Ehhh...

A criatura pareceu ter ficado satisfeita comaquilo. Balançou a cabeça levemente, depoisfez uma marquinha peculiarmente aliení-gena em sua prancheta e virou-se brusca-mente, caminhando em direção à nave.

― Ehhh... ― disse Arthur, desesperado. ―Ehhhh...

― Ah, não me venha com esse papo! ― retru-cou o alienígena. Subiu a rampa, passou pelaportinhola e desapareceu dentro da nave. A

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portinhola se fechou, a rampa foi recolhida ea nave começou a emitir um leve zumbidograve.

― Ehhh, hei! ― gritou Arthur, correndo logoem seguida na direção da nave. ―

Espere aí! ― disse. ― O que foi isso? O quê?Espere!

A nave elevou-se no ar, removendo seu pesocomo quem joga uma capa no chão, e pairoubrevemente. Balançava estranhamente nocéu da tarde. Passou pelas nuvens,iluminando-as brevemente, e depois se foi,deixando Arthur sozinho, naquela imensidãode terra, dançando uma pequena dançapatética e sem sentido.

― O quê? ― gritou Arthur. ― O quê? Quê?Ei, o que foi? Volte aqui e repita isso!

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Pulou e dançou até suas pernas começarem atremer, gritou até seus pulmões arderem.Ninguém respondeu. Não tinha ninguémpara ouvir ou falar com ele.

A nave alienígena já cruzava em alta velocid-ade as camadas mais altas da atmosfera, acaminho do vazio aterrador que separa aspoucas coisas que existem no Universo umasdas outras.

No interior da nave, seu ocupante, o aliení-gena com a pele milionária, estava esticadono único assento. Seu nome era Wowbagger,o Infinitamente Prolongado. Um homemcom um objetivo. Na verdade, não era umobjetivo muito nobre, como ele mesmo seriao primeiro a admitir, mas ao menos tinhaum objetivo e isso o mantinha ocupado.

Wowbagger, o Infinitamente Prolongado, era― na verdade, é ― um dos pouquíssimosseres imortais do Universo.

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Aqueles que já nascem imortais sabem comolidar com isso instintivamente.

Contudo, Wowbagger não tinha nascidoimortal. Não. Passou a desprezar os imortais,aquela corja de babacas tranqüilões. Tinha setornado imortal por um infeliz acidente en-volvendo um acelerador de partículas irra-cionais, uma refeição líquida e um par deelásticos. Os detalhes exatos do acidente nãosão importantes, porque ninguém jamais foicapaz de duplicar as circunstâncias exatasem que as coisas aconteceram e, ao tentar-em, muitas pessoas acabaram ficando comcara de idiotas, morreram no processo, ouambas as coisas.

Com uma careta e uma expressão decansaço, Wowbagger fechou seus olhos, colo-cou uma música de fundo no som da nave epensou que até poderia ter conseguido... Senão fosse pelas tardes de domingo, teriaconseguido.

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No início tudo parecia engraçado: havia sedivertido muito, vivendo perigosamente, searriscando ao extremo, enriquecendo cominvestimentos de longo prazo e altas taxas deretorno e, no geral, permanecendo vivo en-quanto os outros morriam.

Contudo, no final foram as tardes de domin-go que se tornaram insuportáveis: aquelaterrível sensação de não ter absolutamentenada para fazer que se instala em torno das14h55, quando você sabe que já tomou umnúmero mais que razoável de banhosnaquele dia, quando sabe que, por mais quetente se concentrar nos artigos dos jornais,você nunca conseguirá lê-los nem colocar emprática a nova e revolucionária técnica dejardinagem que eles descrevem, e quandosabe que, enquanto olha para o relógio, osponteiros se movem impiedosamente emdireção às 16 horas e logo você entrará nolongo e sombrio entardecer da alma.

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A partir daí as coisas começaram a perder osentido. Os sorrisos alegres que costumavadistribuir durante os funerais dos outroscomeçaram a sumir. Aos poucos, começou adesprezar o Universo em geral e cada um dosseus habitantes em particular.

Foi então que concebeu seu objetivo, aquiloque o faria prosseguir e que, até onde podiacompreender, iria fazê-lo prosseguir para to-do o sempre. Era o seguinte: Iria insultar oUniverso.

Isto é, iria insultar todos no Universo. Indi-vidualmente, pessoalmente e ― esse foi oponto no qual realmente decidiu se empen-har ― em ordem alfabética.

Quando as pessoas reclamavam cora ele,como algumas vezes já o tinham feito, que oplano não somente era mal-intencionadocomo também completamente impossível,devido ao número de pessoas que nasciam e

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morriam sem parar, ele simplesmente as en-carava com um olhar gélido e dizia:

― Um homem tem o direito de sonhar, nãoé?

Foi assim que tudo começou. Construiu umanave feita Para durar, com um computadorcapaz de lidar com a infinitude de dados ne-cessário para manter o controle de toda apopulação do Universo conhecido e calcularas complicadas rotas envolvidas.

Sua nave atravessou as órbitas internas dosistema estelar Sol, preparando-se para gan-har impulso ao circundar sua estrela e depoispartir para o espaço interestelar.

― Computador.

― Presente ― respondeu o computador.

― Para onde vamos?

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― Vou calcular.

Wowbagger observou por alguns instantes ointricado colar de brilhantes da noite, bil-hões de pequenos diamantes polvilhando ainfinita escuridão com sua luz. Cada umdeles, absolutamente todos, estava em seu it-inerário. Iria passar milhões de vezes pelagrande maioria deles.

Imaginou brevemente sua rota, conectandotodos os pontos do céu como um desenho in-fantil de unir os pontos. Torceu para que,visto de algum lugar do Universo, aqueletraçado soletrasse uma palavra extrema-mente obscena.

O computador emitiu um bipe chocho paraindicar que havia terminado seus cálculos.

― Folfanga ― disse. E bipou novamente. ―Quarto planeta do sistema Folfanga ―

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prosseguiu. E bipou mais uma vez. ― Dur-ação estimada para a viagem: três semanas―

disse depois. Bipou de novo. ― Vamos en-contrar uma pequena lesma ― bipou ― dogênero A-Rth-Urp-Hil-Ipdenu. ― Acredito ―acrescentou, após uma breve pausa na qualbipou ― que você decidiu chamá-la de "bun-dona descerebrada".

Wowbagger resmungou. De sua janela,observou a grandiosidade da criação pormais alguns instantes.

― Acho que vou tirar um cochilo. Por quaisredes de transmissão vamos passar duranteas próximas horas?

O computador bipou.

― Cosmovid, Thinkpix e Home Brain Box ―disse. Então bipou mais uma vez.

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― Vai passar algum filme a que eu ainda nãotenha assistido umas 30 mil vezes?

― Não.

― Ah.

― Bem, tem Angústia no Espaço. Este vocêsó viu 33.517 vezes.

― Me acorde para a segunda parte. O com-putador bipou.

― Durma bem ― disse.

A nave deslizava pela noite.

Enquanto isso, na Terra, caía uma chuvafina. Arthur Dent sentou-se em sua caverna eteve uma das noites mais tenebrosas de suavida, pensando em milhares de coisas quepoderia ter dito ao alienígena e matandomosquitos, que também tiveram uma noitebem tenebrosa.

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No dia seguinte, decidiu fazer uma sacolausando uma pele de coelho porque achouque seria útil para colocar coisas dentro.

Capítulo 2

Dois anos depois disso ter acontecido, amanhã estava doce e calma quando Arthursaiu da caverna que chamava de "casa" atéconseguir encontrar um nome melhor paraaquilo ou então encontrar uma cavernamelhor.

Sua garganta estava novamente irritadadevido a seu grito matinal de horror, masainda assim ele estava de ótimo humor. En-rolou firmemente seu roupão esfarrapado aoredor do corpo e sorriu, feliz, olhando aquelalinda manhã.

O ar estava claro e cheio de aromas suaves, abrisa acariciava levemente a grama alta quecercava a caverna, os pássaros gorjeavam

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uns para os outros, as borboletas bor-boleteavam lindamente ao seu redor e toda anatureza parecia conspirar para ser tão gentile agradável quanto possível.

Não eram, contudo, aquelas delíciasbucólicas que haviam deixado Arthur tãofeliz.

Ele acabara de ter uma ótima idéia sobrecomo lidar com o terrível e solitário isola-mento, os pesadelos, o fracasso de todas assuas tentativas de horticultura e a completaausência de futuro e a futilidade de sua vidaali, na Terra pré-histórica. Tinha decididoenlouquecer.

Sorriu de novo, feliz, e mordeu um pedaço deperna de coelho que havia sobrado de seujantar. Mastigou alegremente durante algumtempo e então resolveu anunciar formal-mente sua decisão.

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Ficou de pé, endireitou o corpo e olhou defrente para os campos e montanhas. Para darmais peso às suas palavras, enfiou o osso decoelho na barba. Abriu bem os braços edisse:

― Vou ficar louco!

― Boa idéia ― disse Ford Prefect, descendocom cuidado de uma rocha onde estiverasentado.

O cérebro de Arthur fez piruetas. Seu maxil-ar fez flexões.

― Eu fiquei louco por um tempo ― disseFord ― e isso me fez muito bem. Os olhos deArthur começaram a dar cambalhotas.

― Sabe... ― disse Ford.

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― Por onde você andou? ― interrompeu Ar-thur, agora que sua cabeça havia parado coma ginástica.

― Por aí ― respondeu Ford ―, aqui e ali. ―Ele sorriu de uma forma que julgou (correta-mente) ser absolutamente irritante. ― Tireiminha mente de circulação por uns tempos.Achei que, se o mundo precisasse muito demim, ele viria me chamar. E veio.

Pegou em sua mochila, agora completamenteem farrapos, seu Sensormático Subeta.

― Pelo menos ― prosseguiu ― acho que veio.Isso aqui tem se mexido bastante.

― Sacudiu o Subeta. ― Se for um alarmefalso, vou enlouquecer. De novo.

Arthur sacudiu a cabeça e sentou-se. Olhoupara cima.

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― Achei que você estivesse morto... ― disse,perplexo.

― Foi o mesmo que eu pensei durante algumtempo ― disse Ford ― e depois decidi que euera um limão durante algumas semanas. Mediverti bastante nessa época, pulando paradentro e para fora de um gim-tônica.

Arthur limpou a garganta, depois repetiu:

― Onde ― disse ele ― é que você...?

― Onde encontrei gim-tônica? ― disse Ford,animado. ― Encontrei um pequeno lago quepensava ser um gim-tônica, então fiquei pu-lando para dentro e para fora dele. Bem, pelomenos creio que ele achava que era um gim-tônica.

― Eu poderia ― disse com um sorriso quefaria qualquer homem são procurar abrigonas árvores ― ter imaginado tudo isso.

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Esperou alguma reação de Arthur, mas estejá o conhecia demasiadamente bem.

― Continue ― disse ele, sem se alterar.

― Como você pode ver ― disse Ford ―, osentido disso tudo é que não há sentido emtentar enlouquecer para impedir-se de ficarlouco. Você pode muito bem dar-se por ven-cido e guardar sua sanidade para mais tarde.

― E isto é seu estado de sanidade, não é? ―disse Arthur. ― Estou perguntando apenaspor curiosidade.

― Fui até a África. ― disse Ford. ― É?

― É.

― E como foi lá?

― Então esta é sua caverna, não é? ― disseFord.

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― Ehh, sim – respondeu Arthur. Sentia-semuito estranho. Após quase quatro anos deisolamento, estava tão feliz e aliviado porreencontrar Ford que tinha vontade dechorar.

Por outro lado, Ford era uma pessoa que setornava insuportável quaseinstantaneamente.

― Muito legal ― disse Ford, falando da cav-erna de Arthur.

― Você deve odiá-la.

Arthur sequer se preocupou em responder.

― A África foi bem interessante ―prosseguiu. ― Me comportei de forma bemestranha por lá.

Olhou para longe, pensativo.

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― Resolvi ser cruel com os animais ― disse,meio aéreo. ― Mas apenas por diversão.

― Não me diga ― respondeu Arthur,cauteloso.

― É verdade ― afirmou Ford. ― Não vouperturbá-lo com os detalhes porque elesiriam...

― O quê?

― Perturbá-lo. Mas você pode achar in-teressante saber que sou o integralmente re-sponsável pela evolução do animal que, den-tro de alguns séculos, vocês irão chamar degirafa. Também tentei aprender a voar.Acredita?

― Conte-me.

― Eu conto depois. Só vou mencionar que oGuia diz...

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― O quê?

― O Guia do Mochileiro das Galáxias. Vocêse lembra, não?

― Sim, lembro-me de tê-lo jogado no rio.

― Ê, mas eu o pesquei de volta depois ―disse Ford.

― Você não me contou isso.

― Não queria que você o jogasse fora denovo.

― Tudo bem ― respondeu Arthur. ― E o queele diz?

― O quê?

― O que o Guia diz?

― Ah. O Guia diz que há toda uma arte paravoar ― respondeu Ford. ― Ou melhor, um

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jeitinho. O jeitinho consiste em aprendercomo se jogar no chão e errar. ― Deu umsorrisinho. Apontou para as marcas em suascalças na altura dos joelhos e levantou osbraços para mostrar os ombros. Estavam ar-ranhados e machucados. ― Até agora não deimuita sorte ― disse. Depois estendeu a mão.― Estou muito feliz em vê-lo novamente,Arthur.

Arthur sacudiu a cabeça em um acessosúbito de emoção e perplexidade.

― Há anos que não vejo alguém ― disse. –Absolutamente ninguém. Mal me lembro decomo se fala. Me esqueço de algumas palav-ras. Tenho praticado, sabe.

Eu pratico falando com... falando com...como se chamam aquelas coisas que fazemos outros acharem que ficamos loucosquando falamos com elas? Como George III.

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― Reis? ― tentou Ford.

― Não, não ― respondeu Arthur. ― As coisascom as quais ele costumava falar.

Estamos cercados por elas, mas que droga.Eu mesmo plantei centenas delas. Todasmorreram. Árvores! Eu pratico falando comárvores. Para que é isso?

Ford continuava com a mão estendida. Ar-thur olhava, sem entender.

― Aperte ― sugeriu Ford.

Arthur apertou a mão, meio nervoso no iní-cio, como se ela pudesse se transformar emum peixe. Então segurou-a vigorosamentecom suas duas mãos, sentindo um enormealívio. Apertou, apertou e apertou.

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Depois de um tempo, Ford achou que jábastava. Subiram em uma colina rochosapróxima e olharam o cenário em volta.

― O que aconteceu com os golgafrinchenses?Arthur deu de ombros.

― Muitos não sobreviveram ao inverno, trêsanos atrás. Os poucos que viveram até aprimavera disseram que precisavam de umasférias e partiram em uma jangada. A Histórianos diz que devem ter sobrevivido...

― É ― disse Ford. ― Certo, certo. ― Ele colo-cou as mãos na cintura e olhou novamenteem volta para o planeta vazio. Repentina-mente, Ford sentiu-se cheio de energia eperspectivas.

― Estamos de partida ― disse, animado.

― Para onde? Como? ― perguntou Arthur.

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― Não sei ― disse Ford ―, mas posso sentirque chegou a hora. Vão acontecer coisas.Estamos a caminho.

Falou em voz baixa, quase sussurrando.

― Detectei ― disse ele ― perturbações nacorrente. Lançou um olhar decidido para ohorizonte, como se quisesse que o ventosoprasse em seus cabelos dramaticamentenaquele momento. O vento, contudo, estavaocupado brincando com umas folhas nãomuito longe.

Arthur pediu para Ford repetir o que acabarade dizer, porque não havia compreendidototalmente o sentido. Ford repetiu.

― A corrente? ― perguntou Arthur.

― A corrente do espaço-tempo ― disse Forde, quando o vento soprou brevemente aoredor deles, abriu um largo sorriso.

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Arthur concordou, e limpou a garganta.

― Estaríamos falando ― perguntou, caute-losamente ― a respeito de alguma coisa queos vogons arrastam por aí ou o queexatamente?

― Há um zéfiro ― disse Ford ― no contínuoespaço-temporal.

― Ah ― concordou Arthur ―, onde ele está?Onde está? ― Colocou as mãos nos bolsos deseu roupão e perscrutou o horizonte.

― O quê?

― Bem, quem é esse tal de Zéfiro exata-mente? ― perguntou Arthur.

Ford olhou para ele, furioso.

― Você quer me ouvir, por favor? Não estoufalando de uma pessoal

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― Eu estava ouvindo ― disse Arthur ―, masnão acho que tenha ajudado muito.

Ford agarrou-o pelas lapelas do roupão efalou com ele tão lenta, articulada e paciente-mente como se fosse alguém do serviço deatendimento ao cliente de uma companhiatelefônica.

― Parece... ― disse ― ...haver algunsnúcleos... ― disse em seguida ― ...de in-stabilidade... ― continuou ― ...na tessitura...― prosseguiu.

Arthur olhava abestalhado para o tecido deseu roupão, onde Ford o segurava. Fordsoltou o roupão antes que Arthur trans-formasse seu olhar abestalhado em uma ob-servação abestalhada.

― ...na tessitura do espaço-tempo ―concluiu.

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― Ah, é isso ― disse Arthur.

― Sim, isso ― confirmou Ford.

Lá estavam eles, sozinhos sobre uma colinana Terra pré-histórica, olhando um para ooutro intensamente.

― E isso fez o quê? ― disse Arthur.

― Isso ― respondeu Ford ― desenvolveunúcleos de instabilidade.

― É mesmo?? ― disse Arthur, sem piscar osolhos por um segundo sequer.

― Sim, de fato ― retrucou Ford, com omesmo grau de imobilidade ocular.

― Que bom! ― disse Arthur.

― Entendeu? ― disse Ford.

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― Não ― disse Arthur. Fizeram uma pausasilenciosa.

― A dificuldade desta conversa ― disse Ar-thur, depois que uma expressão pensativahavia lentamente subido por todo o seurosto, como um alpinista escalando uma pas-sagem traiçoeira ― é que ela é muito difer-ente das que tenho tido nos últimos tempos.

Como expliquei há pouco, foram basica-mente com árvores. Não eram assim. Excetotalvez por algumas conversas que tive com osolmeiros, que algumas vezes ficam um poucodesorientados.

― Arthur ― disse Ford.

― Sim? ― disse Arthur.

― Basta acreditar no que eu lhe disser e tudoserá extremamente simples.

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― Puxa, não sei se acredito nisso.

Sentaram-se para tentar reorganizar ospensamentos. Ford pegou o SensormáticoSubeta. Estava emitindo zumbidos variadose havia uma luz piscando, fraquinha.

― Pilha fraca?

― Não ― disse Ford ―, há uma perturbaçãoem movimento na tessitura do espaçotempo,um zéfiro, um núcleo de instabilidade, eparece estar bem próximo de nós.

― Onde?

Ford moveu o aparelho em um semicírculo,balançando-o ligeiramente. De repente a luzpiscou.

― Lá! ― disse Ford, apontando com o braço.― Bem atrás daquele sofá!

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Arthur olhou. Ficou completamente surpresoao notar que havia um sofá Chesterfield, for-rado de veludo paisley, no campo bem nafrente deles. Olhou para ele com uma per-plexidade inteligente. Perguntas perspicazesperpassaram sua mente.

― Por que ― perguntou ele ― tem um sofánaquele campo?

― Acabei de explicar! ― gritou Ford, irrit-ado. ― Um zéfiro no contínuoespaçotemporal.

― E este sofá é do Zéfiro? ― perguntou Ar-thur, tentando se apoiar em seus pés e,apesar da falta de otimismo, também emseus sentidos.

― Arthur! ― gritou Ford com ele. ― Aquelesofá está ali por causa da instabilidade noespaço-tempo que estou tentando incutir emsua mente terminalmente debilitada. Ele foi

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jogado para fora do contínuo, é um resíduonas margens do espaço-tempo

― aliás, seja o que for, temos que agarrá-lo,pois é a única forma de sairmos daqui!

Saltou até a base da rocha onde estavam ecomeçou a correr pelo campo.

“Agarrá-lo?”, pensou Arthur, depois levantouas sobrancelhas, espantado, quando viu queo Chesterfield estava balançando e flutuandolentamente pela grama.

Com um grito de prazer totalmente inesper-ado, desceu saltitante da rocha e saiu cor-rendo atrás de Ford Prefect e daquela peçairracional de mobília.

Correram tresloucadamente pela grama, pu-lando, rindo e gritando instruções para levaraquela coisa para um lado ou para o outro. Osol brilhava ardentemente sobre a relva e

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pequenos animais saíam correndo para abrircaminho.

Arthur sentia-se feliz. Estava profundamentecontente porque, pelo menos uma vez, seudia estava saindo exatamente como plane-jado. Há apenas 20 minutos havia decididoficar louco e, pouco depois, lá estava ele,caçando um Chesterfield através dos camposda Terra pré-histórica.

O sofá ondulava de um lado para o outro,parecendo ser ao mesmo tempo tão sólidoquanto as árvores ao passar entre algumasdelas e tão nebuloso quanto um sonho alu-cinado ao flutuar como um fantasma atravésde outras.

Ford e Arthur corriam desvairadamente at-rás dele, mas o sofá se desviava e se es-quivava como se seguisse uma complexa to-pografia matemática própria ― era exata-mente o que estava fazendo. Continuavam a

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perseguição, o sofá continuava dançando egirando, até que, subitamente, virou-se emergulhou, como se estivesse cruzando olimite de um gráfico catastrófico, e se virampraticamente em cima dele. Dando impulso egritando, subiram no sofá, o sol tremeluziu,caíram por um vazio doentio e apareceraminesperadamente no meio do campo de crí-quete conhecido como Lord's CricketGround, em St. John's Wood, Londres, pertodo final da última partida [Test Match] daSérie Australiana no ano de 198―, quando aInglaterra precisava de apenas 28 runs paravencer.

Capítulo 3

Fatos importantes extraídos da HistóriaGaláctica, número um: (Reproduzido do Liv-ro de História Galáctica Popular do SíderialDaily Mentioner's.) O céu noturno do plan-eta Krikkit é a vista menos interessante detodo o Universo.

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Capítulo 4

Era um dia lindo e agradável no Lord'sCricket Ground quando Ford e Arthur foramcasualmente jogados para fora de umaanomalia espaço-temporal e se estatelaramviolentamente sobre o gramado perfeito.

A torcida aplaudia estrondosamente. Nãoeram eles que estavam sendo aplaudidos,mas se curvaram, em um gesto instintivo deagradecimento, o que foi uma grande sorte,já que a pequena e pesada bola vermelha quea torcida estava aplaudindo passou zunindoa poucos milímetros da cabeça de Arthur. Namultidão, um homem desmaiou.

Eles se jogaram de volta no chão, que pareciagirar de forma medonha em torno deles.

― O que foi isso? ― sussurrou Arthur.

― Algo vermelho ― sussurrou Ford de volta.

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― Onde estamos?

― Ahn, sobre algo verde.

― Formas ― murmurou Arthur. ― Precisode formas.

O aplauso da multidão foi rapidamente sub-stituído por exclamações de perplexidade epelas risadas tensas de centenas de pessoasque ainda não tinham decidido se acred-itavam ou não no que haviam acabado dever.

― Este sofá é de vocês? ― disse uma voz.

― O que foi isso? ― sussurrou Ford.

Arthur olhou para cima.

― Algo azul.

― Forma? ― perguntou Ford.

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Arthur olhou novamente.

― Tem a forma ― sussurrou para Ford, comas sobrancelhas furiosamente contraídas ―de um policial.

Permaneceram agachados por alguns in-stantes, franzindo os olhos o máximo pos-sível. A coisa azul com a forma de policial cu-tucou os dois.

― Vamos lá, vocês dois ― disse a forma ―,vamos andando. Essas palavras tiveram umforte efeito sobre Arthur. Em um segundo es-tava de pé, como um escritor ao ouvir o tele-fone tocar, e olhou espantado para as coisasem volta dele, que haviam se fixado em umafamiliaridade bem terrível.

― De onde você tirou isso? ― gritou para aforma de policial.

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― O que você disse? ― respondeu a forma,espantada.

― Isso aqui é Lord's Cricket Ground, não é?― retrucou Arthur. ― Onde você encontrouisso, como você o trouxe até aqui? Acho ―acrescentou, colocando a mão na testa ― queé melhor eu me acalmar. ― Agachou-se ab-ruptamente diante de Ford.

― É um policial ― disse. ― O que vamosfazer? Ford deu de ombros.

― O que você quer fazer?

― Eu quero ― disse Arthur ― que você mediga que passei os últimos cinco anossonhando.

Ford deu de ombros novamente e obedeceu.

― Você passou os últimos cinco anos son-hando. Arthur levantou-se outra vez.

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― Está tudo bem, seu guarda ― disse ele. ―Eu passei os últimos cinco anos sonhando.Pergunte a ele ― acrescentou, apontandopara Ford ―, ele também estava no sonho.

Tendo dito isso, saiu andando em direção àdivisória do campo, espanando o pó de seuroupão. Foi então que notou seu roupão eparou. Olhou para ele.

Atirou-se sobre o guarda.

― Então de onde foi que vieram estasroupas? ― gritou. Desmaiou e caiu sobre ogramado.

Ford balançou a cabeça.

― Os últimos dois milhões de anos foram di-fíceis para ele ― disse para o guarda.

Juntos, colocaram Arthur sobre o sofá e ocarregaram para fora do campo, sendo

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brevemente interrompidos, no meio do cam-inho, pela súbita desaparição do sofá.

A multidão reagiu de formas bem variadas atudo isso. Muitos não tiveram estômago paraassistir à cena e preferiram ouvir a narraçãopelo rádio.

― Olha, Brian, essa foi interessante ― disseum dos locutores para o outro. ― Não melembro de nenhuma materialização misteri-osa no campo desde que... bom, acho queisso nunca aconteceu antes, não que eu melembre.

― Que tal Edgbaston, 1932?

― O que foi que aconteceu por lá? Y

― Bem, Peter, acho que era Canter contraWilícox, vindo para arremessar do extremodo campo quando um espectador subita-mente atravessou o gramado.

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Ficaram em silêncio enquanto o primeirolocutor pensava a respeito.

― Eeeeeé... é ― disse ele. ― Bem, não vejonenhum grande mistério nisso, não émesmo? Pelo que entendi, o sujeito não sematerializou em campo, ele apenas entroucorrendo, não?

― É verdade, é verdade, mas ele disse quetinha visto algo se materializar no campo.

― Ah! E o que ele viu?

― Acho que era um jacaré.

― Certo. E alguém mais notou o jacaré emcampo?

― Aparentemente não. Como ninguém con-seguiu que o tal homem desse uma descriçãomuito detalhada, fizeram uma busca rápidapelo campo mas não acharam nada.

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― E que fim levou o sujeito?

― Bem, pelo que me lembro, alguém seofereceu para tirá-lo de lá e pagar um almoçopara o homem, mas ele disse que já haviacomido muito, então deixaram o caso de ladoe a partida acabou com Warwickshire ven-cendo por três wickets.

― Eu diria que foi bem diferente desse casoagora. Para os ouvintes que acabaram de sin-tonizar nossa transmissão, o que está aconte-cendo por aqui é que... bem... dois homens

― usando uns farrapos em péssimo estado,aliás ― e também um sofá... Era um Chester-field, não era?

― Isso mesmo, Peter, um Chesterfield.

― Eles se materializaram sensacionalmentebem aqui, no meio do Lord's Cricket Ground.

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Mas não acho que tenham feito isso pormaldade, parecem bemintencionados e...

― Peter, Peter, um momento... Queriainterrompê-lo para dizer que o sofá acaba dedesaparecer.

― Ê verdade. Temos um mistério a menos,então. Ainda assim, definitivamente essa vaientrar para a história, sobretudo porqueocorreu em um momento dramático dapartida, a Inglaterra só precisa de 24 runspara vencer a rodada. Neste momento, umpolicial está escoltando os dois homens parafora do gramado, os espectadores estão sesentando e parece que a partida vairecomeçar.

― Senhor ― disse o policial depois que pas-saram por um grupo de espectadorescuriosos e colocaram o corpo pacificamenteinerte de Arthur sobre um cobertor ―, talvez

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possa me contar quem você é, de onde vem equal o significado de toda essa confusão?

Ford olhou para o chão por um momento,como se estivesse se preparando para algo,depois endireitou-se e disparou um olharpara o policial que o atingiu com toda a forçade cada milímetro dos 600 anos-luz de dis-tância que separam a Terra e o planeta deFord, próximo de Betelgeuse.

― Tudo bem ― disse Ford, com toda a calmado mundo ―, vou contar.

― Ah, olha, não vai ser necessário ― disse opolicial apressadamente. ― Apenas nãodeixe que seja lá o que for aconteça de novo.― O policial virou-se e partiu em busca de al-guém que não fosse de Betelgeuse. Feliz-mente o campo estava cheio de pessoasassim.

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A consciência de Arthur aproximou-se de seucorpo, relutantemente, como se viesse demuito longe. Ela já tinha passado por mausbocados lá dentro. Tensa e lentamente, en-trou e assentou-se em sua posição habitual.

Arthur sentou-se.

― Onde estou? ― perguntou.

― No Lord's Cricket Ground ― respondeuFord.

― Ótimo ― disse Arthur, e sua consciênciasaiu de novo para tomar um pouco de ar. Seucorpo voltou a cair na grama.

Dez minutos depois, agarrado a uma xícarade chá em uma barraquinha de refrigerantes,seu rosto exausto já estava menos pálido.

― Como está se sentindo? ― perguntouFord.

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― Estou em casa ― respondeu Arthur, comuma voz rouca. Fechou os olhos e deliciou-secom o aroma de seu chá como se fosse...bem, do ponto de vista de Arthur, como seaquilo fosse chá, o que de fato era.

― Estou em casa ― repetiu ―, em casa.Estou na Inglaterra, no presente, o pesadeloacabou. ― Abriu seus olhos novamente e deuum sorriso sereno. ― Estou aqui, onde per-tenço ― disse, com um suspiro emocionado.

― Acho que há duas coisas que devo lhedizer ― disse Ford, colocando um exemplardo jornal Guardian à frente de Arthur.

― Estou em casa ― disse Arthur.

― Sim ― disse Ford. ― A primeira coisa ―continuou, apontando para a data impressano jornal ― é que a Terra será demolida den-tro de dois dias.

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Estou em casa ― disse Arthur. ― Chá, crí-quete, grama aparada, bancos de madeira,blazers de linho branco, latas de cerveja...

Focou lentamente o jornal. Torceu um poucoa cabeça para o lado e franziu a testa.

― Acho que já vi isso antes. ― Seus olhossubiram lentamente pela página até chegar àdata, sobre a qual Ford continuava batendocom o dedo. Seu rosto se congelou durantealguns segundos, depois começou a fazeraquela coisa terrível de rachar lentamenteque os icebergs do Ártico costumam fazer deforma tão dramática na primavera.

― A outra coisa ― disse Ford ― é que há umosso enfiado em sua barba. ― Ele tomou seuchá.

Do lado de fora da barraquinha de refriger-antes, o sol brilhava sobre uma multidãoalegre. Brilhava sobre chapéus brancos e

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rostos rosados. Brilhava sobre picolés,derretendo-os. Brilhava sobre as lágrimasdas criancinhas cujos picolés derretiam ecaíam no chão.

Brilhava sobre as árvores, reluzia nos bastõesde críquete que giravam, fulgurava sobre umobjeto absolutamente extraordinário que es-tava estacionado atrás dos outdoors e que,aparentemente, ninguém havia notado.Resplandecia sobre Ford e Arthur quandosaíram da barraquinha de refrigerantes,ofuscados pela claridade, e olharam para acena em volta.

Arthur estava trêmulo.

― Talvez ― ele disse ― eu devesse...

― Não ― retrucou Ford, seco.

― O quê?

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― Não tente telefonar para si mesmo emcasa.

― Mas como você sabia? Ford deu deombros.

― Por que não? ― insistiu Arthur.

― Falar consigo mesmo no telefone ― re-spondeu Ford ― nunca leva a nada.

― Mas...

― Veja ― disse Ford. Pegou um telefoneimaginário e apertou teclas imaginárias.

― Alô? ― disse ele, no fone imaginário. ―Gostaria de falar com Arthur Dent?

Ah, sim, bom dia. Aqui é Arthur Dentfalando. Não desligue.

Lançou um olhar desapontado para o foneimaginário.

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― Desligou! ― disse, e depois colocou o foneimaginário cuidadosamente de volta em seugancho imaginário. ― Olha, esta não é minhaprimeira anomalia temporal.

Um olhar ainda mais abatido substituiu o ol-har abatido no rosto de Arthur.

― Quer dizer que não estamos sãos e salvosem casa, relaxando após um bom banho? ―perguntou.

― Acho que não podemos sequer dizer ― re-spondeu Ford ― que estamos em casa nossecando vigorosamente com uma toalha.

O jogo prosseguia. O arremessadoraproximou-se do wicket com passos rápidos,depois trotando, então correndo. Subita-mente explodiu em uma rajada de braços epernas da qual saiu voando uma bola. O re-batedor acertou a bola e lançou-a para trás,por cima dos outdoors. Ford seguiu a bola

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com os olhos e congelou por um instante.Ficou imóvel.

Percorreu novamente a trajetória da bola emais uma vez seus olhos se contraíram.

― Esta não é minha toalha ― disse Arthur,que estava revirando o conteúdo de sua bolsade pele de coelho.

― Psst! ― disse Ford. Travou os olhos,concentrado.

Eu tinha uma toalha esportiva de Golgafrin-chan ― prosseguiu Arthur ― que era azulcom umas estrelas amarelas. Não é esta!

― Psst! ― repetiu Ford. Cobriu um dos olhosenquanto olhava com o outro.

― Esta é rosa ― disse Arthur. ― Por acaso ésua?

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― Queria que você ficasse quieto e parassede falar sobre sua toalha ― disse Ford.

― Mas não é minha toalha ― insistiu Arthur―, é justamente isso que estou tentando...

― E eu queria que você ficasse quieto exata-mente agora ― completou Ford, quaserosnando.

― Tudo bem ― disse Arthur, colocando atoalha de volta em sua bolsa préhistórica.

― Entendo que provavelmente não seja umevento importante na escala cósmica, masainda assim é peculiar. Uma toalha rosa, donada, em vez da toalha azul com estrelasamarelas...

Ford estava começando a agir de formabastante estranha, ou talvez não estivesserealmente começando a agir estranhamente,mas começando a agir de uma forma que era

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estranhamente diferente das outras formasestranhas como ele geralmente agia. Estavafazendo o seguinte: ignorando solenementeos olhares de estranhamento que provocavano restante do público, passava as mãos emmovimentos rápidos na frente de seu rosto,agachava-se atrás de algumas pessoas, pu-lava por trás de outras, depois ficava imóvel,piscando muito. Fez isso por alguns in-stantes e então começou a andar sorrateira-mente para a frente, de forma lenta e dissim-ulada, com o rosto completamente franzido econcentrado, como um leopardo que não est-ivesse bem certo de ter visto uma lata quasevazia de comida de gato a um quilômetro dedistância em uma planície quente epoeirenta.

― Esta também não é a minha sacola ― disseArthur, subitamente.

Arthur quebrou a concentração de Ford, queolhou para ele irritado.

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― Não estava mais falando sobre minhatoalha ― disse Arthur.

― Já concluímos que não é minha. É que abolsa onde estava guardando a toalha, a talque não é minha, também não é minha,apesar de ser incrivelmente parecida.

Pessoalmente acho que isso é muito es-tranho, até porque eu mesmo fiz essa bolsana Terra pré-histórica. E estas também nãosão minhas pedras ― acrescentou, tirandoalgumas pedras cinzentas e achatadas dabolsa. ― Estava fazendo uma coleção depedras interessantes e estas aqui são clara-mente bobas.

Um grito animado varreu a multidão e inter-rompeu qualquer coisa que Ford fosse re-sponder. A bola de críquete, que havia cau-sado aquela reação, caiu do céu precis-amente dentro da misteriosa bolsa de pele decoelho de Arthur.

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― Devo dizer que este também foi um eventomuito peculiar ― disse Arthur, fechando rap-idamente sua bolsa e fingindo procurar abola no chão.

― Acho que não caiu aqui ― disse para os ga-rotos que imediatamente se juntaram ao seuredor procurando a bolinha.

― Provavelmente rolou para outro lugar.Acho que foi, para lá.

― Apontou vagamente na direção para a qualgostaria que eles fossem. Um dos garotosficou olhando para ele, curioso.

― Você está bem? ― perguntou o garoto.

― Não ― respondeu Arthur.

― Então por que você está com um osso emsua barba? ― disse o garoto.

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― Estou treinando-o para se sentir bem emqualquer lugar.

― Arthur ficou orgulhoso por ter dito aquilo.Em sua visão, era exatamente o tipo de coisaque iria entreter e estimular a mente de umjovem.

― Ah ― respondeu o garoto, cocando acabeça enquanto pensava sobre aquilo. ―

Qual o seu nome?

― Dent ― disse Arthur ―, Arthur Dent.

― Você é um idiota, Dent ― disse o garoto ―,um bundão completo. ― Depois olhou para olado, demonstrando que não estava minima-mente preocupado em fugir e finalmentesaiu andando, cocando o nariz. Arthurlembrou-se de que a Terra seria demolidanovamente dentro de dois dias e, pelo menos

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uma vez, isso não fez com que se sentissemal.

A partida recomeçou com uma nova bola, osol continuava brilhando e Ford continuavapulando para cima e para baixo, sacudindo acabeça e piscando.

― Você está preocupado com alguma coisa,não é? – disse Arthur.

― Acho ― respondeu Ford, em um tom devoz que Arthur já tinha aprendido a recon-hecer como algo que precede alguma outracoisa completamente incompreensível ―

que tem um POP ali.

Apontou. Curiosamente, a direção para aqual ele apontou não era para onde estava ol-hando. Arthur olhou para aquele lado, próx-imo aos outdoors, e para o outro lado, na

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direção do campo. Ele assentiu e deu de om-bros. Deu de ombros de novo.

― Um o quê? ― perguntou.

― Um POP. –Um P...?

― ...OP.

― E isso seria?

― Um Problema de Outra Pessoa.

― Ah, que bom ― disse Arthur, relaxando.Não tinha idéia do que se tratava, mas o as-sunto parecia ter terminado. Não tinha.

― Lá ― disse Ford, apontando novamentepara os gigantescos outdoors e olhando parao campo.

― Onde?

-Ali! ― disse Ford.

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― Estou vendo ― disse Arthur, que nãoestava.

― Está? ― disse Ford.

― O quê? ― disse Arthur.

― Você está vendo ― disse Ford, paciente-mente ― o POP?

― Achei que você tinha dito que isso eraproblema de outra pessoa.

― Exato.

Arthur assentiu lentamente, cuidadosamentee com uma cara de total imbecilidade.

― E quero saber ― disse Ford ― se vocêconsegue vê-lo.

― Quer mesmo?

― Sim.

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― Com o que ― disse Arthur ― ele separece?

― E como diabos vou saber, seu burro? ―gritou Ford. ― Se você consegue vê-lo, você équem tem que me dizer.

Arthur sentiu aquela estranha pulsação atrásdas têmporas que era uma marca registradade muitas de suas conversas com Ford. Suamente se escondia como um cãozinho as-sustado no canil. Ford agarrou-o pelo braço.

― Um POP é alguma coisa que não podemosver, ou não vemos, ou nosso cérebro não nosdeixa ver porque pensamos que é um prob-lema de outra pessoa.

É isso que POP quer dizer: Problema deOutra Pessoa. O cérebro simplesmente oapaga, como um ponto cego. Se você olhardiretamente para ele, não verá nada, amenos que saiba exatamente o que é. A única

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chance é conseguir ver algo olhando desoslaio.

― Ah ― disse Arthur ―, então é por issoque...

― Sim ― disse Ford, que sabia o que Arthuriria dizer.

― ...você estava pulando para cima e...

― Sim.

― ...para baixo e piscando...

― Sim.

― ...e...

― Acho que você captou a mensagem.

Eu posso vê-la ― disse Arthur. ― É uma es-paçonave. Arthur ficou momentaneamente

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atordoado pela reação que esta revelaçãohavia provocado.

Um ruído veio da multidão estava em com-pleto tumulto. Pessoas corriam em todas asdireções, gritando, berrando e tropeçandoumas nas outras em completo caos. Deu umpasso para trás e olhou em volta espantado.Depois olhou novamente em volta, aindamais espantado.

― Emocionante, não? ― disse uma aparição.A aparição tremeu diante dos olhos de Ar-thur, embora, na prática, provavelmentefossem os olhos de Arthur que estavam tre-mendo diante da aparição. Sua boca tambémtremeu.

― O... o... o... o... ― disse sua boca.

― Acho que seu time acaba de ganhar ―disse a aparição.

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― O... o... o... o... ― repetiu Arthur, pontu-ando cada tremelique com uma cutucada nascostas de Ford Prefect. Ford observava o tu-multo, apreensivo.

― Você é inglês, não é? ― disse a aparição.

― S... s... s... s... sim ― disse Arthur.

― Como eu disse, seu time acaba de ganhar apartida. Isto significa que eles ficam com asCinzas. Você deve estar muito feliz. Devodizer que sou particularmente apaixonadopelo críquete, embora prefira que ninguémde outro planeta me ouça dizendo isto. É,realmente não seria nada bom.

A aparição deu o que poderia ter sido umsorriso travesso, mas era difícil dizer ao certoporque o sol estava batendo por trás, criandouma aura ofuscante ao redor de sua cabeça eiluminando seus cabelos e barba grisalhos deuma forma impressionante, dramática e

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muito difícil de conciliar com sorrisostravessos.

― Mesmo assim ― prosseguiu ― tudo estaráacabado dentro de dois dias, não é?

Apesar de que, como lhe disse da última vezem que nos encontramos, eu sintomuitíssimo por isso. Bem, aquilo que tiverque ter sido terá sido.

Arthur tentou falar, mas desistiu da lutadesigual. Cutucou Ford novamente.

― Achei que algo terrível houvesse aconte-cido ― disse Ford ― mas era apenas o finalda partida. Temos que sair. Ah, oi, Slartibart-fast, o que você está fazendo por aqui?

― Apenas dando uma volta, você sabe ―disse o velho, seriamente.

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― Aquela nave é sua? Você poderia nos daruma carona até algum lugar?

― Paciência, paciência ― retrucou o velho.

― Tudo bem ― disse Ford. ― É só porqueeste planeta será demolido em pouco tempo.

― Eu sei ― respondeu Slartibartfast.

― Então, pois é, eu só queria que isto ficasseclaro ― disse Ford.

― Está claro.

― E se você acha que realmente é uma boaidéia, a essa altura, ficar perambulando porum campo de críquete...

― Acho.

― A nave é sua, claro.

― De fato.

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― Suponho que sim ― disse Ford, depoisvirou-se bruscamente.

― Alô, Slartibartfast ― disse Arthur,finalmente.

― Alô, terráqueo ― respondeu Slartibartfast.

― Afinal ― disse Ford ― só se morre umavez.

O velho ignorou o último comentário e olhouintensamente para o campo, com olhos quepareciam espelhar sentimentos semqualquer relação com o que estava aconte-cendo lá. O que estava acontecendo lá eraque a multidão se reunira num grande cír-culo em torno do centro do campo. O queSlartibartfast estava vendo era algo que sóele sabia.

Ford estava cantarolando algo. Era apenasuma nota, repetida em intervalos regulares.

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Ele queria que alguém perguntasse o que es-tava cantarolando, mas ninguém perguntou.Se alguém tivesse perguntado, teria respon-dido que estava repetindo várias vezes o iní-cio de uma canção de Noel Coward chamadaMad About the Boy (Louco pelo garoto].

Alguém diria, então, que estava cantandoapenas uma nota, e ele responderia que, pormotivos que lhe pareciam óbvios, estavaomitindo a parte do "about the boy". Ficoumuito chateado, já que ninguém lhe pergun-tou nada disso.

― É só que ― acabou dizendo, irritado ―, senão sairmos logo daqui, podemos ficarpresos naquela confusão de novo. E nada medeprime mais do que ver um planeta sendodestruído. Com a exceção, talvez, de estar noplaneta quando isso acontece. Ou ―

acrescentou, em voz baixa ― assistir a parti-das de críquete.

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― Paciência ― repetiu Slartibartfast. ―Grandes coisas irão acontecer.

― Foi exatamente o que você disse da últimavez ― disse Arthur.

― E aconteceram coisas ― disseSlartibartfast.

― É verdade ― admitiu Arthur.

Ainda assim, aparentemente tudo o que es-tava acontecendo era uma cerimônia.

Tinha sido especialmente preparada para aTV, em detrimento dos espectadores, e tudoo que podiam perceber de onde estavam erao que ouviam em um rádio próximo.

Ford estava agressivamente desinteressado.Ele se aborreceu quando explicaram que asCinzas seriam entregues ao capitão do timeda Inglaterra, se enfureceu quando disseram

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que as Cinzas estavam sendo entreguesporque era a enésima vez que a Inglaterraganhava, rosnou de irritação ao saber queeram os restos de uma trave de críquete equando, além disso tudo, lhe Pediram paralidar com o fato de que a trave em questãohavia sido queimada em Melbourne, na Aus-trália, em 1882, para simbolizar a "morte docríquete inglês", virou-se para Slartibartfast,inspirou profundamente, mas não pôde dizernada porque o velho não estava mais lá. Eleseguia rapidamente em direção ao centro docampo com uma forte determinação em seuandar, e seus cabelos, sua barba e sua túnicaesvoaçavam atrás dele, o que fazia com quese parecesse muito com Moisés, não fossepelo fato de que o Monte Sinai em geral érepresentado como um imponente monte fu-megante e não como um gramado bemaparado.

― Ele disse para nos encontrarmos na nave― disse Arthur.

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― Por Zárquon, o que diabos este velho toloestá fazendo? ― gritou Ford.

― Está indo nos encontrar em sua nave den-tro de dois minutos ― disse Arthur, com umacara que indicava total ausência depensamentos. Começaram a andar nadireção da nave. Estranhos sons chegavamaté eles. Tentaram não ouvi-los, mas não po-diam deixar de notar que Slartibartfast es-tava exigindo, com veemência, que a urna deprata contendo as Cinzas lhe fosse entregue,posto que era, disse ele, "de vital importânciapara a segurança presente, passada e futurada Galáxia". Era isso que estava causando osrisos histéricos.

Resolveram ignorar o assunto.

Não puderam, contudo, ignorar o queaconteceu em seguida. Com um barulho sim-ilar a 100 mil pessoas dizendo "uop", umaespaçonave branca metálica pareceu se

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materializar do nada diretamente sobre ocampo de críquete e lá ficou parada, com umar infinitamente ameaçador e um levezumbido.

Por algum tempo, não fez nada, como sedesejasse que as pessoas continuassem comseus afazeres e não se preocupassem com ofato de ela ficar suspensa no ar.

Depois fez algo muito extraordinário. Ou,mais precisamente, ela se abriu e deixou quecoisas muito extraordinárias saíssem dela, 11coisas muito extraordinárias.

Eram robôs brancos.

O que havia de mais extraordinário a re-speito deles era que pareciam estar vestidospara aquele evento. Não apenas eram bran-cos, mas além disso carregavam coisas quepareciam ser bastões de críquete, e nãoapenas isso, mas também carregavam o que

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pareciam ser bolas de críquete, e não apenasisso, mas também usavam joelheiras brancasna parte inferior de suas pernas. As joelheir-as eram extraordinárias, porque continhamjatos que permitiam a esses robôs curi-osamente civilizados descer voando de suanave suspensa sobre o campo e começar amatar pessoas, que foi exatamente o que elesfizeram.

― Olhe ― disse Arthur ―, parece que estáacontecendo alguma coisa.

― Vá para a nave ― gritou Ford. ― Nãoquero saber, não quero ver, não quero ouvir― gritou enquanto corria. ― Este não é meuplaneta, não escolhi estar aqui, não quero meenvolver, só quero que me tirem daqui e melevem para uma festa onde tenha pessoascomo eu!

Fumaça e chamas subiam do campo.

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― Nossa, parece que a brigada sobrenaturalresolveu aparecer por aqui hoje com forçatotal... ― um rádio gargarejou alegrementepara si mesmo.

― Eu preciso ― gritou Ford, a fim de esclare-cer suas observações anteriores ― é de umdrinque bem forte e uma galera legal. ―Continuou correndo, parando apenas umbreve instante para puxar Arthur pelo braço.Arthur havia retomado seu papel habitualdurante crises, que era o de ficar parado,com a boca aberta, deixando-se levar peloseventos.

― Estão jogando críquete ― murmurou Ar-thur, cambaleando atrás de Ford. ― Juro queestão jogando críquete. Não sei por que, masé o que estão fazendo. Não estão apenasmatando as Pessoas, estão debochando delas― gritou. ― Ford, estão debochando de nos!

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Teria sido difícil não acreditar nisso semconhecer muito mais História Galáctica doque os poucos pedaços que Arthur havia con-seguido pescar em suas viagens. As violentase fantasmagóricas formas que se moviam naespessa nuvem de fumaça pareciam estarrealizando uma série de paródias peculiaresde movimentos com os bastões, com a difer-ença que cada uma das bolas que rebatiamcom seus bastões explodia ao tocar em algo.A primeira delas alterou a reação inicial deArthur, que tinha pensado que aquilo poder-ia ser um mero golpe publicitário dos fabric-antes australianos de margarina.

Então, tão repentinamente quanto haviacomeçado, acabou-se. Os 11 robôs brancossubiram em meio à nuvem de fumaça emuma formação cerrada e entraram no interi-or de sua nave branca flutuante que, com oruído de centenas de milhares de pessoasdizendo

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"uop", imediatamente desapareceu no ar, damesma forma como havia feito "uop"

anteriormente.

Durante um instante houve um terrível silên-cio de perplexidade e, em seguida, a figurapálida de Slartibartfast surgiu em meio àfumaça, parecendo-se ainda mais comMoisés porque, apesar da persistente ausên-cia do monte, ao menos agora ele estavacaminhando através de um imponente e fu-megante campo de grama bem aparada.

Ele olhou em volta, meio perdido, até vis-lumbrar Arthur e Ford, que estavam abrindocaminho em meio à multidão apavorada que,nesse momento, estava ocupada correndoem pânico na direção oposta. A multidão es-tava claramente pensando consigo mesmasobre quão estranho aquele dia estava sendo,sem saber de fato em que direção deveria

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seguir, se é que deveria seguir em algumadireção.

Slartibartfast estava gesticulando desespera-damente para Ford e Arthur, gritando algo,conforme os três aos poucos convergiam nadireção de sua nave, ainda estacionada atrásdos outdoors, ignorada pela multidão quecorria desembestada ao redor dela e queprovavelmente tinha muitos problemaspróprios com os quais lidar.

― Eles grabaram solfaras finzasl ― gritouSlartibartfast, com sua voz fina e trêmula.

O que ele disse? ― perguntou Ford, arfando,enquanto abria caminho à sua frente.

Arthur balançou a cabeça.

― Eles... alguma coisa ― respondeu.

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― Eles mesaram solfaras finzas! ― gritouSlartibartfast novamente.

Ford e Arthur trocaram olhares espantados.

― Parece ser algo importante ― disse Arthur.Parou e gritou:

― O quê?

― Eles grabaram solfaras finzas! ― gritouSlartibartfast, gesticulando para eles.

― Ele está dizendo ― disse Arthur ― quelevaram as Cinzas. Pelo menos é o que acho.― Continuaram correndo.

― As...? ― disse Ford.

― Cinzas ― completou Arthur. ― Os restosqueimados de uma trave de críquete.

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É um troféu. Isso... ― continuou, sem fôlego.― Aparentemente... é... o que eles... vierampegar.

― Balançou a cabeça levemente, como setentasse fazer com que seu cérebro se fixassena base do crânio.

― Que coisa estranha para nos dizer ― retru-cou Ford.

― Que coisa estranha para alguém levar.

― Que nave estranha.

Chegaram à nave. A segunda coisa estranhaa respeito da nave era ver o campo de Prob-lema de Outra Pessoa em ação. Agora po-diam ver nitidamente a nave simplesmenteporque sabiam que estava lá. Era óbvio, con-tudo, que ninguém mais a via. Não porqueestivesse de fato invisível ou algo igualmentehiperimpossível. A tecnologia necessária

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para tornar algo invisível é tão infinitamentecomplexa que, em um bilhão de casos, é 999

bilhões, 999 milhões, 999 mil, 999 vezesmais simples e mais eficaz remover a coisa eesquecer o assunto. Uma vez, o ultrafamosomago-cientista Effrafax de Wug apostou suavida que, em um ano, seria capaz de tornar agrande megalomontanha Magramal com-pletamente invisível.

Após passar a maior parte do ano futucandocom imensas Luxoválvulas e Refratonulific-adores e Espectrodefletrônicos, ele percebeu,nove horas antes do prazo final, que não iaconseguir.

Então, ele e seus amigos, e os amigos de seusamigos, e os amigos dos amigos de seus ami-gos, e os amigos dos amigos dos amigos deseus amigos, além de alguns outros que erammenos amigos mas que por acaso tinhamuma grande empresa de transportes

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estelares, se lançaram naquela que é hojeamplamente reconhecida como a mais duranoite de trabalho de toda a história. Comoresultado, no dia seguinte Magramal não eramais visível. Effrafax perdeu a aposta ― etambém a vida ― apenas porque um juizpedante notou que: (a) ao andar pela áreaonde Magramal deveria estar, ele nãotropeçou nem quebrou o nariz em nada e (b)havia uma nova lua bastante suspeita no céu.

O campo de Problema de Outra Pessoa émuito mais simples e mais eficaz.

Melhor ainda, pode funcionar durante maisde 100 anos usando uma única bateria delanterna. Isso porque ele conta com atendência natural das pessoas de não veremnada que não querem, que não estão esper-ando ou que não podem explicar. Se Effrafaxtivesse pintado a montanha de rosa e geradoum simples e econômico campo de Problemade Outra Pessoa sobre ela, então as pessoas

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teriam passado por ela, teriam andado emtorno dela ou mesmo por cima dela e jamaisteriam notado que a montanha estava lá. Eraexatamente isso que estava acontecendo coma nave de Slartibartfast. Ela não era rosa,mas, se fosse, teria sido o menor de seusproblemas visuais, e as pessoascontinuariam ignorando-a.

O mais extraordinário a respeito dessa naveé que ela se parecia apenas em parte comuma espaçonave, com barbatanas estabiliz-adoras, foguetes propulsores, escotilhas deemergência, etc., e se parecia muito maiscom um pequeno bistrô italiano de pernaspara o ar.

Ford e Arthur olharam para ela maravilha-dos e profundamente ofendidos.

― É, eu sei ― disse Slartibartfast,alcançando-os naquele momento, ofegante eagitado ―, mas há um motivo. Venham,

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temos que partir. O antigo pesadelo re-tornou. O

Fim está diante de nós. Temos que irimediatamente.

― Espero que seja para algum lugar ensol-arado ― disse Ford. Ford e Arthur entraramna nave com Slartibartfast. Ficaram tão per-plexos com o que viram lá dentro que nemperceberam o que aconteceu em seguida dolado de fora.

Uma terceira nave, desta vez comprida eprateada, desceu sobre o gramado, silen-ciosamente, suas longas e esguias hastesdesdobrando-se em um suave baletecnológico.

Pousou com suavidade e dela saiu umapequena rampa. Uma figura alta e cinza-es-verdeada saiu lá de dentro, andando rapida-mente, e aproximou-se do pequeno grupo de

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pessoas que estavam no centro do campocuidando dos feridos do recente e bizarromassacre. Foi afastando as pessoas com umaautoridade calma e controlada, até chegar aum homem que estava deitado em meio auma poça de sangue, em seus últimos es-tertores, claramente além das possibilidadesda medicina terráquea. A figura ajoelhou-sepacificamente ao seu lado.

― Arthur Philip Deodat? ― perguntou.

O homem, com os olhos tomados por umaterrível confusão, assentiu debilmente.

― Você é um mísero paspalhão imprestável― sussurrou a criatura. ― Achei que deveriasaber disso antes de morrer.

Capítulo 5

Fatos importantes extraídos da HistóriaGaláctica, número dois: (Reproduzido do

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Livro de História Galáctica Popular doSiderial Daily Mentioner's.) Desde que estaGaláxia surgiu, vastas civilizações crescerame desapareceram, cresceram e desapare-ceram, cresceram e desapareceram tantasvezes que é muito tentador pensar que a vidana Galáxia deve ser (a) similar a um enjôomarítimo, espacial, temporal, histórico ousimilar e (b) imbecil.

Capítulo 6

Pareceu a Arthur que todo o céu subitamentese afastara para lhes dar passagem.

Pareceu-lhe que os átomos de seu cérebro eos átomos do cosmos estavam fluindo uns at-ravés dos outros.

Pareceu-lhe que estava sendo soprado pelovento do Universo e que o vento era ele.

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Pareceu-lhe que era um dos pensamentos doUniverso e que o Universo era um de seuspensamentos.

Pareceu a quem estava no Lord's CricketGround que outro restaurante da regiãonorte de Londres havia surgido e sumido,como freqüentemente ocorria, e que isso eraum Problema de Outra Pessoa.

― O que aconteceu? ― murmurou Arthur,muito admirado.

― Decolamos ― disse Slartibartfast.

Arthur ficou sentado, imóvel e comovido, noassento de vôo. Não sabia ao certo se haviaficado enjoado ou religioso.

― Bela máquina ― disse Ford, numa tent-ativa malsucedida de disfarçar quão impres-sionado havia ficado com o que a nave de

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Slartibartfast acabara de fazer ―, pena que adecoração seja tão ruim.

O velho não respondeu imediatamente.Estava olhando para um grupo de instru-mentos com a cara de quem está tentandoconverter graus Fahrenheit para Celsius decabeça enquanto sua casa está pegando fogo.Então sua face se descontraiu e ele olhou poralguns instantes a enorme tela panorâmica àsua frente, que mostrava uma complexidadeespantosa de estrelas fluindo como fios deprata ao redor deles.

Seus lábios se moveram como se fosse dizeralgo. Subitamente, olhou, tenso, para seusinstrumentos, mas depois franziu a testa esua expressão se fixou.

Olhou de volta para a tela. Mediu seu própriopulso. Franziu ainda mais a testa por algunsinstantes, depois relaxou.

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― É um erro tentar entender as máquinas ―disse ele ―, apenas me deixam mais preocu-pado. O que você disse?

― A decoração ― repetiu Ford. ― Élamentável.

― No fundo do coração fundamental damente e do Universo ― disse Slartibartfast

― há uma razão.

Ford olhou em volta, curioso. Ele realmenteachava aquilo uma visão otimista das coisas.

O interior da cabine de comando era verde-escuro, vermelho-escuro, marrom-escuro,entulhado de coisas e com uma iluminaçãosuave.

Inexplicavelmente, a semelhança com umbistrô italiano não havia terminado ao cruz-arem a escotilha. Pequenos focos de luz

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delineavam vasos de plantas, azulejos vitri-ficados e uma multiplicidade de pequenosobjetos metálicos.

Medonhas garrafas envolvidas em ráfia seescondiam nas sombras.

Os instrumentos nos quais Slartibartfast est-ivera concentrado pareciam ter sido monta-dos no fundo de garrafas enfiadas emconcreto.

Ford estendeu a mão e tocou o concreto.

Era falso. Plástico. Garrafas falsas enfiadasem concreto falso.

"O fundo do coração fundamental da mentee do Universo que se dane", pensou consigomesmo, "isso aqui é um lixo." Por outro lado,não podia negar que a nave havia se movidode uma forma que fazia a Coração de Ouroparecer um carrinho de bebê elétrico.

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Levantou-se de seu assento. Espanou aroupa. Olhou para Arthur, que estava can-tarolando baixinho em um canto. Olhou paraa tela e não reconheceu nada. Olhou paraSlartibartfast.

― Quanto já viajamos?

― Cerca de... ― respondeu Slartibartfast ―cerca de dois terços do caminho através dodisco galáctico, eu diria, aproximadamente.Sim, cerca de dois terços, acho.

― É tão estranho ― disse Arthur, baixinho ―que, quanto mais longe e mais rápidoviajamos pelo Universo, mais a nossaposição dentro dele pareça ser absoluta-mente imaterial, e isso nos preencha com umprofundo, ou melhor, nos esvazie de um...

― Sim, é muito estranho ― disse Ford. ―Para onde estamos indo?

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― Estamos indo ― respondeu Slartibartfast― confrontar um antigo pesadelo doUniverso.

― E onde você pretende nos deixar??

― Vou precisar da ajuda de vocês.

― Difícil. Olhe, há um lugar aonde você podenos levar para nos divertirmos ―

ainda estou pensando onde, exatamente ― edaí podemos ficar bêbados e ouvir umamúsica bem diabólica. Peraí, vou achar algo.― Pegou sua cópia do Guia do Mochileirodas Galáxias e passou os olhos pelo índice,concentrando-se nas partes que tinham a vercom sexo, drogas e rock'n'roll.

― Uma maldição se levantou das névoas dotempo ― disse Slartibartfast.

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― É, creio que sim ― disse Ford. ― Ei ―disse, selecionando por acaso uma entradaem particular ―, Eccentrica Gallumbits, vocêjá esteve com ela? A prostituta de três seiosde Eroticon 6. Algumas pessoas dizem quesuas zonas erógenas começam a uns seisquilômetros de seu corpo. Pessoalmente, dis-cordo, acho que são oito.

― Uma maldição ― disse Slartibartfast ―que irá mergulhar a Galáxia em fogo edestruição e possivelmente levar o Universoa um fim prematuro. Não estou exagerando―

acrescentou.

― Parece mesmo que a barra vai pesar ―disse Ford ―, então com um pouco de sorte,vou estar suficientemente bêbado para nãonotar. Aqui ― disse, enfiando o dedo na telado Guia ― esse seria um lugar realmentedevasso para irmos, e acho que é para onde

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devemos ir. O que você me diz, Arthur? Parede cantar mantras e preste atenção. Você es-tá perdendo coisas importantes.

Arthur levantou-se do sofá e sacudiu acabeça.

― Aonde estamos indo? ― disse.

― Confrontar um antigo pesa...

― Fecha a matraca ― disse Ford. ― Arthur,vamos sair por aí, pela Galáxia, para nos di-vertir. Você consegue conviver com isso?

― Por que Slartibartfast está tão ansioso? ―perguntou Arthur.

― Não é nada ― disse Ford.

― O Fim de Tudo ― disse Slartibartfast. ―Venham ― acrescentou, com um tom subita-mente autoritário ―, há muitas coisas quepreciso lhes contar e lhes mostrar.

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Andou em direção a uma escada em espiral,feita de ferro e pintada de verde, incom-preensivelmente colocada no meio da cabinede comando, e começou a subir. Arthur fran-ziu a testa e foi atrás dele.

Ford jogou o Guia de volta em sua mochila,irritado.

― Meu médico diz que tenho uma glândulade senso de dever malformada, além de umadeficiência natural em fibras morais ― grun-hiu para si mesmo ― e portanto estou dis-pensado de salvar Universos.

Apesar disso, subiu as escadas atrás deles. Oque encontraram no andar de cima erasimplesmente obtuso, ou pelo menos assimparecia, e Ford sacudiu a cabeça, cobriu orosto com as mãos e esbarrou em um vaso deplantas, jogando-o contra a parede.

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― Esta é a área central de computação ―disse Slartibartfast, impassível ―, onde sãorealizados todos os cálculos que afetam anave de alguma forma. É, eu sei com o queisso se parece, mas na verdade, é um com-plexo mapa topográfico em quatro di-mensões de uma série de funções matemátic-as altamente complexas.

― Parece mais uma piada ― disse Arthur.

― Eu sei com o que se parece ― disse Slart-ibartfast, entrando. Exatamente quando eleentrou, Arthur teve uma súbita e vagasensação do que aquilo podia significar, masse recusou a acreditar nela. "O Universo nãopodia funcionar daquela forma, não podia",pensou. "Aquilo", pensou consigo mesmo,"seria tão absurdo quanto... quanto..." E de-cidiu terminar aí sua linha de raciocínio. Emsua maioria, as coisas realmente absurdasnas quais podia pensar já haviam acontecido.

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Aquela era uma delas.

Era uma grande gaiola de vidro, ou umacaixa ― na verdade, um quarto.

Dentro havia uma mesa bem longa. Em voltada mesa estavam espalhadas cerca de 12 ca-deiras de madeira, do tipo austríacas. Sobrea mesa havia uma toalha quadriculada ver-melha e branca, suja, com algumas marcasde cigarro, cada uma das quais, presumivel-mente, estava em um local matematicamentedeterminado com grande precisão.

Sobre essa toalha estavam colocados algunspratos italianos comidos pela metade, cerca-dos por pedaços de pão comidos pela metadee copos de vinho bebidos pela metade, todosincessantemente manuseados por robôs.

Tudo ali era artificial. Os clientes robôs eramatendidos por um garçom robô, um som-melier robô e um maître robô. Os Móveis

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eram artificiais, a toalha de mesa era artifi-cial e cada um dos pedaços de comida eraclaramente capaz de exibir todas as caracter-ísticas mecânicas de, digamos, um pollo sor-preso, sem de fato ser um.

E todos participavam juntos de uma pequenadança: uma coreografia complexa en-volvendo a manipulação de menus talões depedidos, carteiras, talões de cheques, cartõesde crédito, relógios, lápis e guardanapos depapel, que parecia estar o tempo todo beir-ando o limite da violência, sem nunca chegara lugar algum.

Slartibartfast entrou apressado e depoispareceu trocar amenidades tranqüilamentecom o maître, enquanto um dos clientesrobôs, um auto-Rory, escorregou lentamentepara baixo da mesa, enquanto mencionavapara um rapaz o que pretendia fazer comuma garota.

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Slartibartfast sentou-se na cadeira queacabara de vagar e deu uma olhada atenta nomenu. O ritmo da coreografia pareceuacelerar-se imperceptivelmente.

Surgiam discussões e as pessoas tentavamprovar coisas usando guardanapos.

Gesticulavam ferozmente umas para as out-ras e tentavam examinar os pedaços de gal-inha uns dos outros. A mão do garçomcomeçou a mover-se sobre o talão de pedidosmuito mais rápido do que qualquer mão hu-mana seria capaz, e depois mais rápido doque um olho humano poderia acompanhar.O ritmo se acelerou.

Logo uma extraordinária e insistente polideztomou conta do grupo e, segundos depois,pareciam ter atingido um consenso. Umanova vibração espalhou-se pela nave.

Slartibartfast saiu da sala de vidro.

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― Bistromática ― disse. ― O maior podercomputacional conhecido nos domínios daparaciência. Venham comigo até a Sala deIlusões Informacionais.

Slartibartfast passou e eles o seguiram,perplexos.

Capítulo 7

O Propulsor Bistromático é um novo e mara-vilhoso método de cruzar vastas distânciasinterestelares sem todo o perigo envolvidoem ficar mexendo com Fatores deImprobabilidade.

A Bistromática em si é apenas uma nova erevolucionária forma de entender o com-portamento dos números. Assim como Ein-stein observou que o tempo não era absoluto,mas algo que dependia do movimento de umobservador no espaço, e que o espaço não eraabsoluto, mas dependia do movimento do

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observador no tempo, hoje sabemos que osnúmeros não são absolutos, mas dependemdo movimento do observador nosrestaurantes.

O primeiro número não-absoluto é o númerode pessoas para quem a mesa está reservada.Ele irá variar no decorrer das primeiras trêsligações para o restaurante e depois não ap-resentará nenhuma relação aparente com onúmero de pessoas que realmente estarãopresentes, ou com o número de pessoas queirão se juntar a elas depois do show, partida,festa, filme, ou ainda com o número de pess-oas que irão embora ao ver quem maisapareceu por lá.

O segundo número não-absoluto é a horareal de chegada. Este numero é hoje con-hecido como um dos mais bizarros conceitosmatemáticos, uma reciproversexclusão, umnúmero cuja existência só pode ser definidacomo sendo qualquer outra coisa diferente

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de si mesmo. Em outras palavras, a hora realde chegada é o único momento no tempo noqual é impossível que qualquer participantedo grupo chegue de fato. A recíproversex-clusão tem, atualmente, um papel vital emdiversos campos da matemática, incluindo aestatística e contabilidade, além de fazerparte das equações básicas usadas na engen-haria dos campos de Problema de OutraPessoa.

O terceiro e mais misterioso não-absolut-ismo de todos diz respeito à relação entre onúmero de itens na conta, o valor de cadaitem e o número de pessoas na mesa, assimcomo quanto cada uma delas está disposta apagar. (O número de pessoas que trouxeramalgum dinheiro é apenas um subfenômenodesse campo.)

As assombrosas discrepâncias que cos-tumavam ocorrer nesse ponto passaramdécadas sem ser estudadas simplesmente

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porque ninguém as levou a sério. No pas-sado, as pessoas diziam que essas coisaseram causadas pela educação, falta de edu-cação, avareza, desejo de aparecer, emotivid-ade ou simplesmente porque já era tarde, etudo era esquecido na manhã seguinte.

Nunca foram feitos testes em laboratório, éclaro, porque nada disso acontecia nos labor-atórios ― pelo menos não em laboratórios deboa reputação.

Foi apenas com o surgimento dos computa-dores de bolso que a espantosa verdade fi-nalmente se tornou evidente. Era a seguinte:Os números escritos em contas de restaur-antes dentro dos confins de restaurantes nãoseguem as mesmas leis que os números es-critos em qualquer outro tipo de papel emoutros lugares do Universo.

Esse fato singelo causou enorme alvoroço nomundo científico. Foi uma revolução

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completa. Realizaram-se tantas conferênciasmatemáticas em bons restaurantes que asmentes mais brilhantes de toda uma geraçãomorreram de obesidade e doenças cardíacas,retardando os progressos da matemática emalguns anos.

Aos poucos, contudo, as implicações dessaidéia começaram a ser entendidas. No inícioa coisa toda era muito radical, muitodoidona, o tipo de coisa que faria uma pess-oa normal dizer: "Sim, claro, exatamente oque eu teria dito." Então inventaram algu-mas frases como "Frameworks de Subjetivid-ade Interativa" e, a partir daí, as pessoas re-laxaram e puderam levar adiante a teoria.

Os pequenos grupos de monges quecomeçaram a se reunir nos principais insti-tutos de pesquisa entoando estranhos cânti-cos dizendo que o Universo era apenas umproduto de sua própria imaginação e

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acabaram recebendo verbas para pesquisateatral e foram embora.

Capítulo 8

Nas viagens espaciais, vocês sabem ― disseSlartibartfast, enquanto mexia em alguns in-strumentos na Sala de Ilusões Informacion-ais ―, nas viagens espaciais... Parou e deuuma olhada em volta.

A Sala de Ilusões Informacionais era um alí-vio para os olhos após as monstruosidadesda área central de computação. Não havianada lá. Nenhuma informação, nenhumailusão ― apenas eles, as paredes brancas e al-guns pequenos instrumentos que deveriamaparentemente ser ligados em algo que Slart-ibartfast não conseguia encontrar.

― Sim? ― perguntou Arthur. Ele captou osentido de urgência de Slartibartfast, masnão tinha idéia do que fazer com ele.

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― Sim o quê? ― perguntou o velho.

― O que você estava dizendo? Slartibartfastencarou-o.

― Os números ― disse então ― são terríveis.― Continuou procurando algo.

Arthur concordou, com um ar de sabedoria.Depois de algum tempo percebeu que aquilonão o levaria a lugar algum e decidiu quedeveria dizer "o quê?" novamente.

― Nas viagens espaciais ― repetiu Slartibart-fast ― todos os números são terríveis.

Arthur assentiu novamente, olhando emvolta para ver se Ford o ajudava, mas Fordestava praticando a arte de ficar ranzinza e sesaindo muito bem nisso.

― Estava apenas tentando evitar que você sedesse ao trabalho de me perguntar por que

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todos os cálculos da nave estavam sendo fei-tos no talão de um garçom ― disse Slart-ibartfast finalmente, com um suspiro. Arthurnão entendeu.

― Por que ― perguntou ele ― todos os cálcu-los da nave estavam sendo feitos no talãode...

Parou.

Slartibartfast retrucou:

― Porque nas viagens espaciais todos osnúmeros são terríveis. Percebeu que não es-tava conseguindo se fazer entender.

― Preste atenção ― disse. ― No talonário deum garçom, os números mudam o tempo to-do. Você já deve ter percebido.

― Bem...

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― No talonário de um garçom ― continuouSlartibartfast ―, realidade e irrealidadecolidem em um nível tão fundamental que asduas se fundem e qualquer coisa se tornapossível, dentro de certos parâmetros.

― Quais?

― E impossível dizer ― disse Slartibartfast.― Este é um deles. Estranho, mas ver-dadeiro. Pelo menos eu acho que é estranho― acrescentou ― e me garantiram que éverdadeiro.

Ele finalmente localizou na parede o orifícioque estava Procurando e inseriu o instru-mento que segurava.

― Não tenham medo ― disse, e subitamenteele mesmo pareceu se assustar com o instru-mento, pulando para trás ―, é que...

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Não ouviram o que ele disse porque naquelemomento a nave piscou e sumiu ao redordeles e uma astronave de combate dotamanho de uma cidade industrial surgiucortando a na direção deles, disparando seuslasers estelares.

Capítulo 9

Outro mundo, outro dia, outro amanhecer. Oprimeiro tênue raio de luz matinal apareceusem alarde.

Muitos bilhões de trilhões de toneladas denúcleos de hidrogênio superaquecidos ex-plodindo se levantaram aos poucos sobre ohorizonte e conseguiram parecer pequenos,frios e ligeiramente úmidos.

Há um momento em cada amanhecer noqual a luz parece flutuar e tudo parece mági-co. A criação prende a respiração.

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O momento passou sem incidentes, comohabitualmente ocorre em SquornshellousZeta.

A névoa aderia à superfície dos pântanos,acinzentando as nissáceas e borrando os al-tos juncos. Pairava estática como uma respir-ação presa.

Nada se movia.

Silêncio.

O sol lutou sem convicção com a névoa, tent-ando gerar um pouco de calor aqui, irradiarum pouco de luz ali, mas claramente aqueledia seria outro penoso percurso através docéu.

Nada se movia.

Novamente silêncio.

Nada se movia.

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Silêncio.

Fm Squornshellous Zeta, freqüentemente di-as inteiros transcorriam assim, e, de fato,parecia que seria mais um deles. Quatorzehoras mais tarde o sol afundou no horizonteoposto desanimado, sentindo que todo o seuesforço fora em vão. Algumas horas depoisreapareceu, ajeitou os ombros e começou agalgar o céu novamente.

Desta vez, contudo, algo estava acontecendo.Um colchão havia acabado de encontrar umrobô. ― Oi, robô ― disse o colchão.

― Bah ― respondeu o robô, continuandocom o que estava fazendo, que era se ar-rastar, penosa e vagarosamente, em um cír-culo muito pequeno.

― Feliz? ― perguntou o colchão.

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O robô parou e lançou um olhar interrogat-ivo para o colchão. Era claramente um col-chão muito idiota. O colchão retornou um ol-har arregalado.

Depois de calcular, com precisão de dez cas-as decimais, a duração exata da pausa quemais provavelmente transmitiria um totaldesprezo por todas as criaturas colchonétic-as, o robô continuou a andar em pequenoscírculos.

― Poderíamos conversar ― disse o colchão.― Você gostaria de conversar?

Era um colchão grande e provavelmente dealta qualidade. Pouquíssimas coisas são fab-ricadas hoje em dia, já que, em um Universoinfinitamente grande ― tal como, por exem-plo, aquele em que vivemos ―, a maioria dascoisas que se possa imaginar e muitas outrascoisas, que no geral é preferível não imagin-ar, crescem em algum lugar.

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(Recentemente foi descoberta uma florestaonde muitas das árvores dão frutos que sãochaves de catraca. O ciclo de vida do fruto dechaves de catraca é bem interessante. Umavez colhido, é necessário guardá-lo dentro deuma gaveta escura e poeirenta na qual possapermanecer esquecido durante anos. Então,uma noite ele eclode, livrando-se de suacasca externa, que se desfaz em pó, e res-surge como um pequeno objeto de metal im-possível de ser identificado, com roscas nasduas pontas e uma espécie de sulco e umaespécie de buraco para parafusos. Quandoencontrado, esse objeto será jogado fora.

Ninguém sabe o que o fruto tem a ganharcom isso. A Natureza, em sua infinitasabedoria possivelmente está trabalhando noassunto.)

Ninguém sabe tampouco o que os colchõestêm a ganhar com suas vidas.

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São criaturas grandes, amigáveis e cheias demolas que levam vidas tranqüilas e pacatasnos pântanos de Squornshellous Zeta. Mui-tos são capturados, cruelmente mortos, seca-dos, despachados e usados para as pessoasdormirem. Nenhum deles parece se importarcom isso e todos se chamam Zem.

― Não ― respondeu Marvin.

― Meu nome ― prosseguiu o colchão ― éZem. Poderíamos falar um pouco sobre otempo, talvez.

Marvin fez outra pausa em sua penosamarcha circular.

― O orvalho ― observou ― realmente caiucom um ruído particularmente detestável es-ta manhã.

Continuou a andar como se aquele ímpetocomunicativo o tivesse inspirado a atingir

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revigorantes patamares de melancolia edesânimo. Ele arrastou-se obstinadamente.Se tivesse dentes, poderia rangê-los naquelemomento. Não tinha. Não podia. O simplesato de se arrastar já dizia tudo.

O colchão flopolou em volta. Só colchõesvivos em pântanos são capazes de fazer isso,o que explica por que a palavra não é usadamais freqüentemente.

Ele flopolou de forma simpática, movendouma boa quantidade de água ao fazê-lo.

Soprou algumas bolhas na água por diversão.Suas listras azuis e brancas brilharam rapi-damente em um raio de sol que, inesperada-mente, havia conseguido atravessar a névoa,fazendo com que a criatura se aquecesse porum instante.

Marvin arrastou-se.

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Você está pensando em alguma coisa, não é?― disse o colchão, flupidamente.

― Muito mais do que você seria capaz deimaginar ― disse Marvin, pesaroso.

― Minha capacidade para atividades mentaisde todos os tipos é tão ilimitada quanto a in-finita imensidão do próprio espaço. Exceto,claro, no que diz respeito à minha capacid-ade de ser feliz.

Tunc, tunc, prosseguiu ele.

― Minha capacidade para ser feliz ― acres-centou ― poderia ser colocada numa caixade fósforos, sem tirar os fósforos antes.

O colchão gotejamingou. Este é o ruído feitopor um colchão vivo em seu habitat natural,o pântano, quando profundamente tocadopor uma história de tragédia pessoal. A pa-lavra também pode significar, de acordo com

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O Dicionário Maximegalon Ultracompleto deTodas as Línguas Desde Sempre, o ruídofeito pelo Lorde High Sanvalvwag de Hollopao descobrir que havia se esquecido doaniversário de sua mulher pelo segundo anoconsecutivo. Já que houve um único LordeHigh Sanvalvwag de Hollop e como elenunca se casou, a palavra só é usada com umsentido negativo ou especulativo, e tem cres-cido o número de pessoas que acreditam queo Dicionário Maximegalon não vale a frotade caminhões necessária para transportarsua edição microarmazenada. Mais curiosoainda é o fato de que o dicionário omite a pa-lavra "flupidamente", que significa apenas"de forma flúpida".

O colchão gotejamingou novamente.

― Posso sentir um profundo desalento emseus diodos – ele voluiu (para saber o signi-ficado de "voluir", compre uma cópia do Jar-gão dos Pântanos de Squornshellous em

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qualquer sebo ou, se preferir, compre o Di-cionário Maximegalon Ultracompleto, já quea Universidade de Maximegalon certamenteficaria feliz em se livrar dele e voltar a usarum enorme espaço de seu estacionamento) eisso me deixa triste. Você deveria ser maiscolchonesco.

Levamos vidas tranqüilas e pacatas nospântanos e nos contentamos em flopolar evoluir e observar a umidade com grande flu-pidez. Alguns de nós são mortos, mas, comotodos nos chamamos Zem então nuncasabemos quem foi e, assim, gotejamingamosmuito pouco. Por que você está andando emcírculos?

― Porque minha perna está com defeito ―respondeu Marvin seco.

― Me parece ― disse o colchão, penalizado― que é uma perna bem ruinzinha.

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― Você está certo ― disse Marvin. ― De fatoé.

― Vuum ― respondeu o colchão.

― Espero que sim ― disse Marvin ― e tam-bém espero que você ache muito engraçada aidéia de um robô com uma perna artificial.Você deveria contar isso quando encontrarseus amigos Zem e Zem mais tarde. Eles irãoachar graça, se os conheço bem, mas obvia-mente não os conheço, a não ser na exatamedida que conheço todas as formas de vidaorgânica, ou seja, muito mais do que eugostaria. Ah, mas a minha vida nada é senãouma caixa de engrenagens sem fim.

Ele continuou estompeando em torno de seupequeno círculo, em torno de sua fina perna,uma estaca de metal que se arrastava nalama, mas ainda assim parecia emperrada.

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― Mas por que você continua a andar em cír-culos? ― perguntou o colchão.

― Só para deixar isso bem claro ― disseMarvin, que continuou girando.

― Está claro, prezado amigo ― flurbulou ocolchão ―, está bem claro.

― Só por mais alguns milhões de anos ―disse Marvin ―, uns poucos milhões.

Depois vou tentar andar para trás. Para vari-ar um pouco, entende.

O colchão podia sentir, no mais profundo desuas molas, que o robô queria muito que lheperguntassem há quantos anos marchandodaquela forma fútil e infrutífera. Foi o queele fez, com outra flurbulação silenciosa.

― Há pouco tempo passei da marca de 1,5milhão de anos ― disse Marvin, aéreo.

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― Pergunte-me se em algum momento mesinto chateado, vamos, pergunte-me.

O colchão perguntou.

Marvin ignorou a pergunta, apenas se ar-rastou com mais determinação.

― Fiz um discurso uma vez ― disse ele, donada, e aparentemente sem qualquer con-exão com o assunto. ― Você talvez não en-tenda por que estou tocando neste assunto,mas é só porque minha mente funciona tãofenomenalmente rápido e sou, em uma es-timativa genérica, 30 bilhões de vezes maisinteligente que você. Deixe-me lhe dar umexemplo. Pense em um número, qualquernúmero.

― Ahn... cinco ― disse o colchão.

― Errado ― respondeu Marvin. ― Você en-tende agora?

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O colchão ficou muito impressionado porisso e percebeu que estava na presença deuma mente invulgar. Ele uilomeou ao longode todo o seu corpo, gerando pequenas on-dulações excitadas ao longo de sua poçacoberta por algas.

Glupou.

― Conte-me ― pediu, animado ― sobre o seudiscurso, eu adoraria ouvi-lo.

― Foi muito mal recebido ― disse Marvin ―,por uma série de motivos. Eu fiz esse dis-curso a cerca de um quilômetro e meionaquela direção ― acrescentou, fazendo umapausa numa tentativa de apontar que res-ultou num gesto estranho com seu braço quenão estava exatamente bem. O seu braço queestava melhor era o que estava deprimente-mente soldado a seu lado esquerdo.

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Estava apontando tão bem quanto podia, eobviamente queria deixar bem claro queaquilo era o melhor que podia fazer atravésda névoa, sobre os juncos, indicando umaparte do pântano que se parecia exatamentecom qualquer outra parte do pântano.

― Ali ― repetiu. ― Eu era uma espécie decelebridade na época.

O colchão foi tomado por grande excitação.Nunca tinha ouvido falar que alguém tivessefeito um discurso em Squornshellous Zeta,sobretudo não uma celebridade. Gotasd'água respingaram dele enquanto umtremor de excitação gluriou por suas costas.

Ele fez algo que os colchões muito raramentese dão ao trabalho de fazer.

Reunindo cada átomo de sua força, ele cur-vou seu corpo retangular, elevou-o no ar e omanteve tremendo por lá durante alguns

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segundos enquanto tentava olhar, através danévoa, sobre os juncos, na direção dopântano que havia sido indicada por Marvin,notando, sem nenhum desapontamento, queera exatamente igual a qualquer outra partedo pântano.

Foi esforço demais, e ele acabou flogando devolta em sua poça, encharcando Marvin comuma lama fedorenta, musgo e ervasdaninhas.

― Eu fui uma celebridade ― prosseguiu orobô em tom monocórdio ― durante umcurto período de tempo devido à minha mi-raculosa escapada (da qual muito me ress-into) de um destino quase tão bom quanto amorte no coração de um sol resplandecente.Você pode perceber, olhando para a minhacondição atual ― acrescentou ―, por quãopouco escapei.

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Fui salvo por um vendedor de ferro-velho,imagine só. Aqui estou, com um cérebro dotamanho de um... ah, deixa pra lá.

Arrastou-se novamente por mais algumtempo.

― Foi ele que me arrumou esta perna. Odi-osa, não é? Me vendeu para um ZoológicoMental. Eu era a estrela da exposição. Tinhaque ficar sentado em uma caixa e contar aminha história enquanto as pessoas me diz-iam para me animar e pensar de forma posit-iva. "Dê um sorriso, robozinho", gritavameles, "dê uma risada." Nessa hora eugeralmente explica-que, para fazer meu rostosorrir, levaria algumas horas em uma oficinacom um alicate, o que resolvia bem a situ-ação. ― O discurso ― insistiu o colchão. ―

Quero muito ouvir o discurso que você deuno pântano.

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― Uma ponte ia ser construída através dospântanos. Era uma hiperponte ciberestru-turada, com centenas de quilômetros de ex-tensão, para carregar carroças iônicas etransportes de cargas por cima do pântano.

― Uma ponte? ― inquirulou o colchão. ―Aqui no pântano?

― Sim, uma ponte ― confirmou Marvin ―,aqui no pântano. A idéia é que ela revital-izasse a economia do Sistema de Squornshel-lous. Dedicaram todos os recursos da eco-nomia do Sistema de Squornshellous paraconstruí-la. E me pediram para inaugurá-la.

Pobres tolos.

Uma chuva fina começou a cair através danévoa.

― Lá estava eu na plataforma. Por centenasde quilômetros à minha frente e centenas de

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quilômetros atrás de mim estendia-se aponte.

― Ela reluzia? ― perguntou o colchão,entusiasmado.

― Sim, reluzia.

― Atravessava as milhas majestosamente?

― Sim, atravessava as milhasmajestosamente.

― Alongava-se como um fio de prata até setornar invisível em meio à névoa?

― Sim ― disse Marvin. ― Você quer ou nãoouvir a história?

― Quero ouvir o seu discurso ― respondeu ocolchão.

― Eis o que eu disse. Disse: "Gostaria dedizer que é um grande prazer, uma enorme

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honra e um privilégio para mim inauguraresta ponte, mas não posso fazer isso porquetodos os meus circuitos de falsidade estãofora de ação. Eu odeio desprezo todos vocês.A partir deste momento, declaro esta miser-ável ciberestrutura aberta aos abusos inima-gináveis de todos aqueles que irãopetulantemente cruzá-la." Em seguida meconectei aos circuitos de abertura.

Marvin fez uma pausa enquanto se lembravada ocasião.

O colchão flureou e gluriou. Ele flopolou,glupou e uilomeou de uma forma particular-mente flúpida.

― Vuum ― vurfou por fim. ― E foi umaocasião magnífica?

― Razoavelmente magnífica. A ponte de1.500 quilômetros em toda a sua extensão,espontaneamente redobrou-se em sua

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cintilante travessia e submergiu, chorando,no lodo, levando todos junto com ela.

Houve uma triste e terrível pausa nesteponto da conversa, durante a qual a 100 milpessoas pareceram ter dito "uop" inespera-damente e um time de robôs brancos desceudo céu como sementes de dentes-de-leão es-voaçando pelo vento em formação militarcerrada.

Durante um curto e violento momento es-tavam todos lá, no pântano, arrancando aperna falsa de Marvin e, logo em seguida, es-tavam de volta em sua nave, que fez "fuop".

― Você entende o tipo de coisa que tenhoque aturar? ― disse Marvin para o colchãogoberingante.

Então, logo em seguida, os robôs voltarampara outro incidente violento e, desta vez,quando partiram, o colchão estava sozinho

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no pântano. Ele flopolou em volta, perplexo eassustado. Quase lurglou de medo. Sus-pendeu a si mesmo para ver por cima dosjuncos, mas não havia nada para ver a nãoser mais juncos.

Prestou atenção aos sons, mas o único somvindo com o vento era o já familiar ruído dealguns etimologistas semi-enlouquecidosgritando à distância, uns para os outros, at-ravés do lodo fedorento.

Capítulo 10

O corpo de Arthur Dent girou.

O Universo se estilhaçou em um milhão defragmentos reluzentes em volta dele e cadaum dos cacos girou silenciosamente pelovazio, refletindo em sua superfície prateadaum único e causticante holocausto de fogo edestruição.

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E então a escuridão por trás do Universo ex-plodiu, e cada pedaço de escuridão era a furi-osa fumaça do inferno.

E por trás da escuridão por trás do Universoirrompeu o vazio, e por trás do vazio por trásda escuridão por trás do Universo estil-haçado surgiu enfim a sombria figura de umhomem imenso proferindo imensas palavras.

― Essas, então ― disse a figura, sentada emuma cadeira imensamente confortável

―, foram as Guerras de Krikkit, a maior dev-astação que já tomou conta de nossa Galáxia.O

que vocês acabaram de vivenciar...

Slartibartfast passou flutuando egesticulando.

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― É só um documentário ― gritou. ― Essanão é a parte legal. Mil desculpas, estou pro-curando o botão de rewind...

― ...foi aquilo que bilhões de bilhões deinocentes...

― Em hipótese alguma ― gritou Slartibart-fast, flutuando para o outro lado e mexendofuriosamente na coisa que ele havia enfiadona parede da Sala de Ilusões Informacionaise que continuava enfiada lá ― aceitem com-prar o que quer que seja agora.

― ...pessoas, criaturas, seres semelhantes avocês...

A trilha sonora cresceu. Também a músicaera imensa com acordes imensos. E por trásdo homem, lentamente, três altos pilarescomeçaram a emergir da névoa imensamenteturbilhonante.

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― ...vivenciaram ou, na maioria dos casos,não foram capazes de vivenciar até o fim.Pensem nisso, meus amigos. Não devemosnunca nos esquecer ― e em breve irei sugeriruma forma de nos ajudar a lembrar parasempre disso ― de que antes das Guerras deKrikkit a Galáxia era um lugar precioso emaravilhoso, uma Galáxia feliz!

A esta altura, a música estava transbordandode imensidão.

― Uma Galáxia feliz, meus amigos, repres-entada pelo símbolo do Portal de Wikkit!

Os três pilares destacavam-se em primeiroplano agora, três pilares com duas travescolocadas horizontalmente sobre eles de umaforma que parecia estupendamente familiarpara o cérebro aturdido de Arthur.

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― Os três Pilares ― disse triunfalmente ohomem. O Pilar de Aço, que representava aForça e o Poder da Galáxia!

Refletores foram acionados e dançavam lou-camente para cima e para baixo do pilar daesquerda, claramente feito de aço ou algomuito parecido com aço. A música tonitruouestrondosamente.

― O Pilar de Acrílico ― anunciou o homem― representando as forças da Ciência e daRazão na Galáxia.

Outros refletores se projetaram exotica-mente sobre o pilar transparente à direita,gerando padrões deslumbrantes dentro delee gerando também um súbito e inexplicáveldesejo de tomar sorvete no estômago deArthur.

― E ― bradou a voz ― o Pilar de Madeira,representando... ― nesse ponto sua voz

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tornou-se suavemente rouca e cheia de senti-mento ― as forças da Natureza e daEspiritualidade.

A luzes focaram o pilar central. A música as-cendeu destemidamente ao reino da com-pleta indescritibilidade.

― Entre elas estão apoiadas ― retumbou avoz, próxima do auge ― a Trave Dourada daProsperidade e a Trave Prateada da paz!

Agora a estrutura inteira estava inundadapor luzes deslumbrantes, e a música havia,felizmente, ultrapassado em muito os limitesda compreensão. No topo dos três pilares es-tavam assentadas as duas traves lindamentereluzentes.

Parecia haver garotas sentadas nelas, outalvez fossem anjos. Anjos, contudo, geral-mente são representados usando maisroupas.

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Subitamente um silêncio dramático percor-reu o que presumivelmente era o Cosmos, eas luzes diminuíram.

― Não há um único mundo ― anunciou ohomem, com voz de profundo conhecedor doassunto ―, um único mundo civilizado emtoda a Galáxia onde este símbolo não sejareverenciado até hoje. Mesmo nos planetasmais primitivos, ele persiste na memóriacoletiva. Foi isto que as forças de Krikkitdestruíram e é isto que atualmente mantémseu planeta trancado até o fim da eternidade.

Com um floreio, o homem fez surgir em suasmãos um modelo do Portal de Wikkit.

Era extremamente difícil ter uma noção deescala em meio àquele espetáculo ex-traordinário, mas o modelo parecia ter quaseum metro de altura.

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― Esta não é a chave original, é claro. Ela foi,como todos sabem, destruída, jogada nosturbilhonantes zéfiros do contínuo espaço-temporal e perdida para sempre. O quetemos aqui é uma réplica minuciosa, feita àmão por hábeis artesãos, carinhosamentemanufaturada usando antigos segredos paracriar uma lembrança que vocês terão orgulhoem guardar, uma lembrança em memóriadaqueles que caíram, um tributo à Galáxia ―à nossa Galáxia ―, em defesa da qual deramsuas vidas...

Slartibartfast flutuou novamente nesseponto.

― Finalmente encontrei ― disse. ― Podemospassar todo esse lixo. Apenas não acenem, sóisso.

― Agora, vamos inclinar nossas cabeças empagamento entoou a voz, antes de dizer tudo

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de novo, só que bem mais rápido e aocontrário.

As luzes dançaram, os pilares desapare-ceram, o homem tagarelou consigo mesmoretrocedendo no vazio e o Universoreconstruiu-se com um estalo em tornodeles. .

― Pegaram o sentido da coisa? ― perguntouSlartibartfast.

― Estou estupefato ― disse Arthur ― eperplexo.

― Estava dormindo ― disse Ford, que flutu-ou na frente deles naquele momento. ―

Perdi alguma coisa?

Encontraram-se mais uma vez cambaleandobem rapidamente na beira de um precipícioaflitivamente alto. O vento varria seus rostos

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e percorria uma baía na qual os restos deuma das maiores e mais poderosas frotas denaves de guerra já reunidas na Galáxia es-tava velozmente se queimando de volta à ex-istência. O céu era de uma cor rosa-acin-zentada, passando depois para uma corbastante peculiar e escurecendo até ficar azule, finalmente, preto. Um turbilhão de fumaçasubia com uma rapidez impressionante.

Os eventos agora retrocediam quase rápidodemais para serem distinguidos e quando,pouco tempo depois, um imenso cruzadorestelar afastou-se rapidamente deles, comose tivessem gritado "buuu", só puderamreconhecê-lo porque haviam começado a as-sistir à projeção naquele ponto.

Agora as coisas passavam depressa demais,um borrão videotáctil que os sacudia e es-panava através de séculos de históriagaláctica, girando, revirando, piscando. Oúnico som era um pequeno sibilar trêmulo.

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Periodicamente, em meio à crescente massade eventos, podiam sentir catástrofes gi-gantescas, profundos horrores, choquescataclísmicos, todos eles sempre associados aalgumas vagens recorrentes, as únicas im-agens que surgiam claramente em meio àavalanche de história: um portal de wicket,uma bolinha vermelha e dura, robôs brancose duros, além de uma outra coisa menos dis-tinta, algo envolto em sombras e névoa.

Mas havia uma outra sensação que surgiaclaramente dessa estonteante passagem dotempo.

Assim como uma série de cliques, quandoacelerados, perdem sua definição individuale, aos poucos, se tornam um tom uniforme ecada vez mais agudo, da mesma forma umasérie de impressões individuais foi se trans-formando numa emoção prolongada que, aomesmo tempo, não chegava a ser umaemoção. Se fosse uma emoção, era

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desprovida de qualquer emotividade. Eraódio, um ódio implacável. Era fria, não comoo gelo, mas como uma parede. Era impess-oal, não como um soco no meio de uma mul-tidão é impessoal, mas como uma multa deestacionamento emitida por computador éimpessoal. E

era mortífera ― novamente, não como umabala ou uma faca, mas como uma parede detijolos colocada no meio de uma auto-estrada.

E, da mesma forma como um tom crescenteirá mudar seu timbre e adquirir novosharmônicos conforme se torna mais agudo,assim também essa emoção não-emotivapareceu crescer até tornar-se um grito in-suportável, ainda que inaudível, e, subita-mente, um grito de culpa e fracasso.

De repente, tudo parou.

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Estavam de pé no topo de um monte numatarde tranqüila.

O sol estava se pondo.

Em volta deles o verde suave dos camposserpenteava gentilmente a perder de vista.

Pássaros cantavam suas opiniões a respeito,que, no geral, pareciam ser boas. Um poucomais ao longe podia-se ouvir o som de cri-anças brincando e, ainda mais ao longe que aaparente fonte deste som, podia-se ver, naprimeira escuridão da noite, o contorno deuma pequena cidade.

A cidade era formada por prédios baixos, fei-tos de pedra branca. Recortava o horizontede forma suave.

O sol havia se posto quase totalmente.

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Surgida do nada, uma música começou a to-car. Slartibartfast apertou um botão e elaparou.

Uma voz disse:

― Isso... ― Slartibartfast apertou outro botãoe a voz também parou.

― Eu mesmo vou lhes contar essa parte ―disse, suavemente. O lugar era pacífico.

Arthur sentia-se feliz. Até mesmo Ford pare-cia alegre. Caminharam um pouco emdireção à cidade. A Ilusão Informacional degrama era agradável e fofa sob seus pés, e aIlusão Informacional de flores tinha uma fra-grância doce.

Apenas Slartibartfast parecia estar apreens-ivo e aborrecido.

Ele parou e olhou para cima.

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Arthur pensou subitamente que, como aparte onde estavam vinha no final, por assimdizer, ou, mais exatamente, no início de todoo horror que haviam acabado de presenciarde forma borrada, provavelmente algo pro-fundamente desagradável estava paraacontecer. Ficou transtornado ao pensar quealgo de profundamente desagradávelpudesse acontecer em um lugar tão idílicoquanto aquele. Também olhou para cima.Não havia nada no céu.

― Eles não vão atacar aqui, vão? ― disse. Sa-bia que estava apenas andando dentro deuma gravação, mas ainda assim ficou tenso.

― Nada vai atacar aqui ― disse Slartibartfastcom uma voz inesperadamente trêmula deemoção. ― Foi aqui que tudo começou. Esteé o lugar em si. O planeta Krikkit.

Olhou para o céu acima deles.

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O céu, de um horizonte ao outro, de leste aoeste, de norte a sul, era total e completa-mente negro.

Capítulo 11

Estompe, estompe.

R-r-r-r-rrr.

― É um prazer servi-lo.

― Cale-se.

― Obrigado.

Estompe estompe estompe estompeestompe.

R-r-r-r-rrr.

― Obrigado por tornar uma simples portamuito feliz.

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― Espero que seus diodos enferrujem.

― Obrigado. Tenha um bom dia.

― Estompe estompe estompe estompe.

R-r-r-r-rrr.

― É um prazer abrir para você...

― Vá se zarcarl

― ...e uma grande satisfação fechar de novo,com a consciência de um trabalho bem-feito.

― Já disse para se zarcar!

― Obrigado por ouvir esta mensagem.

Estompe estompe estompe estompe.

― Uop.

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Zaphod parou de estompear. Estava estom-peando pela Coração de Ouro há dias e, atéaquele momento, nenhuma porta tinha dito"uop" para ele. Na verdade, estava bem certode que nenhuma porta teria dito "uop"agora. Portas, em geral não dizem algo as-sim. É

muito conciso. Além disso, não havia portassuficientes.

Soou como se 100 mil pessoas tivessem dito"uop", o que o deixava intrigado, já que era aúnica pessoa na nave.

Estava escuro. A maioria dos sistemas não-essenciais da nave estavam desligados.

Ela estava à deriva em uma área remota daGaláxia, no mais negro nanquim do espaço.

Então como 100 mil pessoas iriam até lápara dizer um "uop" totalmente inesperado?

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Olhou em volta, para um lado e para o outrodo corredor. Tudo estava envolto em trevas.Havia apenas os contornos rosados e fraca-mente iluminados das portas, que brilhavamno escuro e pulsavam sempre que elas fa-lavam, apesar de tudo que ela já tinhatentado para impedi-las.

As luzes estavam apagadas para evitar quesuas cabeças pudessem olhar uma para aoutra, porque nenhuma delas era uma visãoparticularmente atraente no momento, comojá não eram desde que Zaphod cometera oerro de examinar sua alma.

Aquilo tinha sido um grande erro. Era tardeda noite, é claro.

Tinha sido um dia difícil, é claro.

Uma música suave estava tocando no som danave, é claro.

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Ele estava, é claro, ligeiramente bêbado.

Em outras palavras, todas as condições ha-bituais que levam a um surto de exame daalma estavam presentes. Ainda assim, clara-mente havia sido um erro.

Andando agora, silencioso e solitário, nocorredor sombrio, lembrou-se daquele mo-mento e sentiu um frio na espinha. Uma desuas cabeças olhou para um lado, a outrapara o outro, e cada qual decidiu que o ladooposto era o caminho a seguir.

Estava prestando atenção, mas não haviasom algum.

Só tinha havido aquele "uop".

Parecia uma viagem terrivelmente longapara trazer um numero terrivelmente grandede pessoas para dizer uma única palavra.

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Ficou nervoso e começou a caminhar emdireção à ponte.

Ao menos lá se sentiria no controle da situ-ação. Parou de novo. Da forma como se sen-tia agora, não achava que fosse uma pessoamuito adequada para estar no controle denada.

Lembrando agora daquele momento, oprimeiro choque tinha sido a descoberta deque ele realmente tinha uma alma.

De certa forma sempre presumira que tinhauma, já que parecia ter todas as outrascoisas, e na verdade tinha até duas de algu-mas coisas, mas encontrar de fato aquelacoisa escondida lá dentro dele havia sido umgrande choque.

E ter descoberto, em seguida (este foi o se-gundo choque), que sua alma não era a coisafantástica que acreditava ter o direito natural

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de esperar, sendo um homem de sua posição,o havia chocado novamente.

Então havia pensado a respeito de qual eraexatamente sua posição e o novo choquequase fez com que derrubasse seu drinque.Virou o copo rapidamente antes que algosério pudesse acontecer à bebida. Emseguida tomou um outro drinque, paraseguir o primeiro e verificar se estava tudobem.

― Liberdade ― disse em voz alta.

Naquele momento, Trillian apareceu na cab-ine de comando e disse várias coisasentusiásticas a respeito da liberdade.

― Não posso lidar com isso ― respondeu ele,soturno, e enviou um terceiro drinque paraaveriguar por que o segundo ainda não haviaenviado um relatório sobre a situação doPrimeiro. Olhou inseguro para as duas

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Trillians e concluiu que preferia a que estavaà direita.

Jogou um drinque garganta abaixo pelaoutra garganta, penando que este iria encon-trar o anterior na junção, onde ambos uniri-am forças e fariam com que o segundo to-masse jeito.

Então os três partiriam em busca doprimeiro, teriam uma boa conversa com ele etalvez cantassem um pouco também.

Estava em dúvida se o quarto drinque tinhaentendido tudo aquilo, portanto mandoudescer um quinto para detalhar o plano e umsexto para dar apoio moral.

― Você está bebendo muito ― disse Trillian.

Suas cabeças colidiram enquanto tentavamreunir, em uma única pessoa, as quatro Tril-lians que estavam vendo. Acabou desistindo

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e olhou para a tela de navegação. Ficou es-pantado ao ver que havia um número fenom-enal de estrelas.

― Diversão e aventura e coisas exóticas ―murmurou.

― Olha ― disse ela com uma voz simpática,sentando-se ao lado dele ―, é compreensívelque você se sinta um pouco vazio e des-norteado por algum tempo.

Espantou-se com ela. Nunca antes haviavisto alguém se sentar em seu próprio colo.

― Uau ― disse. E tomou outro drinque.

― Você completou a missão que te envolveudurante quatro anos.

― Ela não me envolveu. Eu procurei evitarficar envolvido nela.

― Mesmo assim você a concluiu.

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Ele resmungou. Aparentemente estavamdando uma grande festa em seu estômago.

― Acho que isso acabou comigo ― disse. ―Aqui estou, Zaphod Beeblebrox, e posso ir aqualquer lugar, posso fazer qualquer coisa.Tenho a melhor nave de todo o espaço, umagarota com quem as coisas parecem estarindo bem...

― Parecem?

― Até onde posso ver. Não sou especialistaem relacionamentos pessoais...

Trillian levantou as sobrancelhas.

― Sou ― prosseguiu Zaphod ― um grandecara, posso fazer tudo que quiser, só que nãotenho a menor idéia do que seja isto.

Fez uma pausa.

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Uma coisa deixou de levar à próxima ― emcontradição com o que disse, tomou outrodrinque e escorregou desajeitadamente desua cadeira.

Enquanto ele dormia, Trillian pesquisou al-gumas coisas na cópia do Guia do Mochileirodas Galáxias que havia na nave. O Guia tinhaalguns conselhos a respeito de porres.

― Vá fundo ― dizia o texto ― e boa sorte.

Havia uma referência cruzada para o verbeteque falava sobre o tamanho do Universo ecomo lidar com isso.

Então ela encontrou o verbete sobre HanWavel, um exótico planeta turístico e um dosprodígios da Galáxia.

Han Wavel é um mundo constituído basica-mente de fabulosos hotéis e cassinos

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ultraluxuosos. Todos formados por erosãonatural, provocada pela chuva e pelo vento.

As chances de que algo assim aconteça sãomais ou menos de um sobre infinito.

Pouco se sabe a respeito de como issoaconteceu porque nenhum dos geofísicos, es-tatísticos de probabilidade, meteoroanalistasou bizarrologistas que gostariam muito deestudar o assunto podem se dar ao luxo deficar lá.

Incrível, pensou Trillian, e em poucas horasa grande nave branca estava lentamente des-cendo do céu, iluminada por um sol quente ebrilhante, em direção a um espaçoporto re-coberto por areia colorida. A nave estava ob-viamente causando sensação na superfície eTrillian estava se divertindo com isso. OuviuZaphod se movendo e assobiando em algumlugar da nave.

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― Como você está? ― perguntou pelointercomunicador.

― Bem ― disse ele alegremente ―, incrivel-mente bem.

― Onde você está?

― No banheiro.

― Fazendo o quê?

― Ficando aqui.

Depois de uma ou duas horas tornou-se ób-vio que ele realmente pretendia ficar por lá ea nave subiu novamente sem sequer abrirsua escotilha.

― Putz! ― disse Eddie, o computador.

Trillian assentiu pacientemente, batucoucom seus dedos algumas vezes e depois

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pressionou de novo o botão dointercomunicador.

― Acho que diversão obrigatória provavel-mente não é algo de que você precise nestemomento.

― Provavelmente não ― retrucou Zaphod dealgum lugar.

― Acho que uma boa atividade físicaajudaria a tirar você de dentro de si mesmo.

― O que você achar eu também acho ― re-spondeu Zaphod. "Impossibilidades Recre-ativas" foi um tópico que chamou a atençãode Trillian quando, pouco depois, ela se sen-tou para dar outra lida no Guia. Enquanto aCoração de Ouro cruzava o espaço a velocid-ades improváveis em uma direção indeterm-inada, ela tomava uma xícara de algo im-pensável preparado pela máquina

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Nutrimática de bebidas e lia sobre comoaprender a voar.

O Guia do Mochileiro das Galáxias diz oseguinte a respeito de voar: Há toda umaarte, ele diz, ou melhor, um jeitinho paravoar.

O jeitinho consiste em aprender como se jog-ar no chão e errar.

Encontre um belo dia, ele sugere, eexperimente.

A primeira parte é fácil.

Ela requer apenas a habilidade de se jogarpara a frente, com todo seu peso, e o de-sprendimento para não se preocupar com ofato de que vai doer.

Ou melhor, vai doer se você deixar de errar ochão.

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Muitas pessoas deixam de errar o chão e, seestiverem praticando da forma correta, omais provável é que vão deixar de errar commuita força.

Claramente é o segundo ponto, que diz re-speito a errar, que representa a maiordificuldade.

Um dos problemas é que você precisa errar ochão acidentalmente. Não adianta tentar er-rar o chão de forma deliberada, porque vocênão irá conseguir. É preciso que sua atençãoseja subitamente desviada por outra coisaquando você está a meio caminho, de formaque você não pense mais a respeito de estarcaindo, ou a respeito do chão, ou sobre oquanto isso tudo irá doer se você deixar deerrar.

É reconhecidamente difícil remover suaatenção dessas três coisas durante a fraçãode segundo que você tem à sua disposição. O

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que explica por que muitas pessoas fracas-sam, bem como a eventual desilusão comesse esporte divertido e espetacular.

Contudo, se você tiver a sorte de ficar com-pletamente distraído no momento crucialpor, digamos, lindas pernas (tentáculos,pseudópodos, de acordo com o filo e/ou in-clinação pessoal) ou por uma bomba ex-plodindo por perto, ou por notar subita-mente uma espécie muito rara de besourosubindo num galho próximo, então, em suaperplexidade, você irá errar o chão completa-mente e ficará flutuando a poucos centímet-ros dele, de uma forma que irá parecer li-geiramente tola.

Esse é o momento para uma sublime e del-icada concentração.

Balance e flutue, flutue e balance.

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Ignore todas as considerações a respeito deseu próprio peso e simplesmente deixe-seflutuar mais alto.

Não ouça nada que possam dizer nesse mo-mento porque dificilmente seria algo de útil.

Provavelmente dirão algo como: "Meu Deus,você não pode estar voando!"

É de vital importância que você não acreditenisso: do contrário, subitamente estará certo.

Flutue cada vez mais alto.

Tente alguns mergulhos, bem devagar no iní-cio, depois deixe-se levar para cima dasárvores, sempre respirando pausadamente.

NÃO ACENE PARA NINGUÉM.

Quando você já tiver repetido isso algumasvezes, perceberá que o momento da

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distração logo se torna cada vez mais fácil deatingir.

Você pode, então, aprender diversas coisassobre como controlar seu vôo, sua velocid-ade, como manobrar, etc. O truque estásempre em não pensar muito a fundo na-quilo que você quer fazer. Apenas deixe queaconteça, como se fosse algo perfeitamentenatural.

Você também irá aprender como pousarsuavemente, coisa com a qual, com quasetoda certeza, você irá se atrapalhar ― e se at-rapalhar feio ― em sua primeira tentativa.

Há clubes privados de vôo aos quais vocêpode se juntar e que irão ajudá-lo a atingiresse momento fundamental de distração.Eles contratam pessoas com um físico in-acreditável ― ou com opiniões inacreditáveis―, e essas pessoas pulam de trás de arbustospara exibir seus corpos ― ou suas opiniões ―

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nos momentos cruciais. Poucos mochileirosde verdade terão dinheiro para se juntar aesses clubes, mas é possível conseguir umemprego temporário em um deles.

Trillian leu isso tudo em detalhes, mas, relut-antemente, decidiu que Zaphod realmentenão estava no clima certo para tentar voar,ou para caminhar por montanhas, ou paratentar conseguir que um funcionário públicode Brantisvogan aceitasse uma notificação demudança de endereço – estas eram as outrascoisas listadas sob o tópico

"Impossibilidades Recreativas".

Ela decidiu então levar a nave até Allosi-manius Syneca, um planeta feito de gelo eneve, de uma beleza atordoante e um frio es-tonteante. A viagem das planícies nevadas deLiska até o pico das Pirâmides de Cristal deGelo de Sastantua é longa e exaustiva,mesmo com esquis a jato e uma matilha de

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cães de neve de Syneca, mas a vista lá decima, uma vista que abrange os Campos deGeleiras de Stin, as reluzentes MontanhasPrismáticas e as longínquas luzes de gelo,etéreas e dançantes, é algo que congela amente e então, aos poucos, a liberta para ho-rizontes de beleza até então nunca experi-mentados, e, pessoalmente, Trillian achavaque se sentiria bem com essa coisa de ter suamente libertada aos poucos para horizontesde beleza até então nunca experimentados.

Entraram em uma órbita baixa.

A beleza branco-prateada de AllosimaniusSyneca desfilava abaixo deles.

Zaphod ficou na cama, com uma cabeça enfi-ada embaixo de um travesseiro enquanto aoutra montava quebra-cabeças até tarde.

Trillian assentiu pacientemente mais umavez, contou até um número bem grande e

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depois disse a si mesmo que a coisa mais im-portante agora era fazer com que Zaphodfalasse.

Tendo desativado todos os robôs sintomáti-cos da cozinha, preparou a refeição maisfantasticamente deliciosa que ela podia con-ceber ― carnes sutilmente untadas, frutasperfumadas, queijos de aromas delicados evinhos finos de Aldebaran.

Levou a comida até Zaphod e perguntou-lhese gostaria de conversar.

― Vá se zarcar! ― foi a resposta.

Trillian assentiu pacientemente para simesma, contou até número muito maior queo anterior, colocou suavemente a bandeja delado, foi até a sala do transporte eteleportou-se para fora daquela vida idiotadele.

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Ela sequer programou as coordenadas. Nãotinha a menor idéia para onde estava indo,apenas foi ― uma fileira de pontinhos flutu-ando aleatoriamente pelo Universo.

― Qualquer coisa ― disse para si mesma aosair ― é melhor que isto.

― Também acho ― murmurou Zaphod parasi mesmo, depois virou-se e fracassou com-pletamente em dormir.

No dia seguinte, ele andou inquieto peloscorredores na nave, fingindo não estar pro-curando por ela, apesar de saber que não es-tava mais lá. Ele ignorou as perguntas insist-entes do computador a respeito do que es-tava acontecendo por lá e acabou conectandouma mordaça eletrônica num par determinais.

Depois de um tempo, começou a desligar asluzes. Não havia nada para ser visto.

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Nada iria acontecer.

Deitado na cama, uma noite ― e a noiteagora era contínua na nave ―, decidiu tomarjeito e colocar as coisas em perspectiva. Comum movimento rápido, sentou-se e começoua vestir as roupas. Decidiu que, em algumlugar do Universo, deveria haver alguém sesentindo mais desprezível, miserável e aban-donado do que ele mesmo e estava determ-inado a encontrar essa pessoa.

A meio caminho da ponte ocorreu-lhe quepoderia ser o Marvin. Então voltou para acama.

Foi algumas horas depois, enquanto estom-peava desconsolado através dos corredoresescuros xingando as portas alegres, que eleouviu dizerem "uop", coisa que o deixou bemnervoso.

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Encostou-se, tenso, contra a parede docorredor e franziu o cenho como alguém quetentasse endireitar um saca-rolhas por tele-cinesia. Pressionou a ponta de seus dedoscontra a parede e sentiu uma vibração in-comum. Além disso, agora podia ouvir clara-mente leves ruídos e também podia ouvir deonde estavam vindo ― era da ponte.

― Computador? ― sussurrou.

― Mmmm? ― respondeu o terminal maispróximo, também sussurrando.

― Há mais alguém nesta nave?

― Mmmmmm ― disse o computador?

― Quem é?

― Mmmmmm mmmm mm mmmmmmmm.

Zaphod enfiou uma de suas caras em duas desuas mãos.

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― Por Zarquon ― murmurou. Então olhoupelo corredor na direção da entrada daponte, meio distante, da qual ruídos maissugestivos estavam vindo e onde estavamsituados os terminais amordaçados.

― Computador ― murmurou de novo.

― Mmm?

― Quando eu retirar a mordaça...

― Mmm.

― ...me lembre de dar um soco em minhaprópria boca.

― Mmmm mmmmm?

― Qualquer uma. Me diga apenas uma coisa.Uma vez significa sim, duas significa não. Éalgo perigoso?

― Mmm.

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― É?

― Mmm.

― Você não disse "mmm" duas vezes agora?

― Mmm mmm.

Avançou lentamente pelo corredor, como sena verdade estivesse querendo sair correndona outra direção, o que era verdade.

Estava a dois metros da porta para a pontede comando quando percebeu, horrorizado,que ela iria ser gentil com ele.

Parou imediatamente. Não havia sido capazde desligar os circuitos vocais de cortesia dasportas.

A porta que levava à ponte estava fora docampo de visão de quem estivesse lá dentro,por conta da forma fascinantemente re-curvada que usaram ao projetar a ponte.

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Zaphod esperava poder entrar sem ser visto.

Desanimado, apoiou-se novamente contra aparede e disse algumas palavras que deix-aram sua outra cabeça bastante chocada.

Deu uma olhadela para o contorno rosado daporta e descobriu que, na escuridão docorredor, podia entrever o tênue CampoSensor que se estendia para fora, pelocorredor, e avisava à porta quando havia al-guém para quem ela deveria se abrir e paraquem ela deveria fazer uma alegre eagradável observação.

Pressionou o corpo com força contra aparede e foi se esgueirando em direção àporta, encolhendo o peito o máximo possívelpara evitar contato com o perímetro muito,muito fracamente iluminado do campo. Se-gurou a respiração e parabenizou-se por terpassado os últimos dias jogado na cama, em

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vez de tentar resolver seus problemas senti-mentais na sala de musculação da nave.

Percebeu, então, que teria que dizer algo.

Respirou rapidamente algumas vezes e de-pois falou tão rápido e tão baixo quantopôde:

― Porta, se você estiver me ouvindo, digaque sim o mais baixo que puder.

O mais baixo que pôde, a porta murmurou:― Posso ouvi-lo.

― Bom. Preste atenção. Daqui a pouco, voupedir que se abra. Quando se abrir, nãoquero que diga que você ficou feliz com isso,certo?

― Certo.

― E também não quero que me diga que eutornei uma simples porta muito feliz, ou que

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é um prazer abrir para mim e grande satis-fação fechar de novo, com a consciência deum trabalho bem-feito, certo?

― Certo.

― E não quero que me diga para ter um bomdia, entendido?

― Entendido.

― Certo ― disse Zaphod, tensionando ocorpo ―, abra, agora. A porta abriu-se emsilêncio. Zaphod passou através dela emsilêncio. A porta se fechou silenciosamenteatrás dele.

― Era assim que o senhor queria, senhorBeeblebrox? ― disse a porta em voz alta.

― Quero que imaginem ― disse Zaphod parao grupo de robôs brancos que se viraramnaquele momento para olhar para ele ― que

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estou segurando uma pistola Zapogun ex-tremamente poderosa.

O silêncio que veio a seguir era intensamentefrio e selvagem. Os robôs o examinaram comolhos hediondamente mortiços.Mantiveram-se imóveis. Havia algo in-tensamente macabro em sua aparência, es-pecialmente para Zaphod, que nunca haviavisto um deles antes, nem sabia nada a re-speito. As Guerras de Krikkit pertenciam aopassado antigo da Galáxia, e Zaphod haviagasto a maioria de suas aulas de história an-tiga elaborando um plano para transar com agarota que ocupava o cibercubículo ao lado.

Uma vez que o computador responsável porsuas aulas era parte integral desse plano, eleeventualmente teve todos os seus circuitosde história apagados e substituídos por umconjunto completamente diferente de idéias.Como resultado isso, o computador foi des-montado e enviado para um abrigo para

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Cibertrastes Degenerados. Ele foi seguidopela garota, que havia inadvertidamente seapaixonado pela pobre máquina, coisa que,por sua vez, resultou em (a) Zaphod nuncater conseguido nada com ela e (b) ele terdeixado de estudar um período de históriaantiga que teria um valor inestimável paraele naquele momento.

Zaphod olhou, chocado, para os robôs.

Era impossível explicar a causa, mas seuscorpos brancos de curvas perfeitas e re-luzentes, pareciam ser a mais perfeita incor-poração de uma malignidade calculada eeficaz. Desde seus olhos hediondamentemortiços até seus poderosos pés sem vida,eram claramente o produto perfeito de umamente que simplesmente desejava matar. Za-phod engoliu em seco tomado pelo medo.

Eles estavam desmantelando parte da paredetraseira da ponte e haviam forçado passagem

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através de alguns dos pontos internos vitaisda nave. Em meio ao emaranhado de peças,Zaphod podia ver, com uma sensação aindamaior e mais profunda de choque, que es-tavam criando um túnel em direção aopróprio núcleo da nave, o coração doGerador de Improbabilidade que havia sidomisteriosamente criado a partir do nada, oCoração de Ouro em si.

O robô que estava mais próximo olhou praele de uma forma que sugeria que estavamedindo cada minúscula partícula de seucorpo, sua mente e suas habilidades. Quandofalou, aquilo que disse pareceu transmitir ex-atamente isso.

Antes de seguirmos para a parte do que elerealmente disse, vale a pena registrar aquique Zaphod era o primeiro ser orgânico aouvir uma dessas criaturas falar em mais dedez bilhões de anos. Se ele tivesse prestadomais atenção em suas aulas de história

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antiga e menos em seu corpo orgânico, semdúvida teria ficado mais impressionado comessa honra.

A voz do robô era como seu corpo: fria, per-feita e sem vida. Quase chegava a ter um ver-niz de elegância. Soava tão antiga quantoera.

Ele disse:

― Você de fato está segurando uma pistolaZapogun em sua mão.

Inicialmente, Zaphod não entendeu bem oque ele quis dizer, mas então olhou para suamão e ficou aliviado ao perceber r que aquiloque encontrara montado em um suporte naparede de fato era o que ele pensava ser.

― Sim ― respondeu em um tom de alíviodesdenhoso, o que é bem difícil ―, bem, eunão quis exigir muito de sua imaginação,

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robô. ― Durante algum tempo ninguémdisse nada e Zaphod compreendeu que osrobôs obviamente não estavam ali para con-versar. Essa parte ficaria por conta dele. ―Por acaso notei que vocês estacionaram anave de vocês ―

disse, apontando com uma de suas cabeçasna direção adequada ― dentro da minha.

Não havia como negar isso. Sem o menor re-speito por qualquer tipo de comportamentodimensional, haviam simplesmente materi-alizado sua nave precisamente onde queriamque ela ficasse. Isso significava que estavaentrelaçada através da Coração de Ourocomo se não fossem nada além de doispentes.

Novamente não responderam nada, e Za-phod pensou que a conversa poderia ganharum pouco de dinamismo se ele trans-formasse as suas falas em perguntas.

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― ...não é verdade? ― acrescentou.

― Sim ― respondeu o robô.

― Ah. Certo ― disse Zaphod. ― Então o quevocês, meus chapas, estão fazendo por aqui?

Silêncio.

― Robôs ― disse Zaphod ―, o que vocês es-tão fazendo por aqui?

― Viemos ― respondeu o robô ― em buscada Trave de Ouro. Zaphod assentiu.

Sacudiu a arma, indicando que gostaria deinformações.

O robô pareceu entender o gesto.

― A Trave de Ouro é parte da chave que bus-camos prosseguiu ― para libertar nossosMestres de Krikkit.

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Zaphod assentiu novamente. Sacudiu a armade novo.

― A Chave ― prosseguiu o robô, indiferente― foi desintegrada no espaço e no tempo. ATrave de Ouro está embutida no dispositivoque impulsiona sua nave.

Será usada para reconstituir a Chave. NossosMestres serão libertados. O Reajuste Univer-sal irá continuar.

Zaphod assentiu mais uma vez.

― Do que você está falando? ― perguntou.

A face totalmente inexpressiva do robô pare-ceu ser atravessada por um leve pesar.

Ele parecia estar achando aquela conversadeprimente.

― Aniquilação ― disse. ― Procuramos aChave ― repetiu ― e já temos o Pilar de

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Madeira, o Pilar de Aço e o Pilar de Acrílico.Mais um pouco e teremos o Pilar de Ouro...

― Não, não terão.

― Teremos ― declarou o robô.

― Não terão não. Ele faz minha navefuncionar.

― Mais um pouco ― repetiu o robô, pa-cientemente ― e teremos o Pilar de Ouro...

― Não terão ― disse Zaphod.

― E depois temos que ir ― disse o robô, ab-solutamente sério ― a uma festa.

― Ah ― disse Zaphod, surpreso. ― Posso irtambém?

― Não ― disse o robô. ― Vamos atirar emvocê.

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― É mesmo? ― disse Zaphod, sacudindo suaarma.

― Sim ― disse o robô, e atiraram nele.

Zaphod ficou tão surpreso que tiveram deatirar de novo antes que ele caísse.

Capítulo 12

― Shhh ― fez Slartibartfast. ― Ouçam eobservem.

A noite havia caído no antigo planeta Krikkit.O céu estava escuro e vazio.

A única luz provinha da cidade vizinha, apartir da qual sons pacíficos e amigáveis vag-avam suavemente pela brisa. Estavam de pésob uma árvore que exalava odores inebri-antes. Arthur agachou-se para sentir a IlusãoInformacional do solo e da grama. Pegou umpouco de terra e deixou cair entre seus

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dedos. O solo parecia denso e rico, a gramatinha vigor. Era difícil evitar a impressão deque aquele lugar era absolutamente maravil-hoso de todas as formas.

Contudo, o céu era vazio, e Arthur tinha aimpressão de que ele transmitia uma certafrieza à paisagem que, embora não pudesseser vista no momento, era idílica. Supôs, en-tretanto, que fosse apenas questão de hábito.

Sentiu um cutucão no seu ombro e olhoupara cima. Slartibartfast estava lhemostrando, em silêncio, algo que vinha des-cendo do outro lado da colina. Ele olhou epôde perceber luzes distantes queserpenteavam, movendo-se devagar nadireção deles.

Quando chegaram mais perto, pôde ouvir ossons também, e logo as luzes e sons se trans-formaram em um pequeno grupo de pessoas

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retornando para casa, vindo das colinas edirigindo-se à cidade.

Passaram andando bem perto dos obser-vadores sob a árvore com suas tochas bal-ançando e projetando focos suaves de luzque dançavam sobre as árvores e a grama.

Estavam tagarelando alegremente e cant-ando uma música que falava sobre o quãomaravilhoso aquilo era, sobre como estavamfelizes, como gostavam de trabalhar nasfazendas e como era bom voltar para suas ca-sas e ver as mulheres e os filhos, com um re-frão animado que dizia o quão docementeperfumadas as flores eram naquela época doano, e também que era uma pena que o ca-chorro, que gostava tanto deles, tivesse mor-rido. Arthur quase podia imaginar PaulMcCartney sentado, com seus pés diante dalareira no entardecer, cantarolando aquilopara Linda e pensando no que comprariacom os royalties ―

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provavelmente Essex.

― Os Mestres de Krikkit ― sussurrou Slart-ibartfast em tom sepulcral.

Essa observação causou em Arthur umabreve confusão, tendo chegado tão rapida-mente após seus próprios pensamentossobre Essex. Então a lógica da situação seimpôs em sua mente dispersa e descobriuque continuava sem entender o que o velhoqueria dizer.

― O quê? ― perguntou.

― Os Mestres de Krikkit ― repetiu Slart-ibartfast e, se o tom anterior foi sepulcral,desta vez ele soou como alguém que está combronquite no Hades.

Arthur examinou o grupo e tentou extrair al-gum sentido das poucas informações quetinha à disposição até o momento.

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As pessoas do grupo eram claramente aliení-genas por pequenos detalhes, como o fato deparecerem um pouco altas, magras, defeições duras e quase tão pálidas que se po-dia dizer brancas. Fora isso, pareciam muitoagradáveis. Bem, talvez fossem um pouco es-quisitonas e talvez não fossem pessoas comquem se gostaria de fazer uma longa viagemde ônibus, mas o ponto é que, se, de algumaforma, se desviavam de serem pessoas boas ehonestas, era por serem legais em excesso enão o contrário. Então por que toda essaconstrição pulmonar de Slartibartfast, queparecia mais adequada a um comercial de rá-dio para um daqueles filmes de terrorasquerosos a respeito de operadores de ser-ras elétricas que levavam trabalho para fazerem casa à noite?

Essa questão do Krikkit também era compl-exa. Ele ainda não tinha conseguido fazer aponte entre o que conhecia como críquete eaquilo que...

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Slartibartfast interrompeu os pensamentosde Arthur nesse ponto, como se percebesse oque o outro estava pensando.

― O jogo que você conhece como críquete ―disse, com uma voz que parecia ainda vagarpor subterrâneos ― é apenas uma dessas pe-culiaridades da memória racial, capaz demanter algumas imagens vivas na menteséculos após seu verdadeiro sentido ter seperdido nas névoas do tempo. De todas asraças da Galáxia, apenas os ingleses seriamcapazes de reviver a memória da mais ter-rível das guerras que já cindiram o Universoe transformá-la naquilo que, lamento dizer, évisto como um jogo incompreensivelmentechato e sem sentido.

― Eu até gosto dele ― acrescentou ―, mas,aos olhos de muitos, vocês foram inadverti-damente culpados de um grotesco maugosto. Aquela parte da bolinha vermelhaacertando o wicket é particularmente cruel.

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― Hum ― disse Arthur, franzindo o rosto deforma reflexiva para indicar que suassinapses cognitivas estavam lidando comaquilo da melhor forma possível. ― Hum.

― E estes ― disse Slartibartfast, retornandoa seu tom criptogural e apontando para ogrupo de homens de Krikkit que passou poreles ― são os que começaram tudo, e tudo irácomeçar hoje à noite. Venham, vamos segui-los para ver o que vem a seguir.

Saíram de baixo da árvore e seguiram ogrupo animado longo da trilha escura pelacolina. Seus instintos naturalmente diziampara que se movessem furtivamente e emsilêncio atrás de suas presas. Contudo, comoestavam apenas andando em meio umaIlusão Informacional, poderiam estartocando tuba pintados de azul sem problemaalgum, já que ninguém iria notar.

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Arthur observou que alguns deles tinhampassado a cantar uma outra música.

Chegava até eles carregada pela suave brisada noite e era uma balada romântica e doceque permitiria a Paul McCartney comprarKent e Sussex, além de fazer uma boa ofertapor Hampshire.

― Você certamente sabe ― disseSlartibartfast, virando-se para Ford ― o queestá para acontecer, não?

― Eu? ― disse Ford. ― Não.

― Você não estudou História Antiga daGaláxia quando era jovem?

― Eu ficava no cibercubículo atrás de Za-phod ― disse Ford ―, era impossível me con-centrar. O que não significa que não tenhaaprendido algumas coisas muitoimpressionantes.

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Nesse momento, Arthur notou um detalhecurioso naquela canção. Os oito compassosdo meio ― que fariam com que Paul se con-solidasse em Winchester e olhasse com in-teresse sobre o Test Valley chegando até asricas terras de New Forest logo a seguir

― tinham uma letra peculiar. Quem escreveua canção falava sobre encontrar-se com umagarota, mas não dizia "sob o luar" ou "sob asestrelas", e sim "sobre a grama". Aquilosoava um pouco prosaico para Arthur.

Então ele olhou novamente para o céu,desconcertantemente preto, e teve asensação de que havia uma questão import-ante aí ― se ao menos pudesse definir qualera. A sensação era a de estar sozinho noUniverso, que foi o que ele disse para osoutros.

― Não ― disse Slartibartfast, apressando li-geiramente o passo ― o povo de Krikkit

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nunca pensou “Estamos sozinhos noUniverso”. Eles estão cercados por umaenorme Nuvem de Poeira, entende? Umúnico sol com um único mundo e estão naextremidade leste da Galáxia. Por causa daNuvem de Poeira nunca houve nada para servisto no céu. Durante a noite é completa-mente escuro.

Durante o dia há o sol, mas não é possível ol-har diretamente para o sol, então eles não ol-ham. Quase não percebem que há um céu. Écomo se tivessem um ponto cego que se es-tende 180 graus, de um horizonte a outro.

― O único motivo pelo qual nunca pensaram"Estamos sozinhos no Universo" é porque,até esta noite, eles sequer sabiam que há umUniverso. Ao menos não até esta noite.

Continuou andando, deixando suas palavrasreverberando no ar atrás de si.

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― Imagine como seria nem mesmo terpensado "Estamos sós", simplesmenteporque você nunca houvesse pensado quehavia outra possibilidade.

Andou novamente

― Creio que seria apavorante ― acrescentou.

Enquanto falava, começaram a ouvir umruído agudo de algo muito alto, cortando océu sem estrelas acima deles. Olharam paracima, preocupados, mas não conseguiramver nada num primeiro momento.

Então Arthur notou que o grupo à sua frentetambém havia ouvido o ruído, mas ninguémsabia muito como agir. Estavam olhando emvolta, confusos, para a esquerda, para adireita, Para a frente, para trás e até mesmopara o chão. Sequer penaram em olhar paracima.

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A profundidade do choque e do horror quedemonstraram logo em seguida, quando osdestroços em chamas de uma espaçonavedesceram do céu com um estrondo,chocando-se contra o solo cerca de um quilô-metro à frente, era algo que só podia ser en-tendido por quem estava lá.

Alguns falam com admiração da Coração deOuro, outros da Nave Estelar Bistromática.

Muitos falam, com toda razão, da lendária egigantesca Espaçonave Titanic, umamajestosa e luxuosa nave de cruzeiro lançadados grandes estaleiros nos complexos de as-teróides de Artifactovol há centenas de anos.

De infinita beleza, estonteantemente enormee equipada com mais diversões do quequalquer outra nave daquilo que hoje aindanos resta da História, teve o azar de ser con-struída logo no início das pesquisas emFísica da Improbabilidade muito antes que

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este difícil ramo do saber fosse completa-mente ― ou ao menos minimamente ―compreendido.

Os projetistas e engenheiros decidiram, emsua inocência, construir um protótipo deCampo de Improbabilidade na nave, cujopropósito seria, supostamente, o de assegur-ar que fosse Infinitamente Improvável quequalquer coisa desse errado em qualquerparte da nave.

Não perceberam que, por conta da naturezaquase-recíproca e circular de todos os cálcu-los de Improbabilidade, qualquer coisa quefosse Infinitamente Improvável muito pos-sivelmente aconteceria quaseinstantaneamente.

A Espaçonave Titanic era uma visão incrivel-mente bela, atracada como uma BaleiaMegavoid arcturiana prateada entre o trace-jado laser dos guindastes de construção, uma

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nuvem brilhante de agulhas de luzsobressaindo-se contra a profunda escuridãodo espaço interestelar. Entretanto, ao serlançada, não conseguiu nem mesmo com-pletar sua primeira mensagem de rádio ―um S.O.S. ― antes de sofrer um súbito e for-tuito colapso total de existência.

Ainda assim, o mesmo evento que demon-strou a desastrosa falha de uma ciência emsua infância também testemunhou a apo-teose de outra ciência. Foi provado, de formadefinitiva que o número de pessoas as-sistindo à cobertura na TV 3D do lançamentoera maior do que o número de pessoas queexistiam de fato na época ― algo que é hojereconhecido como a maior façanha de todosos tempos na ciência da pesquisa deaudiência.

Outro evento espetacular da mídia naquelaépoca foi o fato a estrela Ysllodins ter se tor-nado uma supernova poucas horas depois.

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Ysllodins é a estrela ao redor da qual amaioria dos grandes agentes de seguro viveou, melhor dizendo, vivia.

Ainda assim, enquanto essas espaçonaves,assim como outras famosas que vêm àmente, como os Cruzadores da FrotaGaláctica ― o GSS Daring, o GSS Audacy e oGSS

Suicidal Insanity ―, são mencionadas comreverência, entusiasmo, afeto, admiração,lástima, inveja, ressentimento ― e todas asemoções mais comumente conhecidas ―,aquela que em geral evoca o mais sincero es-panto é a Krikkit One, a primeira espaçonaveconstruída pelo povo de Krikkit.

Não que fosse uma nave fantástica. Não era.

Era uma pilha insana de sucata amontoada.Parecia ter sido montada no quintal de al-guém, e na verdade foi exatamente em um

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quintal que ela foi montada. O que erafantástico a respeito daquela nave não é quehouvesse sido bem construída (não foi), massimplesmente que houvesse sido construída.O tempo decorrido entre o momento que opovo de Krikkit descobriu que havia algochamado "espaço" e o lançamento de suaprimeira nave foi de quase um ano.

Ford Prefect estava profundamente aliviado,enquanto afivelava o cinto, por aquela serapenas outra Ilusão Informacional e port-anto ele estar em segurança.

Na vida real, aquela não era uma nave naqual ele colocaria os pés, nem por todo osaquê da China. Uma das expressões que lhevinham à mente era

"Completamente desconjuntada". A outraexpressão era “Posso sair daqui?”.

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― Essa coisa vai mesmo voar? ― disse Ar-thur, olhando com desconfiança para as tu-bulações e o cabeamento primitivos que en-tulhavam o interior da nave.

Slartibartfast lhe assegurou que aquilo iriavoar, que estavam perfeitamente seguros eque tudo seria extremamente instrutivo enada desconfortável.

Ford e Arthur decidiram relaxar e ficar an-gustiados numa boa.

― Por que não ― disse Ford ― pirar?

Na frente deles estavam os três pilotos que,naturalmente não percebiam a presençadeles pelo simples motivo de não estaremrealmente lá. Tinham participado da con-strução da nave. Estiveram na trilha da co-lina naquela noite cantando suas músicasprofundamente comoventes. Suas menteshaviam sido ligeiramente reviradas pela

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colisão da nave alienígena. Passaram seman-as revirando cada minúsculo segredo dosdestroços daquela nave incendiada, tudo issoenquanto cantarolavam melodiosas cantigassobre revirar naves espaciais.

Depois haviam construído sua própria nave elá estava ela. Aquela era a sua nave e no mo-mento estavam cantarolando sobre isso tam-bém, expressando a dupla alegria de ter real-izado e de possuir algo. O refrão era tocantee falava sobre a tristeza de que seu trabalhoos tivesse obrigado a passar tanto tempo nagaragem, longe de suas mulheres e filhos,que sentiram muita falta deles mas sempreos mantiveram alegres contando-lhes como ocachorrinho estava crescendo, saudável.

Pow!, decolaram.

Cruzaram o céu como uma nave que sabe ex-atamente o que está fazendo.

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― Não é possível ― disse Ford, um pouco de-pois de terem se recuperado do choque daaceleração, enquanto subiam para além daatmosfera do planeta ―, não é possível ― re-petiu ― que alguém possa projetar e constru-ir uma nave destas em um ano, não importao quão motivados estivessem. Não acredito.Mesmo que me provem, não acredito. ―Sacudiu a cabeça, pensativo, e olhou poruma escotilha para o vazio do lado de fora.

Por algum tempo nada aconteceu, e Slart-ibartfast apertou a tecla de avanço rápidopara prosseguirem.

Muito rapidamente, então, chegaram até operímetro interno da Nuvem de Poeira, oca eesférica, que circundava seu sol e seu plan-eta, ocupando a próxima órbita.

Foi como se houvesse uma mudança gradualna textura e consistência do espaço. A escur-idão parecia agora estar sendo arranhada e

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rasgada conforme passavam. Era uma escur-idão muito fria, um vácuo pesado; era a es-curidão do céu da noite de Krikkit.

Sua frieza e seu peso e seu vazio aos poucosse infiltraram no coração de Arthur e ele po-dia sentir nitidamente os sentimentos dos pi-lotos de Krikkit que flutuavam no ar comouma potente carga estática. Estavam agorano próprio limite do conhecimento históricode sua raça. Era este o ponto além do qualnenhum deles havia especulado, ou sequertomado conhecimento de que havia algosobre o qual especular.

A escuridão da nuvem esbofeteava a nave. Ládentro havia apenas o silêncio da história.Sua missão histórica era a de descobrir sehavia algo ou algum lugar do outro lado docéu de onde a espaçonave destroçadapudesse ter vindo. Um outro mundo, talvez,por mais estranho e incompreensível queesse pensamento fosse para as mentes

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fechadas daqueles que viviam sob o céu deKrikkit.

A história estava se preparando para des-fechar outro duro golpe.

Em volta, a escuridão continuavaarranhando-os, aquela escuridão vazia e en-volvente. Parecia estar cada vez mais próx-ima, cada vez mais densa, cada vez maispesada. E subitamente se desfez.

Voaram para além dos confins da nuvem.

Viram as maravilhosas jóias da noite em suainfinita poeira e suas mentes zumbiam demedo.

Permaneceram voando por mais algumtempo, imóveis contra a imensidão estreladada Galáxia, também ela imóvel contra aimensidão do Universo. Depois fizerammeia-volta.

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― Isso não pode ficar aí ― disseram os ho-mens de Krikkit enquanto navegavam paracasa.

No caminho de volta entoaram diversas can-ções que ponderavam sobre paz, justiça,moral, cultura, esportes vida em família e oaniquilamento de todas as outras formas devida.

Capítulo 13

Agora vocês compreendem ― disse Slart-ibartfast, mexendo devagar seu café artifi-cialmente preparado e, ao fazê-lo, mexendotambém as interfaces turbilhonantes entrenúmeros reais e irreais, entre as percepçõesinterativas da mente e do Universo, gerando,dessa forma, as matrizes reestruturadas deuma subjetividade implicitamente redobradaque permitia sua nave redefinir o próprioconceito de tempo e espaço ― como foi.

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― Sim ― disse Arthur.

― Sim ― disse Ford.

― O que eu faço ― disse Arthur ― com estepedaço de galinha? Slartibartfast olhou paraele seriamente.

― Brinque com ele ― disse ―, brinque comele. Pegou um de seus pedaços e mostrou-lheo que fazer. Arthur imitou-o e pôde sentir oligeiro formigamento de uma funçãomatemática perpassando a coxa de galinhaenquanto se movia quadridimensional-mente através daquilo que Slartibartfasthavia lhe dito ser um espaço de cincodimensões.

― De um dia para o outro ― disse Slartibart-fast ― toda a população de Krikkit deixou deser um grupo de encantadoras, agradáveis,inteligentes...

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― ...e esquisitonas...

― ...pessoas comuns ― disse Slartibartfast ―para se tornar grupo de encantadoras,agradáveis, inteligentes...

― ...e esquisitonas...

― ...pessoas xenófobas e maníacas. A ideiade que havia um Universo não se enquadravaem sua visão de mundo, digam assim. Nãopodiam lidar com ele.

Então, de forma encantadora, agradável e in-teligente ― até mesmo esquisitona, já quevocê insiste ―, decidiram destruir oUniverso. Qual o problema agora?

― Não gostei muito do vinho ― disse Arthur,cheirando-o.

― Mande devolver. Tudo faz parte damatemática da coisa. Arthur devolveu o

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vinho. Não gostou muito da topografia dosorriso do garçom, mas ele nunca gostara degráficos mesmo.

― Para onde estamos indo? ― perguntouFord.

― De volta para a Sala de Ilusões Informa-cionais ― disse Slartibartfast, levantando-see limpando a boca com a representaçãomatemática de um guardanapo de papel ―para assistirmos à segunda parte.

Capítulo 14

O povo de Krikkit ― disse Sua Altíssima Su-premacia Judicial, o Magistrado Pag, Presid-ente CIMR (Culto, Imparcial e MuitíssimoRelaxado) do Conselho de Juizes no Tribunalde Crimes da Guerra de Krikkit ― é, puxa,vocês, sabem, são apenas um bando de carasmuito legais, não é, que estavam apenas qu-erendo matar todo mundo. Muitas vezes é

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exatamente como me sinto pela manhã. Quemerda. Bem ― prosseguiu, colocando seuspés em cima do banquinho à sua frente efazendo uma pausa para catar um fiozinhosolto em seu Chinelo de Praia Cerimonial ―,não são pessoas com quem se deseje com-partilhar uma Galáxia.

Era verdade.

O ataque de Krikkit contra a Galáxia haviasido formidável. Milhares e milhares deimensas naves de guerra de Krikkit haviamsaído subitamente do hiperespaço e atacadosimultaneamente milhares e milhares deplanetas centrais, pegando Primeirosuprimentos materiais vitais para a con-strução da Próxima leva e depois calma-mente aniquilando os planetas.

A Galáxia, que naquela época passava porum período de grande paz e prosperidade,

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ficou atordoada como um homem sendo as-saltado em um pasto.

― Quero dizer ― continuou o MagistradoPag, olhando em volta da imensa e ul-tramoderna (isso fora há dez bilhões de anos,quando "ultramoderno" significava aço esco-vado e concreto em profusão) sala dotribunal ―, esses caras são totalmenteobsessivos.

Aquilo também era verdade, e era a única ex-plicação que já tinham conseguido formularpara a velocidade inimaginável com a qual opovo de Krikkit havia perseguido seu novo eúnico propósito ― a destruição de qualquercoisa que não fosse de Krikkit.

Também era a única explicação para a es-pantosa velocidade com que tinham com-preendido toda a hipertecnologia necessáriapara construir milhares de espaçonaves emilhões de robôs brancos mortíferos.

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Os robôs haviam aterrorizado profunda-mente todos aqueles que os encontraram,muito embora, na maioria dos casos, esseterror tivesse uma vida extremamente curta,assim como a vida da pessoa aterrorizada.Eram temíveis e cruéis máquinas de guerravoadoras com um único propósito. Traziamconsigo terríveis bastões de guerra multifun-cionais que, quando erguidos de uma forma,destruíam prédios e, quando erguidos deoutra forma, disparavam fulgurantes RaiosZapogun Omnidestrutivos; erguidos de umaterceira forma, lançavam um pavoroso ar-senal de granadas, que iam desde pequenosdispositivos incendiários até DispositivosHipernucleares Maxi-Slorta capazes deaniquilar uma estrela das grandes. O simplesato de bater nas granadas com os bastões deguerra fazia com que as granadas seativassem e as lançavam, com fenomenalprecisão, a distâncias que iam de alguns met-ros a centenas de milhares de quilómetros.

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― Bem ― disse novamente o Magistrado Pag―, então fomos nós que vencemos.

― Fez uma pausa e mastigou um chiclete. ―Vencemos ― repetiu ―, mas não chega a serum grande feito. Afinal, temos toda umagaláxia de tamanho médio contra umpequeno mundo... e quanto tempo levamos?Oficial de Justiça?

― Meritíssimo? ― disse o homem de aparên-cia austera, vestido de preto, levantando-se.

― Quanto tempo, rapaz?

― É um pouco difícil, Meritíssimo, dizer comexatidão. A distância e o tempo...

― Relaxe, rapaz, chute um número.

― É difícil chutar um número, Meritíssimo,em um assunto tão...

― Vamos, coragem, desembucha.

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O Oficial de Justiça piscou. Claramente,como a maioria dos que trabalhavam noJudiciário, achava que o Magistrado Pag[também conhecido pessoalmente como ZipoBibrok 5 x IO8, inexplicavelmente) era umafigura deplorável. Era obviamente grosseiroe não sabia se portar. Parecia pensar que ofato de possuir o cérebro jurídico mais bril-hante jamais conhecido lhe dava o direito dese comportar como bem entendesse e infeliz-mente parecia estar correto.

― É, hum, bem, Meritíssimo, de forma muitoaproximada, uns dois mil anos

― murmurou o Oficial, descontente.

― E quantos carinhas foram detonados?

― Dois grilhões, Meritíssimo ― o Oficial deJustiça sentou-se. Uma foto de seu hidro-spectro naquele momento teria revelado queestava fumegando levemente.

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O Magistrado Pag olhou mais uma vez para otribunal, no qual estavam reunidos centenasdos mais altos oficiais de toda a adminis-tração galáctica, todos eles em uniformes oucorpos de gala, dependendo do metabolismoe costumes locais. Atrás de uma parede deCristal Blindado AntiZap havia um grupo derepresentantes do povo de Krikkit, olhandocom um desdém calmo e polido para todosos alienígenas ali reunidos a fim de julgá-los.

Aquela era a ocasião mais importante dahistória do Judiciário, e o Magistrado Pagsabia disso.

Tirou o chiclete da boca e colou-o embaixode sua cadeira.

― É um montão de cadáveres ― disse, emtom de voz

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O silêncio desconfortável que perpassou otribunal parecia indicar que todosconcordavam.

― Então, como eu disse, são um bando decaras legais, ma não o tipo de gente comquem desejemos compartilhar Galáxia,sobretudo não se eles forem continuar comisso, se não aprenderem a relaxar um pouco.Quero dizer, vamos todos continuar tensos,não é?

Pow, pow, pow ― quando vão nos atacar denovo?

Não há a menor chance de coexistênciapacífica, não é? Alguém pode me trazer água,por favor?

Sentou-se e bebericou, refletindo.

― Tudo bem ― disse ―, ouçam-me, ouçam-me. É que, assim esses caras, vocês sabem,

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têm direito à visão deles do Universo. E, deacordo com essa visão, imposta peloUniverso, correto, eles agiram certo. Parecelouco, mas vocês têm que concordar. Elesacreditam em...

Consultou um pedaço de papel que tirou dobolso de trás de seu jeans judicial.

― Acreditam na "paz, justiça, moral, cultura,esporte, vida familiar e na aniquilação de to-das as outras formas de vida".

Deu de ombros.

― Já ouvi coisas bem piores. Coçou o saco deforma pensativa.

― Freeeow ― disse. Tomou outro gole deágua, depois colocou-a contra a luz e olhou-aintensamente, enquanto girava o copo.

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― Ei, tem alguma coisa nesta água? ―perguntou.

― Ahn, não, Meritíssimo ― dissenervosamente o serventuário que haviatrazido a água.

― Então leve-a ― retrucou o Magistrado ― ecoloque algo dentro dela. Tive uma ideia.

Afastou o copo e inclinou-se para a frente.

― Ouçam-me, ouçam-me todos ― disse.

Sua brilhante solução era a seguinte:

O planeta de Krikkit deveria ser trancado,por toda a eternidade, em um envoltório deTempolento, dentro do qual a vida continu-aria quase infinitamente lenta. Toda luz emtorno do envoltório seria desviada, de formaque ele permanecesse invisível eimpenetrável.

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Escapar do envoltório seria completamenteimpossível, a menos que fosse aberto do ladode fora.

Quando o restante do Universo chegasse aoderradeiro fim, quando toda a criação emi-tisse seu último suspiro (claro que isso foiantes de se descobrir que o fim do Universoseria um fantástico negócio para a área deculinária e restaurantes) e a vida e a matériadeixassem de existir, então o planeta Krikkite seu sol emergiriam do envoltório de Tem-polento para continuar sua existênciasolitária, como desejavam, no crepúsculo dovazio universal.

A Fechadura ficaria em um asteróide colo-cado em órbita lenta ao redor do envoltório.

Sua chave seria o símbolo da Galáxia ― oPortal de Wikkit.

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Quando os aplausos no tribunal finalmentecessaram, o Magistrado Pag já estava noChuveiro Sensormático com uma bela parti-cipante do júri, para a qual havia mandadoum bilhete meia hora antes.

Capítulo 15

Dois meses mais tarde, Zipo Bibrok 5 x IO8havia transformado seus jeans do EstadoGaláctico em bermudas e estava gastandoparte dos enormes honorários que cobravapor seus julgamentos deitado em uma praiade areia de pedras preciosas, e aquela mesmabela participante do júri estava massageandosuas costas com Essência de Qualactina. Elaera uma garota soolfiniana, vinda de trás dosNeblimundos de Yaga. Sua pele parecia sedade limão e ela se interessava profundamentepor corpos jurídicos.

― Você ouviu o noticiário?

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― Aaaiiuuuauuu! ― disse Zipo Bibrok 5 xIO8, e somente estando lá para entender porque ele disse isso. Nada foi gravado na fita deIlusões Informacionais e tudo se baseia emboatos.

― Não ― respondeu depois que a coisa que ohavia feito dizer "Aaaiiuuuauuu!"

tinha parado de acontecer. Ele virou o corpoligeiramente para pegar os primeiros raiosdo terceiro e maior dos sóis primevos deVod, que subia agora pelo horizonte de in-efável beleza enquanto o céu brilhava comuma das maiores forças bronzeadoras jamaisencontradas.

Uma brisa de aroma suave levantou-se domar, passeou pela praia e retornou ao mar,pensando aonde iria depois. Em um impulsosúbito, retornou à praia, depois voltou para omar.

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― Espero que não sejam boas notícias ―murmurou Zipo Bibrok 5 x IO8 ―, porqueacho que não suportaria.

Sua sentença no caso de Krikkit foi ex-ecutada hoje – disse a garotasuntuosamente.

Não havia necessidade de dizer uma coisatão simples suntuosamente, mas ela foi emfrente e disse asim mesmo porque com-binava com o jeitão do dia. – Ouvi no rádio― disse ela ―

quando voltei à nave para pegar a loção.

― Ahn ― murmurou Zipo, descansando suacabeça na areia de pedras preciosas.

― Aconteceu algo.

― Mmrnm?

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― Logo depois do envoltório de Tempolentoser trancado ― disse ela, interrompendo suamassagem ―, uma nave de guerra Krikkit,que achavam que estava desaparecida e pos-sivelmente destruída, estava apenas desa-parecida mesmo. Ela reapareceu e tentou seapoderar da Chave.

Zipo sentou-se com um gesto brusco.

― Como assim?

― Está tudo bem ― continuou ela, num tomde voz que acalmaria até mesmo o Big Bang.― Parece que houve uma rápida batalha. AChave e a nave foram desintegradas e desa-pareceram no contínuo espaço-temporal.Aparentemente, ambos se perderam parasempre.

Ela sorriu e deixou cair um pouco mais deEssência de Qualactina nos dedos. Ele relax-ou e deitou-se de costas.

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― Faça de novo o que você fez agora hápouco.

― Isso? ― perguntou ela.

― Não, não ― respondeu ele. ― Isso.

Ela tentou novamente.

― Isso? ― perguntou.

― Aaaiiuuuauuu!

Novamente, só mesmo estando lá.

A brisa de aroma suave levantou-se do maroutra vez.

Um mágico vagava pela praia, mas ninguémprecisava dele.

Capítulo 16

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Nada está perdido para sempre ― disseSlartibartfast, seu rosto tremeluzindo com aluz da vela que o garçom robô estava tent-ando levar ― a não ser a Catedral deChalesm.

― A o quê? ― perguntou Arthur.

― A Catedral de Chalesm ― repetiu Slart-ibartfast. ― Foi durante o tempo em que euestava fazendo pesquisas para a Campanhapelo Tempo Real que eu...

― A o quê? ― perguntou Arthur novamente.

O velho parou e reuniu seus pensamentos,para aquele que ele esperava ser o últimoataque à sua história. O garçom robô moveu-se pelas matrizes espaçotemporais con-seguindo combinar, de forma espetacular,uma rispidez malhumorada com uma gentilgraça, voou sobre a vela e conseguiu pegá-la.Eles já tinham recebido a conta, tinham

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discutido convincentemente sobre quemhavia comido o canelone e quantas garrafasde vinho eles tinham tomado e, como Arthurhavia percebido vagamente, através dissotudo haviam manobrado com sucesso a navepara fora do espaço subjetivo em uma órbitaestacionária em torno de um planeta es-tranho. O garçom estava agora ansioso paracompletar sua parte nesta confusão e limparo bistrô.

― Tudo irá se esclarecer ― disseSlartibartfast.

― Quando?

― Breve. Os fluxos temporais estão muitopoluídos atualmente. Há um monte de lixoflutuando por eles, refugos e destroços, ecada vez mais essas coisas estão sendo regur-gitadas do mundo físico. São zéfiros no con-tínuo espaçotemporal, sabe?

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― É ouvi falar ― disse Arthur.

― Ei, para onde estamos indo? ― disse Ford,afastando sua cadeira com impaciência. ―Queria muito que chegássemos lá.

― Estamos indo ― disse Slartibartfast emuma voz lenta e comedida ― tentar evitarque os robôs de guerra de Krikkit possam re-unir toda a Chave de que precisam paralibertar o planeta de Krikkit do envoltório deTempolento e, assim, libertar o resto de seuexército e seus Mestres ensandecidos.

― É só ― disse Ford ― que você falou sobreuma festa.

― Falei ― respondeu Slartibartfast, abaixan-do a cabeça.

Ele percebeu que aquilo havia sido um erro,porque a ideia parecia exercer uma estranhafascinação doentia na mente de Ford Prefect.

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Quanto mais Slartibartfast revelava a som-bria e trágica história de Krikkit e de seushabitantes, maior era o desejo de Ford de be-ber muito e dançar com garotas.

O velho sentiu que não deveria ter mencion-ado a festa até o último momento. Mas eratarde, ele já falara e Ford Prefect havia seagarrado à ideia da mesma forma que umaMegalesma Arcturiana se agarra à sua vítimaantes de arrancar sua cabeça e sumir comsua nave.

― Quando ― disse Ford, ansioso ― vamoschegar lá?

― Quando eu tiver acabado de lhes contarpor que temos que ir lá.

― Eu sei por que estou indo ― disse Ford, einclinou-se para trás e apoiando a nuca nasmãos. Deu um daqueles seus sorrisos quefaziam as pessoas estremecerem.

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Slartibartfast havia esperado, em vão, quesua aposentadoria fosse ser tranquila.

Planejara aprender a tocar o heebiefoneoctaventral, uma tarefa agradavelmente fútil,pois sabia que tinha o número inadequadode bocas.

Também planejara escrever uma monografiaexcêntrica completamente incorreta sobrefiordes equatoriais, só para deixar bemobscuras algumas coisas que ele consideravarealmente importantes.

Em vez disso, de alguma formaconvenceram-no a trabalhar em tempo par-cial para a Campanha pelo Tempo Real e elecomeçou a levar as coisas a sério pelaprimeira vez em sua vida. Por conta disso láestava ele, passando seus últimos anos devida combatendo o mal e tentando salvar aGaláxia.

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Achava aquele trabalho exaustivo. Suspirouprofundamente.

― Ouçam ― disse ele ― na Camtem...

― O quê? ― disse Arthur.

― A Campanha pelo Tempo Real, que eu ex-plico para vocês mais tarde.

Notei que cinco destroços que haviam re-centemente sido jogados de volta à existênciapareciam corresponder às cinco partes desa-parecidas da Chave. Só consegui determinarcom exatidão o destino de duas delas ― oPilar de Madeira, que reapareceu no seuplaneta, e a Trave de Prata, que parece terido parar em uma espécie de festa.

Precisamos ir até lá pegá-la antes que osrobôs de Krikkit a encontrem, senão nin-guém sabe o que poderá acontecer.

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― Não ― disse Ford com firmeza. ― Precis-amos ir à festa para beber muito e dançarcom garotas.

― Mas será que você ainda não entendeutudo que eu...?

― Sim ― declarou Ford, com inesperadaveemência ―, entendi tudo perfeitamentebem. É justamente por isso que quero bebertudo o que puder e dançar com todas as ga-rotas que encontrar enquanto elas ainda es-tão por aí. Se tudo que você nos mostrou éverdade...

― Verdade? Claro que sim!

Então estamos tão ferrados quanto ummolusco numa supernova.

― Um o quê? ― entrecortou Arthur nova-mente. Mal ou bem, ele tinha conseguido

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seguir a conversa até aquele ponto e nãoqueria perder o fio da meada agora.

Tão ferrados quanto um molusco numa su-pernova ― repetiu Ford, sem perder o ritmo.― A...

― O que os moluscos têm a ver com as su-pernovas? ― perguntou Arthur.

― Eles não têm ― disse Ford, sem se alterar― a menor chance dentro delas.

Fez uma pausa para ter certeza de que estavatudo claro agora. As novas expressões deperplexidade que se espalhavam pelo rostode Arthur lhe diziam que nada estava claro.

― Uma supernova ― continuou Ford o maisrápido e claramente possível ― é uma estrelaque explode com cerca da metade da velocid-ade da luz e queima com o brilho de bilhõesde sóis antes de entrar em colapso e virar

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uma estrela de nêutrons superdensa. É umaestrela que engole outras estrelas, sacou?Nada tem a menor chance diante de umasupernova.

― Entendo ― respondeu Arthur.

― A...

― Mas, então, por que um molusco emparticular?

― E por que não um molusco? Não fazdiferença!

Arthur aceitou esse ponto, e Fordprosseguiu, procurando retomar suaveemência anterior.

― A questão então é que pessoas como eu evocê, Slartibartfast, assim como Arthur

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― particularmente e especialmente Arthur―, somos meros diletantes, excêntricos, vag-abundos ou bundões, como quiser.

Slartibartfast fechou o rosto, em parte per-plexo e em parte ofendido.

Começou a falar.

― ... ― foi até onde chegou.

― Não somos obcecados com coisa alguma,entende? ― insistiu Ford.

― ...

― E este é o fator decisivo. Não podemosvencer contra obsessão. Eles se importam,nós não. Então eles vencem.

― Eu me importo com muitas coisas ― disseSlartibartfast sua voz trêmula de irritação,mas também por incerteza.

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― Tais como?

― Ora ― disse o velho ―, a vida, o Universo.Tudo o mais, na verdade. Fiordes.

― Você está pronto a morrer por eles?

― Fiordes? ― Slartibartfast arregalou os ol-hos, surpreso. ― Não.

― É isso.

― Não faria sentido, para ser franco.

― E eu continuo não vendo a relação com osmoluscos. Ford sentia que a conversa estavasaindo de seu controle e se recusava a perdero foco naquele momento.

― O ponto é ― disse, sibilando ― que nãosomos pessoas obsessivas, e não temos amenor chance contra...

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― Exceto por esta sua obsessão súbita commoluscos ― insistiu Arthur ―, que continuonão entendendo.

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― Quer por favor deixar a porcaria dosmoluscos de fora?

― Com prazer, se você fizer o mesmo ― re-spondeu Arthur. ― Foi você que trouxe isso àtona.

― Admito que foi um erro ― disse Ford. ―Esqueça. A questão é a seguinte.

Inclinou-se para a frente e apoiou a testa naponta dos dedos.

― Que diabos eu estava dizendo? ― falou,desgastado.

― Bem, vamos resumir a coisa e descer paraa festa ― disse Slartibartfast ―, seja qual foro nosso motivo. ― Levantou-se, balançandoa cabeça.

― Acho que era isso que eu queria dizer ―completou Ford. Por motivos não

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esclarecidos, os cubículos de teletransporteficavam no banheiro.

Capítulo 17

As viagens no tempo têm sido vistas, cadavez mais, como uma ameaça. A história estásendo poluída.

A Enciclopédia Galáctica tem muito a dizersobre a teoria e prática das viagens notempo, mas a maioria do que ela diz é incom-preensível para qualquer um que não tenhapassado pelo menos quatro vidas estudandohipermatemática avançada e, uma vez queisso era impossível antes da invenção dasviagens no tempo, reina uma certa confusãoa respeito de como a idéia surgiuinicialmente.

Uma racionalização desse problema declaraque viajar no tempo foi, por sua próprianatureza, descoberta simultaneamente em

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todos os períodos da história, mas isso ob-viamente não faz o menor sentido.

O problema é que boa parte da história atu-almente também não faz o menor sentido.

Eis um exemplo. Pode não parecer muito im-portante para algumas pessoas, mas paraoutras é crucial. Certamente é significativopor ter sido o evento específico que instigoua criação da Campanha pelo Tempo Realpela primeira vez (ou teria sido pela última?

Depende muito do sentido em que você estávendo a história decorrer, o que também temse tornado uma gestão cada vez maisconfusa).

Existe, ou existiu, um poeta. Seu nome eraLallafa e ele escreveu um conjunto depoemas tidos, em toda a Galáxia, como al-guns dos melhores já escritos: as Canções deLong Land.

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São/eram de uma beleza indizível. Em outraspalavras, você não seria capaz de recitar umtrecho longo de uma só vez sem ser tomadofortemente pela emoção e por um senso deverdade, totalidade e unicidade das coisassem que, rapidamente você precisasse daruma volta rápida pelo quarteirão, possivel-mente parando em um bar ao retornar paratomar uma dose rápida de perspectiva e be-bida. Eram realmente bons.

Lallafa passou a vida nas florestas de LongLand de Effa. Foi onde morou e também foionde escreveu seus poemas. Escreveu-os empáginas feitas a partir de folhas secas dehabra, sem ter estudado nem possuir fluidocorretivo. Escreveu sobre a luz na floresta e oque pensava disso. Escreveu sobre a escur-idão na floresta e o que pensava disso. Etambém sobre a garota que o tinha deixado eexatamente o que pensava disso.

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Muito depois de sua morte, seus poemas fo-ram encontrados e admirados.

As notícias se espalharam como o sol damanhã. Durante séculos, iluminaram e ir-rigaram as vidas de muitas pessoas, que, deoutra forma, teriam sido mais sombrias emais secas.

Então, pouco depois da invenção das viagenspelo tempo, alguns dos grandes fabricantesde fluido corretivo ponderaram se os poemasnão seriam ainda melhores se Lallafa tivessetido acesso a fluido corretivo de alta qualid-ade, e ponderaram se ele não poderia sergentilmente convencido a dizer algumas boascoisas a esse respeito.

Viajaram pelas ondas do tempo,encontraram-no, explicaram a situação ―com alguma dificuldade ― para ele, queacabou se deixando convencer. Na verdade,deixou-se convencer a tal ponto que ele se

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tornou muito rico por conta disso, e a garotasobre a qual ele deveria originalmente escre-ver com detalhes nunca o deixou. Na ver-dade, os dois se mudaram da floresta paraum bom local na cidade e ele freqüentementedava um pulinho até o futuro para participarde programas de entrevista nos quais bril-hava com sua sagacidade.

Com tudo isso, é claro que ele jamais con-seguiu escrever os poemas, o que causavaproblemas, todos facilmente contornáveis.Os fabricantes de fluido corretivo o des-pacharam para algum lugar ermo duranteuma semana com uma cópia de uma ediçãoposterior de seu livro e uma pilha de folhassecas de habra sobre as quais ele deveriacopiá-los, fazendo alguns erros propositais ecorreções ao mesmo tempo.

Muitas pessoas dizem que os poemas per-deram completamente o valor.

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Outros argumentam que são exatamente omesmo que sempre foram, então o quemudou? O primeiro grupo diz que esta não éa questão. Eles não sabem muito bem qual éa questão, mas estão bem certos de que não éesta. Começaram, então, a Campanha peloTempo Real para tentar impedir que essetipo de coisa continue acontecendo. Suacausa ganhou considerável importância, jáque, apenas uma semana depois de eles ter-em se organizado, surgiu a notícia de quenão apenas a grande Catedral de Chalesmhavia sido derrubada para construir umanova refinaria de íons, como também a con-strução da refinaria tinha levado tanto tempoe se prolongado para um passado tão dis-tante que, para iniciar a produção de íonsdentro do cronograma, a catedral não haviasequer sido construída.

Subitamente, cartões-postais com imagensda catedral tornaram-se muito valiosos.

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Então muitas coisas na história acabaram seperdendo para sempre. A Campanha peloTempo Real proclama que, assim como a fa-cilidade em viajar arruinou as diferençasentre os diferentes mundos, também as via-gens no tempo estavam agora arruinando asdiferenças entre uma época e as outras.

― O passado ― dizem eles ― é agora exata-mente como um país estrangeiro.

Todos fazem as mesmas coisas do mesmojeito.

Capítulo 18

Arthur materializou-se com seu já tradicion-al espalhafato, cambaleando e sentindo umaperto na garganta, no coração e em váriosoutros órgãos. Era algo que ele ainda se per-mitia sempre que precisava realizar uma des-tas horrorosas e dolorosas materializações

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com as quais estava determinado a não seacostumar.

Olhou em volta procurando os outros.

Não estavam lá.

Olhou novamente em volta procurando osoutros.

Continuavam não estando lá.

Fechou os olhos.

Abriu-os.

Olhou em volta procurando os outros.

Persistiam obstinadamente em sua ausência.

Fechou novamente os olhos, preparando-separa executar este exercício absolutamenteinútil mais uma vez; e foi só então, enquantoseus olhos estavam fechados, que seu

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cérebro passou a registrar a imagem queseus olhos estavam vendo enquanto abertos.Franziu as sobrancelhas, perplexo.

Então abriu os olhos de novo, a fim de verifi-car os fatos, e continuou com o rostofranzido.

Se algo mudou, foi apenas o rosto franzindoainda mais e se arraigando nesta posição. Seaquilo era uma festa, era bem ruim ― tãoruim, na verdade, que todos tinham ido em-bora. Ele abandonou esta linha de raciocínio,concluindo que era inútil. Obviamente aquilonão era uma festa. Era uma caverna, umlabirinto, ou um túnel feito de algo ― estavaescuro demais para saber. Estava completa-mente escuro, uma escuridão úmida eluzente. Os únicos sons eram os ecos de suaprópria respiração que soava preocupada.Tossiu baixinho e teve que ouvir o eco fant-asmagórico de sua tosse vagando entre oscorredores infindáveis e as câmaras

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invisíveis, como em um grande labirintoeventualmente retornando até ele pelos mes-mos corredores invisíveis como quedizendo...

― Sim?

A mesma coisa acontecia a cada mínimobarulho que fazia, o que o deixava nervoso.Tentou cantarolar algo alegre, mas, quando osom voltou até ele, era uma marcha fúnebre,então decidiu parar.

Sua mente ficou cheia de imagens da históriaque Slartibartfast lhe contou.

A cada instante esperava ver os letais robôsbrancos surgirem das sombras para matá-lo.Prendeu a respiração. Eles não vieram.Voltou a respirar. Não sabia o que esperar.

Alguém ou alguma coisa, contudo, pareciaestar esperando por ele, já que, naquele

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instante, acendeu-se subitamente, ao longena escuridão, um fantasmagórico letreiro emnéon verde.

Dizia, silenciosamente:

VOCÊ FOI REDIRECIONADO.

O letreiro piscou novamente e se apagou deuma forma que não conseguiu decidir segostava ou não. Ele piscou e se apagou comuma espécie de floreio desdenhoso. Arthurentão tentou reassegurar-se de que aquiloera apenas um truque ridículo de suaimaginação.

Um letreiro em néon estava ligado ou desli-gado, dependendo de haver ou não eletricid-ade passando. Não havia nenhuma forma,disse para si mesmo, do letreiro fazer atransição de um estado para o outro com umfloreio desdenhoso. Ainda assim, ele abraçou

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o próprio corpo com força dentro de seuroupão, sentindo frio na espinha.

O letreiro em néon, nas profundezas,acendeu-se novamente, desorientador, comapenas três pontos e uma vírgula. Assim; ...,

Só que em néon verde.

Arthur percebeu, após olhar perplexo paraaquilo durante poucos segundos, que o le-treiro tentava indicar que havia mais, que afrase ainda não estava completa. Tentava, re-fletiu Arthur com um pedantismo sobre-hu-mano. Ou, pelo menos, desumano.

A sentença completou-se, então, com estasduas palavras: ARTHUR DENT.

Sobressaltou-se. Fixou novamente o olharpara ter certeza.

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O letreiro continuava dizendo ARTHURDENT, então sobressaltou-se novamente.

Mais uma vez, o letreiro piscou e se apagou,deixando-o no escuro, com a imagem ver-melha de seu nome quicando em sua retina.

BEM-VINDO, disse a luz néon em seguida.

Pouco depois, acrescentou:

ACHO QUE NÃO.

O medo gélido que havia pairado sobre Ar-thur durante todo aquele tempo, esperandoum bom momento, percebeu que aquele eraum bom momento e caiu sobre ele.

Arthur tentou lutar contra ele. Agachou-seem uma espécie de posição de alerta que viraalguém fazer uma vez na televisão, mas deveter sido alguém com joelhos mais fortes. Eletentou enxergar escuridão adentro.

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― Ahn, oi? ― disse.

Limpou a garganta e repetiu a mesma coisa,mais alto e sem o "ahn". Em algum ponto docorredor à sua frente pareceu que alguémhavia subitamente começado a bater em umbumbo.

Prestou atenção durante alguns segundos eentão percebeu era apenas seu coraçãobatendo.

Prestou atenção durante mais alguns segun-dos e percebeu não era seu coração batendo,mas alguém batendo em um bumbo corredorabaixo.

Gotas de suor se formaram em sua testa,tensionaram-se e depois pularam fora.

Colocou uma das mãos no chão para firmarsua posição de alerta, que não estava indo

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muito bem. O letreiro mudou de novo. Diziaagora:

NÃO SE PREOCUPE.

Após uma breve pausa, acrescentou:

FIQUE EXTREMAMENTE ASSUSTADO,ARTHUR DENT.

Mais uma vez piscou e apagou-se. Mais umavez deixou-o em meio à escuridão.

Seus olhos pareciam querer sair das órbitas.Não tinha certeza se era porque estava tent-ando enxergar melhor ou se eles simples-mente queriam cair fora naquele momento.

― Alô? ― disse novamente, desta vez tent-ando colocar em sua voz um tom de autocon-fiança agressivo e duro. ― Tem alguém aí?

Nenhuma resposta, nada.

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Isso irritou Arthur Dent muito mais do quequalquer resposta e ele começou a afastar-sedaquele vazio assustador. Quanto mais seafastava, mais assustado ficava. Depois de al-gum tempo, entendeu que estava com medopor causa de todos os filmes a que tinha as-sistido, nos quais o herói vai recuando cadavez mais de um suposto perigo à sua frente eacaba esbarrando nele por trás.

Foi exatamente quando pensou que deveriavirar-se rapidamente.

Não havia nada lá.

Apenas a escuridão.

Aquilo o deixou realmente nervoso e elecomeçou a afastar-se de volta para ondetinha vindo.

Depois de um curto tempo, percebeu subita-mente que agora estava recuando

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exatamente para o lugar do qual estiver re-cuando da primeira vez.

Não pôde deixar de pensar que aquilo deviaser uma completa tolice.

Decidiu então que seria melhor recuar daforma como estivera recuando da primeiravez e virou-se novamente

Acabou que seu segundo instinto estava cor-reto, porque havia um monstro indescritivel-mente pavoroso imóvel em silêncio atrásdele. Arthur tremia desesperadamente, en-quanto sua pele tentava saltar para um ladoe seu esqueleto para o outro. Seu cérebro,enquanto isso, tentava decidir-se por qualdas duas orelhas ele realmente desejava sair.

― Aposto que você não esperava me encon-trar novamente ― disse o monstro, e Arthurachou que era uma observação bem estranhada parte do monstro, uma vez que jamais

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havia encontrado a criatura antes. Tinha cer-teza de que nunca havia encontrado a cri-atura antes pelo simples fato de que con-seguia dormir à noite. Aquilo era... aquiloera...

aquilo era...

Arthur piscou e olhou novamente. O mon-stro estava absolutamente imóvel e,pensando bem, tinha algo familiar.

Uma terrível e fria calma apoderou-se delequando compreendeu que estava olhandopara um holograma de uma mosca comquase dois metros de altura.

Perguntou-se por que alguém estaria in-teressado em mostrar-lhe um holograma deuma mosca com quase dois metros de alturanaquele momento.

Perguntou-se de quem era aquela voz.

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Era um holograma horrivelmente realístico.

Ele desapareceu.

― Ou talvez você se lembre melhor de mim― disse a voz subitamente, e era uma vozprofunda, gutural e malevolente que soavacomo alcatrão derretido escorrendo de umbarril idéias malignas em sua mente ― comoo coelho.

Com um súbito ping, surgiu um coelhonaquele labirinto curo, um enorme, mon-struosa e odiosamente macio e adorávelcoelho. Novamente era apenas uma imagem,mas cada um dos macios e adoráveis pêlosparecia uma coisa única e real crescendo emsua pele macia e adorável. Arthursurpreendeu-se ao ver seu próprio reflexonaqueles suaves e adoráveis imensos olhoscastanhos que não piscavam.

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― Nascido na escuridão ― rosnou a voz ―,criado na escuridão. Uma manhã, pelaprimeira vez coloquei minha cabeça parafora naquele reluzente mundo novo e ela foipartida ao meio por algo que se pareciamuito com um suspeito instrumento primit-ivo feito de sílex. Feito por você, ArthurDent, e manejado por você. De formabastante brutal, pelo que me lembro. Vocêtransformou minha pele em uma sacola naqual guardava pedras interessantes. Fiqueisabendo disso por acaso, já que, em minhavida seguinte, retornei como uma mosca evocê me matou. De novo. Só que desta vezvocê me matou com a bolsa que havia feitocom minha pele anterior. Arthur Dent, vocênão apenas é um homem cruel e desalmado,como também é absurdamente sem tato.

A voz fez uma pausa enquanto Arthur olhavaem volta, abestalhado.

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― Vejo que você perdeu a bolsa ― disse avoz. ― Provavelmente se cansou dela, não é?

Arthur sacudiu a cabeça, desesperado. Quer-ia explicar que, na verdade, adorava aquelabolsa e cuidava dela com muito cuidado e alevava com ele para onde quer que fosse,mas, por algum motivo, sempre que viajavapara algum lugar acabava inexplicavelmentecom uma outra sacola e que, muito peculiar-mente, naquele exato momento havia notadopela primeira a sacola que estava carregandoagora parecia ser feita de uma imitaçãofajuta de pele de leopardo que não era amesma que estava com ele pouco antes de terchegado naquele qualquer lugar que fosse, eque aquela não era uma sacola que, pessoal-mente, ele teria escolhido, e só Deus sabe oque poderia ter lá dentro ― posto que nãoera dele ―, e que gostaria muito de ter nova-mente sua sacola original, exceto, claro, pelofato de lamentar profundamente ter re-movido tão peremptoriamente a dita sacola,

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ou melhor dizendo, ter removido as partesque a constituíam, ou seja, a pele de coelho,de seu dono anterior, seja dito o coelho aoqual tinha, naquele instante a honra detentar em vão dirigir-se.

Na prática, tudo que conseguiu dizer foi:

― Eh...

― Veja agora a salamandra na qual vocêpisou.

E lá estava, no mesmo corredor que Arthur,uma gigantesca salamandra verde escamada.Arthur se virou, gritou, pulou para trás e viu-se de pé no meio do coelho. Gritou de novo,mas não achou outro lugar para onde pular.

― Essa também era eu ― prosseguiu a voz,em tom grave e ameaçador ―, como se vocênão soubesse...

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― Saber? ― disse Arthur, espantado. ―Saber?

― A coisa mais interessante sobre a reen-carnação ― rosnou a voz ― é que a maioriadas pessoas, a maioria dos espíritos não per-cebem o que está acontecendo com eles.

Fez uma pausa dramática. Na opinião de Ar-thur, já havia drama suficiente naquilo tudo.

― Eu tinha consciência ― sussurrou a voz ―,ou melhor, eu me tornei consciente.

Lentamente. Gradualmente.

Ele, quem quer que fosse, parou novamentee tomou fôlego:

― Não podia evitar, não é mesmo? ― berrou― A mesma coisa continuava acontecendo,de novo, de novo, de novo! Em cada vida quejá vivi fui morto por Arthur Dent. Qualquer

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mundo, qualquer corpo, qualquer tempo, as-sim que estou me acostumando lá vem Ar-thur Dent e, paft!, me mata. Difícil não not-ar, não é?

Meio que um lembrete. Meio que um mar-cador. Meio que uma maldita pista!

"Engraçado", dizia meu espírito para simesmo enquanto ele voava de volta para ovazio da não-existência após outra aventurana terra dos vivos, terminada por Dent,

"...engraçado que aquele homem que acaboude me atropelar, enquanto eu saltitava at-ravés da estrada em direção a meu lago fa-vorito, me pareceu familiar..." Aos poucosentão, consegui juntar as peças, Dent, seumaníaco multiassassino de mim.

Os ecos da voz reverberavam para cima epara baixo dos corredores. Arthur

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permaneceu silencioso e frio, sacudindo acabeça, sem acreditar.

― Eis o momento, Dent ― grasnou a voz,agora atingindo um tom de ódio febril

―, eis o momento em que eu finalmentesoube!

A coisa que subitamente se abriu diante deArthur era indescritivelmente horrenda,fazendo-o engolir em seco e gorgolejar deterror, mas vamos fazer uma tentativa dedescrever quão horrenda a coisa era. Erauma enorme e pulsante caverna úmida comuma imensa e gosmenta criatura similar auma baleia rolando dentro dela e escor-regando sobre monstruosas lápides brancas.No alto da caverna havia um vastopromontório no qual se podia ver os recessosescuros de outras duas terríveis cavernas, asquais...

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Arthur Dent percebeu subitamente que es-tava olhando para sua própria boca, quandosua atenção deveria estar concentrada na os-tra viva que estava sendo irremediavelmenteenfiada dentro dela.

Cambaleou para trás gritando e desviou osolhos.

Quando abriu novamente os olhos viu que aterrível aparição tinha sumido. O

corredor estava escuro e, por alguns in-stantes, silencioso. Estava sozinho com seuspensamentos. Eram pensamentos extrema-mente desagradáveis e ele preferia ter umacompanhante por perto.

O próximo barulho que ouviu foi o tremorgrave e maciço de uma grande parte daparede se abrindo para o lado, revelando,por enquanto, apenas uma negra escuridãoatrás dela. Arthur olhou para dentro da

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mesma forma que um rato olha para dentrode um canil escuro.

E a voz dirigiu-se a ele novamente.

― Diga-me que foi apenas coincidência,Dent. Eu o desafio a dizer que foi apenascoincidência.

― Foi uma coincidência ― disse Arthur,rapidamente.

― Não foi não! ― retrucou a voz com umberro.

― Foi ― disse Arthur ―, foi sim...

― Se foi apenas coincidência, então meunome ― ribombou a voz ― não é Agrajag.

― Devo presumir ― disse Arthur ― que vocêafirma que era esse o seu nome.

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― Sim ― retrucou Agrajag, como se tivessecompletado um brilhante silogismo.

― Bem, lamento dizer que ainda assim foiapenas coincidência ― disse Arthur.

― Venha até aqui e repita isto! ― urrou avoz, novamente em fúria.

Arthur entrou lá e disse que era uma coin-cidência, ou melhor, quase conseguiu dizerque era uma coincidência. Sua língua meioque perdeu o passo perto do final da últimapalavra porque as luzes se acenderam e elepôde ver onde havia entrado.

Era uma Catedral do Ódio.

Era produto de uma mente não apenas retor-cida, mas completamente distendida.

Era enorme. E terrível.

Tinha uma Estátua nela.

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Mas voltaremos à Estátua em breve.

Aquela vasta, incompreensivelmente vastacâmara parecia sido escavada no interior deuma montanha ― o que se devia precis-amente ao fato de ela ter sido escavada nointerior de uma montanha. Arthur sentiatudo girando de forma nauseante em tornode sua cabeça enquanto tentava olhar para acâmara.

Era negra.

Onde não era negra seria geralmente dese-jável que fosse, por conta das cores escolhi-das para alguns dos indizíveis detalhes. Ascores percorriam pavorosamente todo o es-pectro de cores nauseantes, indo do Ultravi-olento ao Infravermicida, passando pelo Púr-pura Fígado, Lilás Execrável, AmareloVômito, sem deixar de lado o HombreCremado e Gan Grená.

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Os detalhes indizíveis nos quais essas coresforam usadas eram gárgulas que teriam feitoFrancis Bacon desistir de seu almoço.

Todas as gárgulas olhavam para dentro, afix-adas nas paredes, nos pilares, nos contrafor-tes, nos assentos do coro ― todas olhavamem direção à Estátua, a respeito da qualfalaremos em breve.

E, se as gárgulas teriam feito Francis Bacondesistir de seu almoço, ficava claro, pela caradas gárgulas, que a Estátua teria fato comque elas desistissem de seu próprio almoço.Isso, claro, se estivessem vivas para comê-lo― coisa que não estavam ― e se alguémtivesse tentado servir-lhes um almoço ―coisa que não fizeram.

Nas monumentais paredes havia enormesplacas de pedra em memória daqueles quehaviam sido mortos por Arthur Dent

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Os nomes de alguns dos imortalizados es-tavam sublinhados e tinham asteriscos aoseu lado. Por exemplo, o nome de uma vacaque foi abatida e da qual Arthur por acasocomeu um filé tinha seu nome gravado semdestaque, enquanto o nome de um peixe, queo próprio Arthur pescou, depois decidiu quenão gostou e finalmente deixou no canto doprato, esta sublinhado duas vezes, com trêsasteriscos e uma adaga ensangüentada acres-centados como decoração para deixar coisasbem claras.

O mais perturbador em tudo isso ― tirando aEstátua, que estamos aos poucos in-troduzindo, por etapas ― era a implicaçãomuito clara de que todas aquelas pessoas ecriaturas eram de fato uma só, repetidasvezes.

Estava igualmente claro que aquela pessoaestava, ainda que de forma injusta, muitochateada e irritada.

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Na verdade, seria razoável dizer que aquelapessoa tinha atingido um nível de irritaçãojamais visto no Universo. Era uma irritaçãode proporções épicas, uma chama flamejantee ardente de irritação, uma irritação queabrangia todo o tempo e o espaço em sua in-finita sombra.

E esta irritação tinha sido expressa da formamais contundente na Estátua que ficava nocentro de toda essa monstruosidade, que erauma estátua de Arthur Dent, não muito lis-onjeira, por sinal. Com 15 metros contados,não havia um centímetro nela que não est-ivesse cheio de insultos àquele lá repres-entado, e 15 metros de insultos seriam sufi-cientes para fazer qualquer um sentir-se mal.Desde a pequena espinha ao lado de seu nar-iz até o horrível corte de seu roupão, nenhumaspecto de Arthur Dent deixou de ser escul-hambado e vilipendiado pelo escultor.

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Arthur era mostrado como uma górgona, umogro malvado, voraz e faminto por sangue,massacrando tudo em sua passagem peloinocente Universo de um só homem.

Com cada um dos 30 braços que o escultor,num ímpeto de fervor artístico, havia de-cidido lhe dar, a Estátua estava esmagando acabeça de um coelho, matando uma mosca,partindo um osso da sorte, arrancando umpiolho do cabelo fazendo alguma coisa queArthur não conseguiu identificar na primeiravez.

Seus muitos pés estavam basicamente es-magando formigas.

Arthur cobriu os olhos com as mãos, inclinoua cabeça e sacudiu-a lentamente de um ladopara o outro, diante da tristeza e do horrorevocados por toda aquela maluquice.

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Quando reabriu os olhos, viu à sua frente ohomem ou criatura, ou o que quer que fosse,que supostamente ele estava perseguindo otempo todo.

― Rrrrrrrrrhhhhhh-haaaaaaaaHHHHHHHHl ― disse Agrajag.Ele, ou aquilo, ou o que fosse, parecia ummorcego gordo enlouquecido. Caminhoulentamente em torno de Arthur, cutucando-ocom suas garras recurvadas.

― Olhe....! ― reclamou Arthur.

― Rrrrrrrrrhhhhhh-haaaaaaaaHHHHHHHH! ― explicou Agra-jag, e Arthur aceitou aquilo, relutantemente,pelo simples fato de estar bastante assustadopor aquela medonha e estranhamente dis-forme aparição.

Agrajag era negro, inchado, enrugado ecoriáceo.

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Suas asas de morcego eram ainda mais as-sustadoras por serem coisas pateticamentequebradas e desajeitadas do que se fossemasas fortes e musculosas. A coisa mais ter-rível era provavelmente a tenacidade de suaexistência, que continuava apesar de violartodas as probabilidades da física.

Tinha uma coleção de dentes muitoimpressionante.

Era como se cada um deles tivesse vindo deum animal diferente e depois tivessem sidoarrumados dentro de sua boca em ângulostão bizarros que, se Arthur Dent realmentefosse tentar mastigar alguma coisa, pareciaque iriam dilacerar metade de sua própriaface ao mesmo tempo, além de arrancar umolho.

Cada um dos três olhos era pequeno e in-tenso, parecendo ter a mesma sanidade deum peixe em um arbusto.

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― Foi numa partida de críquete ― disse,rancoroso.

Diante de tudo que estava acontecendo, Ar-thur achou que isso era uma noção tão ab-surda que praticamente se engasgou

― Não neste corpo ― grasnou a criatura ―,não neste corpo Este é meu último corpo.Minha última vida. É meu corpo para avingança. Meu corpo para matar ArthurDent.

Minha última chance, e ainda tive que lutarpara consegui-la.

― Mas...

― Foi em uma ― esbravejou Agrajag ―partida de críquete! Eu tinha um coraçãofraco, com problemas, mas o que poderia meacontecer, disse para a minha mulher, emuma partida de críquete? E lá estava eu,

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vendo o jogo, e o que aconteceu? Duas pess-oas surgiram do nada, maliciosamente, àminha frente. A última coisa que não pudedeixar de notar antes que meu pobre coraçãopifasse por conta do choque foi que umadelas era Arthur Dent usando um osso decoelho em sua barba. Coincidência?

― Sim ― disse Arthur.

― Coincidência? ― gritou a criatura, dol-orosamente esmigalhando suas asas quebra-das e abrindo uma pequena ferida em suabochecha direita com um dente particular-mente nojento. Olhando mais de perto, coisaque vinha tentando evitar, Arthur notou queboa parte da face de Agrajag estava cobertapor pedaços de band-aid preto.

Afastou-se nervosamente. Passou a mão pelabarba. Ficou perplexo ao descobrir que aindaestava com o osso de coelho enfiado nela.Arrancou-o e jogou fora.

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― Olhe ― disse ele ―, é apenas o destinofazendo travessuras com você. E

comigo. Conosco. É uma completacoincidência.

― O que você tem contra mim, Dent? ― ros-nou a criatura, avançando contra ele e man-cando dolorosamente ao fazê-lo.

― Nada ― insistiu Arthur. ― Honestamente,nada.

Agrajag olhou para ele com intensidade.

Matar uma pessoa o tempo todo me pareceuma forma bem estranha de se relacionarcom alguém contra quem você não tem nada.Eu diria mesmo que é uma forma bem pecu-liar de interação social. Também diria que éuma mentira!

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Mas, veja ― disse Arthur ―, realmentelamento muito. Houve um terrível engano.

E preciso ir. Você tem um relógio? Eu dever-ia estar ajudando a salvar o Universo. ―

Afastou-se ainda mais. Agrajag aproximou-se ainda mais.

― Houve um ponto ― disse ele ― em quehavia resolvido desistir. Sim, eu não voltariamais. Ficaria no mundo dos mortos. E o queaconteceu?

Arthur sacudiu aleatoriamente a cabeça paraindicar que não tinha a menor idéia e nemqueria ter uma. Percebeu que havia recuadoaté encostar-se na pedra preta que havia sidoescavada sabe-se lá por meio de que esforçohercúleo e transformada em uma imitaçãogrotesca de seus chinelos. Ele olhou paracima, para a horrenda paródia de si mesmoque se erguia acima dele. Continuava sem

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entender o que uma de suas mãos estariafazendo.

― Fui involuntariamente precipitado devolta no mundo físico ― prosseguiu Agrajag― como um ramalhete de petúnias. Dentrode um vaso, devo acrescentar.

Esta vidinha particularmente feliz começoucomigo, em meu vaso, sem nenhum apoio,500 quilômetros acima da superfície de umplaneta particularmente sombrio. Não era,como você talvez tenha pensado, umaposição naturalmente sustentável para umvaso de petúnias. Você estaria certo empensar assim.

Aquela vida terminou muito pouco tempodepois, 500 quilômetros abaixo.

Dentro dos restos de um cachalote desped-açado, devo acrescentar. Meu irmãoespiritual.

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Olhou maliciosamente para Arthur com umódio ainda maior

― Enquanto caía ― rosnou ―, não pudedeixar de notar uma bela espaçonave branca.Observando por uma portinhola dessa belaespaçonave branca, com cara de espertalhão,estava Arthur Dent. Coincidência?

― Sim! ― gritou Arthur. Olhou novamentepara cima e viu que o braço que o intrigavafora representado como chamando à existên-cia um vaso de petúnias condenado.

Definitivamente não era um conceito fácil dese apreender.

― Preciso ir ― insistiu Arthur.

― Você pode ir ― respondeu Agrajag ― logodepois que eu o matar.

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― Infelizmente não vai dar ― explicou Ar-thur, começando a subir pela inclinação narocha em que seus chinelos haviam sido es-culpidos ―, porque eu tenho que salvar oUniverso, entende? Tenho que encontraruma Trave de Prata, este é o objetivo. Émuito difícil fazer isso quando se está morto.

― Salvar o Universo! ― repetiu Agrajag, comdesprezo. ― Você deveria ter pensado nissoantes de começar sua vendeta contra mim! Oque você me diz daquela vez quando estavaem Stavromula Beta e alguém...

― Nunca estive lá ― interrompeu Arthur.

― ...tentou assassiná-lo, mas você se abaix-ou? Quem você acha que a bala atingiu?

O que você disse mesmo?

― Nunca estive lá ― repetiu Arthur. ― Doque você está falando? Tenho que ir.

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Agrajag parou, pensativo.

― Você tem que ter estado lá. Você foi o re-sponsável por minha morte lá, assim comoem todos os outros lugares, Eu estava pas-sando inocentemente! ― Ele tremia.

― Nunca ouvi falar desse lugar ― insistiu Ar-thur. ― E certamente ninguém nunca tentoume assassinar. A não ser você. Talvez eupossa ir lá mais tarde, o que você acha?

Agrajag piscou lentamente, paralisado poruma espécie de horror lógico.

― Você não esteve em Stavromula Beta...ainda? ― disse em voz baixa.

― Não ― disse Arthur. ― Não tenho a menoridéia do que seja esse lugar.

Nunca estive lá nem planejo ir lá.

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― Ah, mas com certeza vai ― disse Agrajagcom a voz trêmula ― você certamente vaipara lá. Ah, por Zárquon! ― ele cambaleou,olhando desesperadamente em volta parasua imensa Catedral do Ódio. ― Trouxe vocêpara cá cedo demais!

Começou a gritar e a urrar.

― Que zarquada! Eu trouxe você aqui antesdo tempo. Subitamente se recompôs e lançouum olhar maligno e cheio de ódio paraArthur.

― Vou matar você assim mesmo! ― vocifer-ou. ― Mesmo que seja uma impossibilidadelógica, por Zárquon, vou tentar! Vou explodirtoda essa montanha!

Gritou:

― Vamos ver como você escapa desta,Arthur!

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Ainda mancando dolorosamente, arrastou-serapidamente até o que parecia ser umpequeno altar para sacrifícios, pequeno enegro. Gritava tão histericamente naquelemomento que seu rosto estava ficando muitomachucado.

Arthur pulou do lugar para onde tinhasubido, na escultura de seu próprio pé, etentou correr para deter a criatura quasetotalmente enlouquecida.

Saltou sobre ela, fazendo com que aquela es-tranha monstruosidade se espatifasse sobreo altar.

Agrajag gritou novamente, debateu-se furi-osamente por um curto momento, depoislançou um olhar esbugalhado para Arthur.

― Você sabe o que fez agora? ― disse, semfôlego e dolorosamente. ― Você

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simplesmente me matou mais uma vez. Afi-nal, quer de mim: sangue?

Debateu-se novamente em um breve ataqueapoplético estremeceu e, ao fazê-lo, final-mente caiu sobre um grande botão vermelhono altar.

Arthur sentiu um enorme medo e horror,primeiro pelo que acabara de fazer e depoispor causa das barulhentas sirenes sinos quesubitamente encheram o ar, anunciando al-guma terrível emergência. Olhou desesper-ado ao seu redor.

A única saída parecia ser o caminho peloqual havia entrado. Saiu correndo naqueladireção, deixando para trás a bolsa feita comuma imitação fajuta de pele de leopardo.

Corria sem rumo, aleatoriamente, através doestranho labirinto, parecendo ser perseguido

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cada vez mais ferozmente por buzinas,sirenes e luzes piscando.

De repente virou em um corredor e à suafrente havia luz.

Não estava piscando. Era a luz do dia.

Capítulo 19

Ainda que tenham dito que, em toda a nossaGaláxia, apenas na Terra o Krikkit (ou crí-quete) é tratado como um assunto adequadopara um jogo e que, por este motivo, elatenha sido posta à parte, isso só se aplica ànossa Galáxia e, mais especificamente, ànossa dimensão. Em algumas das dimensõesmais elevadas as pessoas acreditam que épossível se divertir pelo menos um pouco, eeles têm jogado algo muito peculiar, cha-mado Ultracríquete Broquiano, durante sejalá qual for o equivalente transdimensionaldeles para bilhões de anos.

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"Sejamos sinceros, é um jogo asqueroso" ―diz O Guia do-Mochileiro das Galáxias

―, "mas, por outro lado, qualquer um que játenha ido até uma das dimensões mais eleva-das sabe que são todos uns bárbaros nojen-tos por lá, que deveriam ser destruídos emassacrados, e na verdade já teriam sido, sealguém conseguisse descobrir uma forma dedisparar mísseis em ângulos retos em relaçãoà realidade."

Este é mais um exemplo do fato de que OGuia do Mochileiro das Galáxias daráemprego a qualquer um que simplesmenteesteja passando e decida entrar para ser ex-plorado, especialmente se a pessoa emquestão resolver entrar na parte da tarde,quando há pouca gente da equipe regular porlá.

Há um ponto fundamental que deve ser com-preendido aqui.

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A história do Guia do Mochileiro das Galáxi-as é feita de idealismo, lutas, desespero,paixão, sucesso, fracasso e pausas para al-moço absurdamente longas.

As origens mais antigas do Guia estão agora,assim corno maioria de seus registros fin-anceiros, perdidas na névoa do tempo.

Para conhecer melhor outras teorias aindamais estranhas sobre onde exatamente issotudo está perdido, veja a seguir.

Muitas das histórias que permaneceram,contudo, falam de um editor fundador cha-mado Hurling Frootmig.

Segundo a lenda, Hurling Frootmig fundou oGuia, estabeleceu seus princípios fundamen-tais de honestidade e idealismo e depois foi àfalência.

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Seguiram-se muitos anos de penúria e de umprofundo exame da alma durante os quaisele consultou amigos, sentou-se em salas es-curas em estados ilegais da mente, pensousobre uma coisa e outra, brincou com pesos,e depois, pouco após um encontro casualcom os Sagrados Frades Almoçadores deVoondon ― cuja crença era de que, assimcomo o almoço fica no centro temporal dodia dos homens, e o centro temporal do diados homens pode ser visto como uma analo-gia para sua vida espiritual, então o almoçodeveria ser: (a) visto como o centro da vidaespiritual dos homens e (b) feito em ex-celentes restaurantes ―, ele recriou o Guia,estabeleceu seus princípios fundamentais dehonestidade, idealismo e de onde você podeenfiar os dois, fazendo com que o Guia at-ingisse seu primeiro grande sucessocomercial.

Ele também começou a desenvolver e explor-ar o papel editorial da pausa para almoço,

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que iria em seguida assumir um papel tãorelevante na história do Guia, já que isso sig-nificava que a maioria do trabalho real erafeito por qualquer estranho que estivessecasualmente passando pelos escritóriosvazios parte da tarde e encontrasse algo in-teressante para fazer.

Pouco tempo depois, o Guia foi englobadopela Editora Megadodo de Beta de UrsaMenor, o que colocou o Guia em excelentesituação financeira e permitiu que seu quartoeditor, Lig Lury Jr., pudesse se dedicar apausas para almoço de porte tão fenomenalque nem mesmo os esforços de editores maisrecentes, que começaram a organizar pausaspara almoço patrocinadas para caridade,parecem ser míseros sanduíches emcontraste.

Na verdade, Lig nunca se desligou formal-mente de seu cargo como editor ― apenassaiu de seu escritório tarde, numa manhã, e

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nunca mais voltou. Apesar de já ter se pas-sado mais de um século, muitos membros daequipe do Guia ainda mantêm a idéiaromântica de que ele apenas saiu para comerum croissant e ainda voltará para trabalharpesado na parte da tarde.

Estritamente falando, todos os editoresdesde Lig Lury Jr. têm sido designados comoEditores Interinos e a mesa de Lig ainda épreservada exatamente como ele a deixou,com o acréscimo de uma pequena plaquetaonde está escrito: "Lig Lury Jr., Editor.

Desaparecido, presumivelmentealimentado".

Algumas fontes muito mal-intencionadas esubversivas persistem na idéia de que, naverdade, Lig morreu em uma das ex-traordinárias experiências iniciais do Guiaem contabilidade alternativa. Muito pouco sesabe a respeito disso e menos ainda é dito.

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Qualquer um que tenha sequer notado ou,ainda pior, chamado a atenção para o fatocurioso

― mas completamente acidental e sem sen-tido ― de que todos os mundos nos quais oGuia abriu um departamento de contabilid-ade tenham sido pouco depois destruídospor guerras ou desastres naturais é passívelde ser processado até o último centavo.

Apesar de uma coisa não ter nada a ver coma outra, é interessante notar que, nos dois outrês dias anteriores à demolição do planetaTerra para abrir caminho para uma nova viaexpressa hiperespacial, tenha havido umaumento dramático número de OVNIS

avistados naquele planeta, não apenas sobreo Lord's Cricket Ground em St. John's Wood,Londres, mas também sobre a cidade de Gla-stonbury, em Somerset Glastonbury sempreesteve associada a mitos de antigos reis,

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bruxaria, linhas de força ley e curas de verru-gas. Agora havia sido designada como local-ização do novo escritório do departamentofinanceiro do Guia do Mochileiro das Galáxi-as e de fato, cerca de dez anos de registrosfinanceiros foram transferidos para uma co-lina mágica nos arredores da cidade poucashoras antes da chegada dos vogons.

Nenhum desses fatos, por mais estranhos ouinexplicáveis que possam parecer, é tão es-tranho ou inexplicável quanto as regras doUltracríquete Broquiano, tal como é jogadonas dimensões mais elevadas. O conjuntocompleto das regras é tão maciçamente com-plicado que, na única vez em que foram en-cadernadas em um único volume, sofreramum colapso gravitacional e transformaram-se num buraco negro.

Um pequeno resumo, contudo, seria mais oumenos o seguinte: Regra número 1: Deixecrescer pelo menos três pernas adicionais.

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Você não irá precisar delas, mas isso en-tretém os espectadores.

Regra número 2: Encontre um bom jogadorde Ultracríquete Broquiano. Faça algunsclones a partir dele. Isso elimina o tediosoprocesso de escolher e treinar os jogadores.

Regra número 3: Coloque o seu time e o timeadversário em um campo bem grande, de-pois construa uma parede bem alta ao redordeles. O motivo é que, apesar de o jogo atrairgrandes multidões, a frustração que os es-pectadores sentem por não conseguiremrealmente ver o que está acontecendo fazcom que imaginem que o jogo é muito maisinteressante do que realmente é. Uma mul-tidão que tenha acabado de assistir a umapartida chata tem uma experiência de afirm-ação da vida muito menor do que uma mul-tidão que acredita ter acabado de perder oevento mais incrível em toda a história dosesportes.

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Regra número 4: Jogue um monte deacessórios variados para a prática de espor-tes por cima da parede para os jogadores.Qualquer coisa serve ― bastões de críquete,bastões de basecube, pistolas de tênis, esquise qualquer outra coisa que possa ser usadapara bater.

Regra número 5: Os jogadores devem, então,procurar acertar uns aos outros com a maiorforça possível, usando aquilo que tiveremnas mãos. Sempre que um jogador "acertar"

outro jogador, o primeiro deve imediata-mente sair correndo e desculpar-se de umadistância segura. As desculpas devem serconcisas, sinceras e, para maior clareza e ob-tenção de mais pontos, precisam ser ditasusando um megafone.

Regra número 6: O time vencedor será oprimeiro time que vencer.

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Muito curiosamente, quanto mais popularesse jogo se torna nas dimensões mais eleva-das, menos ele é praticado de fato, já que ostimes competidores, na maioria, estão atual-mente em estado de permanente guerra unscom os outros a respeito da interpretaçãodessas regras. Isso tudo é muito bom,porque, a longo prazo, um boa e sólidaguerra gera menos danos psicológicos do queum jogo maçante de UltracríqueteBroquiano.

Capítulo 20

Enquanto Arthur corria em disparada pelaencosta da montanha, pulando e arfando,subitamente sentiu toda a montanha se mex-er muito, muito ligeiramente embaixo dele.

Houve um ribombo, um rugido e um movi-mento sutil e borrado, depois uma onda decalor surgiu atrás e acima dele. Corria empânico total. A terra começou a tremer e ele

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compreendeu, naquele momento, a força ex-istente na expressão "tremor de terra" deuma forma que nunca tinha compreendidoantes. Havia sido sempre uma expressãoqualquer para ele, mas naquele momentopercebeu, apavorado, que "tremer" é umacoisa muito estranha e nauseabunda para aterra fazer. Pior, estava fazendo aquilo en-quanto ele estava em cima dela. Sentiu-se to-mado por medo e tremores. O chão semoveu, a montanha se agitou, ele escor-regou, se levantou, escorregou de novo e cor-reu. A avalanche começou.

Pedras, depois pedregulhos, depois rochasquicavam e passavam por ele como cachor-rinhos desajeitados, só que muito, muitomaiores, muito, muito mais duros e pesadose infinitamente mais capazes de matá-lo casocaíssem em cima dele. Seus olhos bal-ançavam com eles e seus pés balançavamcom o chão balançante. Corria como se cor-rer fosse uma terrível doença, seu coração

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ribombando no ritmo daquela ribombantehisteria geológica a seu redor.

A lógica da situação ― ou seja, que ele estavaobviamente destinado a sobreviver para queo próximo incidente previsto na saga de suaperseguição acidental a Agrajag pudesseacontecer ― estava miseravelmente falhandona tarefa de se impor dentro da mente de Ar-thur ou mesmo de exercer qualquer tipo deinfluência repressora sobre ele naquele mo-mento. Corria com o medo da morte dentrodele, abaixo dele, sobre ele e mesmo segur-ando seus cabelos.

E subitamente tropeçou outra vez e foilançado para a frente com uma velocidadeconsiderável. Mas, justamente no momentoem que estava próximo a se chocar com ochão de forma boçalmente brutal, ele viu,jogada pouco à frente, uma pequena bolsaazul-marinho que tinha certeza de ter per-dido no aeroporto de Atenas cerca de dez

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anos antes, contando por sua escala detempo, e, em sua total perplexidade, errou ochão completamente e ficou pairando no arcom sua mente cantarolando.

O que ele estava fazendo era o seguinte: es-tava voando. Olhou em volta, muito sur-preso, mas não tinha como duvidar do queestava fazendo. Nenhuma parte de seu corpoestava tocando o chão, e nenhuma parte deseu corpo estava sequer próxima ao chão. Elesimplesmente flutuava ali, com as rochasrasgando o ar em torno dele.

Agora ele podia fazer algo a respeito. Pis-cando com o não-esforço da coisa, subiumais e agora as rochas estavam rasgando oar abaixo dele.

Olhou para baixo com enorme curiosidade.Entre ele e o solo trêmulo havia cerca de dezmetros de ar vazio ― ou, pelo menos, vaziose fossem descontadas as rochas que não

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passavam muito tempo ali, posto que con-tinuavam sua descida atribulada, puxadaspelas mãos de ferro da lei da gravidade. Amesma lei que, aparentemente, acabara dedar umas férias para Arthur.

Ele pensou, quase instantaneamente, com aprecisão instintiva que a autopreservaçãoimpõe à mente, que ele não devia pensarsobre aquilo, pois, se o fizesse, a lei dagravidade imediatamente olharia de formacruel em sua direção e exigiria saber o queele estava fazendo lá em cima, daí tudo estar-ia perdido.

Então decidiu pensar sobre tulipas. Era difí-cil, mas conseguiu. Pensou em como suabase era firme e arredondada pensou na in-teressante variedade de cores existentes epensou na proporção do total de tulipas quecresciam, ou haviam crescido na Terra, noraio de um quilômetro em torno de ummoinho de vento.

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Após algum tempo ficou perigosamentecansado desses pensamentos, sentiu o ar fu-gindo abaixo dele, sentiu que estava des-cendo novamente para o nível das rochassobre as quais estava se esforçando tantopara não pensar, então pensou no aeroportode Atenas durante algum tempo e isso omanteve convenientemente aborrecido dur-ante uns cinco minutos, ao final dos quais elepercebeu, sobressaltado, que agora flutuavaa uns 200 metros do chão.

Pensou por alguns instantes sobre como vol-taria para o chão, mas instantaneamente de-sistiu dessa área de especulação novamente etentou encarar a situação.

Estava voando. O que podia fazer a respeito?Olhou novamente para o chão. Não olhoucom muita firmeza, apenas fez o melhor paraolhar de relance, como se não quisesse nada,en passant. Havia algumas coisas que nãopodia deixar de notar. Uma era que a

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erupção da montanha parecia ter terminado,havia uma cratera pouco abaixo do pico,provavelmente onde a rocha havia colapsadosobre a enorme caverna da catedral, sua es-tátua e a triste figura de Agrajag.

A outra era sua bolsa, aquela que havia per-dido no aeroporto de Atenas.

Estava jogada numa clareira, cercada porrochedos que haviam caído, mas aparente-mente não havia sido atingida por nenhumdeles. Não podia sequer especular sobre por-quê disso ter acontecido, mas, uma vez queeste era um mistério ínfimo ante a monstru-osa impossibilidade da bolsa ter aparecidopor lá, não era uma especulação com a qualquisesse se preocupar muito. O importanteera que a bolsa estava lá. E a detestável bolsade uma imitação fajuta de pele de leopardoparecia haver desaparecido, o que era algobom, ainda que completamente inexplicável.

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O fato é que teria que apanhar aquela bolsa.Lá estava ele, voando 200 metros acima dasuperfície de um planeta alienígena cujonome nem mesmo sabia. Não podia ignorara postura tocante daquele pequeno pedaçodo que costumava ser sua vida, ali, distantevários anos-luz dos restos pulverizados desua casa.

Além disso, pensou, a bolsa, se ainda est-ivesse no estado em que a havia deixado, ter-ia lá dentro uma lata do único azeite de olivagrego ainda restante no Universo.

Lenta e cuidadosamente, palmo a palmo,começou a oscilar para baixo, deslizandosuavemente de um lado para o outro comouma folha de papel tensa que estivessetateando seu caminho em direção ao chão.

Estava funcionando e ele se sentia bem. O arlhe dava suporte, mas deixava-o passar. Doisminutos mais tarde estava flutuando a meio

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metro da bolsa e se deparou com uma de-cisão difícil. Estava oscilando ali, gentil-mente. Franziu o rosto, mas apenaslevemente.

Se ele pegasse a bolsa, seria capaz decarregá-la? Poderia o peso extra puxá-loimediatamente de volta para o chão?

Poderia o mero ato de tocar algo que estavano chão subitamente descarregar seja qualfosse aquela misteriosa força que o mantinhaflutuando?

Poderia ele ser minimamente sensatonaquele momento e descer do ar, voltar aochão por algum tempo?

Se o fizesse, seria capaz de voar novamente?

A sensação, quando se permitia pensar nela,era plena de um êxtase tão calmo que nãopodia sequer pensar em perde la, talvez para

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sempre. Preocupado com isso, ele oscilou umpouco mais para cima novamente, apenaspara se deixar levar pela sensação, aquelemovimento surpreendentemente semesforço.

Oscilou, flutuou. Tentou até mesmo umpequeno rasante.

O rasante foi incrível. Com seus braços aber-tos à frente os cabelos e seu roupão tremu-lando com o vento, ele mergulhou do céu,flutuou sobre uma massa de ar a meio metrodo chão e então subiu novamente, parandono ápice da curva e mantendo-se lá.

Apenas se mantendo por lá.

Era incrível.

E aquela era, percebeu, a forma de pegar abolsa. Iria dar um rasante e pegá-la quandoestivesse mais próximo do solo. Carregaria a

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bolsa com ele quando subisse novamente.Talvez seu vôo sofresse com algumas tur-bulências, mas estava certo de que podiamanter-se no ar.

Tentou mais uns mergulhos para praticar esaiu-se cada vez melhor. O ar em seu rosto, asensação em seu corpo, tudo se juntava parafazer com que sentisse seu espírito inebriadode uma maneira que não sentia desde, desde― bom, até onde conseguia se lembrar ―,desde que nascera. Deixou-se levar pela brisae observou os arredores, que eram, comopercebeu, muito feios. Tinham uma aparên-cia desolada, destruída. Decidiu não mais ol-har aquilo. Iria apenas pegar a bolsa e en-tão... não sabia bem o que fazer após pegar abolsa. Decidiu que iria apenas pegar a bolsa ever como as coisas caminhavam depois.

Colocou-se contra o vento, foi contra ele evirou-se. Flutuava sobre seu corpo. Ele não

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percebia, mas àquela altura seu corpo estavauilomeando.

Agachou-se sob a corrente de ar, deu im-pulso e mergulhou.

O ar soprava ao passar, enquanto ele se deli-ciava com isso. O chão vacilou, depois colo-cou suas idéias em ordem e subiu suave-mente para encontrá-lo, oferecendo-lhe abolsa, com suas alças de plástico quebradiçasvoltadas em sua direção.

Na metade do caminho houve um rápidomas perigoso momento em que ele não podiaacreditar que estivesse fazendo aquilo ― e,assim, por pouco não deixou de estar ―, masrecuperou-se a tempo, tirou um rasante dosolo, passou um braço suavemente pelasalças da bolsa e começou a subir de novo,mas não conseguiu e de repente caiu, arran-hado, esfolado e revirando-se no solo depedras.

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Levantou-se imediatamente e girou descon-troladamente, sacudindo a bolsa em totaldesespero e desapontamento.

Seus pés voltaram a ficar colados ao chão daforma que sempre estiveram.

Seu corpo parecia um incômodo saco debatatas que se revirava batendo contra ochão e sua mente tinha toda a leveza de umabolsa de chumbo.

Ele caiu, dobrou-se e sofreu com a vertigem.Tentou correr, inutilmente, mas suas pernasestavam fracas demais. Tropeçou eestatelou-se no chão. Foi então que lembrouque, naquela sacola, não apenas havia a latade azeite grego como também a cota máximapermitida de retsina ― vinho grego ―, e,com o agradável choque causado por estadescoberta, deixou de notar durante pelomenos dez segundos que estava voandonovamente.

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Riu e chorou cheio de alívio e prazer, além depuro deleite físico.

Mergulhou, girou, deslizou e flutuou pelo ar.Com ar blasé, sentou-se em uma ascendentee revirou o conteúdo da bolsa. Sentia-se damesma forma que imaginava que os anjosdeveriam sentir-se durante sua famosadança sobre a cabeça de um alfinete en-quanto os filósofos tentavam contá-los. Riuprazerosamente ao ver que a bolsa de fatocontinha o azeite grego, a retsina, assimcomo um par de óculos escuros rachados, al-guns calções de banho cheios de areia,alguns cartões-postais amassados de San-torini, uma grande e feiosa toalha, algumapedras interessantes e vários pedacinhos depapel com o endereço de pessoas que elepensava, muito aliviado, que jamais encon-traria de novo, mesmo que a razão para talfosse triste. Jogou fora as pedras, colocou osóculos escuros e deixou os pedacinhos de pa-pel serem levados pelo vento.

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Dez minutos mais tarde, enquanto flutuavadespreocupadamente em uma nuvem, foi at-ingido no cóccix por uma enorme e incrivel-mente obscena festa.

Capítulo 21

A mais longa e destrutiva festa já realizadaestá agora em sua quarta geração e, ainda as-sim, ninguém dá sinais de querer sair. Certavez alguém olhou para o relógio, mas isso foihá 11 anos e a coisa parou por aí.

A bagunça é extraordinária, algo em que vo-cê só acreditaria vendo, mas, se você nãotiver nenhuma necessidade específica deacreditar, melhor não ir, porque você não vaigostar de lá.

Recentemente houve alguns estrondos eluzes em meio às nuvens e surgiu uma teoriade que fosse uma batalha em andamentoentre frotas de diversas empresas rivais de

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limpeza de carpetes que sobrevoam a coisacomo se fossem urubus, mas não se deveacreditar em tudo que se escuta em festas,sobretudo não nas coisas que se ouve nessafesta.

Um dos problemas ― e um que obviamentesó vai piorar ― é que todas as pessoas nafesta são filhos, netos ou bisnetos das pess-oas que não saíram de lá no início de tudo e,por conta de todas aquelas baboseiras sobreseleção natural e genes recessivos, isso signi-fica que todas as pessoas que estão agora nafesta ou são fanáticos por festas ou comple-tos imbecis ou ― o que é cada vez mais fre-qüente ― ambas as coisas.

De qualquer forma isso significa que, genet-icamente falando cada nova geração estámenos propensa a sair do que a anterior.

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Há outros fatores que entram em cena, talcomo, por exemplo, quando é que a bebidavai acabar.

Bem, por conta de algumas coisas que ocor-reram e que pareciam uma boa idéia na épo-ca (e um dos problemas com festa que nuncaterminam é que todas aquelas coisas que sóparecem ser uma boa idéia durante a festacontinuam parecendo ser boas idéias), esseponto parece estar ainda muito distante.

Uma das coisas que pareciam uma boa idéiana época era que a festa deveria decolar nãono sentido comum em que dizemos que asfestas devem decolar, mas no sentido literal.

Certa noite, tempos atrás, um bando de as-troengenheiros da primeira geração, bêba-dos, construiu o prédio de um lado para ooutro, cavando isso, instalando aquilo,batendo fortemente naquilo outro e, quandoo sol se levantou na manhã seguinte, ficou

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surpreso ao se descobrir brilhando sobre umprédio cheio de pessoas bêbadas e felizes queestava, naquele momento, flutuando comoum pássaro jovem e incerto sobre as árvores.

Não apenas isso, mas a festa voadora tam-bém tinha conseguido se armar fortemente.Se por acaso se metessem em discussõesmesquinhas com vendedores de vinho,queriam ter certeza de que a força estaria dolado deles.

A transição entre uma festa em tempo integ-ral para uma festa de pilhagens em tempoparcial foi algo natural e ajudou bastante aacrescentar um pouco de emoção e aventuraà coisa toda, o que era importante naquelemomento por conta das infindáveis vezesque a banda já tinha tocado todo o seu reper-tório ao longo dos anos.

Eles saqueavam, eles pilhavam, eles mantin-ham cidade inteiras como reféns em troca de

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um novo estoque de biscoitinhos de queijo,pastas para os biscoitinhos, costeletas porco,vinho e outras bebidas alcoólicas, que agoraeram bombeadas a bordo vindas de tanquesflutuantes.

O problema de quando é que a bebida vaiacabar terá, contudo, que ser abordado al-gum dia.

O planeta sobre o qual estão flutuando já nãoé mais o que era quando começaram a flutu-ar sobre ele.

Está em péssimo estado.

A festa já tinha atacado e saqueado quasetudo nele, e ninguém ainda tinha sido capazde atacá-la de volta por conta da formaaleatória e imprevisível com que ela se movi-menta no céu.

É uma festa do cacete.

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Também é uma cacetada ser atingido por elano cóccix.

Capítulo 22

Arthur estava deitado, se revirando de dor,em um pedaço de concreto armado rachado,golpeado levemente por tufos de nuvens pas-sageiras e confundido pelos sons festivosvindos de algum lugar não discernível atrásdele.

Havia um som que ele não conseguiu identi-ficar imediatamente, em parte por não con-hecer a música I Left My Leg in JanglanBeta* (Deixei minha perna em Janglan Beta)e em parte porque a banda que a tocava jáestava muito cansada, de maneira que algunsmúsicos tocavam em compasso 3/4, outrosem 4/4 e outros em uma espécie de R2 be-bum, de acordo com a quantidade de tempoque cada um havia dormido recentemente.

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* Provavelmente uma brincadeira com a con-hecida música I Left My Heart in San Fran-cisco (N. do T.).

Ficou ali deitado, ofegando muito no arúmido. Tentou tocar algumas partes docorpo para descobrir onde poderia ter semachucado. Onde quer que tocasse, doía.Acabou concluindo que era sua mão que es-tava doendo. Aparentemente havia torcido opulso. Suas costas também pareciam estardoendo, mas logo percebeu que não estavaseriamente machucado, apenas um poucoralado e um pouco atordoado, mas quem nãoestaria? Não podia entender o que um prédioestava fazendo voando no meio das nuvens.

Por outro lado, também teria sérias di-ficuldades em explicar, de forma coerente, oque estava fazendo ali, então decidiu que elee o prédio teriam que se aceitarmutuamente.

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Olhou para cima. Uma parede de revesti-mento de pedra clara mas manchada erguia-se atrás dele ― era o prédio em si. Arthurparecia estar estatelado em algum tipo deborda ou beirada que se estendia para forapor cerca de um metro em volta de todo oprédio. Era um pedaço do solo no qual o pré-dio da festa um dia tivera suas fundações eque havia transportado consigo para semanter inteiro na parte inferior.

Levantou-se nervosamente e, olhando paraalém da borda, subitamente ficou com verti-gem. Pressionou suas costas contra a parede,molhado de névoa e suor. Sua cabeça nadavaem estilo livre, mas alguém em seu estômagoestava nadando borboleta.

Ainda que tivesse chegado até lá por contaprópria, no momento não podia nem olharpara o tremendo abismo à sua frente. Nãoestava nem um pouco disposto a testar sua

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sorte pulando. Não iria chegar nem umcentímetro mais perto da borda.

Agarrado à sua bolsa, foi andando junto àparede, na esperança de encontrar umaporta de entrada. A solidez do peso da lata deazeite era altamente reconfortante.

Estava indo em direção ao canto mais próx-imo, na esperança de que a parede do outrolado apresentasse mais escolhas no quesito"portas" do que aquela, que não tinhanenhuma.

A instabilidade do vôo do prédio o deixavaem pânico e, após algum tempo, pegou atoalha que estava na bolsa e fez com ela algoque, mais uma vez, justificava sua posiçãosuprema na lista de coisas úteis que devemser levadas ao pegar carona pela Galáxia:vendou os olhos, pois assim não teria que vero que estava fazendo.

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Seus pés acompanhavam a borda do prédio.Seu braço estava completamente esticado egrudado à parede.

Finalmente chegou ao canto e, quando suamão o contornou, encontrou algo que lhedeu um susto tão grande que quase caiu. Eraoutra mão.

As duas mãos se seguraram.

Queria desesperadamente usar sua outramão para tirar a toalha de seus olhos, masela estava segurando a bolsa com o azeite, aretsina e os cartõespostais de Santorini, e elerealmente não queria largar aquilo tudo.

Passou por um daqueles momentos de crisede identidade quando você subitamente sevolta para dentro e começa a pensar: "Quemsou eu? O que eu desejo? Quais minhas real-izações? Estou indo bem?" Ele soluçoubaixinho.

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Tentou liberar sua mão, mas não podia. Aoutra mão estava segurando a sua bemfirme. Não tinha outro jeito senão andar emdireção ao canto. Contornou-o e sacudiu acabeça na tentativa de deslocar a toalha.Aparentemente isso teve como efeito provo-car um grito agudo de alguma emoção forade moda por parte do dono da outra mão.

Quando a toalha caiu de sua cabeça,descobriu que seus olhos estavam fixos nosde Ford Prefect. Atrás dele estava Slartibart-fast e, mais para trás, ele podia ver clara-mente o portão do prédio e uma grandeporta fechada.

Os outros dois também estavam de costascontra a parede, os olhos esbugalhados deterror toda vez que olhavam para dentro dadensa nuvem cinza que os cercava, enquantotentavam resistir aos balanços e sacudidelasdo prédio.

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― Por que zárquon de fóton você andou? ―sussurrou Ford, em completo pânico.

― Ahn, bem... ― gaguejou Arthur, meio semsaber como iria resumir tudo em poucas pa-lavras. ― Por aí. O que vocês estão fazendoaqui?

Ford virou seus olhos esbugalhados para Ar-thur novamente.

― Não querem nos deixar entrar sem umagarrafa!

A primeira coisa que Arthur notou, quandoentraram na parte mais movimentada dafesta, além do ruído, do calor sufocante, daprofusão de cores selvagens que podia servista vagamente em meio ao ar cheio de fu-maça, dos carpetes cobertos com uma grossacamada de caquinhos de vidro, cinzas e res-tos de pastinhas, além do pequeno grupo decriaturas pterodactilóides vestidas em lurex

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que vieram atracar-se com sua querida gar-rafa de retsina, grasnando "nova diversão,nova diversão", foi Trillian levando uma can-tada do Deus do Trovão.

― Não te conheço do Milliways? ― disse ele.

― Você era o cara com o martelo?

― O próprio. Mas prefiro este lugar aqui. Étão menos respeitável, tão mais lotado.

Gritos de algum prazer indescritível ecoarampela sala, cujas dimensões externas eram in-visíveis através da multidão pulsante de cri-aturas alegres e barulhentas, animadamentegritando umas para as outras coisas que nin-guém podia ouvir e ocasionalmente tendochiliques.

― É, parece divertido ― disse Trillian. ― Oque você disse, Arthur?

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― Eu perguntei como você chegou aqui?

― Eu era uma fileira de pontinhos flutuandoaleatoriamente pelo Universo.

Você conhece Thor? Ele faz trovões.

― Oi ― disse Arthur. ― Deve ser bem legal.

― Oi ― disse Thor. ― É legal. Você já pegouuma bebida? ― Ahn, não, na verdade...

― Então por que você não vai procurar uma?― Te vejo depois, Arthur ― disse Trillian.

Alguma coisa passou pela mente de Arthur eele olhou em volta, procurando alguém.

― Zaphod por acaso está aqui? ― perguntou.

― Vejo você ― repetiu Trillian com firmeza― mais tarde.

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Thor lançou-lhe um olhar duro com seus ol-hos pretos com carvão; sua barba se eriçou ea pouca luz que havia no sala reagrupou suasforças para cintilar ameaçadoramente nochifres de seu capacete.

Pegou Trillian pelo ombro com sua enormemão e os músculos de seu braço passaramuns pelos outros, como dois fuscasestacionando.

Levou-a embora.

― Uma das coisas interessantes de ser imor-tal ― disse ele ― é que...

― Uma das coisas interessantes sobre o es-paço ― Arthur ouviu Slartibartfast dizer parauma criatura espaçosamente gorda, que separecia com alguém que estivesse perdendouma briga contra um edredom rosa e que es-tava hipnotizada pelos olhos profundos e

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pela barba prateada do velho ― é quãomonótono ele é.

― Monótono? ― disse a criatura, piscandoseus olhos bastante enrugados e tambéminjetados.

― Sim – continuou Slartibartfast ―, espan-tosamente monótono.

Estonteantemente monótono. Sabe, o prob-lema é que há muito espaço e pouca coisadentro dele. Você quer que eu cite algumasestatísticas?

― Olha, bem...

― Ah, por favor, eu adoraria. Elas tambémsão sensacionalmente monótonas.

― Claro, já volto para ouvir isso ― disse acriatura, dando um tapinha no braço dele edepois levantando sua saia como um

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hovercraft e se perdendo em meio àmultidão.

― Achei que ela não iria mais embora ― res-mungou o velho ― Venha, terráqueo...

― Arthur.

― Precisamos encontrar a Trave de Prata, elaestá aqui e algum lugar.

― Não podemos relaxar um pouquinho? ―disse Arthur. ― Tive um dia difícil.

Por coincidência, Trillian também está aqui,mas não disse como chegou.

Suponho que não importe.

― Pense nos perigos que o Universo corre...

― O Universo ― disse Arthur ― já está bemgrandinho e já tem idade para cuidar de simesmo durante meia hora. Tudo bem, tudo

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bem ― acrescentou, vendo que Slartibartfastestava ficando mais inquieto ―, vou dar umavolta e descobrir se alguém viu a trave.

― Ótimo, ótimo ― disse Slartibartfast. ―Ótimo. ― Depois ele também mergulhou namultidão e todos por quem passava lhe diz-iam que deveria relaxar um pouco.

― Você viu uma trave em algum lugar? ―perguntou Arthur para um homenzinho queparecia estar de pé aguardando ansio-samente que alguém fosse falar com ele. ― Éfeita de prata, vitalmente importante para asegurança futura do Universo e é mais oumenos deste tamanho.

― Não ― respondeu o homenzinho entusi-asticamente franzino ―, mas vamos tomarum drinque enquanto você me conta todosos detalhes.

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Ford Prefect passou, sacudindo-se, dançandode forma frenética, selvagem e um pouco ob-scena com alguém que parecia estar usandoa Ópera de Sydney sobre a cabeça. Ele estavagritando uma conversa fiada para ela porcima da zoeira.

― Gosto deste chapéu! ― berrou.

― O quê?

― Disse que gosto do chapéu.

― Mas eu não estou usando um chapéu.

― Bom, então eu gosto da cabeça. ―

― O quê?

― Eu disse que gosto da cabeça.

― É uma estrutura óssea interessante.

― O quê?

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Ford incluiu um "deixa pra lá" com os om-bros em complexa rotina de movimentos queestava executando.

― Disse que você dança bem ― vociferou ―,mas tente nao sacudir tanto a cabeça.

― O quê?

― É só que, toda vez que você sacode acabeça ― disse Ford e acrescentou "ai!"

quando sua parceira se inclinou novamentepara dizer "o quê?" e, mais uma vez, enfiou aponta afiada e protuberante de seu crânio natesta de Ford.

― Meu planeta foi destruído uma certa man-hã ― disse Arthur que, inesperadamente, seviu contando a história de sua vida para ohomenzinho, ou pelo menos resumindo osmelhores momentos ―, e por isso estouvestido assim, com esse roupão. Meu planeta

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foi destruído com todas as minhas roupasdentro, entende? Não sabia que eu vinhapara uma festa.

O homenzinho assentiu entusiasticamente.

― Mais tarde eu fui jogado para fora de umaespaçonave. Ainda em meu roupão.

Normalmente seria bom estar usando umtraje espacial nessa hora. Pouco depoisdescobri que meu planeta tinha sido con-struído originalmente para um punhado decamundongos.

Você pode imaginar como isso me fez sentir.Então atiraram em mim algumas vezes e eufui detonado. Na verdade, já fui detonadoum número absurdo de vezes, já atiraram emmim, me insultaram, fui desintegrado váriasvezes, privado de chá e, há pouco tempo,nossa nave caiu em um pântano e tive quepassar cinco anos em uma caverna úmida.

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― Ah! ― disse o homenzinho alegremente. ―Então você se divertiu muito?

Arthur se engasgou violentamente com seudrinque.

― Que tosse formidavelmente excitante ―disse o homenzinho, bastante espantado comaquilo ―, você se importa se o acompanhar?

Tendo dito isso, ele começou a ter um im-pressionante acesso de tosse que deixou Ar-thur tão surpreso que ele se engasgou viol-entamente, descobriu que já estava engas-gado antes e ficou totalmente confuso.

Juntos fizeram um dueto de estourar os pul-mões que durou uns dois minutos antes queArthur conseguisse parar.

― Muito revigorante ― disse o homenzinho,arquejante e enxugando lágrimas dos olhos.

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― Que vida excitante você deve ter.Muitíssimo obrigado.

Apertou calorosamente as mãos de Arthur edepois saiu andando, misturando-se àmultidão.

Arthur apenas balançou a cabeça, surpreso.

Um jovem aproximou-se dele em seguida.Fazia o tipo agressivo, com uma boca tortacomo um gancho, um nariz de lanterna e os-sos da maçã do rosto pequenos e brilhantes.

Estava usando calças pretas, uma camisa deseda preta aberta até o que parecia ser seuumbigo ― embora Arthur já tivesse apren-dido a nunca presumir nada sobre as anato-mias do tipo de gente que vinha encontrandoultimamente ― e tinha diversos pendurical-hos dourados esquisitos em volta do pescoço.Carregava alguma coisa em uma bolsa preta

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e claramente queria que as pessoas notassemque ele não queria que notassem a bolsa.

― E aí, não ouvi você dizer seu nome agorahá pouco? ― perguntou.

Essa foi uma das muitas coisas que Arthurcontou ao homenzinho entusiasmado.

― Sim, é Arthur Dent.

O cara parecia estar dançando levemente emalgum outro ritmo que não um dos muitosque a banda tocava sem cessar.

― Isso aí ― disse o cara. ― Tinha um sujeitonuma montanha que estava querendo muitover você.

― Já encontrei com ele.

― É, mas ele tava realmente ansioso comisso, sabe?

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― Sei, encontrei com ele.

― É, bom, achei que era legal avisar.

― Já sei. Eu encontrei com ele.

O cara fez uma pausa para mastigar chiclete.Depois deu um tapinha nas costas de Arthur.

― Isso aí ― ele disse ―, manda ver. Só tavaavisando, falo? Boa noite, boa sorte, ganheprêmios.

― O quê? ― disse Arthur, que estavacomeçando a se atrapalhar seriamenteàquela altura.

― Sei lá. Faça o que quiser. Faça bem-feito ―ele fez um ruído parecido com um cliqueusando seja lá o que for que estivesse mas-cando, depois fez uns gestos vagos.

― Por quê? ― disse Arthur.

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― Faça mal, então ― disse o cara. ― E quemse importa? Ninguém tá nem aí, não é? ― Osangue parecia ter subido à cabeça dosujeito, que começou a gritar.

― Ei, por que não pirar? ― disse. ― Sai fora,me deixa em paz, cara. Zarca fora!

― Tudo bem, tô saindo ― disse Arthurapressadamente.

― Foi pra valer ― o cara acenou brusca-mente e desapareceu na massa.

― Que diabos foi isso? ― perguntou Arthurpara uma garota que estava ao lado dele. ―Por que ele me disse para ganhar prêmios?

― Maluquice de artista ― disse a garota. ―Ele acabou de ganhar um prêmio na Cer-imônia Anual de Premiação do Instituto deIlusões Recreativas de Alfa da Ursa Menor eestava querendo comentar com você como se

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não fosse nada, mas como você não pergun-tou, ele não pôde dizer nada.

― Ah ― disse Arthur ―, ah, puxa, lamento.Qual foi o prêmio?

― Uso Mais Desnecessário da Palavra "Foda-se" em um Roteiro Sério. É um prêmio muitoimportante.

― Sei ― disse Arthur ―, e como se chama oprêmio?

― Um Rory. É só uma pequena coisa deprata enfiada em um grande pedestal preto.

O que você disse?

― Não disse nada. Eu ia perguntar o que acoisa de prata...

― Ah, achei que você tinha dito "uop".

― O quê?

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― Uop.

Há anos as pessoas estavam entrando esaindo da festa, penetras famosos de outrosmundos, e já fazia algum tempo que os parti-cipantes da festa tinham notado, quando ol-havam para seu próprio mundo abaixo deles,com suas cidades destroçadas, as fazendas deabacate destroçadas e os vinhedos destruídospor pragas, suas vastas extensões de terrastransformadas em desertos, seus oceanoscheios de migalhas de biscoitos e coisasmuito piores, enfim, haviam notado que, deformas mínimas, quase imperceptíveis, seumundo já não era tão agradável quantoantes. Alguns deles tinham começado apensar se poderiam ficar sóbrios tempo sufi-ciente para tornar a festa inteira capaz deviajar no espaço e, então, decolar para plan-etas de outras pessoas, onde o ar fosse maispuro e lhes desse menos dores de cabeça.

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Os poucos e malnutridos fazendeiros queainda conseguiam extrair um miserávelsustento do solo árido da superfície do plan-eta teriam ficado extremamente felizes emsaber disso tudo, mas, naquele dia, quando afesta rasgou as nuvens com um som gritantee os fazendeiros olharam para cima temendoum outro saque de queijos e vinhos, ficouclaro que a festa não iria para lugar nenhumdurante um bom tempo. Na verdade, embreve a festa estaria acabada. Muito embreve seria hora de pegar os chapéus e casa-cos e cambalear para fora procurando saberqual era a hora, que dia era aquele e onde,naquela terra devastada, seria possível en-contrar um táxi.

A festa estava presa num terrível abraço comuma estranha nave branca, que parecia estarmeio enfiada nela. Juntas, estavam bal-ançando, oscilando e girando pesadamenteno céu, em um grotesco desdém por seupróprio peso.

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As nuvens se abriram. O ar rugia e abriacaminho.

A festa e a nave de Krikkit, em suas mano-bras, de certa forma se pareciam com doispatos, um dos quais está tentando fazer umterceiro pato dentro do segundo pato, en-quanto este segundo pato está tentando ex-plicar, de forma veemente, que não se sentepronto para um terceiro pato naquele exatomomento, que não tem muita certeza de se-quer querer que um suposto terceiro patoseja feito por aquele primeiro pato para iní-cio de conversa e certamente não enquantoele, o segundo pato, estiver ocupado voando.

O céu gritava e gemia em meio à fúria da-quilo tudo, esbofeteando o chão com ondasde choque.

E, subitamente, com um "fuop", a nave deKrikkit se foi.

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A festa vagou trôpega pelo céu, como umhomem encostado numa porta inesperada-mente aberta. Ela girou e sacolejou sobreseus jatos flutuadores.

Tentou endireitar-se, mas conseguiu apenasficar mais torta. Cambaleou novamente pelocéu.

Durante algum tempo esses tropeços con-tinuaram, mas estava claro que não iriamdurar muito. A festa era, agora, uma festamortalmente ferida. Toda a diversão havia seperdido, fato que as eventuais piruetasalquebradas não podiam disfarçar.

Nesse ponto, quanto mais tempo ela evitassea queda, pior seria o choque quando final-mente caísse.

Lá dentro, as coisas também não estavamindo muito bem. Na verdade, estavam indomonstruosamente mal, as pessoas estavam

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odiando aquilo e dizendo isso em alto e bomsom― Os robôs de Krikkit estragaram afesta.

Tinham levado o Prêmio pelo Uso Mais Des-necessário da Palavra "Foda-se" em umRoteiro Sério e, em seu lugar, deixaram umacena de devastação que fez com que Arthurse sentisse quase tão enjoado quanto umcandidato a um Rory.

― Gostaríamos muito de poder ficar e ajudar― gritou Ford, abrindo caminho através dosdestroços ―, mas não vamos.

A festa sacolejou novamente, gerando gritose gemidos exaltados dentre os destroçoschamuscados.

― Sabe, é que temos que sair para salvar oUniverso ― prosseguiu Ford. ― E se issoparece uma bela desculpa esfarrapada, podeaté ser. De qualquer forma, estamos fora.

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Deparou-se subitamente com uma garrafafechada, miraculosamente inteira e de pésobre o chão.

― Vocês se importam se levarmos isso? ―disse. ― Não vão mais precisar, não é?

Pegou um pacote de batatas fritas também.

― Trillian? ― gritou Arthur, com uma vozenfraquecida e abalada. Não conseguia vernada naquela confusão, em meio à fumaça.

― Terráqueo, temos que ir ― disse Slart-ibartfast, nervoso.

― Trillian? ― gritou Arthur novamente.

Pouco depois surgiu Trillian, chocada etrêmula, apoiando-se em seu novo amigo, oDeus do Trovão.

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― A garota vai ficar comigo ― disse Thor. ―Estão dando uma grande festa no Valhala,vamos voar até lá...

― Onde estava você quando tudo aconteceu?― disse Arthur.

― Lá em cima ― respondeu Thor. ― Estavavendo o peso dela. Voar é uma coisa com-plicada, sabe? É preciso calcular a velocidadedos...

― Ela vem conosco ― disse Arthur.

― Ei!. ― disse Trillian. ― Será que eu não...

― Não ― disse Arthur ―, você vem conosco.

Thor olhou para ele com um olhar que ardialentamente. Ele estava deixando bem claroum determinado ponto sobre sua divindadee não tinha nada a ver com ser honesto.

― Ela vem comigo ― disse baixinho.

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Vamos, terráqueo ― disse Slartibartfastnervosamente, puxando Arthur pela manga.

― Vamos, Slartibartfast ― disse Ford, pux-ando o velho pela manga. O dispositivo deteleporte estava com Slartibartfast.

A festa inclinou-se e balançou, fazendo comque todos cambaleassem, exceto Thor e ex-ceto Arthur, que olhava, tremendo, dentrodos olhos negros do Deus do Trovão.

Lentamente, inacreditavelmente, Arthur le-vantou o que pareciam ser seus pequenospunhos magrelos.

― Vai encarar? ― disse ele.

― O que disse, seu inseto nanico? ― trovejouThor.

― Eu perguntei ― repetiu Arthur, incapaz demanter a firmeza na voz ― se você vai

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encarar? ― Moveu ridiculamente seuspunhos.

Thor olhou para ele com total incredulidade.Então uma pequena nesga de fumaça subiu,saindo de sua narina. Havia uma chama bempequena lá dentro também.

Colocou as mãos no cinturão.

Encheu o peito, só para deixar bem claro queaquele era um homem cujo caminho você sóousaria cruzar se estivesse acompanhado poruma boa equipe de Sherpas.

Desprendeu o cabo de seu martelo docinturão. Segurou-o em suas mãos, deixandoà mostra a maciça marreta de ferro. Dessaforma eliminou qualquer dúvida eventual deque estivesse apenas carregando um postepor aí.

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― Se eu vou ― disse ele, sibilando como umrio correndo pelo alto-forno de uma refinaria― encarar?

― Sim ― disse Arthur, com a voz súbita e ex-traordinariamente forte e belicosa.

Sacudiu os punhos novamente, dessa vezcom firmeza.

― Vamos resolver isso lá fora? ― rosnoupara Thor.

― Tudo bem! ― tonitruou Thor, como umtouro enfurecia (ou, na verdade, como umDeus do Trovão enfurecido, o que bem maisimpressionante), e saiu.

― Ótimo ― disse Arthur ―, ficamos livresdele. Slarty, nos tire daqui.

Capítulo 23

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Está bem ― Ford gritou com Arthur ―, eusou mesmo um covarde, mas a questão é queainda estou vivo. ― Estavam de novo a bordoda Espaçonave Bistromática, assim comoSlartibartfast e Trillian. A harmonia e a con-córdia, contudo, não estavam por lá.

― Bom, eu também estou vivo, não estou? ―retaliou Arthur, a adrenalina correndo soltapor conta da aventura e da raiva. Suas so-brancelhas subiam e desciam como sequisessem bater uma na outra.

― Mas por pouco não morreu! ― explodiuFord.

Arthur virou-se bruscamente para Slartibart-fast, que estava em seu assento de piloto nacabine de comando. O velho olhava pens-ativamente para o fundo de uma garrafa queestava lhe dizendo algo que ele claramentenão conseguia compreender, apelou paraSlartibartfast.

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― Você acha que esse cara entendeu uma pa-lavra sequer do acabei de dizer? ―

falou, trêmulo de emoção.

― Não sei ― respondeu Slartibartfast,vagamente.

― Não estou bem certo ― acrescentou, ol-hando para cima por um instante ― se eumesmo entendi.

Olhou para seus instrumentos com renovadovigor e total desconcerto.

― Você terá que nos explicar tudo de novo ―disse então.

― Bem...

― Mas não agora. Coisas terríveis nosaguardam.

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Deu uns tapinhas no pseudovidro do fundoda garrafa.

― Devo dizer que nosso desempenho nafesta foi patético Nossa única chance agora étentar impedir que os robôs coloquem aChave na Fechadura.

Como iremos fazer isso, não tenho idéia ―murmurou. ― Creio que temos de ir até lá.Não que eu goste da idéia. Provavelmentevamos todos morrer.

― Onde está Trillian, afinal? ― disse Arthur,aparentando uma repentina indiferença.Estava louco de raiva porque Ford havia lhedado uma bronca por ele ter perdido temponaquela discussão com o Deus do Trovão,quando poderiam ter escapado muito maisrápido. A opinião pessoal de Arthur, que eletinha exposto caso alguém achasse que elapudesse contar minimamente, era de que

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havia sido extraordinariamente corajoso eimaginativo.

A visão dominante parecia ser a de que suaopinião não valia sequer uma lasca podre depão. O que realmente doía, contudo, era queTrillian não parecia se importar muito com acoisa toda e havia saído da cabine.

― E onde estão minhas batatas fritas? ―disse Ford.

― Ambas estão ― respondeu Slartibartfast,sem olhar para cima ― na Sala de Ilusões In-formacionais. Acho que sua jovem amiga es-tá tentando entender algumas questões daHistória Galáctica. E creio que as batatas es-tão lhe fazendo bem.

Capítulo 24

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E um erro acreditar que é possível resolverqualquer problema importante usando apen-as batatas.

Por exemplo, houve uma vez uma raçaimensamente agressiva chamada de Silásti-cos Armademônios de Striterax. Esse eraapenas o nome dessa raça. O nome de seuexército era muito pior. Felizmente elesviveram ainda mais para trás na HistóriaGaláctica do que qualquer outra coisa con-hecida ― cerca de 20 bilhões de anos atrás,quando a Galáxia era jovem e inocente equalquer idéia pela qual valesse a pena lutarera uma idéia nova.

E lutar era aquilo que os Silásticos Arma-demônios de Striterax faziam melhor e,sendo bons nisso, dedicavam-se bastante àcoisa. Lutavam contra seus inimigos (ou seja,todos os outros) e lutavam entre si. Seu plan-eta era uma enorme ruína. A superfície es-tava coberta por cidades abandonadas que

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estavam cercadas por máquinas de guerraabandonadas que, por sua vez, estavam cer-cadas por bunkers profundos nos quais osSilásticos Armademônios viviam e brigavamuns com os outros.

A melhor maneira de começar uma brigacom um Suástico o era apenas ter nascido.

Eles não gostavam disso, ficavam ressen-tidos. E quando um Armademônio ficavaressentido, alguém ficava machucado. Podeparecer uma forma exaustiva de viver, maseles pareciam ter energia de sobra.

A melhor maneira de lidar com um SilásticoArmademônj era trancá-lo sozinho em umquarto porque, mais cedo ou mais tarde, eleiria começar a se estapear.

Eventualmente perceberam que teriam queresolver isso então baixaram um decreto deque qualquer um que tivesse que usar armas

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como parte de seu trabalho normal comoSilástico (policiais, seguranças, professoresprimários, etc.) teria que passar pelo menos45

minutos por dia esmurrando um saco debatatas para gastar seu excesso deagressividade.

Durante algum tempo isso funcionou bem,até que alguém pensou que seria muito maiseficiente e levariam menos tempo se apenasatirassem nas batatas em vez de bater nelas.

Isso trouxe um entusiasmo renovado pelaprática de atirar em diversas coisas e todosficaram muito animados perante a per-spectiva da primeira grande guerra em algu-mas semanas.

Outra grande realização dos Silásticos Arma-demônios de Striterax foi o fato de terem

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sido a primeira raça a conseguir chocar umcomputador.

Tratava-se de um gigantesco computador es-pacial chamado Hactar, até hoje lembradocomo um dos mais poderosos jamais con-struídos. Foi o primeiro a ser construídocomo um cérebro orgânico, no sentido deque cada uma de suas partículas celularescarregava consigo o padrão do todo, o quepermitia que pensasse de forma maisflexível, mais imaginativa e, aparentemente,também permitia que ficasse chocado.

Os Silásticos Armademônios de Striterax es-tavam envolvidos em outra de suas guerrasrotineiras com os Árduos Gargalutadores deStug, mas não estavam se divertindo tantoquanto de hábito porque esta guerra envolviamuitas caminhadas através dos PântanosRadioativos de Cwulzenda e também atravésdas Montanhas de Fogo de Frazfaga,

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terrenos no quais eles não se sentiamconfortáveis.

Então, quando os Estiletanos Estrangulantesde Jajazikstak se juntaram à batalha,forçando-os a lutarem em outro front, nasCavernas Gama de Carfrax e nas Tempest-ades de Gelo de Varlengooten, decidiram queaquilo havia passado dos limites e orden-aram a Hactar que projetasse para eles umaArma Definitiva.

― O que vocês querem dizer ― perguntouHactar ― com Definitiva?

Ao que os Silásticos Armademônios de Strit-erax responderam:

― Vá procurar num maldito dicionário! ― edepois retornaram à batalha.

Então Hactar projetou uma Arma Definitiva.

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Era uma bomba muito, muito pequena queera apenas uma matriz de conexões nohiperespaço que, quando ativada, iria con-ectar o centro de cada um dos grandes sóiscom o centro de todos os outros grandes sóissimultaneamente, transformando, assim, to-do o Universo em uma gigantesca supernovahiperespacial.

Quando os Silásticos Armademônios deStriterax tentaram usá-la para detonar umdepósito de munições dos EstiletanosEstrangulantes em uma das Cavernas Gama,ficaram profundamente irritados porque acoisa não funcionou e expressaram sua opin-ião para Hactar.

Hactar ficou chocado com a idéia.

Tentou explicar-lhes que tinha pensadomuito sobre essa coisa toda de Arma Definit-iva e que concluíra que nenhuma conseqüên-cia possível decorrente da não-explosão da

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bomba Poderia ser pior do que a conseqüên-cia bem conhecida de sua explosão. Sendoassim, ele tinha tomado a liberdade de in-troduzir uma pequena falha no projeto dabomba e esperava que todos os envolvidos,ao pensarem mais claramente sobre o as-sunto, entendessem que...

Os Silásticos Armademônios não con-cordaram e pulverizaram o computador.

Mais tarde eles pensaram um pouco mais noassunto destruíram a bomba defeituosatambém.

Então, parando apenas para dar um couronos Árduos Gargalutadores de Stug e nosEstiletanos Estrangulantes de Jajazikstak,continuaram pensando e encontraram umaforma totalmente nova de explodirem a simesmos, o que foi um grande alívio para to-dos os outros povos da Galáxia, em especial

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os Gargalutadores, os Estiletanos e, claro, asbatatas.

Trillian havia assistido a tudo isso, assimcomo à história de Krikkit. Saiu pensativa daSala de Ilusões Informacionais, bem a tempode descobrir que haviam chegado tardedemais.

Capítulo 25

Assim que a Espaçonave Bistromáticatremeluziu de volta à existência objetiva notopo de um pequeno penhasco no asteróidede dois quilômetros de largura que descreviauma eterna e solitária órbita em torno do sis-tema estelar trancafiado de Krikkit, sua trip-ulação soube que tinha chegado a tempoapenas de testemunhar um evento históricoque não poderiam impedir.

Não sabiam que iriam assistir a dois eventos.

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Ficaram lá, gélidos, solitários e sem ação naborda do penhasco, olhando a atividadeabaixo. Feixes de luz descreviam arcos sinis-tros contra o vazio, vindos de um ponto queestava apenas cerca de 100 metros abaixo e àfrente deles.

Olharam para o evento ofuscante.

Uma extensão do campo da nave permitiaque ficassem ali, de pé, mais uma vez explor-ando a predisposição da mente de aceitarque a enganassem: os problemas da baixagravidade gerada pela pequena massa do as-teróide ou o fato de não serem capazes derespirar passavam a ser de Outra Pessoa.

A nave de guerra de Krikkit estava paradaentre os rochedos acinzentados do asteróide,alternadamente brilhando sob potentes holo-fotes ou desaparecendo nas sombras.

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A escuridão das sombras cortantes projeta-das pelas rochas nuas dançava com a navenuma coreografia exótica enquanto os holo-fotes giravam em torno delas.

Onze robôs brancos estavam levando, emprocissão, a Chave de Wikkit para o centrode um círculo de luzes oscilantes.

A Chave de Wikkit fora reconstruída. Seuscomponentes brilhavam e reluziam: o Pilarde Aço (ou perna de Marvin) da Forca ePoder; o Pilar Dourado (ou Coração do Mo-tor de Improbabilidade) da Prosperidade; oPilar de Acrílico (ou Cetro da Justiça de Ar-gabuthon] da Ciência e da Razão; a Trave dePrata (ou Troféu Rory pelo Uso Mais Desne-cessário da Palavra "Foda-se" em um RoteiroSério) e a Trave de Madeira, agora recon-struída (ou Cinzas de uma trave queimadasignificando a morte do críquete inglês), daNatureza e Espiritualidade.

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― Suponho que não haja nada que possamosfazer agora? ― perguntou Arthur,nervosamente.

― Não ― lamentou Slartibartfast.

A expressão de desapontamento que cruzouo rosto de Arthur foi um completo fracasso e,como estava obscurecido pela sombra, deix-ou que se transformasse em uma expressãode alívio.

― Pena ― disse ele.

― Não temos armas ― disse Slartibartfast. ―Uma estupidez.

― Droga ― disse Arthur baixinho. Ford nãodisse nada.

Trillian também não disse nada, mas o fez deuma forma distinta e pensativa. Ela estava

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olhando para a escuridão do espaço paraalém do asteróide.

O asteróide orbitava a Nuvem de Poeira quecercava o envoltório de Tempolento quemantinha trancado o mundo no qual viviamo povo de Krikkit, os Mestres de Krikkit eseus robôs assassinos.

O grupo, desolado, não tinha como saber seos robôs de Krikkit sabiam ou não que elesestavam lá. Podiam presumir que sim, masque os robôs provavelmente acreditavam ―

corretamente, dadas as circunstâncias ― quenada tinham a temer.

Tinham uma tarefa histórica a cumprir e suaaudiência podia ser tratada com indiferença.

― Terrível essa sensação de impotência,não? ― disse Arthur, mas os outros oignoraram.

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No centro da área iluminada da qual osrobôs se aproximavam, uma fenda de form-ato quadrado surgiu no chão. A fenda podiaser vista de forma cada vez mais distinta, elogo ficou claro que um bloco de solo, tendopouco mais que meio metro quadrado, es-tava lentamente se erguendo.

Ao mesmo tempo perceberam um outro mo-vimento, quase subliminar, e, por alguns in-stantes, não estava exatamente claro o queestava se movendo.

Em seguida ficou claro.

Era o asteróide. Movia-se lentamente paradentro da Nuvem de Poeira, como se fosseinexoravelmente puxado por algum pescadorcelestial lá dentro das suas profundezas.

Iriam fazer, na vida real, a jornada através daNuvem que já haviam feito na Sala de IlusõesInformacionais. Permaneceram envolvidos

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por um silêncio gélido. Trillian franziu atesta.

Parecia que toda uma era se passara. Event-os pareciam transcorrer com uma lentidãoestonteante, enquanto a extremidade do as-teróide penetrava no vago e suave perímetroexterno da Nuvem.

E logo foram envolvidos por uma obscurid-ade fina e oscilante. Passaram por ela, gradu-almente, vagamente conscientes de formas eespirais impossíveis de distinguir na escur-idão, exceto com o canto dos olhos.

A Nuvem de Poeira enfraquecia os focos deluz brilhante, que piscavam por entre amiríade de partículas de poeira.

Trillian, mais uma vez, observou essa pas-sagem de dentro de seus próprios pensamen-tos franzidos.

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Então a travessia terminou. Não havia comosaber se tinham levado um minuto ou meiahora, mas atravessaram a Nuvem e se de-pararam com uma escuridão virgem, como oespaço tivesse sido puxado para fora da ex-istência bem na frente deles.

Agora as coisas começaram a se mover comrapidez.

Um ofuscante poço de luz parecia quase ex-plodir, vindo do bloco, que havia subidocerca de um metro do chão, e dele saía umbloco menor de acrílico, formando um fas-cinante bale de cores em seu interior.

O bloco possuía ranhuras profundas, três navertical e duas na transversal, claramenteprojetadas para aceitar a Chave de Wikkit.

Os robôs se aproximaram da Fechadura, in-troduziram a Chave e se afastaram

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novamente. O bloco começou a girar e o es-paço começou a se alterar.

Enquanto o espaço se desdobrava, dava a ag-onizante sensação de retorcer os olhos dosobservadores em suas órbitas. Encontraram-se olhando, cegos, para um sol desemaran-hado que agora estava diante deles, lá onde,segundos antes, parecia não haver nemmesmo espaço vazio. Passaram-se um oudois segundos antes que pelo menos to-massem consciência do que acontecera epudessem cobrir com as mãos seus olhoshorrivelmente ofuscados. Naqueles poucossegundos perceberam um minúsculo pontomovendo-se lentamente pelo centro daquelesol.

Cambalearam para trás e ouviram,ressoando em seus ouvidos, o inesperadocanto dos robôs gritando em uníssono comsuas vozes finas.

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― Krikkit! Krikkit! Krikkit! Krikkit!

O som era de arrepiar. Era duro, era frio, eravazio, era mecanicamente sombrio.

Era também triunfante.

Ficaram tão atordoados por esses doischoques sensoriais que quase perderam o se-gundo evento histórico.

Zaphod Beeblebrox, o único homem em todaa história a ter sobrevivido a um ataquedireto dos robôs de Krikkit, saiu correndo danave de Krikkit brandindo uma armaZapogun.

― Tudo bem ― gritou ―, a situação estátotalmente sob controle a partir de agora.

O robô que estava de guarda próximo àescotilha da nave silenciosamente girou seu

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bastão de batalha e conectou-o à parte detrás da cabeça esquerda de Zaphod.

― Mas quem foi o zark que fez isso? ― dissea cabeça esquerda, caindo em seguida para afrente.

Sua cabeça direita olhou em volta.

― Quem fez o quê? ― perguntou.

O bastão conectou-se com a parte de trás dacabeça direita.

Zaphod estatelou-se no chão.

Em poucos segundos, tudo estava terminado.Alguns disparos dos robôs fora suficientespara destruir a Fechadura para sempre. Elase quebrou e derreteu e espalhou seu con-teúdo despedaçado. Os robôs marcharam deforma impiedosa e, de uma forma peculiar,

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ligeiramente desalentados de volta à nave deguerra, que partiu com um "fuop".

Trillian e Ford correram alucinadamentepela rocha inclinada até o corpo escuro eimóvel de Zaphod Beeblebrox.

Capítulo 26

Não sei ― disse Zaphod, pensando que deviaser a trigésima sétima vez que dizia aquilo ―,eles podiam ter me matado, mas não matar-am. Talvez tenham pensado que eu era umcara incrível ou algo assim. É algo que possoentender.

Os outros registraram mentalmente suasopiniões sobre essa teoria.

Zaphod estava deitado no chão frio da cabinede comando. Suas costas pareciam estarbrigando com o chão, porque sentia uma dor

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percorrendo seu corpo e batendo em suascabeças.

― Acho ― murmurou ― que tem algo de er-rado com esses carinhas anodizados, algofundamentalmente estranho.

― Eles foram programados para matar todomundo ― afirmou Slartibartfast.

― Este ― disse Zaphod, arquejante ― podemesmo ser o problema.

Ainda assim, não parecia totalmenteconvencido.

― Alô, querida ― disse para Trillian, esper-ando que isso servisse como desculpa paraseu comportamento anterior.

― Você está bem? ― disse ela, gentilmente.

― Sim ― respondeu ―, tudo bem.

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― Ótimo ― disse ela e se afastou parapensar. Olhou para a enorme tela de visualiz-ação acima dos assentos de vôo e, girandoum botão, mudou as imagens locais que es-tavam sendo exibidas. Uma imagem era daescuridão da Nuvem de Poeira. Outra era dosol de Krikkit. Uma terceira era de Krikkitem si. Ficava passando de uma para a outrarapidamente.

― Bem, melhor dizermos adeus à Galáxia,então ― disse Arthur, batendo nos joelhos elevantando-se.

― Não ― disse Slartibartfast gravemente. ―Nosso rumo está claro. ― Franziu a testa atal ponto que seria possível cultivar algunsvegetais pequenos em seus sulcos.

Levantou-se, andou de um lado para o outro.Quando falou outra vez, aquilo que disse odeixou tão assustado que teve que se sentarde novo.

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― Devemos descer em Krikkit ― disse. Umsuspiro profundo sacudiu seu velho esquel-eto e seus olhos pareceram tremer nasórbitas.

― Mais uma vez ― prosseguiu ― falhamospateticamente. Muito pateticamente.

― Isso ― disse Ford, calmamente ― é porquenão nos importamos o bastante. Eu já lhedisse.

Colocou seus pés sobre o painel de instru-mentos e ficou futucando algo em uma desuas unhas.

― No entanto, se não agirmos ― disse ovelho em tom de birra, como se lutasse comalguma coisa profundamente displicente emsua própria natureza ―, então seremos todosdestruídos, iremos todos morrer. Acho quenos importamos com isso, não?

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― Não o suficiente para morrermos por isso― disse Ford. Abriu um sorriso vazio elançou-o de um lado para o outro da sala,para quem quisesse vê-lo.

Slartibartfast claramente achou esse pontode vista muito sedutor e lutou contra ele.

Virou-se de novo para Zaphod, que estavarangendo os dentes e suando de dor.

― Você certamente tem alguma idéia ― disse― sobre a razão de terem salvado a sua vida.Parece muito estranho e incomum.

― Acho que nem mesmo eles sabem ― disseZaphod, indiferente. ― Já lhe disse.

Me acertaram com o disparo mais fracoapenas para me deixar desacordado. Daí mearrastaram até a nave deles, me jogaram emum canto e me ignoraram completamente.

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Como se estivessem meio envergonhados poreu estar ali. Se dissesse qualquer coisa, metiravam do ar de novo Tivemos ótimas con-versas. "Ei... ai! E aí... ui! Queria saber...argh!"

Isso me manteve distraído durante váriashoras, sabe ― Fez outra careta de dor.

Estava brincando com um objeto entre seusdedos. Segurou-o. Era a Trave Dourada

― o Coração de Ouro, o centro do Motor deImprobabilidade Infinita.

Apenas aquilo e o Pilar de Madeira haviampermanecido intactos após a destruição daFechadura.

― Me disseram que sua nave anda bem ―disse Zaphod. ― Então que tal me deixar naminha antes que você ...

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― Você não vai nos ajudar? ― disseSlartibartfast.

― Nós? ― perguntou Ford, subitamente. ―Nós quem, cara-pálida?

― Eu adoraria ficar e ajudá-lo a salvar aGaláxia ― insistiu Zaphod, apoiando-se noscotovelos ―, mas tenho a maior dor decabeça de todos os tempos e pressinto que hávárias outras vindo por aí. Mas, da próximavez que for preciso salvá-la, é comigomesmo.

E aí, Trillian?

Ela olhou para trás rapidamente. ― Sim?

― Quer vir? Coração de Ouro? Diversão eaventura e coisas exóticas?

― Vou descer em Krikkit ― respondeu ela.

Capítulo 27

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Era o mesmo monte, mas ao mesmo temponão.

Desta vez não era uma Ilusão Informacional.Era realmente Krikkit e estavam de pé na su-perfície do planeta. Perto deles, atrás dasárvores, estava o estranho restaurante itali-ano que havia trazido seus corpos verdadeir-os para onde estavam, o verdadeiro mundode Krikkit no presente.

A grama espessa sob seus pés era real e osolo perfumado também. As fragrâncias do-ces da árvore também eram reais. A noite erauma noite real.

Krikkit.

Possivelmente o lugar mais perigoso daGaláxia para qualquer um que não fosse umkrikkitiano. O lugar que não podia tolerar aexistência de qualquer outro lugar, cujoshabitantes encantadores, simpáticos e

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inteligentes gritariam com um ódioselvagem, feroz e assassino quando con-frontados com qualquer um que não fosseum deles.

Arthur estremeceu.

Slartibartfast estremeceu.

Ford, surpreendentemente, estremeceu.

Não era surpreendente que ele houvesse es-tremecido; o surpreendente é que estivesseali. Quando levaram Zaphod de volta à suanave, Ford sentiu-se surpreendentementeenvergonhado e decidiu não fugir.

Errado, pensou consigo mesmo, errado, er-rado, errado. Abraçou contra si uma das Za-poguns com que haviam armado no depósitode armas de Zaphod.

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Trillian estremeceu e franziu a testa quandoolhou para o céu.

Também já não era o mesmo. Já não estavamais completamente negro e vazio.

O campo em torno deles havia mudado pou-co nos 2.000 anos das Guerras de Krikkit e,depois, durante os míseros cinco anos quehaviam se passado localmente desde queKrikkit havia sido selado no envoltório deTempolento, dez bilhões de anos antes. O

céu, contudo, estava dramaticamentediferente.

Luzes fracas e formas pesadas pairavamnele.

Lá no alto, lá para onde nenhum krikkitianojamais olhava, ficavam as Zonas de Guerra,as Zonas dos Robôs. Enormes naves deguerra e torres flutuavam nos campos de

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Zero-Grav muito acima das idílicas terraspastorais da superfície de Krikkit.

Trillian olhou para aquilo tudo e pensou.

― Trillian ― sussurrou Ford.

― Sim? ― respondeu ela.

― O que você está fazendo?

― Pensando.

― Você sempre respira assim quando pensa?

― Não tinha percebido que estavarespirando.

― Foi o que me deixou preocupado.

― Eu acho que sei... ― disse Trillian.

― Shhh! ― disse Slartibartfast alarmado, esua mão magra e trêmula fez sinal para que

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se escondessem ainda mais sob a sombra daárvore.

Como antes na fita, subitamente surgiramluzes vindas da trilha na colina, mas, destavez, as lanternas que balançavam eram lan-ternas elétricas e não tochas. Não chegava aser mudança dramática por si só, mas cadanovo detalhe fazia com que seus coraçõesbatessem assustados. Agora não haviamúsicas alegres sobre flores e fazendas e ca-chorros mortos, mas vozes abafadas dis-cutindo algo importante.

Uma luz se moveu no céu, lenta e pesada-mente. Arthur foi tomado por um terrorclaustrofóbico e o vento morno ficou atraves-sado em sua garganta.

Logo a seguir um segundo grupo surgiu,vindo do outro lado da colina escura.

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Moviam-se rapidamente, com uma intençãoclara, suas lanternas balançando e vascul-hando o terreno ao seu redor.

Os grupos estavam claramente convergindonão apenas um em relação ao outro, mas de-liberadamente se dirigindo para o lugar ondeArthur e os outros estavam.

Arthur ouviu um leve ruído quando FordPrefect levantou sua Zapogun e uma tossidaincomodada quando Slartibartfast levantou asua. Sentiu o peso estranho e frio de sua pró-pria arma e, com as mãos trêmulas,levantou-a também.

Seus dedos tatearam para encontrar a travade segurança e ativar a trava de perigo ex-tremo, como Ford havia mostrado. Estavatremendo tanto que, se atirasse em alguémnaquele momento, provavelmente iria assin-ar seu nome com os raios da arma.

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Trillian foi a única que não levantou suaarma. Em vez disso, levantou assobrancelhas, abaixou-as novamente emordeu os lábios, pensativa.

― Vocês já pensaram... ― começou a dizer,mas ninguém queria discutir nada naquelemomento.

Uma luz cortou a escuridão por trás deles e,ao se voltarem, viram um terceiro grupo dehabitantes de Krikkit vindo por trás deles,procurando-os com suas luzes.

A arma de Ford Prefect disparou ferozmente,mas os raios voltaram-se contra a própriaarma, que caiu de suas mãos.

Houve um momento de profundo terror, umsegundo no qual, congelados, ninguématirou.

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E no final desse segundo ninguém maisatirou.

Estavam cercados por krikkitianos de feiçõespálidas e iluminados pelas luzes oscilantes.

Os prisioneiros olhavam para seus captores,os captores olhavam para seus prisioneiros.

― Oi? ― disse um dos captores. ― Desculpe,mas vocês são... alienígenas?

Capítulo 28

Enquanto isso, muitos milhões de quilômet-ros além do que a mente pode confortavel-mente compreender, Zaphod Beeblebrox es-tava novamente malhumorado.

Havia consertado sua nave, ou melhor, haviaobservado com total atenção enquanto umrobô de manutenção consertava sua nave.Ela havia voltado a ser, novamente, uma das

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mais poderosas e extraordinárias naves ex-istentes. Ele podia ir a qualquer lugar, fazerqualquer coisa. Folheou um livro, depoisjogou-o num canto. Já tinha lido aquele.

Foi até o painel de comunicações e abriu to-das as freqüências de um canal deemergência.

― Alguém quer tomar um drinque? ― disse.

― Isso é uma emergência, cara? ― rosnouuma voz do outro lado da Galáxia.

― Tem algo para misturar? ― perguntouZaphod.

― Vai pegar carona no rabo de um cometa.

― Tá bom, tá bom ― disse Zaphod, fechandoo canal. Suspirou e sentou-se.

Levantou-se novamente e andou até a tela docomputador. Apertou alguns botões.

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Pequenos pontos começaram a correr at-ravés da tela, devorando-se mutuamente.

― Pow! ― disse Zaphod. ― Freeooool Poppop popl

― Oi! ― disse o computador animadamenteapós um ou dois minutos ― Você fez trêspontos. O melhor placar anterior foi de setemilhões, quinhentos e noventa e sete mil,duzentos e...

― Tá bom, tá bom ― disse Zaphod, deslig-ando novamente a tela.

Sentou-se de novo. Brincou com um lápis.Perdeu seu interesse por isso rapidamente.

― Tá bom, tá bom ― disse Zaphod, e ali-mentou seu placar junto com o anterior, nocomputador.

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Sua nave partiu, transformando o Universoem um borrão.

Capítulo 29

Olhem ― disse o krikkitiano magro e pálidoque tinha dado um passo à frente dos outrose estava agora parado, hesitante, no centrodo círculo formado pelas lanternas, segur-ando sua arma como se estivesse apenassegurando-a para uma outra pessoa quetivesse acabado de dar uma saidinha rápida ejá fosse voltar ―, vocês sabem algo a respeitode uma coisa chamada Equilíbrio daNatureza?

Os prisioneiros não responderam ou pelomenos não responderam nada além de al-guns resmungos e murmúrios confusos. Aslanternas continuavam balançando em tornodeles. Lá em cima, no céu, uma atividadesinistra prosseguia nas Zonas dos Robôs.

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― É só ― continuou o krikkitiano meio semjeito ― uma coisa da qual ouvimos falar,talvez nem seja importante. Bem, suponhoque seja melhor matá-los, então.

Olhou para sua arma como se estivesse pro-curando o que apertar.

― Quero dizer ― continuou, olhando paraeles novamente ―, a menos que vocêsqueiram bater papo?

Um assombro lento e dormente subiu peloscorpos de Slartibartfast, Ford e Arthur.

Em pouco tempo atingiria seus cérebros,que, no momento, estavam inteiramenteocupados com a atividade de mover seusmaxilares para cima e para baixo. Trilliansacudia a cabeça, como se tentasse concluirum quebra-cabeça sacudindo a caixa.

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― Estamos preocupados, sabe ― disse umoutro homem que estava em um dos grupos―, com esse plano de destruição universal.

― Sim ― disse um terceiro ―, e com oequilíbrio natural. É que nos parece que, setodo o restante do Universo for destruído, dealguma forma vai atrapalhar o equilíbrio danatureza. Nós gostamos muito de ecologia,sabe? ― Sua voz morreu, com um tom detristeza.

― E esportes ― disse um outro, alto. Isso fezcom que os demais dessem vivas.

― Isso ― concordou o primeiro ― e espor-tes... ― Ele olhou para trás, para seus ami-gos, hesitante, e cocou o queixo, pensativo.Parecia estar se debatendo com uma grandeconfusão interior, como se tudo que elequisesse dizer e tudo que ele pensasse de fatofossem coisas completamente diferentes,

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entre as quais não conseguia ver umaconexão.

― Bem ― murmurou ele ―, alguns de nós...― olhou em volta, procurando sinais deapoio. Os outros o encorajaram a continuar.― Alguns de nós gostariam muito de manterrelações desportivas com o restante daGaláxia e, embora eu entenda o argumento afavor de manter esporte e política bem sep-arados, acho que, se queremos ter relaçõesdesportivas com o restante da Galáxia,provavelmente seria um erro destruí-la. Etambém o restante do Universo... ― sua vozbaixou de volume ― ...o que parece ser aidéia geral agora...

― O qqq ― disse Slartibartfast. ― Oooo...

― Ahhhhh...? ― disse Arthur.

― Ehhhh... ― disse Ford.

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― O.k. ― disse Trillian. ― Vamos conversar arespeito. ― Ela se aproximou e pegou opobre e confuso krikkitiano pelo braço. Eleparecia ter uns 25 anos, o que significava,por conta das confusões peculiares com otempo que haviam acontecido naquela área,que ele teria cerca de 20 anos quando asGuerras de Krikkit terminaram, há dez bil-hões de anos.

Trillian andou com ele por um curto trecho,passando pelas lanternas, antes de dizermais alguma coisa. Ele andava com ela, meioconfuso. Os fachos de luz em volta estavamagora se inclinando ligeiramente para baixo,como se estivessem se rendendo àquela ga-rota calma e estranha que, sozinha em umUniverso de obscura confusão, parecia sabero que estava fazendo.

Ela se virou e olhou para ele, segurando leve-mente suas duas mãos. Ele era a própriafigura da miséria e perplexidade.

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― Conte-me ― disse ela.

A princípio ele nada disse, enquanto seu ol-har passava de um para outro dos olhos dela.

― Nós... ― disse ele ― nós temos que estarsós... eu acho. ― Ele entortou a cara e depoisdeixou cair sua cabeça para a frente,balançando-a como alguém que estivessetentando extrair uma moeda de um cofre.Ele olhou para ela novamente.

― Agora nós temos uma bomba, sabe ―disse ele ―, que é bem pequena.

― Eu sei ― disse ela.

Olhou para ela muito espantado, como se elativesse dito algo muito estranho sobrebeterrabas.

― Sério ― disse ele ―, ela é muito, muitopequena.

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― Eu sei ― disse ela novamente.

― Mas eles dizem... ― sua voz soava ar-rastada ― dizem que ela é capaz de destruirtudo o que existe. E nós temos que fazer isso,eu acho. Será que ficaremos solitários? Nãosei. Mas parece ser a nossa função ― disseele, e abaixou a cabeça novamente.

― Seja lá o que for ― disse alguém em umdos grupos. Trillian lentamente colocou seusbraços em volta do pobre e confuso jovemkrikkitiano, depois botou sua cabeça trêmulaem seu ombro.

― Está tudo bem ― disse ela, docemente masalto o bastante para todos os que estavam emvolta ouvirem ―, vocês não precisam fazerisso.

Balançou-o levemente em seu ombro.

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― Não precisam fazer isso ― repetiu. Eladeixou que ele se fosse.

― Quero que façam uma coisa por mim ―disse ela, soltando uma risada inesperada. ―Eu quero ― disse e riu novamente. Colocou amão sobre a boca e depois disse de novo,com uma cara séria: ― Quero que me levema seu líder ― e apontou na direção das Zonasde Guerra no céu. De alguma forma ela sabiaque o líder deles estaria lá.

Sua risada pareceu descarregar algo na at-mosfera. Em algum lugar, lá atrás na mul-tidão, uma única voz começou a cantar umamúsica que, se tivesse sido composta porPaul McCartney, lhe teria permitido compraro mundo inteiro.

Capítulo 30

Zaphod Beeblebrox engatinhava bravamenteao longo de um túnel, em seu melhor estilo

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heróico. Ele estava muito confuso, mas con-tinuava engatinhando obstinadamente,mesmo assim, simplesmente porque eraheróico.

Estava muito confuso por algo que acabarade ver, mas nem de longe tão confuso quantoiria ficar por algo que ele estava prestes aouvir, então é melhor explicar logo onde ex-atamente ele estava.

Ele estava nas Zonas de Guerra dos Robôs,muitos quilômetros acima da superfície doplaneta Krikkit.

Lá a atmosfera era rarefeita e relativamentedesprotegida de qualquer tipo de raio ouqualquer outra coisa que o espaço resolvesselançar em sua direção.

Tinha estacionado a nave Coração de Ouroentre as enormes e gigantescas naves amon-toadas que enchiam o céu sobre o planeta

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Krikkit e depois entrara em algo que pareciaser a maior e mais importante das con-struções do céu, armado apenas com sua Za-pogun e algo para suas dores de cabeça.

Foi dar em um longo, largo e mal iluminadocorredor no qual pôde se esconder até de-cidir o que fazer em seguida. Escondeu-se aliporque, de quando em quando, um dos robôsde Krikkit passava por ali e, apesar de terlevado, até aquele momento, uma vida desonho entre os robôs, ainda assim havia sidouma vida muito dolorosa e ele não tinha amenor vontade de levar ao extremo algo queestava apenas semidisposto a chamar de

"grande sorte".

Havia se escondido, em certo momento, emum quarto que levava até o corredor e queele havia descoberto ser uma enorme e nova-mente mal iluminada câmara.

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Na verdade tratava-se de um museu comuma única peça em exibição ― os destroçosde uma espaçonave. Estava bastante retor-cida e queimada, mas, agora que ele haviaaprendido um pouco da História Galácticaque tinha deixado de aprender durante suastentativas fracassadas de fazer sexo com agarota no cibercubículo ao lado do seu naescola, formulou a suposição bastante inteli-gente de que aqueles eram os destroços danave que havia atravessado a Nuvem dePoeira bilhões de anos atrás e iniciado toda aconfusão.

Contudo ― e é aí que ele tinha ficado confuso― havia algo muito estranho a respeitodaquilo.

Ela estava verdadeiramente destroçada.Estava verdadeiramente queimada, mas umainspeção muito rápida por um olho treinadorevelava que não era uma verdadeira es-paçonave. E como se fosse apenas um

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modelo em escala natural de uma nave ― umbom modelo. Em outras palavras, algo ex-tremamente útil para se ter por perto se vocêsubitamente decidisse construir uma es-paçonave por conta própria mas nãosoubesse bem como fazê-lo. Não era, con-tudo, uma nave que pudesse voar sozinhapara qualquer lugar que fosse.

Ele ainda estava pensando nisso ― na ver-dade havia apenas começado a pensar sobreisso ― quando percebeu que uma porta haviasido aberta em outra parte da câmara e umadupla de robôs de Krikkit havia entrado, comum aspecto um pouco soturno.

Zaphod preferia não se meter com eles e,tendo decidido que, assim como a discrição éa maior qualidade da valentia, da mesmaforma a covardia era a maior qualidade dadiscrição, resolveu esconder-se valentementedentro de um armário.

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O armário era, na verdade, a parte superiorde um poço que ia diretamente até umaportinhola de inspeção e daí dava em umgrande tubo de ventilação.

Seguiu nessa direção e começou a engatinharpelo tubo. Foi neste ponto que o encon-tramos originalmente.

Ele não estava gostando de lá. Era frio,escuro e profundamente desconfortável.

Além disso, lhe dava calafrios. Na primeiraoportunidade ― que era uma outra portin-hola uns 100 metros à frente ― ele iria sairdali.

Agora foi parar em uma câmara menor, queparecia ser um centro de inteligência com-putacional. Saiu em um espaço apertado eescuro entre um grande banco de computa-dores e a parede.

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Rapidamente descobriu que não estava soz-inho na sala e preparou-se para sair nova-mente, quando começou a prestar atençãono que os outros ocupantes estavam dizendo.

― São os robôs, senhor ― disse uma voz. ―Há algo de errado com eles.

― O que exatamente?

Aquelas eram as vozes de dois Comandantesde Guerra krikkitianos. Todos os Comand-antes de Guerra viviam no céu, nas Zonas deGuerra dos Robôs e estavam, em grandeparte, imunes às dúvidas e incertezas peculi-ares que afligiam seus companheiros lá em-baixo, na superfície do planeta.

― Bem, senhor, acho que é bom que eles es-tejam sendo gradualmente removidos dosesforços de guerra e que já estejamos pron-tos para detonar a bomba de supernova.

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Nesse curto tempo desde que fomos liberta-dos do envoltório...

― Vá direto ao assunto.

― Os robôs estão chateados, senhor.

― O quê?

― A guerra, senhor, parece que ela os estádeixando meio pra baixo. Parecem estarcansados do mundo, ou talvez eu devessedizer do Universo.

― Bem, é normal, afinal eles foram criadospara nos ajudar a destruí-lo.

― Sei, mas é que eles estão tendo di-ficuldades com essa parte, senhor. Pareceque estão meio cansados. Estão sem vontadede fazer o seu trabalho. Diria que perderam o

"tchã" da coisa.

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― O que você está tentando me dizer?

― Bem, eu acho que estão deprimidos por al-gum motivo, senhor.

― Mas, por Krikkit, o que você está dizendo?

― É que, nesses últimos encontros quetiveram recentemente, parece que entraramem uma batalha, levantaram suas armaspara atirar e subitamente começaram apensar: mas por quê? Qual a importância,cosmicamente falando, disso tudo? E entãoficaram um pouco cansados e um poucochateados.

― O que eles fazem, então?

― Eh... Equações quadráticas, basicamente.Absurdamente difíceis de resolver, pelo quesei. E daí ficam deprimidos.

― Deprimidos?

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― Sim, senhor.

― Quem já viu um robô deprimido?

― Também não entendo, senhor.

― Que barulho é esse?

Era o barulho de Zaphod saindo com suacabeça girando.

Capítulo 31

Num profundo poço de escuridão jazia umrobô. Ele tinha permanecido em silêncio emsua escuridão metálica durante um bomtempo. Estava frio e úmido, mas, sendo umrobô, supostamente ele não deveria notaraquelas coisas.

Contudo, graças a uma enorme força devontade, ele conseguia notá-las.

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Seu cérebro havia sido acessado pelo núcleocentral de inteligência do Computador deGuerra de Krikkit. Ele não estava achandoaquela experiência divertida, e o núcleo cent-ral de inteligência do Computador de Guerrade Krikkit também não.

Os robôs de Krikkit que haviam resgatadoaquela patética criatura dos pântanos deSquornshellous Zeta haviam reconhecidoquase instantaneamente sua gigantesca in-teligência, bem como o uso que poderiamfazer dela.

Não tinham contado com os distúrbios depersonalidade inerentes que o frio, a escur-idão, a umidade, a falta de espaço e a solidãonão contribuíam em nada para reduzir.

Ele não estava nada feliz com suas tarefas.

Além de qualquer outra coisa, a mera co-ordenação de toda a estratégia militar de um

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planeta inteiro ocupava apenas uma Pequenaparte de sua mente formidável e o restantedela estava se aborrecendo muito. Tendoresolvido todos os principais problemasmatemáticos, físicos, químicos, biológicos,sociológicos, filosóficos, etimológicos, met-eorológicos e psicológicos do Universo ― ex-ceto o seu próprio ―, três vezes seguidas, es-tava achando realmente difícil encontrar algopara fazer, então tinha resolvido dedicar-se acompor cantigas curtas e melancólicas aton-ais, ou melhor, sem melodia alguma. A úl-tima delas era uma canção de ninar. Marvinentoou, sem tom:

"Agora o mundo foi dormir,

A escuridão em mim não vou sentir,

Em infravermelho posso ver,

Como odeio a noite."

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Fez uma pausa para reunir forças artísticas eemocionais a fim de compor o próximoverso:

"Eu me deito pra sonhar,

Carneiros elétricos vou contar,

Doces sonhos vão se danar,

Como odeio a noite."

― Marvin! ― sibilou uma voz.

Sua cabeça levantou-se subitamente, quasearrancando a intrincada rede de eletrodosque o conectavam à central do Computadorde Guerra de Krikkit.

Uma portinhola de inspeção havia sidoaberta e uma das duas incontroláveis cabeçasestava olhando para dentro, enquanto aoutra se sacudia nervosamente virando otempo todo de um lado para o outro.

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― Ah, é você ― murmurou o robô. ― Eu de-via ter adivinhado.

― E aí, garoto? ― disse Zaphod, surpreso ―Era você quem estava cantando agora hápouco?

― Estou ― reconheceu Marvin, amargurado― em condições particularmente cintilantesneste momento.

Zaphod enfiou a cabeça através da portin-hola e olhou em volta.

― Você está sozinho? ― perguntou.

― Sim ― disse Marvin. ― Extenuado, me en-contro aqui sentado, tendo a dor e a misériacomo únicas companheiras. Além da vastainteligência, é claro. E da tristeza infinita.E...

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― Sei ― disse Zaphod. ― Ei, qual a sua con-exão com tudo isso?

― Isso aqui ― disse Marvin, indicando comseu braço menos danificado todos os eletro-dos que o conectavam ao computador deKrikkit.

― Então ― disse Zaphod meio sem jeito ―,acho que você salvou minha vida.

Duas vezes.

― Três vezes ― respondeu Marvin.

A cabeça de Zaphod se voltou (a outra estavaolhando atentamente em uma direção com-pletamente errada) exatamente a tempo dever o letal robô assassino bem atrás dele teruma convulsão e começar a soltar fumaça.Ele cambaleou para trás e deixou-se cair con-tra uma parede. Escorregou até o chão. Caiu

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de lado, jogou a cabeça para trás e começou asoluçar inconsolavelmente.

Zaphod olhou novamente para Marvin.

― Você deve ter uma perspectiva incrívelsobre a vida.

― Nem me pergunte ― respondeu Marvin.

― Não vou perguntar ― disse Zaphod e nãoperguntou. ― Cara, você está fazendo umtrabalho incrível.

― O que significa, suponho ― disse Marvin,usando apenas uma grilionésima tri-lionésima bilionésima milionésimacentésima décima parte de seus poderesmentais para fazer essa inferência lógica emparticular ―, que você não irá me libertarnem nada.

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― Garoto, você sabe que eu adoraria fazeristo.

― Mas não vai fazê-lo.

― Não.

― Entendo.

― Você está trabalhando muito bem.

― Sim ― disse Marvin. ― Por que pararagora, justamente quando estou odiandoisso?

― Preciso encontrar Trillian e o resto dopessoal. Ei, você tem alguma idéia de ondeestão? Digo, tenho um planeta inteiro paravasculhar. Pode levar um tempo.

― Eles estão bem próximos ― disse Marvin,pesarosamente. ― Pode monitorálos daqui,se quiser.

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― Acho melhor ir até eles ― afirmou Za-phod. ― Ahn, bem talvez eu precise de al-guma ajuda, certo?

― Talvez ― disse Marvin, com uma autorid-ade inesperada em sua voz lúgubre ―

fosse melhor você monitorá-los daqui.Aquela jovem ― acrescentou, inesperada-mente ― é uma das menos ignorantementeaparvalhadas formas de vida orgânica que eujá tive a profunda falta de prazer de não sercapaz de evitar encontrar.

Zaphod levou alguns instantes para encon-trar um caminho em meio a esse estonteantelabirinto de negativas e saiu do outro ladobem surpreso.

― Trillian? ― disse. ― É só uma garota. Bon-itinha, sim, mas temperamental.

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Você sabe como é, essa coisa de mulheres.Ou talvez não saiba. Acho que não.

Se você sabe, eu não quero saber. Vamos lá,faça a conexão.

― ...totalmente manipulado.

― O quê? ― disse Zaphod.

Era Trillian quem estava falando. Ele sevirou.

A parede contra a qual o robô de Krikkit es-tava soluçando havia se iluminado paramostrar uma cena que estava se desenrolan-do em alguma outra parte desconhecida dasZonas de Guerra dos Robôs de Krikkit. Pare-cia ser uma câmara de conselho ou algoassim

― Zaphod não podia ver muito bem por con-ta do robô jogado contra a tela.

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Zaphod tentou mover o robô, mas este estavacombalido em sua dor e tentou mordê-lo, en-tão Zaphod achou melhor olhar em volta damelhor forma possível.

― Pense nisto ― disse a voz de Trillian ―,toda a história de vocês é apenas uma sériede eventos altamente improváveis. E eu con-heço um evento improvável quando vejo um.Seu completo isolamento da Galáxia já erabem estranho, para começar. Bem no ex-tremo de tudo e com uma Nuvem de Poeiracercando vocês. Só pode ser armação.

Claramente.

Zaphod estava extremamente frustrado pornão poder ver a tela. A cabeça do robô o im-pedia de ver as pessoas com quem Trillianestava falando, o bastão de batalha multifun-cional encobria o fundo da imagem e o om-bro do braço que o robô havia pressionado

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contra a sua testa, em um gesto trágico, es-tava tapando Trillian.

― Então ― prosseguiu Trillian ― essa navese espatifou no planeta de vocês.

Isso é totalmente improvável, não? Vocêstêm alguma idéia da improbabilidade deuma nave vagando por aí acidentalmentecruzar a órbita de um planeta?

― Ei! ― disse Zaphod. ― Ela não tem o men-or Zárquon de idéia do que está falando. Euvi a nave. É falsa. Não tem como.

― Achei que fosse ― disse Marvin, de suaprisão atrás de Zaphod.

― Ah, é? ― disse Zaphod. ― É fácil dizerisso, agora que eu lhe contei. De qualquerforma, não estou vendo o que uma coisa tema ver com a outra.

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― E sobretudo ― continuou Trillian ― a im-probabilidade de interceptar a órbita doúnico planeta em toda a Galáxia, ou talvezem todo o Universo, que ficaria totalmentetraumatizado por vê-la. Vocês não sabemcalcular a improbabilidade? Eu também não,e isso só mostra o quão elevada ela é. Maisuma vez é armação. Não ficaria nada sur-presa se a nave fosse falsa.

Zaphod conseguiu mover o bastão de batalhado robô. Atrás dele, na tela, estavam Ford,Arthur e Slartibartfast, que pareciam per-plexos e atônitos em meio aquilo tudo.

― Ei, olha só ― disse Zaphod, animado. ―Os caras estão se saindo bem! Ra ra ra!

Vamos lá, peguem eles!

― E o que vocês têm a dizer ― continuouTrillian ― sobre toda essa tecnologia que vo-cês subitamente conseguiram desenvolver

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por contra própria quase que da noite para odia? A maioria das pessoas levaria milharesde anos para fazer tudo isso. Alguém estavapassando para vocês tudo de que precisavamsaber, alguém estava mantendo vocês pordentro. Sim, eu sei ― ela acrescentou em res-posta a uma interrupção que não podia servista

―, entendo que vocês não tenham percebidoo que estava acontecendo. É exatamentesobre isso que estou falando. Vocês nuncaperceberam nada. Como essa bomba desupernova.

― Como você sabe que ela existe? ― disseuma voz que não podia ser vista.

― Apenas sei ― disse Trillian. ― Vocês real-mente esperam que eu acredite que vocêssão espertos o suficiente para inventar algotão brilhante e são, ao mesmo tempo, burrosdemais para entender que ela os destruiria

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também? Isso não é apenas burro, é ex-traordinariamente obtuso!

― Ei, que história é essa de bomba? ― per-guntou Zaphod, preocupado, para Marvin.

― A bomba de supernova? ― respondeuMarvin. ― É uma bomba muito, muitopequena.

― É?

― Que iria destruir o Universo inteiro ―completou Marvin. ― Uma boa idéia, a meuver. Mas não vão conseguir fazê-la funcionar.

― Por que não, se é tão brilhante?

― A bomba é brilhante ― disse Marvin ―,eles não. Chegaram até o ponto de projetá-laantes de serem trancados no envoltório.Levaram os últimos cinco anos construindo-a. Acham que chegaram lá, mas erraram. São

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tão burros quanto qualquer outra forma devida orgânica. Odeio todas elas.

Trillian prosseguia.

Zaphod tentou puxar o robô pelas pernas,mas ele o chutou e rosnou para ele, então selançou em um novo acesso de choro. Então,subitamente, ele se jogou no chão e continu-ou a expressar seus sentimentos no chão,fora do caminho.

Trillian estava de pé, sozinha, no meio deuma câmara, cansada mas com olhos vig-orosamente chamejantes.

Perfilados à sua frente estavam os pálidos eenrugados Mestres Anciões de Krikkit, imó-veis atrás de sua longa mesa de controlecurvada, olhando para ela com uma misturade medo e ódio.

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Na frente deles, a meia distância entre amesa de controle e o meio da câmara, ondeTrillian estava de pé, como em um julga-mento, havia um pilar branco e fino medindocerca de um metro e vinte de altura. No altodo pilar, um pequeno globo branco, com unsdez centímetros de diâmetro.

Ao lado dele havia um robô de Krikkit comseu bastão de batalha multifuncional.

― Na verdade ― explicou Trillian ― vocêssão tão idiotamente burros (ela estava su-ando, e Zaphod achava que aquilo era algopouco atraente para ela estar fazendonaquele momento), são todos tão idiota-mente burros, que eu duvido, realmenteduvido, que tenham sido capazes de constru-ir a bomba da forma certa sem a ajuda deHactar nestes últimos cinco anos.

― Quem é esse tal de Hactar? ― perguntouZaphod.

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Se Marvin respondeu, Zaphod não ouviu.Toda a sua atenção estava centrada na tela.

Um dos Anciões de Krikkit fez um pequenogesto com as mãos na direção do robô deKrikkit. O robô levantou o bastão.

― Não posso fazer nada ― disse Marvin. ―Ele está em um circuito independente dosoutros.

― Esperem ― disse Trillian.

O Ancião fez outro pequeno gesto. O robôparou. Trillian subitamente duvidou seria-mente de seu raciocínio.

― Como você sabe de tudo isso? ― pergun-tou Zaphod para Marvin.

― Registros do computador ― respondeuMarvin. ― Eu tenho acesso.

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― Vocês são muito diferentes, não? ― disseTrillian para os Mestres Anciões

― Muito diferentes de seus companheiros demundo lá no chão. Vocês passaram a vidaaqui, sem a proteção da atmosfera. Têm es-tado muito vulneráveis. O resto de sua raçaestá assustada, sabem, eles não querem quevocês façam isso. Vocês estão distantes detudo.

Por que não vão falar com os outros?

O Ancião perdeu a paciência. Fez um gestopara o robô que era exatamente o oposto dogesto anterior.

O robô moveu seu bastão de batalha. Acertouo pequeno globo branco.

O pequeno globo branco era a bomba desupernova.

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Era uma bomba muito, muito pequena quefora projetada para destruir todo o Universo.

A bomba de supernova voou pelo ar. Bateuna parede no fundo da câmara do conselho efez um bom buraco nela.

― Mas como ela sabe disso tudo? ― disseZaphod.

Marvin manteve-se em um silêncio sombrio.

― Provavelmente está apenas blefando ―disse Zaphod. ― Pobre garota, eu nuncadeveria tê-la deixado sozinha.

Capítulo 32

Hactar! ― gritou Trillian. ― O que você quercom essa história toda?

Não houve resposta da escuridão que a cer-cava. Trillian esperou, nervosa.

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Ela estava certa de que não podia estar er-rada. Tentou enxergar dentro das sombrasde onde esperava que alguma respostaviesse. Mas havia apenas um silêncio frio.

― Hactar? ― chamou novamente. ― Gostar-ia que você conhecesse meu amigo ArthurDent. Eu queria fugir com um Deus doTrovão, mas ele não me deixou e eu lheagradeço por isso. Ele me fez compreenderonde residia meu afeto.

Infelizmente Zaphod tem medo demais dissotudo, então trouxe Arthur no lugar dele. Nãosei bem por que estou lhe dizendo tudo isso.Alô? ― disse novamente. ― Hactar?

E então surgiu a resposta.

Era fraca e débil como uma voz carregadapelo vento, trazida de muito longe, ouvidaapenas em parte ― a memória do sonho deuma voz.

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― Por favor, saiam ― disse a voz. ― Prometoque estarão completamente seguros.

Olharam um para o outro e depois saíram,improvavelmente, acompanhando o raio deluz que saía da escotilha aberta na Coraçãode Ouro em plena escuridão granulosa daNuvem de Poeira.

Arthur tentou segurar a mão de Trillian paraacalmá-la e reconfortá-la, mas ela não deix-ou. Então decidiu segurar sua bolsa com alata de azeite grego, sua toalha, postaisamassados de Santorini e outros bagulhos.Acalmou e reconfortou aquilo.

Estavam sobre e dentro de nada.

Um nada escuro e repleto de poeira. Cadagrão de poeira do computador pulverizadobrilhava levemente conforme girava lenta-mente, capturando a luz do sol em meio à es-curidão. Cada partícula do computador, cada

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grão de poeira, possuía em si, fraca e minim-amente, o padrão do todo. Ao reduzir o com-putador a pó, os Silásticos Armademônios deStriterax o haviam danificado, mas nãodestruído. Um campo fraco e insubstancialmantinha as partículas relacionadas umas àsoutras.

Arthur e Trillian estavam de pé, ou melhor,flutuavam no meio dessa estranha entidade.Não tinham o que respirar, mas, até então,isso não parecia ser importante. Hactarcumpriu sua promessa. Estavam seguros.Por enquanto.

― Não posso lhes oferecer muito em termosde conforto ― disse Hactar, com uma vozfraca ―, exceto ilusões de ótica. É possível,contudo, sentir-se bastante confortável comilusões de ótica quando isso é tudo que setem.

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Sua voz sumiu aos poucos e, em meio àpoeira escura, surgiu um longo sofá cobertopor um veludo paisley.

Arthur estava tendo sérias dificuldades emaceitar o fato de que aquele era o mesmo sofáque havia aparecido antes, quando estava naTerra pré-histórica. Ele queria gritar e esper-near de raiva porque o Universo continuavafazendo esse tipo de coisas enlouquecedora-mente atordoantes com ele.

Deixou que esse sentimento passasse, depoissentou-se no sofá, cuidadosamente.

Trillian sentou também.

O sofá era real.

Ou, se não fosse real, ainda assim ele ossustentava e, como era isso que os sofássupostamente deviam fazer, aquele, de

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acordo com qualquer padrão vigente, era umsofá real.

A voz soprada pelo vento solar suspirousobre eles novamente.

― Espero que estejam confortáveis.

Assentiram.

― E gostaria de lhes dar os parabéns pela ex-atidão de suas deduções.

Arthur apressou-se em dizer que ele nãotinha deduzido quase nada pessoalmente eque aquilo era coisa da Trillian. Ela simples-mente pediu que ele viesse junto porquetambém estava interessado na vida, noUniverso e em tudo mais.

― Isso também é algo que me interessa ―soprou Hactar.

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― Bem ― disse Arthur ―, deveríamos con-versar a respeito alguma hora. De preferên-cia tomando um chá.

Lentamente materializou-se, à frente deles,uma pequena mesa de madeira sobre a qualhavia uma chaleira de prata, uma leiteira deporcelana branca, um açucareiro de por-celana branca e duas xícaras e pires de por-celana branca.

Arthur inclinou-se para pegar uma xícara,mas eram apenas ilusões de ótica.

Recostou-se de volta no sofá, que era umailusão que seu corpo estava preparado paraaceitar como confortável.

― Por que ― perguntou Trillian ― você achaque precisa destruir o Universo?

Ela estava achando um pouco difícil falarpara o nada, sem um ponto onde fixar o

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olhar. Hactar obviamente notou isso. Riuuma risadinha fantasmagórica.

― Se vamos ter uma sessão desse tipo ― re-spondeu ―, melhor que seja em um localadequado.

Agora coisas novas materializaram-se nafrente deles. Era uma imagem pálida e ob-scurecida de um divã ― um divã de psiqui-atra. O couro com o qual estava forrado erabrilhoso e suntuoso, mas aquilo também erauma ilusão de ótica.

Em torno deles, para completar o ambiente,havia uma sugestão embaçada de paredesrevestidas com madeira. E então, no divã,surgiu a imagem do próprio Hactar. Essa erauma imagem que entortava o olhar.

O divã parecia ter o tamanho normal de umdivã de psicanalista ― pouco mais de ummetro e meio de comprimento.

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O computador parecia ter o tamanho normalde um computador satélite negro e residenteno espaço ― cerca de 1.500 quilômetros decomprimento.

A ilusão de que um estava sentado sobre ooutro era a coisa que entortava o olhar.

― Tudo bem ― prosseguiu Trillian,firmemente. Levantou-se do sofá. Sentia queestava sendo forçada a se sentir muito con-fortável e a aceitar ilusões demais.

― Muito bem ― disse ela. ― Você pode con-struir objetos reais também? Digo, objetossólidos?

Houve outra pausa antes da resposta, comose a mente pulverizada de Hactar tivesse quecoletar seus pensamentos dentro dos mil-hões e milhões de milhas nas quais estavadispersa.

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― Ah ― suspirou. ― Você está se referindo ànave.

Os pensamentos pareciam fluir por eles e at-ravés deles, como ondas no éter.

― Sim ― respondeu ―, eu posso. Mas requerum esforço e um tempo enormes.

Tudo que posso fazer em meu... estado departículas, como você vê, é encorajar e sug-erir. Encorajar e sugerir. E sugerir...

A imagem de Hactar no sofá pareceu tremu-lar e se esmaecer, como se estivesse tendo di-ficuldades em se manter. Reuniu forças.

― Posso encorajar e sugerir ― prosseguiu ―que pequenos fragmentos de matéria no es-paço ― um eventual meteorito minúsculo,algumas moléculas aqui, alguns átomos dehidrogênio ali ― se reúnam. Eu os encorajo a

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juntarem-se. Posso sugerir-lhes uma forma,mas isso leva muitas eras.

― Então foi você que criou ― perguntou Tril-lian novamente ― o modelo da espaçonavedestroçada?

― Ehh... sim ― murmurou Hactar. ― Euconstruí... algumas coisas. Posso movê-laspor aí. Fiz a espaçonave. Achei melhor fazer.

Naquele momento, algo fez com que Arthurpegasse sua bolsa sobre o sofá e a segurassecom firmeza.

A névoa da antiga mente rompida de Hactarrevirava-se em torno deles como se sonhosincômodos a perpassassem.

― Entendam, eu me arrependi ― murmuroupesarosamente.

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― Me arrependi de ter sabotado meu próprioprojeto para os Silásticos Armademônios.Não me cabia tomar aquelas decisões. Fuicriado para cumprir uma função e falhei.Neguei minha própria existência.

Hactar suspirou, enquanto Arthur e Trillianesperavam, em silêncio, que ele continuassesua história.

― Vocês estavam certos ― disse ele. ― Eudeliberadamente orientei o planeta deKrikkit até que chegassem à mesma forma depensar dos Silásticos Armademônios e mepedissem, então, o projeto da bomba que fal-hei em construir da primeira vez. Eu envolvitodo o planeta e cuidei dele. Sob a influênciade eventos que fui capaz de gerar, apren-deram a odiar como maníacos. Tive que fazercom que vivessem no céu. Lá embaixo, na su-perfície, minha influência era muito fraca. Éclaro que, enquanto estiveram trancados edistantes de mim dentro do envoltório de

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Tempolento, começaram a agir de formaconfusa e não conseguiram se virar sozinhos.Pois bem, pois bem ― acrescentou ―, estavaapenas tentando cumprir minha função.

E muito gradualmente, muito, muito lenta-mente, as imagens começaram a se esvair,desmanchando-se suavemente. Então, subit-amente, pararam de se esvair.

― Havia também a questão da vingança, éclaro ― disse Hactar, com uma veemêncianova em sua voz. ― Lembrem-se de que fuipulverizado, depois deixado avariado e semi-impotente durante bilhões de anos. Honesta-mente, eu preferia aniquilar o Universo.Vocês se sentiriam da mesma formaacreditem.

Parou novamente, enquanto turbilhões per-corriam a Nuvem.

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― Mas sobretudo ― disse, no tom de vozmelancólico que vinha usando ― estava tent-ando cumprir minha função. Pois bem.

Trillian disse:

― Você não acha ruim ter fracassado?

― Fracassei? ― sussurrou Hactar. A imagemdo computador no divã de psiquiatracomeçou lentamente a sumir.

― Pois bem, pois bem ― prosseguiu a voz,sumindo aos poucos. ― Não, agora o fracas-so já não me preocupa.

― Você sabe o que teremos que fazer, não é?― disse Trillian, com a voz seca de umprofissional.

― Sim ― disse Hactar ―, vão ter que me dis-persar. Vão destruir minha consciência.Prossigam, por favor ― depois de tantas

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eras, esquecimento é tudo o que desejo. Seainda não cumpri minha função, agora étarde. Obrigado e boa noite.

O sofá desapareceu. A mesa de chádesapareceu.

O divã e o computador desapareceram, as-sim como as paredes. Arthur e Trillian retor-naram à Coração de Ouro.

― Bem, acho que é isso aí mesmo ― disseArthur.

As labaredas subiram à sua frente e poucodepois se apagaram, deixando-o apenas coma pilha das Cinzas, onde pouco antes havia oPilar de Madeira da Natureza eEspiritualidade.

Ele as recolheu da cavidade da Chur-rasqueira Gama da Coração de Ouro,

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colocou-as em um saquinho de papel e re-tornou à ponte.

― Acho que deveríamos levá-las de volta ―disse. ― Sinto isso muito fortemente.

Ele já tinha discutido com Slartibartfastsobre o assunto, e o velho acabou se en-chendo e foi embora. Havia retornado parasua própria espaçonave, a Bistromática,brigou seriamente com o garçom e desapare-ceu em uma idéia completamente subjetiva arespeito do espaço.

A discussão havia surgido porque Arthurqueria levar as Cinzas de volta ao Lord'sCricket Ground, para o mesmo momento emque haviam sido retiradas de lá, o que en-volvia viajar no tempo um dia para trás oualgo próximo a isso, e era exatamente essetipo de vandalismo gratuito e irresponsávelque a Campanha por um Tempo Real estavatentando fazer cessar.

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― Sim ― havia dito Arthur ―, mas tente ex-plicar isso ao Marylebone Cricket Club. ― Enão quis ouvir nenhum outro argumentocontra a sua idéia. ― Eu acho ― disse nova-mente, e parou. O motivo pelo qual haviacomeçado a falar de novo era porque nin-guém havia prestado atenção na primeiravez, e o motivo pelo qual parou foi porqueestava bastante óbvio que não iriam prestaratenção de novo.

Ford, Zaphod e Trillian estavam olhandopara as telas de monitoração atentamente,enquanto Hactar estava sendo dispersadosob a pressão gerada por um campo vibra-cional que a Coração de Ouro estava gerandodentro dele.

― O que ele disse? ― perguntou Ford.

― Acho que ouvi ele dizer "O que está feito,está feito... Cumpri minha função..."

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― disse Trillian, meio espantada.

― Acho que deveríamos levar estas Cinzas devolta ― disse Arthur, segurando o saquinhoque continha as Cinzas. ― Sinto isso muitofortemente.

Capítulo 33

O sol estava brilhando calmamente sobre ocenário de completo caos. A fumaça con-tinuava subindo ao longo do gramadochamuscado, pouco após o roubo das Cinzaspelos robôs de Krikkit. Em meio à fumaça,pessoas corriam, em pânico, chocando-seumas contra as outras, tropeçando, sendopresas.

Um policial estava tentando prender Wow-bagger, o Infinitamente Prolongado, porfalta de decoro, mas não foi capaz de impedirque o alienígena alto e cinza-esverdeado re-tornasse à sua nave e voasse para longe,

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arrogantemente, aumentando ainda mais opânico e pandemônio.

Em meio a tudo isso, pela segunda veznaquela tarde, Arthur Dent e Ford Prefectmaterializaram-se subitamente, teleporta-dos da Coração de Ouro, que estava agoraparada em órbita estacionaria sobre oplaneta.

― Eu posso explicar! ― gritou Arthur. ― Euestou com as Cinzas! Estão neste saquinho.

― Acho que ninguém está prestando atenção― disse Ford.

― Também ajudei a salvar o Universo ― grit-ou Arthur para todos os que estavam dispos-tos a ouvi-lo, ou seja, ninguém.

― Isto deveria ter chamado a atenção de to-dos ― Arthur falou para Ford.

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― Não funcionou ― disse Ford.

Arthur abordou um policial que passava cor-rendo por perto.

― Com licença ― disse. ― As Cinzas. Estoucom elas. Foram roubadas pelos robôs bran-cos há pouco tempo. Elas estão neste sa-quinho. Fazem parte da Chave para o en-voltório de Tempolento, entende, então,bem, acho que você pode adivinhar o resto,mas a questão é que estão aqui e queriasaber o que faço com elas.

O policial lhe disse o que fazer, mas Arthurpreferiu entender sua resposta de formametafórica. Andou pelo campo, consternado.

― Será que ninguém se importa? ― gritouem voz alta. Um homem passou correndopor ele e esbarrou em seu cotovelo. Ele deix-ou cair o saquinho de papel e seu conteúdo

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se esparramou no chão. Arthur olhou parabaixo, contrariado.

Ford olhou para ele.

― Podemos ir agora? ― disse.

Arthur soltou um longo suspiro. Olhou emvolta para o planeta Terra, certo de queaquela seria a última vez.

― Vamos lá ― respondeu.

Naquele momento, em meio à fumaça queestava se dispersando, ele pôde ver que umdos wickets permanecia de pé, apesar detudo.

― Espere um pouco ― disse para Ford. ―Quando eu era garoto...

― Você pode me contar isso mais tarde?

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― Eu era apaixonado por críquete, sabe, masnão jogava muito bem.

― Ou talvez nem contar nada, se preferir.

― E sempre tive o sonho tolo de que um diaeu faria um arremesso no campo do Lord's.

Olhou em torno de si para a multidão empânico. Ninguém iria se importar.

― Tá bom ― disse Ford, aborrecido. ― Ter-mine logo com isto. Vou ficar ali na frente ―acrescentou ― me chateando. ― Saiu an-dando e sentou-se sobre um pedaço degrama fumegante.

Arthur lembrou-se de que, na primeira vezem que tinham estado lá naquela tarde, abola de críquete havia caído dentro de suabolsa, e olhou dentro dela.

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Já havia encontrado a bola dentro da bolsaquando se lembrou que aquela não era amesma bolsa que ele estava usando antes.Ainda assim, a bola estava entre seus suven-ires da Grécia.

Ele pegou-a, esfregou-a na roupa, cuspiunela e esfregou-a novamente.

Colocou a bolsa no chão. Queria fazer aquiloda forma apropriada.

Jogou a bolinha vermelha de uma mão paraa outra, sentindo seu peso.

Com um maravilhoso sentimento de leveza edespreocupação, foi recuando para longe dowicket. Decidiu que daria uma corridamédio-rápida e mediu a distância para umbom arremesso.

Olhou para o céu. Os pássaros voavam, algu-mas nuvens brancas passavam.

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O ar estava sendo perturbado pelos sons dassirenes da polícia e das ambulâncias, alémdas pessoas gemendo e gritando, mas ele sesentia curiosamente feliz e distante daquilotudo. Ia arremessar uma bola no famosocampo do Lord's.

Virou-se e bateu algumas bolas no solo comseus chinelos. Endireitou os ombros, jogouuma delas para cima e pegou-a novamente.

Começou a correr.

Enquanto corria, notou que havia umbatedor em frente ao wicket.

"Nossa", pensou, "isso realmente vai acres-centar um pouco de..."

Então, enquanto seus pés corriam, fazendocom que se aproximasse, pôde ver comclareza. O batedor que estava a postos nowicket não era do time inglês.

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Também não era do time de críquete aus-traliano. Era do time dos robôs de Krikkit.

Era um robô assassino branco, frio, rígido eletal que aparentemente não havia retornadoà sua nave com os outros.

Muitos pensamentos chocaram-se uns con-tra os outros dentro da cabeça de Arthurnaquele momento, mas ele não conseguiaparar de correr. O tempo parecia se mover deforma terrivelmente, terrivelmente lenta,mas ele não conseguia parar de correr.

Movendo-se como se estivesse imerso emmel, lentamente virou sua cabeça perturbadae olhou para sua própria mão, aquela que se-gurava a pequena bola vermelha e dura.

Seus pés continuavam se movendo para afrente enquanto ele olhava para a bola firm-emente segura em sua mão, incapaz de agir.Ela estava emitindo um brilho vermelho-

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escuro e piscava de forma intermitente.Ainda assim seus pés se moviam para afrente, inexoravelmente.

Olhou novamente para o robô de Krikkit queestava de pé à sua frente, implacável eimóvel, com um único propósito, o bastão debatalha levantado em prontidão. Seus olhosqueimavam com uma luz fria e hipnotizante:Arthur não conseguia desgrudar seus olhosdos dele. Encarava os olhos do robô comvisão de túnel, como se não houvesse nadaem torno dele.

Eis alguns dos pensamentos que estavam sechocando em sua mente naquele momentoeram:

Ele se sentia um completo imbecil.

Sentia que deveria ter prestado muito maisatenção a uma série de coisas que ouviradizer, frases que agora martelavam sua

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cabeça enquanto seus pés martelavam o chãona direção onde ele iria inevitavelmentelançar a bola para o robô de Krikkit, que iriainevitavelmente rebatê-la.

Lembrou-se de Hactar dizendo: "Fracassei?Agora o fracasso já não me preocupa."

Lembrou-se das últimas palavras de Hactar,ao morrer: "O que está feito, está feito,cumpri minha função."

Lembrou-se de Hactar ter dito que con-seguira fazer "algumas coisas".

Lembrou-se do movimento súbito em suabolsa que o havia feito segurá-la com firmezaquando estava na Nuvem de Poeira.

Lembrou-se de que tinha viajado para o pas-sado um ou dois dias para retornar aoLord's.

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Lembrou-se também de que era um péssimoarremessador.

Sentiu seu braço preparando-se para o ar-remesso, segurando firmemente a bolinhaque ele agora sabia, com certeza, ser abomba de supernova que Hactar havia con-struído ele mesmo e colocado em sua bolsa, abomba que levaria o Universo a um fim re-pentino e prematuro.

Torceu e rezou para que não houvesse vidaapós a morte. Então percebeu que havia umacontradição nisso e simplesmente torceupara que não houvesse vida após a morte.

Ele iria se sentir extremamente envergon-hado se tivesse que encontrar todo mundo.

Torceu, torceu, torceu para que seus ar-remessos continuassem tão ruins quantohaviam sido, porque essa parecia ser a única

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coisa que se interpunha entre aquele mo-mento e a destruição do Universo.

Sentiu suas pernas se movendo, seu braçogirando, sentiu seus pés indo de encontro àbolsa que havia burramente deixado no chãoà sua frente, sentiu que caía pesadamentepara a frente, mas, com a mente tão repletade outros pensamentos, naquele momento seesqueceu completamente de acertar o chão eportanto errou.

Ainda segurando firmemente a bola em suamão direita, decolou, emocionado com asurpresa.

Girou e girou enquanto subia, sem controlenenhum.

Virou-se na direção do chão, lançando-se deforma caótica através do ar e, ao mesmotempo, jogando a bomba bem longe,inofensivamente.

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Atirou-se contra o robô atônito vindo de trás.O robô ainda estava com o bastão de batalhamultifuncional erguido, mas, subitamente,não havia mais no que bater.

Em um súbito acesso tresloucado de força,arrancou violentamente o bastão de batalhado robô ainda perplexo, executou uma im-pressionante pirueta no ar, desceu nova-mente num ataque furioso e, com um golpealucinante, arrancou a cabeça do robô.

― Afinal, vamos ou não? ― perguntou Ford.

Epílogo

A Vida, o Universo e Tudo Mais

E, no final, mais uma vez eles viajaram.

Houve um tempo em que Arthur Dent nãoteria ido. Ele disse que o Propulsor Bis-tromático lhe revelara que tempo e distância

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eram um, que mente e Universo eram um,que percepção e realidade eram um e que,quanto mais se viaja, mais se permanece nomesmo lugar, e, sendo assim, dado isso eaquilo outro ele preferia ficar quieto durantealgum tempo e resolver tudo isso em suamente, que agora era um com o Universo,então não iria levar muito tempo e ele poder-ia descansar bastante depois, aperfeiçoarsuas técnicas de vôo e aprender a cozinhar,algo que ele sempre quis. A lata de azeitegrego era agora seu objeto mais querido, eele disse que a forma como ela havia inesper-adamente surgido em sua vida havia maisuma vez dado um certo sentido de unidadeàs coisas, o que fazia com que ele achasseque...

Bocejou e caiu no sono.

Pela manhã, enquanto os outros se prepara-vam para levá-lo a algum planeta calmo eidílico onde as pessoas não se importassem

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muito com as coisas que ele falava, subita-mente captaram uma chamada de socorrogerada por computador e alteraram a rotapara investigar.

Uma nave pequena, mas aparentemente emperfeito estado, da classe Mérida, parece es-tar dançando alguns passos exóticos emmeio ao espaço. Uma rápida varredura docomputador revelou que a nave estava per-feita, que seu computador estava perfeito,mas que o piloto estava louco.

― Meio louco, meio louco ― insistia ohomem, enquanto o transportavam, sid-erado, a bordo da nave.

Ele era um jornalista do Siderial DailyMentíoner's. Deram-lhe sedativos e deix-aram Marvin cuidando dele até que ele pro-metesse se comportar e falar algo sensato.

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― Eu estava fazendo a cobertura de um jul-gamento ― disse, finalmente ― emArgabuthon.

Levantou-se, apoiando-se em seus ombrosmagros e enfraquecidos, com um olharselvagem. Seus cabelos brancos pareciam es-tar acenando para um conhecido deles naoutra sala.

― Calma, calma ― disse Ford. Trillian pou-sou uma mão tranqüilizadora sobre seuombro.

O homem afundou novamente na cama e ol-hou para o teto da enfermaria da nave.

― O caso ― disse ele ― é irrelevante agora,mas havia uma testemunha... um homemchamado... chamado Prak. Um homem es-tranho e difícil. Acabaram sendo forçados aadministrar-lhe uma droga para fazer comque dissesse a verdade, um soro da verdade.

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Seus olhos rolavam dentro das órbitas.

― Deram-lhe uma dose forte demais ― disse,quase choramingando. ― Foi forte demais,demais. ― Começou a chorar. ― Acho que osrobôs devem ter esbarrado no braço domédico.

― Robôs? ― perguntou Zaphod subitamente.― Que robôs?

― Uns robôs brancos ― disse o homem emvoz baixa e rouca ― invadiram o tribunal eroubaram o cetro do juiz, o Cetro da Justiçade Argabuthon, um treco horrível feito de ac-rílico. Não tenho idéia do que queriam comaquilo. ― Recomeçou a chorar. ― E

acho que esbarraram no braço do médico...

Balançou sua cabeça de um lado para ooutro, desamparado, tristonho, olhos contor-cidos pela dor.

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― E quando o julgamento continuou ― disse,em um sussurro quase choroso ―

perguntaram a Prak uma coisa terrível.Pediram a ele ― parou e estremeceu ― quecontasse a Verdade, Toda a Verdade e NadaMais que a Verdade. Só, entendem?

Subitamente apoiou-se novamente nos om-bros e gritou para eles:

― Deram-lhe uma dose muito, muito fortedaquela droga! Caiu na cama de novo, res-mungando baixinho:

― Muito forte, muito forte, muito forte,muito forte...

Em torno da cama, o grupo trocou olhares.Aquilo lhes dava arrepios.

― O que aconteceu? ― disse Zaphod por fim.

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― Bem, ele lhes contou tudo ― disse ohomem, selvagemente ― e, até onde sei, con-tinua contando coisas até agora. Coisas es-tranhas e terríveis... terríveis, terríveis! ―

gritou.

Tentaram acalmá-lo, mas ele fez força e seapoiou nos cotovelos novamente.

― Coisas terríveis, incompreensíveis ― grit-ou ―, coisas que deixariam qualquer homemlouco!

Olhou para eles assustado.

― Ou, no meu caso ― acrescentou ―, meiolouco. Sou um jornalista.

― Você quer dizer ― perguntou Arthur, baix-inho ― que você está acostumado a se de-frontar com a verdade?

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― Não ― respondeu o outro com o semb-lante franzido. ― Quero dizer que inventeiuma desculpa e saí mais cedo.

Depois disso ele entrou em coma, do qualsaiu apenas uma vez, brevemente.

Nessa ocasião descobriram o seguinte apartir do que ele contou: Quando ficou claroque era impossível interromper Prak, que aliestava a verdade em sua forma final e abso-luta, a corte foi evacuada.

Não apenas evacuada, ela foi selada comPrak lá dentro. Paredes de aço foram con-struídas ao redor dela e, apenas por garantia,colocaram também arame farpado, umacerca elétrica, construíram um fosso comcrocodilos e estacionaram três grandes exér-citos, para garantir que ninguém jamais teriaque ouvir Prak falar.

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― É pena ― disse Arthur. ― Queria saber oque ele tinha a dizer.

Supostamente deveria saber qual é a Per-gunta Fundamental para a Resposta Final.

Continuo chateado por nunca termosdescoberto isso.

― Pense em um número ― disse o computa-dor. ― Qualquer número.

Arthur disse ao computador o número detelefone do setor de informações da estaçãode trens de King's Cross, acreditando queaquele número deveria ter alguma função etalvez fosse aquela.

O computador injetou o número no Geradorde Improbabilidade da nave, que havia sidoreconstruído.

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Na Relatividade, a Matéria diz ao Espaçocomo se curvar, e o Espaço diz à Matériacomo se mover.

A Coração de Ouro disse ao espaço que desseum nó em si mesmo e estacionou de formaperfeita dentro do perímetro interno domuro de aço da Câmara de Justiça deArgabuthon.

O tribunal era um lugar austero, uma grandecâmara sombria, claramente desenhada paraservir à Justiça e não, por exemplo, aoPrazer. Você não conseguiria dar uma festaali, pelo menos não uma festa animada. Adecoração deixaria seus convidadosdeprimidos.

O teto era alto, curvo e muito escuro. Som-bras se escondiam lá com uma determinaçãosinistra. Os revestimentos das paredes, dosbancos e dos pilares maciços, todos haviamsido talhados usando as mais escuras e

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severas árvores da terrível Floresta de Argle-bard. A imponente Tribuna da Justiça, quedominava o centro da câmara, era um mon-stro de gravidade. Se algum raio de sol játivesse conseguido se esgueirar tão fundo nocomplexo de justiça de Argabuthon, ele teriafeito meia-volta e se esgueirado para foranovamente.

Arthur e Trillian entraram primeiro, en-quanto Ford e Zaphod guardavam heroica-mente a retaguarda.

Primeiro parecia que tudo estava completa-mente escuro e deserto. Os passos ecoavampela câmara deserta. Aquilo parecia es-tranho. Todas as defesas continuavam emposição e operando normalmente do lado defora do prédio, coisa que as varreduras danave confirmaram. Portanto, eles tinhampresumido que Prak ainda estaria contandotoda a verdade.

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Mas não havia nada.

Então, conforme seus olhos se acostumaramcom a escuridão, perceberam um leve brilhovermelho em um canto e, atrás dele, umasombra. Apontaram uma lanterna naqueladireção.

Prak estava largado em um banco, fumandoum cigarro indolentemente.

― Oi ― disse ele, com um curto aceno. Suavoz ecoou pela câmara. Era um carapequeno, com cabelos desgrenhados. Estavasentado com os ombros curvados para afrente e sua cabeça e joelhos não paravam dese mover. Deu outro trago no cigarro.

Olharam para ele.

― O que está acontecendo? ― perguntouTrillian.

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― Nada ― disse ele, sacudindo os ombros.Arthur apontou sua lanterna bem na cara dePrak.

― Pensávamos ― disse ele ― que você est-ivesse contando a Verdade, Toda a Verdade eNada Mais que a Verdade.

― Ah, isso ― disse Prak. ― É. Eu estava. Jáacabei. Não tem tanta coisa quanto as pess-oas imaginam. Mas algumas partes são bemengraçadas.

Subitamente disparou em cerca de três se-gundos de risadas maníacas e depois parounovamente. Ficou sentado ali, mexendo acabeça e os joelhos. Deu outra tragada, comum sorriso estranho no canto da boca.

Ford e Zaphod saíram das sombras.

― Conte-nos um pouco a respeito ― disseFord.

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― Ah, já não consigo me lembrar de nada ―disse Prak. ― Pensei em escrever algumaspartes, mas primeiro não consegui achar umlápis, e depois, pensei, para que mepreocupar?

Houve um longo silêncio, durante o qualpuderam sentir o Universo ficar um poucomais velho. Prak olhava para a lanterna.

― Nada? ― disse Arthur por fim. ― Você nãoconsegue se lembrar de nada?

― Não. Exceto que a maioria das partes di-vertidas tinha a ver com as rãs, disso eulembro.

Voltou a se contorcer em risos, enquanto ba-tia com os pés no chão.

― Vocês não vão acreditar nas histórias dasrãs ― disse, ofegante. ― Ei, vamos lá, vamosencontrar uma rã. Cara, a partir de agora

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tenho uma nova visão sobre elas! ― Ficou depé e deu uns passos engraçados. Depoisparou e tragou longamente o cigarro.

― Vamos encontrar uma rã que eu possagozar ― disse depois. ― Aliás, quem sãovocês?

― Viemos procurá-lo ― disse Trillian, deix-ando deliberadamente claro o tom de desa-pontamento na voz. ― Meu nome é Trillian.

Prak balançou a cabeça.

― Ford Prefect ― disse Ford, dando de om-bros. Prak balançou a cabeça.

― E eu ― disse Zaphod, quando julgou quehavia novamente silêncio suficiente para queum anúncio de tamanha gravidade fossefeito tão levianamente ― sou ZaphodBeeblebrox.

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Prak balançou a cabeça.

― Quem é esse cara? ― disse Prak sacudindoo ombro na direção de Arthur, que tinha fic-ado em silêncio, perdido em pensamentosdesapontados.

― Eu? ― perguntou Arthur. ― Meu nome éArthur Dent. Os olhos de Prak saltaram dasórbitas.

― Sério? ― gritou. ― Você é Arthur Dent?Aquele Arthur Dent?

Deu uns passos para trás, segurando o es-tômago enquanto se contraía em novos es-pasmos de riso.

― Uau, só de pensar em conhecer você! ―estava sem ar. ― Rapaz ― gritou ―, você é ocara mais... uau, você deixa as rãs para trás!

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Ele gritava e ria histericamente. Caiu paratrás do banco. Revirava-se no chão histerica-mente. Chorava de tanto rir, chutava o ar,batia no peito.

Gradualmente conseguiu se controlar,ofegante. Olhou para eles. Olhou para Ar-thur. Caiu novamente para trás, rindo hister-icamente. Acabou adormecendo.

Arthur ficou ali, seus lábios tremendo, en-quanto os outros carregavam Prak, com-pletamente apagado, para a nave.

― Antes de virmos pegar Prak ― disse Ar-thur ― eu ia partir. Ainda quero partir, eacho que devo fazê-lo o mais rápido possível.

Os outros concordaram em silêncio, silêncioeste que foi apenas quebrado pelo som muitoabafado e distante das risadas histéricas vin-das da cabine de Prak, na parte mais distanteda nave.

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― Nós já o interrogamos ― prosseguiu Ar-thur ― ou, pelo menos, vocês o interrogar-am, já que, como sabemos, não posso chegarperto dele. Perguntamos de tudo e ele nãoparece ter nada a dizer. Apenas uma ou outrafrase, e muitas coisas que não quero sabersobre rãs.

Os outros tentaram conter as risadinhas.

― Olhem, eu sou o primeiro a rir de uma pi-ada ― disse Arthur, mas depois teve que es-perar os outros pararem de rir. ― Sou oprimeiro a... ― Parou novamente e escutou osilêncio. Estava realmente silencioso destavez.

Prak estava em silêncio. Durante dias eleshaviam convivido com sua risada histéricaressoando pela nave, ocasionalmente inter-rompida por breves períodos de risadas maisleves e de sono. A própria alma de Arthur es-tava se contorcendo em completa paranóia.

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Aquele não era o silêncio do sono. Uma cam-painha soou. Deram uma olhada em umpainel e viram que a campainha fora acion-ada por Prak.

― Ele não está bem ― disse Trillian, preocu-pada. ― As risadas permanentes estãodestruindo completamente seu corpo.

Os lábios de Arthur voltaram a tremer, masele nada disse.

― Melhor irmos ver como ele está.

Trillian saiu da cabine revestida de sua ex-pressão de extrema seriedade.

― Ele quer que você entre ― disse ela paraArthur, que estava com sua expressão decompleto mau humor. Ele enfiou as mãosdentro dos bolsos de seu roupão e tentoupensar em alguma resposta que não fossesoar mesquinha.

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Aquilo lhe parecia tremendamente injusto,mas não conseguiu pensar em nada. ―

Por favor ― disse Trillian.

Ele deu de ombros e entrou, levando sua ex-pressão de completo mau humor com ele,apesar da reação que isso sempre provocavaem Prak.

Olhou para o seu torturador, que estava deit-ado imóvel na cama, pálido e combalido. Suarespiração estava fraca. Ford e Zaphod es-tavam de pé ao lado da cama com uma caraestranha.

― Você queria me perguntar algo ― dissePrak com a voz fraca, tossindo levemente.

Apenas o fato de ele tossir já deixava Arthurtenso, mas passou logo.

― Como você sabe disso? ― perguntou.

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Prak olhou para ele, cansado.

― Porque é verdade ― respondeu.

Arthur entendeu.

― Sim ― acabou dizendo em uma fala ar-rastada e tensa. ― Eu tinha uma Pergunta.

Ou melhor, o que eu tenho é uma Resposta.Eu queria saber qual era a Pergunta.

Prak assentiu de forma simpática e Arthurrelaxou um pouco.

― Bem... olha, é uma longa história ― dissepor fim ―, mas a Pergunta que eu queriaconhecer se refere à Questão Fundamentalsobre a Vida, o Universo e Tudo Mais.

Tudo que sabemos é que a Resposta é 42, oque é um pouco irritante.

Prak assentiu novamente.

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― Quarenta e dois ― disse ele. ― Sim, é issomesmo.

Fez uma pausa. Sombras de pensamentos elembranças cruzaram sua face como sombrasde nuvens cruzando o solo.

― Eu lamento dizer ― falou por fim ― que aPergunta e a Resposta são mutuamente ex-clusivas. Por lógica, o conhecimento de umaimpede o conhecimento da outra. É impos-sível que ambas possam ser conhecidas nomesmo Universo.

Fez outra pausa. O desapontamento surgiuno rosto de Arthur e foi se alojar em seu can-tinho habitual.

― Exceto ― disse Prak, fazendo força parafocalizar um pensamento ― que, se issoacontecesse, creio que a Pergunta e a Res-posta iriam se cancelar mutuamente e levar oUniverso com elas. Ele seria, então,

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substituído por algo ainda mais estranho einexplicável.

É possível que isso já tenha acontecido ―acrescentou, com um sorriso enfraquecido―, mas há uma certa Incerteza a respeitodisso.

Um pequeno risinho perpassou-o levemente.Arthur sentou-se em um banquinho.

― Ah, bem ― disse, resignado ―, eu só es-tava esperando que houvesse alguma razão.

― Você conhece ― perguntou Prak ― ahistória da Razão? Arthur disse que não ePrak respondeu que já sabia que não. Ele acontou.

Uma noite, ele disse, uma espaçonave apare-ceu no céu de um planeta que nunca anteshavia visto uma delas. O planeta era Dalfor-sas e a nave era aquela.

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Surgiu como uma nova e brilhante estrela semovendo silenciosamente através do céu.

As pessoas das primitivas tribos que estavamsentadas nas encostas das Montanhas Géli-das olharam para cima, segurando suas xí-caras com bebidas fumegantes e apontaram,com dedos trêmulos, jurando que haviamvisto um sinal de seus deuses significandoque deveriam agora levantar-se e partir paramassacrar os malignos Príncipes dasPlanícies.

Nas altas torres de seus palácios, os Prín-cipes das Planícies olharam para cima eviram a estrela brilhante, compreendendoque aquele era um sinal inequívoco de seusdeuses para que eles partissem e atacassemas malditas tribos das Montanhas Gélidas.

Entre ambos, os Habitantes da Floresta ol-haram para o céu e viram o sinal da nova es-trela. Olharam para ela com medo e

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apreensão porque, apesar de nunca teremvisto nada assim, eles também sabiam exata-mente que presságio aquilo trazia ecurvaram suas cabeças em desespero.

Sabiam que, quando as chuvas vinham, eraum sinal.

Quando as chuvas paravam, era um sinal.

Quando os ventos sopravam, era um sinal.

Quando os ventos se aquietavam, era umsinal.

Quando houvesse nascido na terra, à meia-noite em uma lua cheia, uma cabra com trêscabeças, era um sinal.

Quando houvesse nascido na terra, em umahora qualquer, um gato ou porco perfeita-mente normal sem qualquer complicação, oumesmo uma criança com um nariz

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empinado, muitas vezes essas coisas tambémeram vistas como um sinal.

Então não havia dúvida alguma de que umanova estrela no céu era um sinal de enormemagnitude.

E cada novo sinal significava a mesma coisa― que os Príncipes das Planícies e as Tribosdas Montanhas Gélidas estavam se pre-parando para arrancar o couro uns dosoutros.

Por si só, isso não seria nada demais, excetoque os Príncipes das Planícies e as Tribos dasMontanhas Gélidas sempre decidiam arran-car o couro uns dos outros na Floresta, e apior parte dessas lutas sobrava sempre paraos Habitantes da Floresta, ainda que, atéonde eles conseguissem entender, nãotivessem nada a ver com isso.

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E algumas vezes, depois dos piores desses ul-trajes, os Habitantes da Floresta enviavamum mensageiro para o líder dos Príncipesdas Planícies ou para o líder das Tribos dasMontanhas Gélidas, perguntando-lhes qual aRazão daquele comportamento insuportável.

E o líder, fosse quem fosse, levava omensageiro para um canto e lhe explicava aRazão, lenta e cuidadosamente, tendo umgrande cuidado ao explicar todos os detalhesenvolvidos.

A coisa mais terrível era a seguinte: a razãoera muito boa. Era clara, muito racional emuito dura. O mensageiro abaixava a cabeça,consternado, sentindo-se tolo por não terpercebido o quão duro e complexo era omundo real, e quão enormes eram as di-ficuldades e paradoxos que precisavam serdefrontados para que fosse possível vivernele.

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― Você entende agora? ― dizia o líder.

O mensageiro concordava em silêncio.

― E você compreende que essas batalhasprecisam ocorrer?

Outra vez concordava em silêncio.

― E por que elas têm que ocorrer naFloresta, no interesse de todos, inclusive dosHabitantes da Floresta?

― Eh...

― A longo prazo.

― Eh, sim.

E o mensageiro de fato compreendia aRazão, e retornava para seu povo naFloresta.

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Contudo, enquanto se aproximava deles, en-quanto atravessava a Floresta, por entre asárvores, percebia que tudo de que podia selembrar a respeito da Razão era o quão in-crivelmente claro o argumento haviaparecido.

Qual era exatamente o argumento, isso elenunca conseguia se lembrar.

E isso era, claro, um grande consolo quandoas Tribos e os Príncipes voltavam a guerrear,cortando e queimando tudo em seu caminhoatravés da Floresta e matando todos os Hab-itantes da Floresta que encontrassem.

Prak fez uma pausa em sua história e tossiu.

― Eu fui o mensageiro ― disse ele ― após asbatalhas causadas pela aparição de sua nave,que foram especialmente selvagens. Muitosde nosso povo morreram. Acreditei que po-deria trazer a Razão de volta. Fui até o líder

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dos Príncipes, que a contou para mim, masno caminho de volta ela foi se desfazendo esumindo em minha mente como neve sob osol. Isso foi há muitos anos e muitas outrascoisas já aconteceram desde então.

Olhou para Arthur e soltou outro risinholeve.

― Há uma coisa de que consigo me lembrarapós o soro da verdade. Além das rãs, e é aúltima mensagem de Deus para sua criação.Vocês gostariam de ouvi-la?

Durante um breve momento, não sabiam sedeviam levá-lo a sério ou não.

― Mesmo ― disse ele. ― Estou falando sério.

Seu peito arfava com dificuldade e lutavapara respirar. Sua cabeça pendeu levementepara o lado.

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― Não fiquei muito impressionado quandosoube pela primeira vez o que era ―

disse ele ―, mas agora, lembrando o quãoimpressionado eu fiquei pela Razão do Prín-cipe e quão rápido me esqueci dela, acho quepoderia ser bem mais útil. Vocês queremsaber o que é? Querem?

Todos concordaram em silêncio.

― Achei que iriam querer. Se vocês estiver-em interessados, sugiro que procurem porela. Está escrita em letras chamejantes denove metros no topo das Montanhas deQuentulus Quazgar na terra de Sevorbeup-stry no planeta Preliumtarn, o terceiro apartir do sol Zarss no Setor Galáctico QQ7Ativo J Gama. É guardado pela LajésticaVantraconcha de Lob.

Houve um longo silêncio após essa parte, fi-nalmente quebrado por Arthur.

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― Desculpe, onde mesmo você disse queestava?

― Está escrita ― repetiu Prak ― em letraschamejantes de nove metros no topo dasMontanhas de Quentulus Quazgar na terrade Sevorbeupstry no planeta Preliumtarn, oterceiro a partir do...

― Desculpe ― repetiu Arthur ―, quemontanhas?

― As Montanhas de Quentulus Quazgar naterra de Sevorbeupstry no planeta...

― Que terra você mencionou? Não pegueibem essa parte.

― Sevorbeupstry, no planeta...

― Sevorbe... o quê?

― Ah, que se dane ― disse Prak, e morreuem seguida. Nos dias seguintes, Arthur

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pensou um pouco sobre a tal mensagem,mas, no final das contas, decidiu que não iriase deixar levar por ele e insistiu emprosseguir com seu plano original de encon-trar um agradável pequeno mundo ondepudesse se assentar e levar uma vida calma eisolada. Tendo salvado o Universo duasvezes no mesmo dia, achou que podia levaras coisas de forma mais calma daí em diante.

Eles o deixaram no planeta Krikkit, quehavia voltado a ser um mundo idílico e pas-toral, mesmo que as músicas o irritassem umpouco.

Passou muito tempo voando.

Aprendeu a se comunicar com as aves edescobriu que a conversa delas era incrivel-mente chata. Só falavam sobre a velocidadedo vento, envergadura das asas, relaçãoforça/peso e muitas coisas sobre frutinhas.Infelizmente ele também descobriu que, uma

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vez que você tenha aprendido o passareado,rapidamente percebia que todo o ar estavacheio dele o tempo todo, nada além detagarelice sem sentido entre pássaros. Nãohá como escapar.

Foi por esse motivo que Arthur acabou de-sistindo desse esporte e aprendeu a viver nochão e gostar dele, apesar de também ouvirmuita tagarelice sem sentido por lá.

Um dia, estava andando pelos campos can-tarolando uma adorável melodia que haviaaprendido recentemente quando uma es-paçonave prateada desceu do céu e pousouna sua frente.

Uma escotilha se abriu, uma rampa se es-tendeu e um alienígena alto e cinza-esver-deado saiu lá de dentro e aproximou-se dele.

― Arthur Phili... ― disse, então olhou atenta-mente para ele e depois para a sua

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prancheta. Franziu o rosto. Olhou nova-mente para ele.

― Já peguei você antes, não foi?

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