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7/26/2019 ABOU-ALSAMH, Rasheed. a Mídia Brasileira Ainda Discrimina Árabes e Muçulmanos (Jornal 'O Globo') http://slidepdf.com/reader/full/abou-alsamh-rasheed-a-midia-brasileira-ainda-discrimina-arabes-e-muculmanos 1/4 A mídia brasileira ainda discrimina árabes e muçulmanos No imaginário brasileiro, árabes são todos ricos, sultões, donos de imensas riquezas petrolíferas. Mas são também trapaceiros, gananciosos e capazes de até vender a própria mãe Apesar de os primeiros muçulmanos terem chegado ao Brasil mais de 180 anos atrás, entre os escravos trazidos da África, e os pioneiros imigrantes árabes terem vindo há mais de cem anos, ainda há ideias distorcidas na mente de brasileiros do que é ser árabe ou muçulmano. No imaginário brasileiro, árabes do Golfo são todos ricos, sultões, donos de imensas riquezas petrolíferas. Mas são também trapaceiros, gananciosos e capazes de até vender a própria mãe. Esse estereótipo deve vir de quando os primeiros imigrantes árabes chegaram aqui e trabalhavam como mascastes, vendendo mercadorias de porta em porta. Erroneamente eram chamados de “turcos” por causa dos passaportes otomanos que usavam para entrar no país. E como a maioria dos imigrantes árabes para o Brasil foi de cristãos, e não muçulmanos, sua assimilação à cultura local foi mais rápida e fácil. De fato, encontro muitos brasileiros de ascendência árabe, mas que não falam a língua, sequer foram ao Oriente Médio, tendo apenas a comida árabe, bem como o sobrenome, como ligação com seus antepassados. O estereótipo do muçulmano talvez seja pior no imaginário brasileiro, depois de séculos de lavagem cerebral pela Igreja católica, remetendo aos tempos das cruzadas em que os reis “valentes” e cristãos da Europa iam para Jerusalém batalhar pela alma cristã contra os reis muçulmanos. Para alguns brasileiros, ser muçulmano

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A mídia brasileira aindadiscrimina árabes e

muçulmanosNo imaginário brasileiro, árabes são todos ricos, sultões,donos de imensas riquezas petrolíferas. Mas são tambémtrapaceiros, gananciosos e capazes de até vender aprópria mãe

Apesar de os primeiros muçulmanos terem chegado ao Brasil mais de180 anos atrás, entre os escravos trazidos da África, e os pioneirosimigrantes árabes terem vindo há mais de cem anos, ainda há ideiasdistorcidas na mente de brasileiros do que é ser árabe oumuçulmano.

No imaginário brasileiro, árabes do Golfo são todos ricos, sultões,donos de imensas riquezas petrolíferas. Mas são também trapaceiros,gananciosos e capazes de até vender a própria mãe. Esse estereótipodeve vir de quando os primeiros imigrantes árabes chegaram aqui etrabalhavam como mascastes, vendendo mercadorias de porta emporta. Erroneamente eram chamados de “turcos” por causa dospassaportes otomanos que usavam para entrar no país. E como amaioria dos imigrantes árabes para o Brasil foi de cristãos, e não

muçulmanos, sua assimilação à cultura local foi mais rápida e fácil.De fato, encontro muitos brasileiros de ascendência árabe, mas quenão falam a língua, sequer foram ao Oriente Médio, tendo apenas acomida árabe, bem como o sobrenome, como ligação com seusantepassados.

O estereótipo do muçulmano talvez seja pior no imaginário

brasileiro, depois de séculos de lavagem cerebral pela Igreja católica,remetendo aos tempos das cruzadas em que os reis “valentes” ecristãos da Europa iam para Jerusalém batalhar pela alma cristãcontra os reis muçulmanos. Para alguns brasileiros, ser muçulmano

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parece ser pior de que ser satanista ou ateu, tal é a propagandadifamatória contra a religião e seus seguidores, e a falta de vontadedessas pessoas de se informar sobre a religião de mais de um bilhãodos habitantes deste planeta. Nesta visão distorcida, muçulmanos sãoretrógrados, machistas, violentos e terroristas.

As novelas brasileiras então entre os maiores culpados, pormostrarem árabes e muçulmanos como personagens de desenhosanimados, de tão exagerados e carnavalescos no jeito como sãoconstruídos e interpretados. A novela “Alto astral”, que a Rede Globoacabou de apresentar, é um exemplo. No drama, a personagemSamantha Paranormal é convidada pelo rei Mohammed a conhecer o

fictício reino do Golfo de Maktub (que quer dizer “escrito", em árabe).Lá, ele tem um imenso harém, ao qual quer adicionar Samantha. Ela,apesar de se apaixonar pelo rei, foge do reino, volta ao Brasil e enviaforças internacionais para invadir e libertar as mulheres do harém.No final da novela, o rei vem para o Brasil e, vestindo roupas quemais parecem de um um marajá indiano do que de um rei árabe, secasa com Samantha e constrói um palácio para eles no centro do

Ibirapuera! Uma cena musical de Samantha dançando no palácionovo com o rei e seu amigo Pepito é tirada diretamente de um blockbuster de Bollywood, com turbantes e tudo. Nada a ver com omundo árabe.

E é esse o problema com muitos autores brasileiros. Para eles oOriente Médio do mundo árabe é o mesmo do subcontinente indiano,e da Turquia. São todos orientalismos que esses autores usam eabusam, misturando os três à vontade, e fazendo de tudo isso umagororoba cultural que nos faz estremecer de tão horrível e errado.

Semana passada, um amigo sírio que mora em São Paulo me mostrouuma matéria publicada num site satírico brasileiro sobre um suposto bilionário saudita que queria se casar com sete brasileiras ao mesmotempo, e ia pagar US$ 100 milhões para cada uma. Na lista deexigências do bilionário estava que as mulheres tinham que se aceitarumas às outras, não ser interesseiras, se casar por amor (por US$ 100

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milhões, quem não ia ser interesseira?) e ter entre 18 e 45 anos. Umafoto muito mal montada no Photoshop, supostamente do sujeito,acompanhava o artigo. Apesar de ser uma óbvia piada de mau gosto,o artigo foi compartilhado 240 mil vezes no Facebook, e muitasmulheres brasileiras acreditaram na matéria. Se os brasileiros

soubessem mais do Islã, iam saber que um muçulmano pode se casarcom no máximo quatro mulheres ao mesmo tempo, e não sete, comona matéria. E, como meu pai me dizia, um muçulmano só pode fazerisso se tratar cada esposa exatamente do mesmo jeito, comprando asmesmas coisas para cada uma, e passando o mesmo tempo com cadauma. O conceito da poligamia no Islã tem origem no fato de muitasmulheres terem ficado viúvas como consequência de guerras na

Península Arábica. Como decorrência, não havia homens emquantidade suficiente para se casar com cada uma delas.

Finalmente, quando o assessor da embaixada do Omã em BrasíliaMarcelo Bulhões dos Santos foi detido pela Polícia Federal no dia 24de abril, por suspeita de falsificação de documentos, a mídia brasileira tratou-o com total desrespeito. Em vez de focar no fato de

ele ser um advogado, destacaram a particularidade de ele sermuçulmano. Usou-se isso para especular que o assessor teriapossíveis ligações com terroristas, versão que a PF desmentiu. Apesardisso, a “Veja” especulou que Bulhões estaria na mira da Justiça porsuspeita de cumplicidade com terroristas e ter se convertido ao Islã.Isso sem citar qualquer fonte ou mostrar qualquer prova. No intuitode pintar o advogado de simpatizante de “terroristas”, “Veja” citouuma declaração dele na sua página do Facebook favorável ao grupopalestino Hamas. Todo mundo sabe que “Veja” é antipalestina; porconseguinte, tal crítica não é válida e certamente não é prova de queBulhões esteja envolvido com grupos duvidosos.

Pior foram os sites na internet, que botaram a religião de Bulhões nassuas manchetes, como fez um deles: “Muçulmano investigado porterrorismo trabalhou com Dilma.” Antes de tudo ele é um serhumano, depois ele é um brasileiro. Não vejo como a religião fazalguma diferença no episódio de sua detenção. Isso é pura

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discriminação contra muçulmanos, uma generalização segundo aqual todos são terroristas por causa dos atos da al-Qaeda e do EstadoIslâmico. Já imaginou se um jornal brasileiro publicasse umamanchete assim: “Judeu investigado por terrorismo”? Seriainterpretada como uma grande calúnia contra judeus, e como racista.

Grupos de árabes e muçulmanos no Brasil têm que se organizar paralutar contra essas formas de discriminação e estereótipos que sereproduzem na sociedade brasileira. Cabe a nós fazer o público brasileiro nos respeitar e conhecer melhor nossa cultura, história ereligião, milenares e tão ricas.

Rasheed Abou-Alsamh é jornalista