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MARIA FÁTIMA OLIVIER SUDBRACKMARIA INÊS GANDOLFO CONCEIÇÃO

RUBENS ADORNOORGANIZADORES

COMPARTILHANDO SABERES E CONSTRUINDO FAZERESVOL. 2

DROGAS E TRANSIÇÃO DEPARADIGMAS

BRASÍLIA

2018

TECHNOPOLITIK

ISBN 978-85-92918-19-4

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O V Congresso da Abramd e esta publicação contaram com o apoio financeiro da FAP-DF

Technopolitik Editora - Conselho EditorialAna Lúcia Galinkin - Universidade de BrasíliaAna Raquel Rosa Torres - Universidade Federal da ParaíbaAntonio Nery Filho - Faculdade de Medicina/Universidade Federal da BahiaClaudiene Santos - Universidade Federal de SergipeEroy Aparecida da Silva - Afip/Universidade Federal de São PauloMarco Antônio Sperb Leite - Universidade Federal de GoiásMaria Alves Toledo Burns - Universidade de São Paulo - Ribeirão PretoMaria Fátima Olivier Sudbrack – Universidade de BrasíliaMaria Inês Gandolfo Conceição – Universidade de BrasíliaMaria das Graças Torres da Paz - Universidade de BrasíliaRaquel Barros - ONG Lua NovaTelmo Ronzani – Universidade Federal de Juiz de Fora_____________________________________________________________________Revisão final: Maurício Galinkin/TechnopolitikCapa: Paulo Roberto Pereira Pinto/Ars Ventura Imagem & ComunicaçãoProjeto gráfico e diagramação: Maurício Galinkin/Technopolitik

Ficha catalográfica (catalogação-na-publicação) Iza Antunes Araújo – CRB1/079__________________________________________________________________________D784 Drogas e transição de paradigmas: compartilhando saberes e construindo ! ! ! fazeres ./ organização Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês

Gandolfo Conceição, Rubens Adorno.--Brasília, DF : Technopolitik, 2018.567 p: il.

eBook (PDF) Vários autores e texto em português e espanhol.ISBN: 978-85-92918-19-4

1.Drogas, uso e prevenção. 2. Adolescente em situação de rua. 4.Práticas sociais. 5. Terapia de família. 6. Formação profissional, educadores. 5.Direitos Humanos. 6. Maternidade e drogas. 7. Toxicomania. 8. Clínicas dedependência. I. Maria Fátima Olivier Sudbrack (Org.) II. Conceição, Maria InêsGandolfo (Org.). III. Adorno, Rubens (Org.).

CDU 178.1 615,81

_________________________________________________________________________________________________Editor: Maurício Galinkin/Technopolitik (MEI) CNPJ 25.211.009/0001-72Tel: (61) 98407-8262. Correio eletrônico: [email protected]ítios eletrônicos na internet: http://www.technopolitik.com.br e http://www.technopolitik.com

© Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas - Abramd, autoras e autores

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Diretorias daGestão 2015/17

Presidente

Rubens Adorno

Vice-Presidente

Edward MacRae

Primeiro Secretário 

Murilo Battisti

Segundo Secretário

Andrea Galassi

Primeira Tesoureira

Selma Lima da Silva

Segunda Tesoureira

Maria Angélica de Castro Comis

Conselho Fiscal

Regina de Paula Medeiros

Dartiu Xavier da Silveira Filho

Celi Cavallari

AbramdGestão 2017/19

Presidente

Luciane Marques Raupp

Vice-Presidente

Rubens Adorno

Primeira Secretária

Sandra Regina Fergutz

Primeiro Tesoureiro

Jardel Fischer Loeck

Segunda Tesoureira

Selma Lima da Silva

Conselho Fiscal

Danielle de Carvalho Vallim

Eduardo Viana Vargas

Edward MacRae

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Apresentação

Nem tudo o que é torto é errado...veja as pernas do Garrincha e as árvores do cerrado!

Nicolas Behr

Com esta instigante metáfora, construída para o V Congresso Internacional da Abramd, Drogas e transição de paradigmas: compartilhando saberes e reconstruindo fazeres, realizado em Brasília, de 1 a 3 de dezembro de 2015, no espaço de eventos do Estádio Nacional Mané Garrincha: apresentamos esta obra que resulta de construções elaboradas a partir do tema lançado no evento magno deste coletivo profissional.

Compartilhando saberes e reconstruindo fazeres traduz nossa leitura dialética entre teoria e prática na construção do conhecimento, eixo fundador da transição paradigmática na epistemologia científica.

A edição desta obra faz parte da comemoração aos dez anos da Abramd (2005-2015), lançada em nosso V Congresso Internacional que abrigou em torno de 800 pessoas em busca de compartilhar seus saberes e seus fazeres sobre drogas.

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Nem tudo o que é torto é errado...Uma importante máxima dos novos paradigmas é a função do

contexto na atribuição de significados. O olhar deixa de ser apenas para o indivíduo e se volta para suas relações e inserção no social. A informação adquire sentido a partir do contexto onde ela é gerada e decodificada... Por isso, como nos ensina o professor Saul Fuks, um dos nossos convidados estrangeiros, no trabalho comunitário, nos tornamos verdadeiros "artesãos de contextos” e a questão que se coloca é: - Como transformar crises em contextos criativos para novas possibilidades?

Antiproibicionismo e postura crítica ao paradigma da guerra às drogas: pioneirismo dos abramdianos para a transição de paradigmas Merece aqui uma referência à histórica contribuição de muitos

pesquisadores e profissionais abramdianos, fundadores e colaboradores que sustentam esta instituição, enquanto nomes que são responsáveis pela possibilidade de pensarmos, hoje, a questão das drogas e das dependências numa transição de paradigma. Referimo-nos ao contexto da produção científica brasileira que acumulamos há três décadas, lançando os novos paradigmas e investindo para sua consolidação. Como parte desta comunidade de vanguarda, nos cabe resgatar esta história, pois nem sempre ela tem a visibilidade que merece e, infelizmente, não sabemos fazer esta transmissão para as novas gerações.

A transmissão do que vivemos no passado é um dever dos antigos e um direito das novas gerações. Portanto, é necessário resgatar nossa história para compreendermos o processo de avanço da política sobre drogas nesta transição de paradigmas...

ABRAMD DEZ ANOS significa muito mais do que uma década pela mudança de paradigmas. Por esta razão, exatamente, é que a Abramd foi criada. Todos os que constituímos esta associação estávamos insatisfeitos. Os grupos existentes não nos permitiam fazer esta transição, fomos protagonistas do que se pode entender como sendo as construções

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Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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científicas e de práticas com usuários de drogas nos diferentes contextos em prevenção, tratamento e redução de danos.

Além dos espaços da academia, onde a maioria de nós nos situamos, aos poucos ocupamos os espaços da política pública onde encontramos, citando Edgar Morin, as “rachaduras” do sistema que nos apontam para as possibilidades de um novo discurso que, por sua vez, geraria novas práticas, convictos de que os novos saberes e os novos fazeres vêm sempre juntos. Na verdade, a epistemologia dos novos paradigmas da ciência nos permite superar a clássica dicotomia entre teoria e prática, nos conduzindo para o reconhecimento do saber da experiência. Assim, não se trata de aplicar a teoria na prática, mas de refletir sobre a prática como fonte para a produção teórica.

Como somos envolvidos tanto com a teoria como com a prática, em especial atuando na clínica das dependências químicas, este processo foi natural e inevitável: - Como é possível para quem trata de pessoas em sofrimento pelo uso problemáticos de drogas, suportar o paradigma da repressão e da criminalização ?

Basta nos conectarmos com esta clientela para aprender dela e com ela mesmo sobre a complexidade das situações vividas. Situações complexas exigem soluções complexas e estas inauguram a transição de paradigmas.

As raízes do que agora nomeamos antiproibicionaismo, e que não se reduz à dimensão do jurídico – na verdade trata-se de um novo paradigma fundado no que buscamos estes anos todos: fazer ciência com diversidade e com humanidade.

Os abramdianos são protagonistas deste processo de avanço das políticas sobre drogas no Brasil, uma conquista que viemos trilhando há mais de três décadas. Sem modéstia, reafirmamos o que se disse na abertura: somos uma comunidade crítica colaborativa e, hoje, embora não tenhamos necessariamente poder político direto, temos uma voz que se faz respeitar em qualquer uma das políticas (se é que ainda temos alguma...).

As temáticas que definem os princípios da Abramd foram construções de autoria de pesquisadores brasileiros e são estruturantes desta transição

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Apresentação

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de paradigmas em sua história. Como reconhecimento aos pioneiros, relacionamos a composição das diretorias da Abramd, em sua primeira década (2005-2015), e das gestões que se seguiram até o momento da presente publicação:Primeira diretoria – gestão 2005-2007 – Presidente: Dartiu Xavier da Silveira Filho; Vice-Presidente: Marcelo Santos Cruz; Primeira Secretária: Ana Regina Noto; Segunda Secretária: Roseli Boerngen de Lacerda; Primeira Tesoureira: Silvia Brasiliano; Segunda Tesoureira: Monica Gorgulho; Conselho Fiscal: M. Lurdes Zemel, Edward Mac Rae, Helena M. Tannhauser Barros.Segunda diretoria – gestão 2007-2009 – Presidente: Dartiu Xavier da Silveira Filho; Vice-Presidente: Marcelo Santos Cruz; Primeira Secretária: Helena Maria Becker Albertani; Segunda Secretária: Ana Regina Noto; Primeira Tesoureira: Silvia Brasiliano; Segundo Tesoureiro: Sérgio Nicastri; Conselho Fiscal: Monica Gorgulho, Edward Mac Rae, Helena Tannhauser Barros.Terceira diretoria – gestão 2009-2010 – Presidente: Evaldo Melo Oliveira; Vice-Presidente: Marcelo Sodelli; Primeira Secretária: Helena Maria Tannhauser Barros; Segundo Secretário: Marco Manso Cerqueira Silva; Primeiro Tesoureiro: George Hamilton Gusmão Soares; Segunda Tesoureira: Regina de Paula Medeiros; Conselho Fiscal: Dartiu Xavier da Silveira Filho, Antônio Nery Filho, Elisaldo Luiz de Araújo Carlini.Terceira diretoria – gestão 2010-2011 – Presidente: Marcelo Sodelli; Vice-Presidente: Celi Denise Cavallari; Primeira Secretária: Helena Maria Tannhauser Barros; Segundo Secretário: Marco Manso Cerqueira Silva; Primeira Tesoureira: Helena Maria Becker Albertani; Segunda Tesoureira: Regina de Paula Medeiros; Conselho Fiscal: Dartiu Xavier da Silveira Filho, Antônio Nery Filho, Elisaldo Luiz de Araújo Carlini.Quarta diretoria – gestão 2011-2013 – Presidente: Marcelo Sodelli; Vice-Presidente: Celi Denise Cavallari; Primeira Secretária: Helena Maria Tannhauser Barros; Segundo Secretário: Osvaldo Francisco Ribas Fernandez; Primeira Tesoureira: Helena Maria Becker Albertani; Segundo Tesoureiro:Telmo Mota Ronzani; Conselho Fiscal: Dartiu Xavier da Silveira Filho, Regina de Paula Medeiros, Elisaldo Luiz de Araújo Carlini.Quinta diretoria – gestão 2013-2015 – Presidente: Maria Fátima Olivier Sudbrack; Vice-Presidente: Marcelo Santos Cruz; Primeira Secretária: Miriam Gracie Plena; Segunda Secretária: Rita Cavalcante; Primeira Tesoureira: Maria Inês Gandolfo Conceição; Segunda Tesoureira: Maria Aparecida Gussi; Conselho

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Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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Fiscal: Rossana Rameh, Maria Etelvina Reis de Toledo Barros, Luiz Fernando Severo Marques.Sexta diretoria – gestão 2016/2017 – Presidente:  Rubens de Camargo Ferreira Adorno; Vice-Presidente: Edward MacRae; Primeiro Secretário: Murilo Battisti; Segunda Secretária: Andrea Galassi; Primeira Tesoureira: Selma Lima da Silva; Segunda Tesoureira: Maria Angélica de Castro Comis; Conselho Fiscal: Regina Medeiros; Dartiu Xavier e Celi CavallariAtual diretoria – gestão 2017/2019 – Presidente: Luciane Marques Raupp; Vice-Presidente: Rubens de Camargo Ferreira Adorno; Primeira Secretária: Sandra Regina Fergutz; Primeiro Tesoureiro: Jardel Fischer Loeck; Segunda Tesoureira: Selma Lima da Silva; Conselho Fiscal: Danielle de Carvalho Vallim, Eduardo Viana Vargas e Edward MacRae.

A criação da Abramd abriu, pois, um novo espaço de discussão científica, aperfeiçoamento profissional, divulgação do saber e, acima de tudo, de participação social e política com posicionamentos corajosos e ações inovadoras. Foi a concretização da aspiração de muitas pessoas: participar de uma associação que encarasse as questões das drogas e dependências não apenas com fundamento em práticas e teorias atualizadas, mas com um olhar aberto, abrangente e humano.

O caráter multidisciplinar no Estudos sobre Drogas, enquanto uma das marcas da Abramd, norteia o pensamento e as ações de todos os que dela participam. A integração e complementariedade de saberes como Farmacologia, Educação, Assistência, Saúde, Política, História, Direito, Psicologia, Antropologia, Pesquisa e tantas outras áreas do conhecimento cria novas perspectivas e muda paradigmas. No decorrer de uma década, a Abramd atraiu mais de quatro centenas de associados, de todas as regiões do país.

Os trabalhos aqui apresentados procuram explicitar a construção desse paradigma de compreensão de um campo interdisciplinar e de políticas públicas a partir de cinco partes. Na Parte 1 – Transição de paradigmas em álcool e drogas, no cenário das práticas sociais – trata dos aspectos fundantes tanto de uma política compreensiva da relação dos usos e dos cuidados em relação às drogas como uma questão

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Apresentação

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das sociedades contemporâneas, a partir de perspectivas como a psicologia social e a antropologia, como também denunciam como a política de drogas é tomada como uma ação de guerra, repressão e exclusão às juventudes pobres, pretas e periféricas, mostrando o desempenho de um estado e, de certa forma, de atores de uma sociedade pós-colonial, que utilizam a tecnologia dos “capitães do mato” do século XVIII para tratar de cidadãos do século XXI, e nesse caso, apontamos aqui como que esse tipo de ação está sendo reforçada hoje em 2018, uma perspectiva que estava presente, porém fortemente denunciada na vigência de governos democráticos que tínhamos até então, se apresenta agora como a forma legitimada e chancelada para a indignação de todos nós.

Na Parte 2 – Transição de paradigma na clínica das dependências – apresentamos um repertório bastante rico, diversificado de perspectivas clínicas e terapêuticas, dando conta da presença dessa discussão que foi fundante na construção da Abramd, como uma associação interdisciplinar que teve origem na postura crítica e contemporânea de pesquisadores e profissionais do campo do cuidado com os usos, e de usuários de drogas que se tornam problemáticos, e que na verdade explicitam um campo muito mais amplo de compreensão das pessoas e seus contextos de usos que a visão pura e simples corporificada no senso comum do termo “dependência”. Em nosso país a dependência ainda é compreendida de uma maneira mono causal, determinista e autoritária, tanto à revelia da própria ciência como à revelia de práticas intersubjetivas e fundadas no direito das pessoas. Os artigos também dialogam tanto com perspectivas que historicamente se colocaram nesse campo amplo de exercício da clínica e da reflexão sobre os usos como com a perspectiva de cuidado com as ações humanas, e também pontuam essa dimensão em situações do contexto brasileiro.

Na Parte 3 – Transição de paradigma na prevenção – os textos discorrem sobre experiências concretas no âmbito do cuidado com as pessoas, chamando a atenção para aspectos pedagógicos e preventivos, destacando o campo da educação como um instrumento de ação e inclusão mobilizadora da capacidade de reflexão sobre as práticas e as

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Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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experiências, muito mais do que a imposição de valores e de comportamentos normativos. Também nesse caso, são discutidas perspectivas conceituais e princípios, assim como a descrição de experiências práticas e situações locais/nacionais. Essas experiências dão conta da necessidade de implementar ações e projetos de políticas públicas voltadas para a horizontalidade, isto é, a discussão de situações de vida na perspectiva da educação, como de situações contextuais e limites como o caso dos jovens alvo de políticas repressivas e excludentes e de sua necessidade de acolhida e, portanto, da necessidade de pedagogias de acolhimento.

A Parte 4 – Drogas e populações em condição de vulnerabilidades: o paradigma da diversidade – com a maior quantidade de artigos, tem como foco um “paradigma” bastante polêmico, o da relação das drogas com as populações excluídas e, mais explicitamente, com as populações de rua. Polêmico, digamos, porque em período recente da conjuntura brasileira esse tema tornou-se a discussão e o paradigma das drogas. Isto porque perversamente tanto a mídia como as esferas políticas passaram a focalizar essas populações, e no caso do crack, como o paradigma das “drogas”. Em primeiro lugar, a demonização de uma droga derivada e fabricada com os restos de uma substância – a cocaína –, invisibilizada e largamente consumida sem alardes nas mais amplas esferas do país. Em seguida, a estigmatização das populações mais excluídas, com a construção do crack – convenientemente alicerçado no paradigma do senso comum da “dependência” e do poder da droga. Por fim, tem-se o cenário perfeito para esconder os contextos de alta vulnerabilidade e de exclusão a que tais populações estiveram historicamente exploradas, aniquiladas e descartadas pelas chamadas elites da sociedade brasileira.

O que chamamos a atenção é para o aspecto complexo dessa discussão. É necessário, ao mesmo tempo, compreender as práticas e os processos que envolvem essas populações sem, no entanto, torná-las o foco único e predominante das políticas públicas. Ao tratar do tema do consumo de psicoativos deve-se ter em mente todas as práticas de uso,

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Apresentação

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desde os consumos não visíveis, e que envolvem todos os setores da sociedade, até o consumo de drogas consideradas ilícitas. Tais práticas não devem ser vistas restritamente como situações problemáticas, e sim consideradas em suas complexidades, vistas como formas de uso do tempo, do lazer e do consumo das felicidades e do bem-estar próprios do mundo contemporâneo, tanto das populações excluídas quanto de todas as “populações” da sociedade.

Os artigos apresentam uma diversidade de situações e de formas de olhar para esse foco, e de destacar a importância dessa construção sociopolítica em torno da demonização do crack como mais um sintoma dos desmandos dos mercados e de poder na atual sociedade brasileira.

Finalmente a Parte 5 – Transição de paradigmas na formaçãoprofissional – trata de um tema extremamente relevante que é a formação de atores para empreender as mudanças de paradigma das políticas públicas no campo do consumo problemático e da reflexão crítica acerca dos psicoativos, tendo como perspectiva desde a formação de pesquisadores como de quadros para a implementação de práticas e projetos menos comprometidos com os paradigmas da não reflexão e da violência.

Aos abramdianos autores desta obra agradecemos a chance de compartilhar este projeto de fazer história na transição de paradigmas em drogas e dependência;

Aos leitores, desejamos que encontrem inspiração e estímulo para prosseguirmos avançando juntos!

Os organizadores

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Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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Sumário

Apresentação v

Sobre Autoras e Autores xix

PARTE 1: Transição de paradigmas em álcool e drogas no cenário das práticas sociais

1.1 Un “modelo” sistémico de comprensión-acción de dinámicas sociales: tres dimensiones de las prácticas sociales transformadoras 35

Saúl Ignacio Fuks

1.2 Un antropólogo con sus drogas: Entrevista de Oriol Romaní 67

Mónica Franch e Regina Medeiros

1.3 Violência e Juvenicídio, encarceramento: das políticas de segurança à defesa dos direitos humanos e do direito à vida 85

Marisa Feffermann

PARTE 2: Transição de paradigma na clínica das dependências

2.1 A clínica da drogadição no paradigma sistêmico e da complexidade: as dependências e seus paradoxos 101

Maria Fátima Olivier Sudbrack

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2.2 O paradigma da toxicomania para além da droga: a clínica das adições generalizadas 133

Giovana Quaglia

2.3 Toxicomania e Adições: a clínica viva de Olievenstein 145

Diva Reale, Marcelo Soares da Cruz e Fabio Carezzato

2.4 A Terapia de Família diante do uso de drogas na adolescência 153

Amanda Guedes Bueno e Isabela Machado da Silva

2.5 Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack: a acessibilidade em foco 179

Rossana Carla Rameh de Albuquerque, Anna Carolina Vidal Matos, Renata Barreto Fernandes de Almeida, Joselaine Ida

da Cruz e Solange Aparecida Nappo

2.6 Uso de maconha e adolescência 201

Maria Inês Gandolfo Conceição eSilvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

PARTE 3: Transição de paradigma na prevenção

3.1 A Escola como Comunidade Educativa e Protetiva: a experiência do Prodequi/UnB na prevenção do uso abusivo de drogas 227

Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Inês Gandolfo Conceição eMaria Fátima Olivier Sudbrack

xiv

Sumário

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3.2 Promoção da saúde e prevenção ao uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades 251

Larissa Polejack, Gustavo Costa, Fabiane Braga Pereira eLeandro Moreira dos Santos de Figueiredo

3.3 Acolhimento para adolescentes em situação de risco 273

Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Marília Mendes Almeida

PARTE 4: Drogas e Populações em condição de vulnerabilidades: o paradigma da diversidade

4.1 Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas 293

Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

4.2 O “dispositivo do crack”: estratégia, saber e poder 329

Iara Flor Richwin

4.3 Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas e sua trajetória no Sistema de Garantia de Direitos 353

Carla Dalbosco, Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira eOlga Maria Pimentel Jacobina

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Sumário

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4.4 Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua: busca por pertencimento 373

Rubens Mota, Maria Aparecida Penso eMaria Eveline Cascardo Ramos

4.5 Crack e maternidade à “deriva”: sem ser filha, como ser mãe? 395

Luisa Soares, Maria Aparecida Penso eMaria Eveline Cascardo Ramos

4.6 A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd Sul: espaço para problematização e controle social 417

Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

4.7 Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de São Paulo: uma contribuição etnográfica 431

Yone Moura

4.8 Ninguém falou sobre mim? O crack, as representações midiáticas, o sujeito e o contexto sociocultural do uso no Rio de Janeiro e em Nova Iorque 445

Danielle Valim

4.9 Cracolândia, Blocolândia, o outro, a imagem as emoções e o contexto 455

Selma Lima da Silva e Rubens Adorno

4.10 O crack: das folhas ao ‘bloco‘ 465

Thiago Calil e Rubens Adorno

xvi

Sumário

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PARTE 5: Transição de paradigmas na formação profissional

5.1 Formação continuada de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas: construções metodológicas na experiência do Prodequi/UnB (2004-2014) 481

Maria Fátima Olivier Sudbrack

5.2 Formação à distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera 501

Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni, Ana Paula Leal Carneiro e Eliane Assunção Castro

5.3 Mestrado profissional: uma experiência construída a partir da Política Nacional sobre Drogas do Brasil 523

Carla Dalbosco, Silvia Chwartzmann Halpern, Lisia von Diemen e Flávio Pechansky

5.4 A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão: a narrativa de uma experiência 541

Fernanda Penkala, Miriam Senghi Soares eRossana Carla Rameh-de-Albuquerque

POSFÁCIO: Drogas: porque se impõe a Transição de Paradigmas 563

Marcelo Santos Cruz

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Sumário

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Sobre autoras e autores

Amanda Guedes Bueno: psicóloga (UnB), mestranda em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC – UnB). Membro do Laboratório de Fa m í l i a s , G r u p o s e C o mu n i d a d e s ( L a b f a m ) . E - m a i l : [email protected]

Ana Paula Leal Carneiro: psicóloga, doutora (Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp), pesquisadora na área de uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas (avaliação da efetividade do curso por Educação à Distância Supera, coordenação de projeto de pesquisa vinculado ao curso sobre estratégia de pós-curso). E-mail: [email protected]

Anna Carolina Vidal Matos: psicóloga e redutora de danos, mestre em Psicologia (UFRN) E-mail: [email protected]

Carla Dalbosco: psicóloga e especialista em Atendimento Clínico com ênfase em Terapia Familiar Sistêmica (UFRGS), mestre e doutora em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC – UnB). Ex-Diretora Técnica da Senad/MJ, docente e coordenadora adjunta do curso de Mestrado Profissional em Álcool e outras Drogas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA/UFRGS). E-mail: [email protected]

Carolina Coutinho: bióloga, mestre e doutora em Biodiversidade e Saúde (Fundação Oswaldo Cruz), pesquisadora em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected]

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Danielle Vallim: cientista social (UFRJ-2005), mestre em Ciência Política (UFF-2010) doutora em Saúde Coletiva (Instituto de Medicina Social/Uerj-2015) com estágio na Mailmam School of Public Health (Columbia University / New York – 2014), pesquisadora sobre saúde no contexto sociocultural, violência, estigma, miséria, redução de danos, políticas de atenção, consumo abusivo e tráfico de drogas, encarceramento, relações de gênero, indivíduos social e historicamente marginalizados, especialmente em contextos urbanos em metrópoles, Prêmio Professor Carlini, conferido pela Abramd em 2017. E-mail: [email protected]

Diva Reale: médica psiquiatra, psicanalista, mestre em Medicina Preventiva/Fmup-USP, estagiária Marmottan/Paris, Coordenadora d´O Barato no Divã, Instituto Sedes Sapientiae/São Paulo, fundadora e coordenadora da Abramd-Clínica (gestão 2012-2014), organizadora do livro ‘Toxicomania e Adições: a clínica viva de Olievenstein’. E-mail: [email protected]

Eliane Assunção Castro: terapeuta ocupacional, especialista em Saúde da Família (Faculdade Santa Marcelina), integra equipe do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III (Caps-AD) do Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas). Tutora do Projeto Pós-Curso Supera da Unifesp/Senad com ações em educação permanente na área da dependência química. Experiência profissional na área da Saúde Pública, com ênfase na Atenção Primária à Saúde. E-mail: [email protected]

Fabiane Braga Pereira: advogada (UFC – 1998), especialista em Direito do Estado, graduanda em Psicologia na Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora no Grupo de Estudos, Intervenções e Educação em Psicologia, Cronicidades e Políticas Públicas em Saúde (Integra). E-mail: [email protected]

xx

Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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Fabio Carezzato: médico psiquiatra (FMUSP), membro do Promud/USP, Psiquiatra no Cratod e Coordenador do curso "O Barato no Divã: especificidades da clínica ampliada", Instituto Sedes Sapientiae/São Paulo, organizador do livro “Toxicomania e Adições: a clínica viva de Olievenstein”. E-mail: [email protected]

Fernanda Penkala: médica psiquiatra, especialista em Estratégia Saúde da Família, especialista em Práticas Pedagógicas em Serviços de Saúde/preceptora e supervisora Clínico-Institucional em Redes de Atenção Psicossocial (Raps), coordenação, preceptoria e docência do Programa de Residência Médica em Psiquiatria/São Lourenço do Sul/RS, docente e preceptora de Residência Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva/ESP/São Lourenço do Sul/RS. E-mail: [email protected]

Flavio Pechansky: médico psiquiatra (UFRGS), mestre e doutor em medicina Ciências Médicas (UFRGS). Professor titular do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal e da Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS). Diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (Cpad-UFRGS), coordenador e docente do Programa de Mestrado Profissional em Álcool e outras Drogas (HCPA). E-mail: [email protected]

Francisco Inácio Bastos: médico, mestre em Saúde Coletiva e doutor em Saúde Pública (Fundação Oswaldo Cruz), estágios de pós-doutorado/pesquisador visitante na Alemanha, Canadá, Reino Unido, EUA. Pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz e foi pesquisador visitante honorário do Imperial College, Londres, Reino Unido. E-mail: [email protected]

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Sobre autoras e autores

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Giovanna Quaglia: psicóloga, psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica/UnB. Especialização Neurociências/USP e em Dependência Química/Unifesp, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Toxicomania de Brasília da Rede TyA Brasil do Campo Freudiano. Associada à Delegação Goiás-Distrito Federal/Escola Brasileira de Psicanálise. E-mail: [email protected]

Gustavo Costa: graduando em Psicologia na Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador no Grupo de Estudos, Intervenções e Educação em Psicologia, Cronicidades e Políticas Públicas em Saúde (Integra). E-mail: [email protected]

Helton Alves de Lima: psicólogo, formação em Saúde Coletiva (Instituto de Saúde/Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo), especialista em Saúde Mental e Dependência de Drogas (Faculdade de Medicina/USP). mestrando (Faculdade de Medicina/USP), Atua nas áreas de assistência, pesquisa e formação para o campo da saúde mental, álcool e outras drogas. E-mail: [email protected]

Iara Flor Richwin: psicóloga clínica na área de dependências químicas (Caps-AD) e da socioeducação de adolescentes em conflito com a lei. Doutora em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsic-UnB) e doutora em Recherche en Psychopathologie et Psychanalyse (Université Sorbonne Paris Cité /Paris Diderot). E-mail: [email protected]

Isabela Machado da Silva: psicóloga (UFRGS), mestre e doutora em Psicologia (UFRGS), com especialização em Terapia de Família (Domus). Professora do Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB). Membro do Laboratório de Família, Grupo e Comunidade (Labfam) da UnB. E-mail: [email protected]

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Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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Jardel Fischer Loeck: cientista social (Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestre e doutor em Antropologia Social (UFRGS). Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista de pós-doutorado. Tem trabalhado com os seguintes temas: Narcóticos Anônimos, Comunidades Terapêuticas, políticas públicas de atenção em saúde para usuários de drogas e Redução de Danos. E-mail: [email protected]

Joselaine Ida da Cruz: farmacêutica-bioquímica, mestre em Ciências da Saúde – Medicina Preventiva – Unifesp, doutoranda em Saúde Coletiva/Unifesp. E-mail: [email protected]

Larissa Polejack: psicóloga (UnB-1997), psicodramatista (ABP-2001), especialista em Educação Permanente em Saúde (UFRGS-2015), mestre em Psicologia Clínica (UnB-2001), doutora em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde (UnB-2007) e estagio Pós-Doutoral em Saúde Pública (Tulane University-2015-2016). Professora adjunta do Instituto de Psicologia/UnB, Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Coordena o Integra: Grupo de Estudos, Intervenção e Educação em Psicologia, Cronicidades e Políticas Públicas. E-mail: [email protected]

Leandro Moreira dos Santos de Figueiredo: graduando em Psicologia na Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador no Grupo de Estudos, Intervenções e Educação em Psicologia, Cronicidades e Políticas Públicas em Saúde (Integra) e também no Grupo de Intervenções Precoces em Crises do Tipo Psicótica (Gipsi). E-mail: [email protected]

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Sobre autoras e autores

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Lidiane Toledo: enfermeira (Faculdade Novo Milênio - 2008), mestre e doutora em Epidemiologia - Saúde Pública (Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz). Pesquisadora no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde. Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected]

Lisia von Diemen: médica, psiquiatra, mestre e doutora em Ciências Médicas (UFRGS). Professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal e da Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS). Chefe da área de Ensino/Pesquisa do Serviço de Adição do HCPA. Membro da Comissão Coordenadora e docente do Mestrado Profissional em Álcool e outras Drogas (HCPA/UFRGS). E-mail: [email protected]

Luciane Raupp: psicóloga (UFRGS-1999), mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS-2006); doutora em Saúde Pública (Faculdade de Saúde Pública USP- 2011; docente do Curso de Psicologia, supervisora do Serviço Escola de Psicologia e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais da Universidade La Salle; atual presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd); sócia da Compondo Coletivos Consultoria. Experiência profissional nas áreas de Psicologia Social Comunitária e Saúde Coletiva, com desenvolvimento de pesquisas na área de estudos sobre usos de drogas e redução de danos; juventudes; violência e políticas públicas. E-mail: [email protected]

Luisa Soares: psicologa, terapeuta, mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected]

Marcelo Santos Cruz: médico, mestre e doutor em Psiquiatria, coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido

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Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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de Drogas – Projad – do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vice-presidente da Abramd nos períodos 2005-2009 e 2015-2016. E-mail: [email protected]

Marcelo Soares da Cruz: psicólogo, psicanalista, mestre e doutor Psicologia Clínica (Instituto de Psicologia/USP), coordenador do Habitat, coordenador dos Seminários clínicos: clínica em tempos de fim de Guerra às Drogas/O Barato no divã, Instituto Sedes Sapientiae/São Paulo, membro da Abramd, organizador do livro “Toxicomania e Adições: a clínica viva de Olievenstein”. E-mail: [email protected]

Maria Aparecida Penso: psicóloga, terapeuta conjugal e familiar, psicodramatista. mestre e doutora em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC- UnB), Pós-doutora em Psicossociologia (UFF). Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected]

Maria Eveline Cascardo Ramos: psicóloga (UnB), mestre em Psicologia Clínica (UnB), psicodramatista didata e supervisora, terapeuta de famílias e casais. Fundadora e docente nos Cursos de Especialização em Psicodrama e em Terapia de Famílias e Casais no Interpsi – PUC/GO. Professora aposentada da Universidade Católica de Brasília/UCB. Dedica-se ao atendimento de pessoas envolvidas em violência contra a mulher, crianças e adolescentes e desenvolve pesquisas nesta área. Atua nas áreas clinica social e jurídica principalmente nas relações familiares, comunitária, exclusão social e metodologia de intervenção. Coordenadora do Interpsi e do Intervenire – Grupo de intervenção e Pesquisa Socioterapêutica. Membro da Abrapahp – Associação Brasileira de Ajuda Humanitária Psicológica. Membro do IAGP – International Association of Group Psychoterapy, Email: [email protected]

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Sobre autoras e autores

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Maria Fátima Olivier Sudbrack: psicóloga (UFRGS/1978), mestre em Psicologia Clínica (PUCRS-1982), doutora em Psicologia (Université Paris XIII-1987), especialista em Terapia familiar (Cefa- Centre d’Études de la Famille- Paris 1986), pós-doutora em Psicossociologia (Université Paris VII-1999), professora titular do Departamento de Psicologia Clínica/ Instituto de Psicologia/ UnB (1988-2014), fundadora e coordenadora do Prodequi – Programa de Estudos e Atenção ás Dependências Químicas/PCL/IP/UnB (1991-2014), coordenadora do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas/Senad/MJ e SEB/MEC (2004-2014), presidente da Abramd (2013-2015) e do V Congresso Internacional da Abramd (2015), pesquisadora sobre drogadição de adolescentes, socioeducação, intervenções sistêmicas com famílias, instituições e comunidades em contextos de pobreza e vulnerabilidades. Psicóloga clínica e terapeuta de famílias, casais e adolescentes. E-mail [email protected]

Maria Inês Gandolfo Conceição: psicóloga, mestre e doutora em Psicologia (UnB), professora visitante na University of Toronto (2012), p ro f e s so ra a s soc i ada do De par tamento de P s i co log ia Clínica/PCL/IP/UnB, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura- PPGPsiCC/UnB. Coordenadora do Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas – Prodequi/PCL/IP/UnB. E-mail: [email protected]

Maria Lizabete Pinheiro de Souza: psicóloga, mestre em Educação pela Universidade Católica de Brasília, mestre e doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília. Pesquisadora e docente nas áreas de Psicologia da Educação e Psicologia do Desenvolvimento Humano. Email: [email protected].

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Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni: biomédica, mestre, doutora e professora Livre-Docente pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp, pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa, chefe do Departamento de Psicobiologia e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia (Unifesp), Coordena a Unidade de Dependência de Drogas (Uded) e o curso Supera, que desenvolveu em parceria com a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad, 2006-2017). E-mail: [email protected]

Marília Mendes de Almeida: psicóloga, doutora em psicologia pela UnB, assessora de políticas públicas do Conselho Federal de Psicologia. Atua principalmente nos seguintes temas: ensino na saúde, políticas públicas de atenção ao usuário de drogas, prevenção ao uso de drogas, redes sociais, análise de redes sociais, contextos de risco e de p r o t e ç ã o n a a d o l e s c ê n c i a , s o c i o e d u c a ç ã o . E - m a i l : marilia.mendes.almeida@ gmail.com

Marisa Feffermann: mestre e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisadora do Instituto de Saúde da SES/SP, da Flacso - Brasil (Faculdade Latino Americana de Sociologia), professora do Centro Universitário Estácio de São Paulo e da SEE/SP. Tem experiência na área de Pesquisa em Psicologia, com ênfase em Psicologia Educacional e Social, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental, juventude, violência, tráfico de drogas, Primeiro Comando da Capital - PCC, gangues, educação, violência na escola. Pós-doutora em Investigación en Ciencias Sociales, Niñez y Juventud (Clacso). Coordenadora do Grupo de Trabalho - Infancia y Juventud: Políticas, Culturas e Instituciones Sociales da Clacso. Autora do livro “Vidas Arriscadas: o cotidiano de jovens trabalhadores do tráfico de drogas”. E-mail: [email protected]

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Sobre autoras e autores

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Miriam Senghi Soares: terapeuta ocupacional, especialista em Terapia Funcional (Fundação das Pioneiras Sociais), mestre em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC-UnB). Atua como supervisora clínico-institucional em Redes de Atenção Psicossocial (Raps). É docente do curso de Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Faculdade Laboro, integra a equipe de pesquisa de Avaliação dos Caps do Norte e Centro-Oeste. E-mail: [email protected]

Mónica Lourdes Franch Gutiérrez: doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), com pós-doutorado na Universitat Rovira i Virgili. Professora Associada no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba, onde é também membro dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Sociologia. Líder do Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura (UFPB). Trabalha com antropologia da saúde, gênero e sexualidade, bem como com questões ligadas às juventudes. E-mail: [email protected]

Olga Maria Pimentel Jacobina: psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC-UnB), pós-doutora na área de drogas (Centre of Addiction and Mental Healthy/University of Toronto- Canadá). Especialista em Assistência Social na Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social/Governo do Distrito Federal. E-mail: [email protected]

Raphaela da Cunha Bacellar Veiga Garcia: socióloga e tecnóloga em Saúde. Atualmente é analista de pesquisa em empresa privada. Possui formação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, e em Informática em Saúde pela Universidade Federal de São Paulo. Atua nas áreas de avaliação de tecnologias em saúde (ATS), farmacoeconomia, pesquisa clínica e tecnologias de informação e comunicação (TICs). E-mail: [email protected]

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Maria Fátima Olivier Sudbrack, Maria Inês Gandolfo Conceição, Rubens Adorno

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Regina de Paula Medeiros: doutora em Antropologia Social e cultural (Universitat Rovira i Virgili – Tarragona – Espanha). Professora Adjunto IV da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais; Professora dos Cursos de Graduação de Ciências Sociais e Relações Internacionais. Integrante dos grupos de pesquisa Cultura Urbana, Modos de Vida e Identidade e de Cultura e Cidades. Membro da diretoria da Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativas (Abesup). Desenvolve pesquisas na área da saúde; corpo; álcool e drogas; antropologia urbana com enfoque na identidade, cultura, cidades e diversidade cultural: grupos juvenis; prostituição; violência; participação política; redes sociais, grupos vulneráveis; espaços urbanos marginais; socioantropologia das drogas. E-mail: [email protected]

Renata Barreto Fernandes de Almeida: fonoaudióloga e psicóloga, mestre em Psicologia Clínica/Universidade Católica de Pernambuco, Doutora em Saúde Coletiva/Unifesp, membro do Grupo de Estudos e m Á l c o o l e o u t r a s D ro g a s – G e a d / U F P E . E - m a i l : [email protected]

Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque: psicóloga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco – IFPE; pesquisadora do Grupo de Estudos em Álcool e outras Drogas da Universidade Federal de Pernambuco (Gead/UFPE); supervisora Clínico-Institucional em Redes de Atenção Psicossocial (Raps); mestre em Saúde Coletiva (Fiocruz/CPqAM), doutora em Medicina Preventiva (Unifesp); docente da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). E-mail: [email protected]

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Rubens de Camargo Ferreira Adorno: cientista social (Universidade Estadual de Campinas -1977), especialista em Saúde Pública (Faculdade de Saúde Pública da USP), mestre em Saúde Pública (USP-1989), doutor em Saúde Pública (USP-1992), professor Livre Docente (USP-1997), professor senior da USP, presidente Abramd (2015-2017) Vice-presidente da Abramd (2017-2019). Pesquisador no campo das drogas lícitas e ilícitas como uma esfera do consumo das sociedades contemporâneas, a partir do desafio de propor uma abordagem mais complexa do que o tratamento técnico a que esses fenômenos são relegados. E-mail: [email protected]

Rubens Mota: graduação em Teologia pelo Ifiteg (Faculdade de Filosofia e Teologia de Goiás); graduação em Psicologia pela PUC de Goiás; especialização em Terapia de casal e Família pela PUC-GO; mestrado em psicologia pela Universidade Católica de Brasília; assessorias a nível nacional para casais, famílias, jovens e comunidades. Trabalho junto aos indígenas (povo Terena). Email: [email protected]

Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira: psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília. Pesquisadora e docente nas áreas de Psicologia Jurídica e Psicologia Social Comunitária. Utiliza como referenciais teóricos de base a Escola de Psicossociologia Francesa e a Teoria Sistêmica. E-mail: [email protected]

Saúl Ignacio Fuks: psicólogo, doutor em Psicologia Clínica. Especialista em Psicologia Comunitária. Facilitador Sistémico de Processos Coletivos. Diretor do Mestrado em Pensamento Sistêmico na Universidade Nacional de Rosario, Argentina - Professor convidado de universidades europeias e latino-americanas. Consultor e membro da rede « MDSL Mouvement pour le Développement Social Local » - Paris, França. Consultor do « Institut Renaudot de Santé

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Communautaire ». Paris. França. Professor Titular da Universidade Nacional de Rosário, Argentina. Formador de terapeutas sistêmicos e de facilitadores de processos coletivos. E-mail: [email protected]

Selma Lima da Silva: cientista social (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo-1991), especialista em Saúde Pública (Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Saúde Pública/USP- 1992), mestrado (USP-2000) e doutorado (USP-2017), pesquisadora do Grupo de Estudos Drogas e Sociedade (Geds) e do Laboratório Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Sociais em Saúde Pública (Liesp) da Faculdade de Saúde Pública/USP. Membro da diretoria da Abramd. Atua em estudos na área da saúde com ênfase nas práticas desenvolvidas por grupos em situação de vulnerabilidade social, pesquisando os temas de uso de drogas, prostituição, população em situação de rua, jovens em conflito com a lei, violência doméstica e sexual, doenças sexualmente transmissíveis e HIV/Aids. E-mail: [email protected]

Silvia Chwartzmann Halpern: assistente social (PUC-RS), mestre em Educação (UNC - Chapel Hill, EUA), doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS). Coordenadora da área de Reinserção Social da Unidade Álvaro Alvim do HCPA. Membro da Comissão Coordenadora e docente do Mestrado Profissional em Álcool e outras Drogas (HCPA/UFRGS). E-mail: [email protected]

Silvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos: graduação em Pedagogia, pela Universidade de Brasília – UnB (1990), graduação em Psicologia (UnB, 1995), mestrado em Psicologia (UnB, 1997) e doutorado em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC-UnB, 2013). Atualmente é professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília e integra a equipe do Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de

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Brasília. Tem experiência na área de Psicologia Familiar, atuando principalmente nos seguintes temas: juventude, adolescência, saúde mental, saúde e desenvolvimento psicológico. É membro do GT Juventude, Resiliência e Vulnerabilidade. da Anpepp. Atualmente, é coordenadora do Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos (Caep), serviço-escola da UnB e também coordena o Laboratório de Família, Grupo e Comunidade na UnB E-mail: [email protected]

Solange Aparecida Nappo: farmacêutica-bioquímica, mestre em Saúde Pública, doutora em Ciências e professora adjunta da Unifesp. E-mail: [email protected]

Thiago Godoi Calil: doutorando em Saúde Global e Sustentabilidade e mestre em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - FSP/USP. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem experiência na área de Psicologia Social, com pessoas em situação de rua e as que usam drogas. Atua desde 2004 na perspectiva da Redução de Danos sociais e à saúde em diversos contextos de uso de drogas, inclusive na região da Luz, conhecida como 'Cracolândia', no centro da cidade de São Paulo, Brasil. Desenvolve pesquisas com aproximações entre a questão das drogas e as diversas forças que incidem neste campo como as políticas públicas, o estigma, a criminalização da pobreza, a violência estatal e as possíveis estratégias de garantia de direitos. Atualmente desenvolve pesquisa na  interface entre redução de danos e urbanismo em contextos latinoamericanos de uso de drogas no espaço público em Bogotá e Medellin, ColômbiaE-mail: [email protected])

Yone Gonçalves de Moura: psicóloga, mestre em Ciências e especialista em Dependência de Drogas pela Universidade Federal de São Paulo-Unifesp. E-mail [email protected]

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PARTE 1

TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS EM

ÁLCOOL E DROGASNO CENÁRIO DAS PRÁTICAS SOCIAIS

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CAPÍTULO 1.1

Un “modelo” sistémico de comprensión-acción de dinámicas

sociales:tres dimensiones de las prácticas

sociales transformadora

Saúl Ignacio Fuks

IntroducciónExiste un cierto acuerdo en considerar que lo que se denomina como

“Practica Social” hace referencia a un modo recurrente de realizar una cierta actividad que es compartido por todos los integrantes de una comunidad y que son válidas y legítimas localmente; son expresión y productoras de un determinado modo de vivir de una determinada sociedad, aunque puedan resultar inapropiadas para otras.

Las Prácticas Sociales surgen y se transforman en el curso de la vida social de una comunidad, sea esta una comunidad profesional o de otro tipo. Debido a los sistemas de formación formal y no formal, “sabemos hacer cosas” en nuestra vida cotidiana y también en los campos técnicos/profesionales específicos. Esos “saberes” están ligados a un conjunto de prácticas sociales que producen y contienen ese conocimiento y que también organizan los sistemas de transmisión regulados por las normas y creencias de esa cultura. En su mayor parte, se trata de conocimientos de los que no somos totalmente conscientes y esto se debe a que nacemos y crecemos dentro de una cultura y el proceso de socialización hace que muchos de esos saberes acaben siendo__________1. Una versión diferente del siguiente capítulo ha sido publicado en francés.

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“naturalizados”, por tanto, se trata de un patrimonio al cual no tenemos fácil acceso y de una riqueza de la cual no podemos disponer.

Los saberes de los que hablamos son los que permiten a un miembro de una comunidad ser “parte”, tener los códigos de cómo “actuar correctamente” en cada situación, produciendo “encaje” y pertenencia y, por tanto, identidad.

Los saberes “establecidos” tienden a producir estabilidad tanto en el sistema de relaciones como en la trama comunitaria extensa, ya que el actuar “correcto” de cada miembro confirma y legitima “la manera adecuada de hacer las cosas” de esa comunidad. Dado que las reglas, normas y costumbres que articulan la vida de una cultura aseguran su estabilidad en el tiempo, los intentos de inaugurar nuevas prácticas suponen una ruptura con “lo que siempre se hizo” y una transgresión. No todos los saberes nos permiten transformar nuestra realidad, ya que una gran mayoría de ellos funcionan como “la manera adecuada de hacer las cosas” y perpetúan las tradiciones y costumbres que están en la base de nuestra manera de vivir. Es posible sostener, entonces, que las prácticas sociales contienen toda la tensión entre las fuerzas estabilizadoras de las tradiciones y las fuerzas destructivas de la transformación.

La dinámica del cambio y transformación social, contiene la tensión entre aquellos “modos de hacer” conocidos - y considerados como correctos - y aquellos otros que innovan e intentan instalar “otro modo de hacer las cosas”, es decir, adoptamos formas de actuar que son constantes y estables hasta que nuevas formas las reemplazan. Las prácticas sociales, en este sentido, no son inmutables ya que responden tanto a la “época” como a las tensiones internas y del entorno, algunas se modifican mediante un lento y complejo proceso de transformación y co-evolución, mientras que otras lo hacen de manera disruptiva y destructora (parcial o totalmente) del orden establecido; no obstante, estos “haceres” no determinan todas las acciones que se realizarán dentro de ellos, sino que lo que los definen es la estructura de las acciones posibles (deseables, esperadas, prohibidas, etc.).

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Saúl Ignacio Fuks

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En este sentido, una Práctica Social es un diseño de posibilidades (e imposibilidades) de acción y estos procesos suceden en el dominio del lenguaje; es en el curso de las conversaciones donde se formulan, reformulan, perturban, negocian y legitiman.

Los procesos colectivos, cuando intentan ser participativos (o ascendentes) tienen como particularidad que - esa característica - produce complejos flujos de alta turbulencia.

Cuando se intenta reducir esa complejidad para construir estrategias de intervención, producen modelos ilusoriamente simples que dejan fuera de esos esquemas aspectos de gran importancia: la capacidad de autoorganización de los procesos colectivos; la impredictibilidad de esos procesos y su multidimensionalidad.

Todo “modelo” (o esquema) es una fotografía que intenta captar, en un aspecto de una secuencia, el fluir de dinámicas que se encuentran en permanente estado de transformación. Aun así, la mente humana necesita poder visualizar esquemas, formas, diseños para poder capturar un instante de ese fluir que permitan intuir la totalidad.

Por tanto, lo que estamos presentando acá necesita ser considerado como un fotograma de un film, más que un panorama de la totalidad del proceso.

Contexto: palabra clave en la compresión de procesos participativos

Uno de los notables aportes de Gregory Bateson (1998) fue señalar que la comprensión que tenemos de un hecho o el significado que le atribuimos, está condicionado por su contexto. La noción de “contexto” es más que un concepto teórico ya que se aproxima más a la idea de un proceso: un proceso comunicacional/conversacional en el que los marcos de referencia y de significación emergen en las interacciones que los crean, recrean y transforman.

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Un “modelo” sistémico de compresión-acción de dinámicas sociales

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Bateson intentó expandir las perspectivas desde las cuales se pensaba a un contexto; su propuesta (que anticipa en varias décadas la tarea del sociólogo francés Edgar Morin) es la de hacer varias descripciones diferentes sobre las mismas circunstancias (“dos descripciones son mejor que una”) lo que –necesariamente - trae como consecuencia la relativización de las certezas o de la ilusión de encontrar una mirada única y verdadera.

La propuesta batesoniana permitió desarrollar la capacidad de describir contextos en función de las condiciones/características que los distinguían y dentro de esta tradición, el enfoque situacional propuso que en todo contexto podemos reconocer: a) un evento o situación; b) los elementos distintivos de esa situación; c) las relaciones que se tejen dentro de esa situación; d) el ámbito en que ocurre la situación y e) lo que produce (los efectos) esa situación, (cambios de actitudes, acciones, forma y contenido de los mensajes, surgimiento de efectos deseados o no-deseados, significaciones y re-significaciones, etc.).

La acción de contextualizar supone, entonces, poner “en contexto” una situación que aparece de manera aislada y separada de todos aquellos elementos que la rodean, que influyeron e influyen sobre ella y que son influenciados por ella.

La comprensión de las singularidades contextuales - aquello que es único y diferencia a una situación de la otra - hizo necesario poder crear la noción de “marcadores de contextos” que permitan referirse a las pistas, rastros o vestigios que permitirán identificar, delimitar o circunscribir las características de un contexto; estos marcadores son los que permitirán “leer” los significados atribuidos a los acontecimientos que tengan lugar en su interior o en sus fronteras.

Parafraseando a Bateson (1998), podríamos decir que los marcadores son “mensajes claves” que sirven como “señales” y cuya función es ofrecer un modo de clasificar los contextos. Señales que guiarán nuestra observación, lectura y comprensión de una situación y que nos permitirán entender el contexto como tejido por un conjunto de situaciones, eventos y

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circunstancias que se combinan en un momento/lugar específico y que afectan los sucesos que acontecen dentro de sus límites espacio-temporales.

Las “tres dimensiones” entendidas como la construcción de contextos

Asumimos que el observador es quién, con las distinciones que produce, construye/inventa/produce ciertos recortes en los eventos a los que dota de significados y sentidos. En virtud de esta salvedad, proponemos como un “modelo” para la facilitar la comprensión y la producción de estrategias de intervención; todo “modelo” es una construcción imaginaria que intenta diseñar –grafica o textualmente- descripciones que habiliten alguna forma de acción eficaz. Podemos imaginar tres descripciones de “contextos” para comprender/intervenir en un sistema y, también, para la evaluación del recorrido de un proyecto con sus obstáculos, desafíos y logros.

Estas tres dimensiones, que denominamos “relacional/afectiva”, “pragmática/racional” y “simbólica/reflexiva”, pueden ser consideradas

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como perspectivas o como recortes desde la cual es posible analizar y operar en la complejidad de un proceso.

Cuando “describimos” las tres dimensiones lo que estamos haciendo es distinguir tres diferentes tipos de señales o “marcadores de contextos” que permiten reconocer la especificidad de cómo se enmarcan y significan los hechos en el interior de cada uno, es decir, como se ve la realidad desde el interior de cada una de esas dimensiones.

A fin de hacer más comprensible tomaremos como ejemplo la dimensión relacional afectiva que funciona como un contexto dentro del cual los hechos se significan y comprenden a partir de signos emocionales ligados a las relaciones afectivas. Desde la perspectiva de quién se encuentra dentro de esta dimensión, lo que se vuelve prioritario son las relaciones con los otros, la interdependencia, el reconocimiento mutuo, las tensiones y los conflictos, las lealtades emocionales, el “clima” afectivo, las tristezas y alegrías.

Ante un escenario en el que se pusieran en cuestión los objetivos de una tarea o etapa de un proyecto2, en el marco de la dimensión relacional/afectiva, esto se interpretará como producto de las tensiones emocionales en las relaciones del grupo y, coherentemente, se intentara dar respuestas mediante reuniones en los que los conflictos interpersonales puedan ser hablados.

Si se tratara, en cambio, de una situación en la que se manifiestan conflictos de tipo relacional en torno de la distribución de responsabilidades por la realización de una tarea, y se pretendiera responder a esto revisando la planificación y la administración de tiempos/ recursos partiendo de la suposición de que lo necesario es un análisis de la administración y gestión de los recursos. Este enfoque podría

__________2. Una situación habitual en el proceso de un proyecto donde se pierden de vista el sentido

originario compartido y se plantean diferencias acerca de cuáles son las prioridades y urgencias. En la dimensión pragmática estas dificultades serán comprendidas como parte de las diferencias de modos de planificación (x ejemplo, las diferencias entre una planificación por objetivos y una planificación estratégica) y el tipo de respuesta que se intentará será la reformulación de los objetivos en función de lo realizado, de los recursos existentes y del cronograma propuesto.

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ser eficaz en tanto el contexto predominante sea el “pragmático” pero, si la dimensión relacional es la que está prevaleciendo, la propuesta será considerada extraña e incomprensible en la experiencia de los participantes y, por lo tanto, ineficaz. Si el enfoque de la situación tomara en cuenta las características de la dimensión afectivo/relacional y se abordara mediante un círculo de dialogo en el que puedan hablarse los conflictos y tensiones personales revitalizando la conciencia de la interdependencia en el grupo, esto podría destrabar la situación permitiendo un aprendizaje importante.

En estos ejemplos se ilustran cómo, las formas de abordar las cuestiones que hacen a la cotidianeidad de la marcha de un proyecto, serán diferentes dependiendo del contexto de significación predominante. Es decir, que la lectura que se realice del contexto prevalente condicionara la lectura de la situación, el tipo de intervención que se considere y los instrumentos que se utilicen para afrontarlos.

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Instrumentos, herramientas y entrenamiento.

Al hablar de “herramientas” hacemos referencia a instrumentos multidimensionales diseñados para transformar sueños y utopías en “realidades”. Hablamos tanto de aquellos instrumentos necesarios para concretar metas y objetivos por medio de acciones sistematizadas, como de las herramientas imprescindibles para construir sistemas relacionales colaborativos o, aquellos otros medios necesarios para la

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construcción/deconstrucción/reconstrucción del tejido simbólico y de sentido que sustenta toda empresa colectiva. Estos “instrumentos” están alejados de los supuestos de la “tecnología” modernista (de las recetas y protocolos) ya que, los que estamos sugiriendo, suponen e implican el desarrollo de un “saber/hacer” reflexivo y una capacidad de lectura contextual por parte de quién intervenga en una situación.

El diseño de una “caja de herramientas” de estas características, contendrá instrumentos de diferentes niveles de complejidad y sofisticación, desde aquellos ligados a un “saber-hacer” específico u otros que requieren conocimientos del operador acerca de sí-mismo-en-acción y de sus habilidades hasta aquellos saberes acerca de las “condiciones de posibilidad” de cada herramienta que permita que su “uso” sea útil para lo que se espera.

Esta manera de entender los instrumentos y técnicas plantea un desafío importante ya que, desde esta perspectiva, ya no se trata de herramientas que puedan ser “aprendidas” a través de un “manual de uso”, sino que su transmisión y aprendizaje necesitan ser parte de un proceso dialógico en el que las prácticas sean intermediadas por meta-reflexiones y sistematizaciones complejas: una verdadera “capacitación-en-acción”.

Del “estratega” de la intervención al facilitador reflexivo.Los posicionamientos de los operadores sociales, profesionales y

facilitadores que acompañan proyectos (especialmente si estos pretenden la participación de los involucrados) no se construyen en base a “creencias teóricas” desligadas de las prácticas e instrumentos de que se dispongan. Este tipo de “posicionamientos” responden a un complejo proceso de (re)construcción de la identidad profesional y de una posición ética acerca a las relaciones de poder presentes en las prácticas de “ayuda” profesional.

Basado en este presupuesto es que sostenemos que prestar atención –solamente- a la “ideología” o a las “intenciones” de los actores sociales restringirá el foco a lo más visible y evidente, desconociendo la fuerza de

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las “teorías en acto” (Schön, 1983) que son las que guían las acciones. En los años 1980, Donald Schön, en The Reflective Practitioner (Schön, 1983), confrontó con el supuesto de que la “racionalidad técnica” era la base para la construcción del saber profesional. Esta “racionalidad” encarnaba el (fracasado) intento del paradigma positivista dominante por resolver el dilema entre el rigor y la relevancia con la que se encuentran los profesionales en sus prácticas cotidianas.

Las nociones de reflexión-en-acción y reflexión-en-la-acción fueron centrales en los trabajos de Donald Schön y llegaron a ser conocidas como “pensar con/en nuestros pies”; estos tipos de reflexión suponen el proceso de recuperación de nuestras experiencias, la conexión con nuestros sentimientos y la atención a nuestras teorías-en-uso, de modo que – de este proceso - puedan surgir nuevas comprensiones que aporten a nuestros actos coherencia y sintonía con el contexto.

Para poder describir estas complejas articulaciones entre situación, saberes, experiencias, valores, ética y visión de mundo, propusimos la noción de “artesanía de contextos” (Fuks, 2004).

Esta noción señalaba la importancia que tiene el modo como se diseñan los contextos, ya que serán los marcos contextuales los que darán fluidez, encaje con la situación y coherencia a las prácticas. Dentro de estos diseños contextuales es donde las prácticas construirán su sentido, encajarán con la “cultura local” y obtendrán legitimidad, al tiempo que serán vividas en sintonía con el tipo de relaciones que se organicen, todo lo cual contribuirá a su eficacia pragmática.

Realizaremos a continuación una descripción panorámica de las características más relevantes de estas dimensiones/contextos, destacando tanto su pertinencia como los desafíos con los que se enfrentan cada una de ellas.

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Dimensión reflexiva/simbólica

Los seres humanos transitamos nuestras vidas haciendo sentido sobre ellas; estamos en el mundo dando sentido a lo que sucede en él y, en simultáneo, no dejamos de preguntarnos por el sentido de nosotros mismos, por el sentido de nuestras vidas.

La producción de sentido, entonces, no es solo un aspecto central de la existencia sino que es, incluso, una condición de ella; cuando la existencia pierde sentido, la vida misma pierde su razón de ser. Necesitamos del sentido para ser capaces de vivir y el sentido es algo que p r o d u c i m o s a p a r t i r d e n u e s t r a s c o m p e t e n c i a s lingüístico/comunicacionales y nuestras capacidades para narrar historias.

Sin embargo, en la vida cotidiana, hay momentos en los que no todo lo que hacemos parece tener sentido, hacemos muchas cosas dejándonos llevar por las circunstancias, otras las hacemos forzados por el contexto y otras las seguimos haciendo, aunque ya hace tiempo que dejaron de tener sentido para nosotros. Cuando algo “no tiene sentido” nuestro hacer se vuelve mecánico, forzado y carente de pasión y energía y, esto, hace que la falta de entusiasmo se convierta en acciones poco comprometidas y poco creativas.

El “hacer sentido” a las cosas, es un complejo tejido de conexiones entre nuestra trayectoria de vida (y las experiencias que nos marcaron), nuestra visión del mundo, los sistemas de creencias, nuestros valores y nuestra manera de concebir el futuro (con sus sueños y utopías, pero

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también con sus fantasmas y temores) y todo eso sucede en la comunicación con los otros y consigo mismo.

Las cosas no tienen sentido por sí mismas, el “dar sentido” es algo que es propio de los seres humanos, algo que estos producen con su capacidad de preguntarse por el significado de las cosas y por su capacidad de narrarse historias. Todo sentido es – por lo tanto - siempre un sentido dado, una creación que los seres humanos realizamos gracias a nuestra capacidad de lenguaje.

Sin embargo, este proceso es algo que trasciende a la razón y a la forma en que construimos habitualmente nuestras ideas, ya que no es – solamente - una cuestión conceptual u cognitiva; la emergencia del “sentido de las cosas” es producto de los relatos que construimos (y que nos construyen) acerca de nuestra historia, nuestros sistemas de creencias, nuestras trayectorias de vida y nuestra manera de mirar el futuro.

En consecuencia, modificar el “sentido de las cosas” no es incorporar o producir nuevas teorías o argumentos ya que, una modificación de tal trascendencia, se produce luego de la fisura y/o ruptura de los antiguos

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“sentidos” y, esto, conduce a una profunda revisión de nuestra identidad y del mundo de relaciones en el que vivimos. Esta turbulencia se asemeja al tipo de procesos críticos en que los significados previos pierden su capacidad de hacer el mundo estable y seguro y, sin embargo, aún no se vislumbran nuevos “sentidos” que puedan aportar una visión renovada de la realidad.

A nivel subjetivo ese proceso con frecuencia va acompañado de sentimientos dolorosos (angustia, desorientación, inestabilidad) y, las primeras reacciones desatadas por esos sentimientos intentan el fortalecimiento de las creencias amenazadas y su protección de los cuestionamientos. A nivel colectivo, las reacciones defensivas ante esas turbulencias pueden desatar tanto respuestas fundamentalistas y fanatismos como promover visiones escépticas o desalentadoras; generando fuertes tendencias a las polarizaciones y rigideces de todo tipo.

En consecuencia, cuando se intenta acompañar esta dimensión de un proyecto es una tarea que requiere cuidado, paciencia y empatía ya que, todo intento por producir cambios que no respeten los tiempos internos del proceso, solo dará como resultado un cierre defensivo o una intelectualización inoperante.

Si bien el “sentido de las cosas” se construye en las conversaciones con nosotros mismos y con los otros, las intervenciones que tocan esta dimensión no pueden ser directas ni basadas en la racionalidad o lógica. Cuestionar el “sentido de las cosas” de alguien es cuestionar los basamentos de su vida; las confrontaciones directas y destructivas solo consiguen alimentar respuestas defensivas, lo cual es comprensible, ya que se defiende la coherencia en el modo de actuar y la razón de vivir.

En función de lo anterior, las intervenciones más productivas parecen ser aquellas que acompañan un proceso de transformación “desde dentro” y se valen de los recursos simbólicos y reflexivos colectivos: las formas respetuosas de intervenir o explorar la dimensión simbólica incluyen necesariamente el pasaje por momentos de conexión reflexiva.

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Las prácticas reflexivas posibilitan la revisión crítica de nuestras actitudes, creencias, valores y prácticas y permiten identificar aquellos aspectos que necesitan ser revisados, reformulados, mejorados o innovados. La reflexividad entendida como esa capacidad de verse a sí mismo con la distancia suficiente como para sentirse un “otro”, no es una competencia racional como el pensar; la reflexividad implica un compromiso de lo emocional y de lo corporal que asumen la forma de una interrogación acerca del sentido de uno mismo y de nuestro mundo de relaciones.

La utilización de metáforas, de analogías, de dinámicas en las que el cuerpo habla su lenguaje, los dibujos, collages, esculturas y recursos no-textuales condensan la potencia de la producción simbólica y el anclaje reflexivo: permiten hablar de lo que es difícil hablar, y transformar lo que no parece consciente. (Fuks, 2008).

Ejemplos de abordaje de esta dimensión podemos encontrarlo en la etapa utópica de L’Atelier del Avenir3 en la fase de “Sueño”, en el enfoque de Appreciative Inquiry4 o en los diálogos en la “pecera” (Duruz, 2014), las conversaciones transformadoras, la utilización de recursos gráficos en el Art of Hosting5, la construcción de “mapas simbólicos”, etc.

Dimensión afectivo/relacional

La dimensión relacional es un aspecto siempre presente en la vida social pero la racionalidad imperante en las instituciones, así como en los modelos dominantes de planificación, gestión y evaluación, la han considerado más como un obstáculo o un inconveniente que necesita ser controlado, que como un motor esencial de los procesos sociales.

__________3. http://www.mdsl-developpement-solidaire.com/doc/ateliers_avenir_mdsl.pdf4. https://appreciativeinquiry.champlain.edu/learn/appreciative-inquiry-introduction/5-d-cycle-appreciative-inquiry/5. http://www.artofhosting.org/es/

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En el campo de las ciencias sociales y en el de la salud, la distribución disciplinaria ha colocado el aspecto de “lo relacional” del lado de los psicólogos y (en menor medida) de antropólogos y trabajadores sociales. Esto ha quedado instalado a punto tal que, cuando (en las formaciones) se realizan dinámicas o juegos reflexivos es habitual escuchar que “estamoshaciendo cosas de psicólogos”. No obstante, a pesar del rechazo a reconocer la importancia de la vida emocional y relacional en la s

intervenciones sociales de los “modelos” oficiales, para los “trabajadores en terreno” (no profesionales) este aspecto de la vida cotidiana de un proyecto ocupa un lugar central. Estos “facilitadores locales” (voluntarios, líderes comunitarios o de redes) logran desarrollar, a partir de sus experiencias de vida, un saber intuitivo que les permiten manejar conflictos de modo creativo, impulsar la cooperación, abordar las tensiones relacionales sin hacer alianzas, etc. saberes que, para los profesionales formados “teóricamente” son difíciles de incorporar sin la inmersión en terreno. Tanto por desconocimiento como por cuestiones de poder, con frecuencia los profesionales que llegan al campo de trabajo desde “afuera” (la universidad, las instituciones del Estado, etc.) no solo tienden a desconocer estas competencias o saberes locales, sino que con frecuencia los descalifican.

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En aquellas excepciones en que los modelos de planificación pragmáticos y racionalistas incluyen este aspecto motor de la vida de los emprendimientos sociales, la mayor parte de las veces lo hacen tomando en consideración a la emocionalidad de “los otros”: la de los beneficiarios de programa, los líderes comunitarios, etc. y muy rara vez tienen los elementos como para poder incluirse a sí mismos en las problemáticas relacionales y emocionales que impregnan la relación ayudador/ayudado.

Por causa de esta ceguera, estas tramas relacionales se les vuelven invisibles y terminan impregnadas e impregnando los juegos de poder, las alianzas no explicitas, los conflictos de personalidades, etc. en lugar de asumir su lugar de motor central de los procesos colectivos.

Hay situaciones en que la forma en que se configura la relación pareciera ser un misterio, no comprendemos por qué no logramos entendernos bien y – a pesar de las buenas intenciones- los malos entendidos surgen a cada momento. Uno de los problemas con que nos encontramos es que no sabemos evaluar la calidad de esas conversaciones, no tenemos los medios para poder distinguir que aspectos en ella no funcionan bien o producen desencuentros y, en consecuencia, construimos explicaciones rebuscadas o culpabilizantes.

El secreto de la calidad de toda relación está en la calidad de las conversaciones que la configuran; si las conversaciones que se organizan son limitadas, defensivas, competitivas, la relación tendrá esas características también, lo que implica que, si cambiamos la forma de comunicarnos, mejorará también la relación que construyamos.

El lenguaje es uno de los aspectos centrales en la construcción de nuestras relaciones, es parte de la experiencia cotidiana que, como individuos, construimos nuestras relaciones a partir del lenguaje: tenemos conversaciones con otros y organizamos espacios conversacionales con ellos más o menos estables. Nuestras relaciones personales se sustentan – entonces - en la capacidad de lenguaje que, como sujetos, tengamos y esas competencias son producto de nuestras experiencias de vida; la cultura familiar de dónde venimos, por ejemplo, normaliza acerca de lo que

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puede ser hablado y de qué forma es posible hacerlo y aquello que debe ser silenciado o invisibilizado. Mientras nuestra vida se va desarrollando, otras culturas contribuyen a construir nuestro perfil comunicacional y dejan su marco de referencia y, en algunos casos, refuerzan la cultura familiar, mientras que en otros entran en conflicto.

Las culturas profesionales o técnicas juegan un papel importante en el tema que estamos tratando ya que muchas disciplinas socializan a los futuros profesionales entrenando la “distancia emocional” como un rasgo profesional muy valorado. Estos rasgos promovidos como ideales se vuelven parte de la “identidad profesional” de tal modo que cualquier transgresión a esos límites pasa a ser vivido como una pérdida de identidad, convirtiendo al transgresor en un paria, alguien que no tiene tribu propia ni territorio demarcado. Es necesario comprender la fuerza de estas regulaciones, ya que promueven modos de actuar no conscientes -que dejan de ser consideradas como decisiones que se toman entre varias alternativas- y se convierten en la “manera correcta de hacer las cosas”, es decir que, al ser naturalizadas no soportan el juicio crítico y limitan las opciones.

Tomando en cuenta que nuestras competencias -e incompetencias- en el dominio del lenguaje nos conducen a construir tanto como a destruir las relaciones que mantenemos con los demás, el interrogante que surge entonces es ¿porque este aspecto es tan poco cuidado en las formaciones y entrenamiento?

El papel del lenguaje en la construcción de mundos socialesHaremos acá un breve repaso de los aspectos en los que el lenguaje y

las competencias comunicacionales se evidencian como el basamento sobre el que se construyen las relaciones y lo que determina la calidad de las mismas.

El lenguaje genera compromisos. Los Antropólogos han explicado como el Homo Sapiens ganó su batalla con los otros “Homos” con quienes convivió durante mucho tiempo: fue porque el Sapiens desarrolló

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un modo de cooperar en la supervivencia y esa cooperación se la debemos al desarrollo de un lenguaje. (Harari, 2014) Es a través del lenguaje que conseguimos coordinar acciones con otros y, de esa manera, podemos lograr lo que posiblemente nos sería imposible de alcanzar aisladamente: el lenguaje es creado y crea la vida social.

El lenguaje nos permite acoplar mutuamente nuestras acciones, de la misma manera como nos permite acoplar nuestras vidas. Somos seres sociales, nuestra sociabilidad depende de nuestra capacidad de lenguaje, dado que dependemos de las promesas que otros nos hacen, de la misma manera en que otros dependen de nuestras promesas y todo ello condiciona nuestra forma de vida y el tipo de sociabilidad que desarrollamos.

El lenguaje genera posibilidades. Las posibilidades y alternativas a una situación no existen como algo independiente de nosotros mismos y las riquezas de nuestras relaciones. Las posibilidades impregnan las interpretaciones que producimos en nuestros intentos por comprender lo que acontece y, por lo tanto, son generadas en conversaciones con otros o con nosotros mismos. Ante una situación desconocida o en la que no sabemos qué hacer, lo que hacemos habitualmente es iniciar conversaciones que nos lleven a revisar el sentido que le estamos dando a lo que pasa, esas conversaciones pueden ser “con otros internalizados ¿“Que diría XXX ante esta situación? ¿Como lo explicaría?” o conversaciones que buscamos con aquellos que podrían aportarnos otra mirada y otras interpretaciones. De ese proceso surgirán las posibilidades, las distintas interpretaciones para la situación y – por lo tanto - los diferentes rumbos de acción. Las posibilidades remiten siempre al lenguaje y su capacidad de generar sentido para las cosas.

En suma, nuestro mundo de relaciones determina las posibilidades que podremos crear en cada situación y los grados de libertad que tendremos; las personas aisladas solo conocen una manera de hacer las cosas y no pueden abandonarla… no tienen opciones, alternativas ni posibilidades.

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Dimensión racional/pragmáticoEsta dimensión es la del “hacer”; la de centrar el foco en llegar a

concretar metas y objetivos y, esta característica de estar centrada en los resultados hace que esté fuertemente impregnada de racionalidad y de una perspectiva muy estructurada y poco flexible ante lo imprevisto. A pesar de confluir con las dos dimensiones anteriores en la construcción de un sistema dinámico y complejo, se diferencia de las otras en el modo en que analiza y planifica las intervenciones en el campo de los procesos colectivos. Su lógica de construcción del “problema” y de los pasos para su solución, frecuentemente invisibiliza la dimensión simbólica y tiende a considerar a las relaciones afectivas como obstáculos, o como aspectos de las estrategias para una mayor eficacia.

Los programas y proyectos que provienen de las agencias (gubernamentales, internacionales o no-gubernamentales) habitualmente están orientados por diagnósticos consensuados acerca de cuáles son las problemáticas relevantes y prioritarias. A partir de estos “diagnósticos” provenientes de centros globales o regionales (OPS, OMS, etc.) y, ya sea como parte de una amplia estrategia para evitar algún problema (preventivas) o para abordar un tema acuciante, estos puntos de partida

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condicionan todas las etapas posteriores6. Cuando se trata de las agencias de un gobierno democrático se las denominan “Políticas Públicas” (PP) y se las considera como la lógica racional, expresada en un esquema político-administrativo y social (Velásquez Gavilanes, 2009).

Son consideradas como el resultado de un intento de definir y dar estructura a los lineamientos para actuar, o no actuar, por parte de un gobierno. Esto es pensado como parte de acciones conjuntas con otros actores, tales como las de la sociedad civil, asociaciones privadas, grupos singulares (migrantes, discapacitados, mujeres, jóvenes, personas mayores, niños, indígenas, desempleados, etc.) que se encuentran interrelacionados en un territorio y en un momento histórico y que se consideran involucrados en la problematica.

Las áreas principales de análisis de las políticas públicas son:• La economía, la infraestructura y expansión de las vías generales de

comunicación, de las telecomunicaciones, del desarrollo social, de la salud y de la seguridad pública, entre otras.

• Los planes de desarrollos anuales, quinquenales, etc.

• Los presupuestos anuales de los estados y las administraciones autonómicas y municipales.

• La administración pública o sistema burocrático y sus planificaciones.

• Los tratados internacionales y las declaraciones de principios de los estados individuales o unidos en agrupaciones regionales: Naciones Unidas, América Latina, Unión Europea, etc., con énfasis en la cohesión social y la gobernabilidad para desarrollos integrales o totales.

En los Estados democráticos el proceso por el cual se definen las PP es un juego complejo en el que intervienen múltiples circunstancias y actores y, el producto final, con mucha frecuencia refleja mucho más el resultado de esas negociaciones que el objetivo original. El proceso por el cual una__________6. A diferencia de los “diagnósticos locales” producidos a partir de la detección de problemáticas por

parte de los propios miembros del colectivo.

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necesidad social7 se transformará en una Política Pública que se concretará en programas y proyectos no es un proceso ni simple ni lineal.

Las diferentes fases de ese proceso contemplan: la construcción del problema público; la definición de la agenda pública; el diseño del programa; la implementación y la evaluación. La manera en que se estructurará esto (tanto en el proceso de toma de decisiones como de su implementación) organizará también el modo en que los funcionarios públicos (encargados de la ejecución o monitoreo) se relacionarán con el “problema” y cuanto margen de movimiento tendrán para realizar modificaciones a lo planificado.

Las paradojas8 en las que se encuentran atrapados los funcionarios fuerzan “estrategias de supervivencia” de autoprotección en un medio hostil. Una estrategia frecuente del funcionario ante estas paradojas – con frecuencia - es la de ajustarse al “pie de la letra”, es decir seguir los lineamientos políticos y técnicos sin apartarse de ellos a fin de no ser considerados responsables por el fracaso de la implementación, lo que conlleva una extrema rigidez y la imposibilidad de ajustes en la implementación.

__________7. Las necesidades sociales pueden hacerse visibles a los poderes políticos, administrativos tanto por

la detección de las organizaciones de la sociedad civil (formales o informales) aunque también esas necesidades pueden haber sido detectadas por equipos técnicos y recuperadas por el poder políticos en función de necesidades de marketing e imagen política y condicionadas por el contexto (antes de elecciones, final de mandato, reacomodaciones internas de los equipos gobernantes, etc.).

8. No podemos entrar en detalle acerca de este aspecto central, pero baste decir que los funcionarios que están comprometidos con la misión institucional (y no aquellos que se refugian en la lógica burocrática de obedecer órdenes) están permanentemente sujetos a paradojas imposibles de resolver. Por ejemplo, un proyecto que se lanza para acallar la presión de la población ante un tema relevante, pero que afectaría los juegos políticos del territorio donde los decisores tienen sus alianzas. Se le pide al funcionario que el proyecto siga los lineamientos establecidos en las metas, pero se les retacea recursos para evitar el efecto en los aliados. Entonces si el proyecto no funciona ante la falta de apoyo o de recursos el funcionario es culpado, pero si el proyecto avanza y los costos políticos son importantes, el funcionario es culpabilizado. Con frecuencia encontramos funcionarios “quemados” por estos juegos que terminan refugiándose en un cinismo ácido o un escepticismo desolador.

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El desencuentro frecuente entre funcionarios y “trabajadores de terreno” puede tener su origen en estas “situaciones sin salida” y, el fracaso de los proyectos encuentra una causa de peso en estos dilemas, los “operadores locales” son los que tienen los elementos para poder hacer los ajustes en las distintas fases –gracias a su conocimiento del territorio - pero para los funcionarios estas modificaciones podría ponerlos en conflicto con los decisores y en una situación de extrema vulnerabilidad institucional al ser responsables por “perder el control” de la situación.

En consecuencia, el atenerse a lo “objetivo” (datos, números, etc.) a lo racional, a los resultados, metas y objetivos se encuentra concretado en la necesidad de “indicadores” que deberían poder medirse en términos factibles, esta forma de construir su relación con los “problemas” ofrece a decisores y funcionarios un sentimiento de estabilidad y una ilusión de control, aún a riesgo de vaciar el proyecto de sentido9.

En este marco, las Políticas Públicas descendentes deberán: 1) tener indicadores o valores cuantitativos, que reflejen los costos de operación (materiales, sueldos, consultoría, etc. reflejados en el presupuesto), así como extrema claridad en los impactos buscados, los éxitos y logros que se obtendrán; 2) una eficaz articulación de: a) la definición del problema; b) la producción y selección de opciones de solución del problema; c) la ejecución de lo programado con todas sus dificultades; d) el seguimiento y la evaluación de los resultados; 3) una clara coordinación entre el proceso de diseño de la PP y su implementación.__________9. Lo que explica lo amenazadora que puede ser la idea de proyectos ascendentes o participativos.

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Estas características fuerzan a que, estas, sean propuestas “descendentes”, ya que quienes realizan el “diagnóstico” de la situación y la conveniencia o necesidad de intervenir y luego “bajan” el programa; así, serán los equipos de expertos y operadores políticos quienes diseñen el programa de intervención en un marco en el que todos los aspectos deberán ser decididos a priori y desde “arriba”, dejando (en el mejor de los casos) a los actores locales la aplicación de lo decidido.

Como ejemplo de este modelo comentaremos una de las herramientas que más expresa este tipo de perspectiva. El Enfoque de Marco Lógico10 es una herramienta desarrollada en 1969 para la planificación de proyectos orientada por los objetivos. Actualmente, la gran mayoría de agencias internacionales de cooperación, entidades públicas y privadas, han adoptado un conjunto de herramientas de diseño y gestión de proyectos basadas en la metodología del Enfoque del Marco Lógico (EML). El EML permite identificar y planificar proyectos en función a los objetivos a alcanzar, donde se destaca la necesidad de la participación de los grupos de beneficiarios, impulsando la comunicación entre todas las partes interesadas. A nivel metodológico, el EML permite sistematizar y ordenar de forma sencilla y coherente el proceso que conduce desde la identificación de problemáticas concretas hasta la formulación de propuestas específicas para solucionarlas.

Dimensiones, integración y tensionesLa primacía de la racionalidad en todas las etapas del proceso y la

mirada centrada en los objetivos son las guías centrales de la dimensión racional/pragmática que, por esa lógica, se convierte en un complemento ineludible para las otras dimensiones que colocan su atención en otros aspectos de la complejidad. La estructura, organización y distancia que aporta una mirada orientada a la eficacia y eficiencia complementa y __________10. http://www.fao.org/wairdocs/x5405s/x5405s1g.htm

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suplementa aquellas otras miradas conectadas con afectos y relaciones, o con aquellas otras centradas en los interrogantes acerca del “sentido” (o falta de sentido) de las cosas.

En un diseño (ideal), que pretenda atender a las complejidades del proceso, las diferentes dimensiones se articularán enriqueciéndose mutuamente, ya sea a partir de relaciones de complementariedad, de la regulación de las tensiones intrínsecas y/o flexibilizando las rigideces de cada una de ellas. Cuando este tipo de articulación funciona, esto producirá dinámicas llenas de tensiones, superposiciones y sinergias que nutrirán la flexibilidad y adaptabilidad necesarias ante las cambiantes condiciones internas y externas. El “todo” se organizará, entonces, como un sistema complejo donde cada una de ellas puede funcionar como el contexto organizador para las otras, creando los marcos de contención y de amplificación necesarios para su evolución.

En ciertas circunstancias se hacen más visibles la importancia que tienen estos funcionamientos integrados en la producción de proyectos exitosos y sustentables. Un ejemplo de ello es el tipo de proyecto que surge por la confluencia de los “intereses de terreno” (dinámicas ascendentes) con la de los “intereses político-administrativos” (dinámicas descendentes). En estos escenarios, el marco de encuentro posible de esos intereses contrapuestos se sitúa en torno a la dimensión racional/pragmática debido a que esa es la lógica excluyente con la que funciona la administración del Estado y sus proyectos. A pesar de la predominancia de la racionalidad administrativa como marco para la planificación de las acciones, sin el aporte regulador de las otras dimensiones el proyecto se convertirá en algo formal, vacío de sentido y sin posibilidades de apropiación por parte de la población. Las otras dos dimensiones son quienes pueden aportar el anclaje con la cultura local, tanto como la necesaria conexión con las redes relacionales y los procesos de apropiación basados en el “sentido” asignado a las acciones. En ese marco, es que estas otras dimensiones complementarias se vuelven fundamentales tanto para el éxito como para la sustentabilidad de la propuesta y funcionan como soporte de toda la racionalidad de gestión pública.

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Los proyectos llamados “descendentes” son aquellos sostenidos en la racionalidad administrativa, la búsqueda de la eficiencia y eficacia alcanzar los objetivos. Mencionábamos como sus principales desafíos se centraban, por un lado, en la gestión de las tramas relacionales, sus conflictos y tensiones y, por otro, en la falta de compromiso y de apropiación por parte de los beneficiarios. Dentro la amplia gama de posibles diseños de planificación, podemos encontrar - en el otro extremo - a los proyectos “ascendentes” o “emergentes”, cuya principal característica es la de su intención expresa de ser participativos e incorporar a los involucrados en todas las etapas del proceso.

Los proyectos llamados “emergentes” o “ascendentes”, aquellos surgidos a partir de inquietudes y necesidades de las comunidades, presentan como característica distintiva que tienden a surgir y concretizarse, más fácilmente, en los momentos críticos de la vida de un territorio o en las tensiones y quiebres de los contextos socioeconómicos o socioculturales que los contienen.

Estos esfuerzos colectivos orientados a superar una situación insoportable o por alcanzar una utopía largamente soñada, emergen más fluidamente cuando las regulaciones y estabilidades del sistema burocrático, técnico y político son menos rígidas o no consiguen producir respuestas creíbles y la presión social se hace inmanejable.

Es posible suponer, en cierto sentido, que esas turbulencias son las circunstancias y momentos más fructíferos11 para el surgimiento de este tipo de proceso colectivo, Sin embargo, y como sucede en general en los procesos críticos, en esos intersticios no solo surgen las oportunidades sino que, simultáneamente aparecen los riesgos debido tanto a la poderosa irrupción del azar como a la presencia siempre riesgosa del descontrol.

En estos emprendimientos colectivos surgidos de la movilización de las personas involucradas, en los que los “actores/autores” de la población__________11. La Teoría de Crisis elaborada inicialmente por Edgar Morin (1976), permite comprender las

complejas interacciones que se producen en las crisis y como surgen las oportunidades.

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están en el centro del proceso, las dimensiones simbólica y relacional ocupan -particularmente al inicio del proceso- un lugar vital, ya que son las redes informales con su vitalidad y su capacidad de búsqueda de alternativas las que aportan las energías necesarias para emprender esa aventura. La energía y vitalidad que surgen de la vida emocional, de las relaciones, de los sueños y utopías son las impulsan los intensos intercambios, encuentros, la solidaridad y los aportes al bien común que hacen posible las complejas articulaciones necesarias para poner en marcha un proyecto de estas características. No obstante, esas mismas energías creativas, si no son adecuadamente encauzadas a través de un marco de racionalidad y pragmatismo que las contenga y oriente, se agotarán en un agitar de banderas, en corazones inflamados y en la decepción posterior al no poder concretar los objetivos.

Algunos posibles desafíos de los programas y proyectos relacionados con el consumo de sustancias.

Las problemáticas ligadas al consumo de sustancias, como la mayoría de las problemáticas complejas de salud pública, implica atravesar decisiones epistemológicas, éticas, políticas, estratégicas tanto como técnicas, respecto al tipo de enfoque que se adoptará. El Estado y los equipos profesionales, cuando se encuentran con estas problemáticas, se encuentran permanentemente confrontados con cuestiones claves que desafían los modos habituales de hacer las cosas.

Los objetivos y estrategias del programa serán definidos en qué nivel de la estructura?; Cuanto control, cuanta responsabilidad, cuanto protagonismo y cuanta presencia ofrecerán (aceptarán?) a los involucrados en la problemática?; Quienes, cuándo y cómo se evaluaran los resultados y que capacidad de corrección tendrán los participantes?; Que tipos de desafíos de considerarán prioritarios y cómo se responderá?; Que tipos y diseños de capacitación/entrenamiento se considerará imprescindible para los equipos de trabajo?; De que modos se pretende asegurar la

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sustentabilidad del proyecto?; Que destino tendrán los “productos” del proyecto?... entre otros.

El tipo de complejidad que proponen los proyectos de Salud Pública, cuando pretenden incluir la participación de los involucrados, es descrito por María Fátima Oliver-Sudbrack:

É preciso desenvolver no ambiente escolar um projeto pedagógico que abranja direitos, deveres e virtudes. Nesse projeto, as regras da vivência em grupo devem ser compartilhadas no exercício pleno da cidadania escolar, que prevê contratos de convivência entre os professores e os alunos, nas suas diferentes posições, papéis e competências. No modelo da educação para a saúde, o resgate da autoridade dos pais e dos professores constitui uma estratégia de prevenção do uso de drogas, pois a criança e o adolescente estarão mais preparados para resolver as diferentes situações com uma postura reflexiva e de busca de apoio junto aos adultos nos momentos em que sentirem necessidade. (Sudbrack, Conceição, & Costa, 2012, p. 235)

La transición desde perspectivas que consideraban a las temáticas del consumo de sustancias como producto de problemáticas exclusivamente individuales hasta llegar a considerarlas -tomando en cuenta toda su complejidad- como emergentes de procesos intersubjetivos construidos socialmente, supuso un cambio epistemológico que puso en cuestión los fundamentos con los que se han abordado estas problemáticas.

Este giro implicó considerar a las familias y las Instituciones de la sociedad como importante parte de la problemática y también de las soluciones. En consecuencia, un salto cualitativo que también afectó radicalmente el modo de construir el “perfil” de los operadores que trabajarán en el campo, en tanto supuso de dejar de considerar –a quien interviene- como un “curador de enfermedades” y comenzar a considerarlo como un “facilitador de procesos de cambio”. Esta transición ha sido crítica para los operadores ya que, estos cambios, implicaron la

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redefinición de la posición asumida ante la problemática a abordar tanto como ante su identidad profesional, los “juegos” institucionales y –especialmente- ante el “sentido” de la tarea.

Un aspecto de las estrategias por medio de las cuales los equipos mantienen vivo su compromiso y evitan el bourn-out, es la investigación de nuevas formas de trabajo y nuevas alternativas para el mejoramiento de su desempeño profesional. Sin embargo, estamos haciendo referencia a un tipo de cambio de perspectiva que -a diferencia de los cambios producidos mediante la introducción de nuevas estrategias terapéuticas, nuevas técnicas o nuevo abordajes- no soporta –simplemente- “sumar técnicas” sino que exige cambios en la manera de ver las cosas, comenzando por su propio rol y el sentido de la tarea.

La tan repetida fórmula de “cuidar al cuidador” –en este nuevo cuadro de situación- ya no supone los habituales modos de atender al stress de la tarea, sino que demanda diseños de actividades de capacitación en los que el operador pueda transitar el camino necesario para transformarse a sí mismo en su mejor herramienta. En este tipo de diseños, la facilitación sistémica de procesos colectivos podrá aportar su reconocida capacidad de acceder, alumbrar y potenciar la inteligencia colectiva y los saberes reflexivos.

A modo de cierre (provisorio)La propuesta del “modelo”12 que presentamos en este escrito dista

mucho de intentar proponer “una receta” o un esquema a seguir. Creemos que la intención se encuentra más cercana a un esbozo de modelización s i s témica que trata de descr ibir a lgunos aspectos de las complejasrelaciones que se tejen en las dinámicas sociales y en los procesos de cambio.

__________12. Hemos usado la palabra “modelo” en este escrito, alejándonos de la noción de “ideal” y –en

cambio- haciendo referencia a tradición sistémica de “modelizar” problemáticas complejas.

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En este trabajo, la propuesta se aproxima más - como metáfora - a un GPS13 que a un “mapa”14. Este GPS (idealmente) es algo que permitiría correlacionar el punto en el que se encuentre el “observador”15 con la lectura de indicadores que permitan construir “versiones” de las dinámicas sociales que sean “viables” y encajen tanto con los recursos disponibles como con los desafíos presentes en los territorios.

Para concluir con esta somera descripción de las características y funcionamiento del modelo de las “tres dimensiones”, quisiéramos hacer referencia a modos de trabajo que podrían tener algún tipo de coherencia con lo que estamos proponiendo, ya que no todos los “haceres” armonizan con las lógicas y dinámicas participativas.

La FSPC (Facilitación Sistémica de Procesos Colectivos) (Fuks et al, 2014) es una perspectiva que intenta abordar la complejidad de los procesos colectivos desde un enfoque apreciativo basado en la recuperación, validación y legitimación de los saberes y experiencias locales. Este tipo de enfoque intenta producir diseños de trabajo (capacitación/acción) que tomen en cuenta tanto las racionalidades pragmáticas como los tejidos relacionales y su riqueza afectiva, conectándolos con las vicisitudes de los complejos significados que impregnan las acciones.

Uno de los “nudos” más desafiantes y donde se evidencian las dificultades que surgen de este tipo de enfoque, se organiza debido a que los “saberes” no son abstracciones o tecnologías asépticas y no están desconectados de la forma en que se construyan los objetivos y metas de la propuesta, de los medios técnicos que se propongan y de los perfiles de los operadores (sean estos profesionales o de “terreno”).

__________13. Que organiza el mapeo a partir de la detección de la ubicación del observador.14. Que tiene prefijada una demarcación y pretende ser un reflejo de la “realidad” y es construido de

un modo tal que el lector del mapa queda por fuera de la “representación” del territorio.15. O quien pretende intervenir en o describir las complejidades de una situación.

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Un sistema excesivamente protocolizado (como en la mayoría de los programas “descendentes”) tiende a proponer un operador “obediente”, (que siga bajo cualquier circunstancia las indicaciones) lo cual acaba produciendo un escenario altamente paradojal: se pretende conectar con la población con quien se trabaja y con sus particularidades, pero se fuerza el seguimiento de caminos trazados previamente en la planificación y desestimando así la co-construcción del proceso.

Este panorama que describimos insinúa uno de los interrogantes centrales en este proceso: ¿qué tipo de formación podría dar cuenta de tanta complejidad?

ReferenciasBateson, G. (1998). Pasos hacia una Ecología de la Mente. Buenos Aires:

Lumen.Davies, B. & Harré R. (1990). “Positioning: The Discursive Production of

Selves”. Journal for the Theory of Social Behaviour, 20(1), 43-63.Duruz, L. (2014, novembro).  Les cercles de conversation : un processus de

délibération réflexive par résonance. 8es, Rencontres de l’Institut Renaudot de Santé Communautaire. Paris, 21/22 novembre.

Fuks, S. I. (2004). Craftsmanship of Contexts an as unfinished story of my connection with CMM. KCC. Human Systems, 15, 101-114

Fuks, S. I., & Vidal Rosas, E. (2008). “La Facilitación Sistémica de Procesos Colectivos”. Sistemas Familiares, 25(2), 21-34

Harari, Y. N. (2014) Sapiens. De animales a dioses: Una breve historia de la humanidad. Buenos Aires: Debate.

Morin, E. (1976). Pour une Crisiologie. Communications, 25, 149-163.

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Schön, D. A. (1983). The reflective practitioner: how professionals think in action. New York: Basic Books.

Sudbrack, M. F., Conceição, M. I. G., & Costa, L. F. (Eds.) (2012). Curso de Prevenção do uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas (5a ed). Brasília: Atual.

Velásquez Gavilanes R. (2009). Hacia una nueva definición del concepto política pública”. Desafíos, 20, 149-187.

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CAPÍTULO 1.2

Un antropólogo con sus drogasentrevista a Oriol Romaní

Mónica Franch y Regina Medeiros

A Oriol Romaní le sobran las presentaciones. Doctor (Ph.D) en Historia (Antropología Cultural) por la Universidad de Barcelona en 1982, y catedrático de Antropología Social en el Departamento de Antropología, Filosofía y Trabajo Social de la Universidad Rovira i Virgili (URV), en Tarragona, su nombre es internacionalmente reconocido gracias a su pionera labor en la antropología de las drogas en el Estado Español. Pero, como él mismo nos cuenta en la entrevista que aquí transcribimos, la suya no es una carrera estrictamente o, mejor dicho, únicamente académica. Oriol Romaní se ha destacado, también, por su participación en el movimiento de usuarios de cannabis, y por su contribución en las políticas de reducción de daños en ámbito local e internacional, sobretodo en América Latina. La historia del Grup IGIA, que recuperamos en esta entrevista, es testigo de la manera como la antropología de las drogas fue abriéndose camino, siempre a caballo entre las investigaciones “puras” y “aplicadas”.

Al margen de su aporte académico a los estudios sobre drogas, Oriol Romaní figura entre los precursores de las investigaciones sobre juventud en España y ha sido una figura clave en el campo de la antropología médica o de la salud realizada en Cataluña. Forma parte, junto a Josep

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Comelles y varios otros antropólogos, del grupo que creó el Máster Interuniversitario en Antropología Médica y Salud Global (URV-UB-CSIC). Es, además, miembro del Consejo Directivo del Máster Interuniversitario Juventud y Sociedad. También se le reconoce por su aporte metodológico, siendo uno de los pioneros en el uso de las historias de vida en la antropología realizada en el Estado Español. Su obra refleja esta diversidad temática con un considerable número de libros, capítulos y artículos publicados, entre los que destacamos: A tumba abierta. Autobiografia de un grifota1; Las drogas. Sueños y razones2; Jóvenes y riesgos ¿Unas relaciones ineludibles?3; Etnografía, metodologías cualitativas y investigación en salud: un debate abierto (coordinador) y Jóvenes, desigualdades y salud. Vulnerabilidad y políticas públicas (coordinador, con Lina Casadó4).

La idea de recuperar su trayectoria en el campo de las drogas en una entrevista es resultado de algunas felices coincidencias que han llevado al cruce de caminos entre los tres personajes de este relato. La colaboración entre Regina y Oriol tiene larga historia, remontándose a los tiempos en que Regina hizo sus estudios de doctorado, bajo la supervisión de Oriol, en la URV. Fue en esa época, igualmente, en la que las dos antropólogas se conocieron: Regina trabajaba en Sida Studi y estaba instalada con su familia en Barcelona, y Mónica se preparaba para viajar a Brasil, en lo que imaginaba sería una corta estancia realizando voluntariado en una organización no gubernamental de Recife. Cuenta la leyenda que los tres coincidieron en una cena en casa de Regina, en Barcelona, de la que guardan, cómo no, recuerdos distintos y no coincidentes. Regina volvería a Brasil al término de su tesis, reintegrándose a su puesto en la PUC-Minas y Mónica terminaría, entre idas y vueltas, sumándose al __________1. Publicada por Anagrama, Barcelona, con dos ediciones (1983 y 1986) y por Los libros de Itaca,

Madrid, 2015. Traducido al portugués con el título De peito aberto – Puxando fumo, levando a vida (São Paulo, ed. Brasiliense, 1985).

2. Barcelona: Editora Ariel, 2 ed., 1999 y 2004.3. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2010.4. Tarragona: Publicacions URV, Col.lecció Antropologia Mèdica, n. 13, 2013.

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cuadro docente de la Universidade Federal de Paraíba. El reencuentro presencial de los tres antropólogos ocurrió en septiembre de 2016, en la ocasión del II Congreso Internacional de Antropología de la AIBR (Antropólogos Iberoamericanos en Red), momento en el que la idea de hacer esta entrevista ganó forma.

El texto que presentamos aquí es la edición de una de las partes de la entrevista, que tuvo lugar el día 12 de diciembre de 2016, en el elegante despacho de Oriol Romaní, situado en la Avenida de la Gran Vía de Barcelona. Fue realizada por Mónica Franch, que disfrutaba de los últimos días de su año sabático5, siguiendo una guía de preguntas elaborada con Regina Medeiros. Otros aspectos también discutidos en la entrevista, relacionados a la institucionalización del campo de la Antropología Médica en la URV de Tarragona, serán objeto de posterior publicación.

La entrevistaQueríamos saber, en primer lugar, cómo la antropología y el tema drogas

aparecieron en tu trayectoria intelectual.A la antropología llegué cuando estudiaba en los años setenta. Inicié

la carrera de Filosofía y Letras, que así se llamaba entonces, en la Universidad de Barcelona. En aquel momento, en los años 73, 74, se puede decir que las drogas estaban en el ambiente. La cannabis formaba parte de la cultura de una cierta juventud, muchos universitarios, y los fumetas andábamos todos por ahí. Yo, además, estaba haciendo la práctica en el Centro de Estudios Etnológicos, en el Consejo Superior de Investigaciones Científicas, y allí tenían una colección de cronistas de Indias muy interesante. Entonces, como tesis de final de carrera, se me ocurrió juntar esas dos experiencias. Por un lado, hice una investigación__________5. Estancia post-doctoral en la Universitat Rovira i Virgili (URV/Tarragona), bajo supervisión de

Oriol Romaní, y con el apoyo financiero de Capes – Comissão de Aperfeiçoamento e Pesquisa de Ensino Superior.

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más vivencial de la cannabis, básicamente el hachís, en Barcelona, con los amigos y conocidos; ahí hice mis primeras historias de vida. Y luego, como contraste, hice algo completamente distinto: una visión etnohistórica de la coca en Perú, utilizando los fondos del Centro de Etnología Peninsular. O sea, fueron dos tipos de acercamiento al tema drogas, a partir de dos drogas y de dos contextos distintos6.

Después de terminar la tesina, no quería continuar trabajando con el mismo tema. Lo que pasa es que justo en aquel momento (yo hice la tesina en el 1978, por lo tanto, ya nos situamos en inicios de los ochenta) la cuestión de las drogas se fue complicando y, de un punto de vista sociológico y cultural, pasó a tener muchísimo interés. Además, conseguí una plaza de profesor ayudante – que era lo equivalente a las becas de tesis hoy en día –, así que decidí concentrarme en lo que ya había empezado. Después, claro, la cosa se fue ampliando.

Llama la atención el hecho de que empezaras haciendo trabajo de campo con una realidad muy próxima, lo que después se llamó antropología “at home”.

Hacer antropología “at home” (que nosotros, en aquel momento, no llamábamos así) fue interesante para mí principalmente por dos motivos. Por un lado, me permitió desarrollar los conceptos teóricos en un campo próximo, por otro lado, me permitía continuar algo que llevaba haciendo desde las comisiones de estudiantes en el bachillerato, que era el activismo. O sea, juntar la obligación con la devoción. Esto porque el tema drogas se fue convirtiendo en un problema social de primer orden, algo que no había previsto cuando empecé. Mi tesis de doctorado era un estudio de un grupo cultural, los hippies catalanes, por así decirlo, que nadie había estudiado todavía. Era el final del franquismo. Ya se había hecho estudios del movimiento obrero, de los estudiantes, de muchos grupos, pero no

__________6. Un resumen de la tesina se publicó posteriormente en la revista del Departamento de

Antropología de la UB por aquel entonces: Romaní, Oriol. Droga i “consensus social”, Comentaris d'antropologia cultural, nº 1: 20-40 Barcelona: D.A.C., 1979.

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había ninguno de contracultura, que era lo que a mí me interesaba7. Más tarde, cuando la cosa se fue complicando, me pareció que el tema drogas era interesante porque funcionaba como una lente para entender lo que estaba pasando en la sociedad. Las complicaciones que iba adquiriendo el asunto estaban relacionadas con las transformaciones sociales más generales. Es un enfoque que siempre me ha parecido muy útil: las drogas como el fenómeno social total de Marcel Mauss, que permite explicarte muchos aspectos de la sociedad e incluso pensar cosas a nivel teórico más general. Desde las drogas, por ejemplo, podemos discutir lo que antes llamábamos las relaciones entre la naturaleza y la cultura, que ahora ya no están tan claras. Hay aportaciones desde los estudios de las drogas que problematizan, precisamente, grandes temas de la antropología.

A mediados de los años ochenta, realizaste un estudio piloto en el Barrio Chino de Barcelona, con las poblaciones más marginales que usaban heroína, los “yonkis”.

¿Cómo fue el diseño de esa investigación?En esa época, a mediados de los ochenta, en Barcelona había muertos

debido a lo que entonces se llamaba sobredosis de heroína. Tanto el Ayuntamiento como la Generalitat – eso ocurrió en pleno contexto de institucionalización democrática – estaban preocupados con la situación y habían empezado a tomar algunas medidas. Por aquel entonces, nosotros ya teníamos una cierta experiencia, habíamos fundado el Grup IGIA en 1984. Nos llamaron desde el Ayuntamiento y nos dijeron: “Tenemos un problema. Tenemos tantos muertos al año. Desde la Generalitat se han puesto las medidas adecuadas. Hay tantas camas nuevas para el primer tratamiento, todo según los estándares internacionales y aquí no viene nadie. La gente continúa muriéndose en la calle. ¿Qué está pasando?” Querían que les diera una respuesta en un mes, pero cualquiera que

__________7. Romaní Oriol. Droga i subcultura. Una història cultural del “haix” a Barcelona, 1960-1980.

Barcelona, Edicions Universitat de Barcelona, 1983.

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conociera este mundo y la metodología antropológica sabría que eso era imposible. Teníamos que hacer un estudio antropológico previo.

¿Hasta aquel momento nunca habías trabajado con heroína? ¿Sólo con hachís?Bueno, de hecho fue el primer trabajo que hice con la heroína, fue mi

entrada, digamos que a fondo, en este mundo. Antes había hecho un pequeño trabajo sobre el tratamiento a jóvenes drogadictos en París, por encargo del IRES8, una proto ONG de Barcelona, en el que ya había entrado en contacto con jóvenes que no eran fumetas. También habíaescrito, en coautoría con Jaime Funes, “Dejar la heroína9”, que era una serie de historias de vida con personas que habían parado de usar heroína. Pero sin duda aquel proyecto fue mi primer trabajo en profundidad sobre el terreno. En vez de un mes, les propuse un estudio de un año: los primeros siete meses haciendo una etnografía básica, conociendo el terreno, y los últimos cinco meses para pensar un instrumento que pudiese llegar a la gente. El resultado fue “Las andanzas del tío Elvis”, que hicimos con Miguel Gallardo, uno de los dibujantes del Víbora10, gente del ambiente en el momento. Partiendo de las historias que había conocido en el terreno, creamos un personaje, el tío Elvis, que se iba enfrentando a diversas situaciones. Al final de la historia, incluíamos una serie de direcciones y teléfonos que podrían ser útiles en situaciones como una sobredosis o quedarse colgado en la calle. Fue un trabajo en el que propusimos por primera vez recomendaciones de reducción de daños para este colectivo específico.

Ya se hablaba de reducción de daño internacionalmente y aquí, en España?En otros países sí pero aquí casi no se hablaba. Después me enteré

__________8. El Instituto de Reinserción Social de Barcelona, que todavía existe transformado en Fundación:

www.fundacioires.org9. Funes, Jaime; Romaní, Oriol. Dejar la heroína. Madrid: Dirección General de Acción Social –

Cruz Roja Española, 1986.10. El Víbora fue una revista de historietas española que circuló entre los años 1979 y 2005 y que

hizo parte de lo que se denominó el boom del cómic adulto español. Aglutinó, en sus orígenes, artistas que provenían de las publicaciones underground de los año setenta.

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que, en la misma época, hubo una experiencia en Bilbao, con un dispositivo más permanente, que tardó lo suyo en materializarse en otros sitios. Este trabajo nuestro tuvo una secuela después, que fue cuando recomendamos que se abriera lo que entonces se llamaba un centro de baja exigencia. Este fue un elemento, junto con otros, que ayudó al surgimiento del SAPS – Servicio de Atención Psicológica y Social de la Cruz Roja Española, refugio que funcionaba, aproximadamente, de las 7 de la tarde a las 3 de la madrugada. Un sitio donde la gente que estaba en la calle podía ir, comer algo caliente, lavarse, hablar. En el SAPS también había servicios médicos, un asistente social, un abogado. El modelo lo sacamos de la literatura internacional, pero pensamos que aquí también podría funcionar. En aquel momento aprendí una cosa, que cuando haces investigación aplicada, haces política con la ¿ investigación. O sea, que además de hacer la investigación, hay que pensar estrategias para que las recomendaciones no se queden en el papel. Por ejemplo, en aquel momento había un psicólogo que estaba trabajando también con prostitución en el Barrio Chino y, a la hora de hacer nuestras recomendaciones, nos pusimos de acuerdo en algunas cuestiones. Lo que quiero decir es que hay que pensar en estrategias políticas para hacer viable lo que uno ha visto en la investigación a pesar de que quien decide, desde luego, es la instancia política.

¿Qué destino tuvo el SAPS?El SAPS fue una institución que se consolidó. Precisamente ahora

que ha cumplido los 25 años entrará a formar parte, como dispositivo de reducción de daños, de un centro de atención y de seguimiento para el tratamiento de drogas. La última directora del SAPS durante los últimos ocho años, más o menos, ha sido Olga Díaz, una trabajadora social y antropóloga, que fue una alumna mía, una discípula de la URV en Tarragona. Y el primer director fue Miguel de Andrés, un médico que en seguida entró en el Grup IGIA, y que había hecho su tesis sobre unos dispositivos de reducción de daños en Ginebra.

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Muy bien. Pues vamos a hablar un poco del Grup IGIA. ¿Cuándo surge y con qué intención?

El Grup IGIA se formó a mediados de los ochenta. La conferencia inaugural la hicimos en octubre del 1984, con el entonces Fiscal Anti-Drogas Jiménez Villarejo, en Els Quatre Gats, un bar modernista de Barcelona. A lo largo de los años, se fueron juntando al grupo médicos, psicólogos, trabajadores sociales, algún jurista y algún sociólogo o antropólogo como yo. Al principio debíamos ser 15 o 20, en épocas álgidas llegamos a ser 60 socios, y luego fuimos disminuyendo hasta el 2012, cuando decidimos cerrarlo, aunque algunas investigaciones y programas finalizaron en 2014. En su origen, IGIA fue el fruto de encuentros de gente con las mismas preocupaciones, con las mismas críticas a lo que se venía haciendo en el tema drogas. Lo más interesante era que unos éramos más de la academia y otros venían de la asistencia directa. Llegó un momento que en IGIA se planteó convertirse en una empresa de servicios. Algunas personas salieron del grupo y formaron Àmbit Prevenció11, que llegó a ser una empresa muy importante del tercer sector. La mayoría de nosotros, sin embargo, teníamos una visión más crítica acerca de este cambio, no queríamos caminar en esa dirección. Es lo que, a grande rasgos, explica Nikolas Rose, al hablar de las políticas del neoliberalismo y de las nuevas formas de gestionar las crisis en él. Rose viene a decir que esas crisis convierten a los críticos en prestadores de servicios y, desde ese nuevo lugar, te sometes a una serie de reglas y condiciones que, teóricamente, no nos afectan tanto en la academia (otra cosa es que ahí también haya gente que se deja comprar...). Claro que también nosotros dependemos de subvenciones para hacer proyectos, pero podemos mantener nuestra visión crítica de una forma más libre. A la larga, por unas cosas y otras, no supimos o no pudimos hacer la transformación de mantenernos como asociación independiente, pero profesionalizarnos como entidad.__________11. La Fundació Àmbit Prevenció fue fundada en 1993. Trabaja junto a poblaciones en riesgo de

exclusión social y adopta la perspectiva de reducción de daños en todas sus acciones. http://fambitprevencio.org/

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¿Qué formato teníais? ¿ Era un grupo? ¿Qué era?

El formato era de grupo, con una junta directiva. Trabajábamos siempre por proyectos12. El grupo se dividía para participar en las reuniones y en los proyectos.

¿Proyectos de investigación?De investigación o de investigación con una parte de intervención.

Por ejemplo, uno de los últimos proyectos fue en relación a adolescentes, emigrantes y alcohol. Hacíamos una investigación, siempre de tipo etnográfico, y luego de ahí sacábamos algún tipo de producto, un folleto para trabajar con los padres, con los profesionales, o algo igualmente práctico.

También hacíamos evaluaciones de programas que se estaban desarrollando en el SAPS o en otros servicios. A parte de los proyectos, periódicamente hacíamos sesiones de discusión en torno a temas distintos. La gente aportaba conocimiento teórico, conocimiento bibliográfico, conocimiento de investigación y de la práctica clínica. Juntar experiencias distintas estaba muy bien, y nos permitió ciertas intervenciones indirectas. Recuerdo que a finales de los ochenta, en Nou Barris13, explotó el problema de la heroína. En las asociaciones de vecinos se creó una comisión de drogas y, gracias a las discusiones que realizamos allí, pudimos inf luir para que los vecinos acabaran pidiendo un centro de atención de drogas allí mismo. En general, la gente no quiere ese tipo de centro en sus barrios, no quiere saber nada del problema, hay una reacción social en contra. Pero en aquel momento, los__________12. Para más informaciones sobre el Grup IGIA, ver: Romaní, Oriol. La experiencia del Grup Igia:

Etnografía, educación para la salud, comunicación (1984-2014). In: Josep M. Comelles, /Enrique Perdiguero-Gil, (coords.). Educación, comunicación y salud. Perspectivas desde las Ciencias Humanas y Sociales. Tarragona: Publicaciones URV, 2017, pp. 139-158.

13. Distrito de Barcelona, situado en el extremo norte de la ciudad. Conocido, sobre todo en las décadas de ochenta y noventa, por sus problemas sociales pero también por la existencia de un activo movimiento de vecinos y por su efervescencia cultural.

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vecinos entendieron que el sitio más adecuado para que hubiera el centro era donde estaba el problema. En el barrio.

La primera directora de ese centro durante muchos años fue Núria Magrí, una médico de IGIA. De hecho, a finales de los noventa, de los diez directores o directoras de los centros de atención y tratamiento en Barcelona, seis o siete eran de IGIA. Eso se notaba en un cambio de enfoque en los programas que estaban aplicando. De alguna manera, IGIA forma parte de la influencia en lo que se llamó el modelo Barcelona de intervención en el campo de las drogas. Planes de drogas que bastante pronto se pusieron en sintonía con lo que sería la reducción de daños. Aunque al principio había esa visión más rígida, que consideraba la droga como un mal moral, y después como una dolencia psico-física, en seguida se desarrolló una línea de trabajos epidemiológicos y, juntando con la experiencia más etnográfica que IGIA traía, se pudo ir orientando hacia un plan de drogas bastante sensato.

Entonces se pudo conseguir un nivel influencia local.Bastante notable, sí

¿Y fuera del nivel local?Al nivel de Cataluña, yo creo que también. A nivel estatal, hubo una

época en que nos llamaban de muchos sitios de España para hacer charlas, incluso hicimos investigaciones en Madrid, sobretodo a mediados de los noventa, que es cuando se empezó a desarrollar la política de reducción de daños a nivel nacional. Porque en España, por problemas puramente políticos, las políticas de reducción de daños fueron bastante tardías con respecto a las necesidades que había. Curiosamente, datan de mediados de los noventa, casi bajo el gobierno del PP14. ¿Por qué no las__________14. El Partido Popular (PP), antigua Alianza Popular, es el principal partido de derecha en el Estado

Español. Desde la transición democrática, ha alternado gobierno con el Partido Socialista Obrero Español (PSOE).

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iniciaron los socialistas? Yo creo que ahí pasó un poco lo que se puede observar con la reconversión industrial o el servicio militar obligatorio. ¿Quién hizo la reconversión industrial? Los socialistas, porque si lo intentan en aquel momento los de derecha, se habría quemado España. Con los socialistas, quemó una parte de España pero nos hicieron tragar la reconversión industrial. ¿Qué pasó con la supresión del servicio militar obligatorio? Lo quitó el PP porque si lo intenta hacer el PSOE, los otros le hunden el país. En el tema de la reducción de daños, en las primeras medidas que se intentaron implementar, la derecha armó un escándalo. Pero más tarde, sobretodo cuando vino el Sida, vieron que algo había que hacer. Como eran ellos los que estaban en el poder, ya no les pareció tan malo. Es una perversión, por así decirlo, del bipartidismo.

Has hablado del Sida y justamente te quería preguntar, ya que tú tenías todo este contacto de campo con el mundo de la heroína, cómo se vivió la irrupción del Sida aquí.

El Sida afectó varios espacios pero yo me acuerdo, básicamente, de dos: el del trabajo de campo, cuando vas viendo que la gente empieza a estar mal

y se oye hablar de una epidemia; y en el ámbito de los amigos y conocidos. Como fue una cosa transversal, no sólo ligada al tema de la heroína sino que también tenía mucho que ver con el mundo de las relaciones homosexuales, no sólo los “yonkis”, sino también los amigos que estaban en ese otro mundo fueron los primeros a tener problemas. Nuestro sentimiento de base, después de tantos años no sé si lo recordaré bien, fue una cierta sensación de desconcierto, y luego de abatimiento. Posteriormente, por suerte, el desconcierto se reorientó hacia un tipo de propuestas mas pragmáticas. Creo que, en ese sentido, se puede aplicar aquello de que “no hay mal que por bien no venga”. Estoy convencido de que la aparición del Sida sirvió para desarrollar todas las políticas de reducción de daños de manera más intensa y sistemática. Siempre hubo un problema, sin embargo, en todo este ámbito, porque no fueron políticas llevadas a cabo directamente por el Estado. Se hicieron a

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través de ONG, o sea, que había la posibilidad de lavarse las manos si las cosas no salían bien: “la culpa es de este grupo que hemos contratado…” A la larga, este tipo de acción intermediada siempre por las ONG ha servido para no desarrollar un sector profesional público, sino para mantener siempre profesionales marginales para sectores marginales. En todos los otros aspectos relacionados con las políticas de drogas se ha desarrollado un sector profesional, pero en todo lo que tiene que ver con reducción de daños, éste ha sido mucho menor. Han sido profesionales más sujetos a contrato temporales, que hoy son comunes a todos, pero que hace 20 años no lo eran.

El Grup IGIA fue una propuesta innovadora y tiene una historia interesante que incluía investigadores latinoamericanos y la realización de las CLAT – Conferencias Latinas de Reducción de Daños en Drogas. ¿Nos puedes contar algo de esa historia?

A mediados de los noventa, ganamos un proyecto europeo de formación de formadores de reducción de daños en el Cono Sur de Latinoamérica. Durante varios meses, hicimos una formación por donde pasó mucha gente que influyó posteriormente en la renovación de las políticas en sus países, entre ellos profesionales de Chile, Uruguay y de Argentina, y menos de Paraguay. Este fue el primer paso. Luego se hizo un programa de visitas a centros de reducción de daños por toda Europa con la gente de Latinoamérica que formó parte de esta formación. Fue espectacular, porque ponías en contacto personas con experiencias completamente diferentes.

A partir de estos contactos, se abrieron las Conferencias Latinas de Reducción de Daños en Drogas (CLAT). Se hicieron cinco a lo largo de diez años, una cada dos años. Eran latinas porque de Europa venía básicamente gente de España, de Portugal, de Italia, Francia, Suiza, minoritariamente algunos holandeses, alemanes también, además de los compañeros de Latinoamérica. En las últimas, también pasaron a participar países del Norte de África y del Este Europeo. Las CLAT eran

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realmente un núcleo de irradiación de estos planteamientos. Todas las conferencias reunían de setecientas a mil personas de estas zonas, con representaciones institucionales dependiendo de los casos. Además, siempre intentamos cuidar las presentaciones de teóricos sólidos, como Robert Castel, Loïc Wacquant, por ejemplo.

Hay que señalar que en el origen de la CLAT estaba también una cierta necesidad de diferenciarse del IHRA15, una organización de origen y carácter anglosajón muy “del Norte”, tanto por la adaptación de los problemas de la reducción de daños a los contextos latinos, más “del Sur”, como por la orientación un tanto liberal que nos parecía que predominaba allí, en contraste con la orientación más comunitaria, de vocación pública, que pretendíamos difundir con la CLAT.

La primera Conferencia se realizó en Barcelona, la segunda en Perpiñán, la tercera en L’Hospitalet de Llobregat, la cuarta en Milán y la quinta en Oporto. Nos quedamos en el momento de saltar a Latinoamérica, porque después de Oporto, que fue en 2009, había la intención de que la CLAT la asumieran los brasileños, en 2011. Eso no llegó a pasar, imagino que en parte por las dificultades de organizar un evento de ese calibre, pero también porque aquí en Europa estábamos en plena crisis y todo se puso más difícil.

Agregar a los latinoamericanos desde Europa era, como mínimo, osado. Siendo un campo tan complicado como el de las drogas, frecuentemente se está a merced de las presiones y de los juegos políticos, algo que has mencionado anteriormente en el plano nacional. Pero en la práctica, en el cotidiano del Grup IGIA, ¿cómo sustentar una idea tan atrevida? ¿Qué ajustes o encajes son necesarios, entre condiciones de realización e ideales? ¿Qué pasó, a fin de cuentas, con el proyecto?

Nosotros, por un lado, morimos de éxito, en el sentido de que la reducción de daños pasó a ser patrimonio común, base de políticas oficiales.__________15. International Harm Reduction Association, organización internacional de promoción de la

reducción de daños: http://www.worldcoalition.org/International-Harm-Reduction-Association- IHRA.html

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De hecho, a mí me habría gustado continuar con IGIA para la fase siguiente, enfocando cambios de políticas más macro, no sólo socio-sanitarias, sino culturales. Yo creo que IGIA jugó un importante papel en la puesta en marcha de políticas de reducción de daños, con una capacidad de influencia en Europa del Sur y Latinoamérica. Por otro lado, no conseguimos sobrevivir, y en parte tampoco quisimos hacerlo a cualquier precio. Desde el principio, en la administración nos llamaron los Pepitos Grillos, aquella incómoda voz disonante. O sea, que si quieres tener una postura crítica, o eres capaz de auto-financiarte o llega cierto momento que no te dan más bola. Y, claro, cuando llegó la crisis, esto les vino muy bien. Pasaron a priorizar aquellos grupos que hacían intervención directa.

La Generalitat y el Ayuntamiento aún nos fueron apoyando, no el Estado central porque el PP estaba en el poder de nuevo. Uno de nuestros últimos proyectos fue con la gente que se pincha y la relación de esta práctica con la hepatitis C. Hicimos una investigación durante seis meses, siguiendo a la gente y conociendo sus prácticas. A partir de esa investigación, sacaron unos folletos con recomendaciones para usuarios y para profesionales. Otro de los últimos proyectos fue el que mencioné antes, sobre uso de alcohol en la adolescencia entre los emigrantes, básicamente latinos. En ese programa, entrevistamos a los adolescentes y a las familias. Lo que nos interesaba saber era lo que pasaba entre las familias antes de que pidieran ayuda. Este espacio, el de las prácticas familiares y/o comunitarias, que siempre quedaba escondido, era nuestra especialidad. Allí era donde IGIA aportaba un conocimiento sistemático a través de la mirada antropológica y con la metodología etnográfica. ¿Cómo se lo montaba la gente en este espacio que llamaríamos de automedicación, de autogestión del malestar, antes de llegar a las instituciones y de buscar ayuda profesional? A partir de la investigación, se hizo unos folletos tanto para profesionales como para familiares, para transmitir este conocimiento para que la gente lo pudiera utilizar. Como veis, eran investigaciones concretas, que acabaron influyendo en intervenciones prácticas, pero no suponían el mantenimiento de los

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servicios día a día, que es en realidad lo que acabó llevándose el dinero en la época de la crisis. Y si encima les metíamos el dedo en el ojo, en el sentido de que manteníamos nuestra visión más crítica, pues no lo teníamos nada fácil.

Volviendo al tema de las redes con América Latina, a finales del 2012 inauguramos el grupo IGIA-LAT (Latinoamérica), en Santiago de Chile, con la intención de empezar a funcionar básicamente con los uruguayos y los chilenos, y a partir de ahí llegar a otros países de la región. Lo que pasa es que, al margen de la web y de algunos proyectos, es una propuesta que cuesta desarrollar por como están las condiciones, sobretodo en Chile, donde el neoliberalismo está en alza total. Pero, como mínimo, se mantiene la red, se puede tener acceso a las publicaciones, que también son un legado de todo lo que hicimos que vale la pena.

IGIA funcionó también como un centro de información y de formación. Alumnos de antropología deben haber pasado por ahí…

Sí, mucha gente, alumnos de antropología, y de enfermería, trabajo social o psicología, en sus prácticas. Cuando hicimos las primeras formaciones en reducción de daños, vino la gente que después fundó el Energy Control16, que luego se ha convertido en una potencia en este campo. Es una asociación que trabaja con los jóvenes en el tema de drogas, dentro del enfoque de reducción de daños o de gestión de placeres y riesgos, como lo llaman ahora. El pilar básico de IGIA fue la for mación, el otro quepodríamos llamar de “agitación y propaganda”, en verdad, influencia política. Y, claro, la investigación aplicada.

__________16. Proyecto de reducción de riesgos de la ABD – Asociación de Bienestar y Desarrollo. Más

informaciones en https://energycontrol.org/

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Otro aspecto de tu trayectoria que nos parece muy interesante es el activismo en relación al cannabis. Nos interesa porque tanto se refiere a tu forma de hacer antropología de las drogas como también es un retrato de cómo es posible hacer avanzar el tema drogas a partir de iniciativas innovadoras y creativas. ¿Podrías hablarnos un poco sobre esto?

A principios de los noventa, yo me junté a la recién creada ARSEC - Asociación Ramón Santos de Estudios del Cannabis, que fue, de hecho, la primera asociación de usuarios de cannabis que hubo en España. En aquellos tiempos, para legalizar un colectivo de ese tipo no dejaban poner el nombre de usuarios y por eso se llamó estudios del cannabis, pero estaba subentendido que era una asociación de usuarios. Se le puso el nombre Ramón Santos en homenaje a un abogado que se había dedicado a defender a consumidores de drogas y que acababa de morir. Fue un proceso muy interesante porque fue la primera experiencia de hacer una plantación, un cultivo compartido de cannabis, comunicarlo al fiscal-jefe de Cataluña y esperar a ver qué pasaba. Y lo que pasó fue un guardia civil que arrasó con la plantación. A raíz de esto, se hizo un juicio, en el que los dirigentes de la ARSEC fueron absueltos. Finalmente, el fiscal apeló al Tribunal Supremo y se les condenó a pagar una multa por “peligro abstracto”, que es una figura legal un poco rara. Aún y así, fue un paso importante porque, a partir de ahí, se repitió la experiencia en el País Vasco y ellos sí que lograron la cosecha. En aquellos años, básicamente desde mediados de los noventa hasta hace poco, hubo la posibilidad de desarrollar un activismo cannábico que fue muy potente. Ahora ese mundo está divido porque está el negocio puro y duro por el medio.

¿Cuál es la situación legal en España?

Hasta las ultimas sentencias del Tribunal Supremo había un reconocimiento de facto de los clubes sociales de cannabis: se reconocía el cultivo compartido para uso personal y había tolerancia social y jurídica. Para quien no lo sabe, en España el uso personal de cualquier droga nunca ha estado penalizado, incluso en época de Franco. Esto siempre te

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da una ventaja. A partir de los noventa, empezó un movimiento de usuarios, fueron cuajando las asociaciones, que luego devinieron clubes y, aprovechando estos resquicios legales, fue surgiendo un movimiento potente de clubes. Lo que pasa es que, como es lo único que había, ha empezado a entrar en los clubes el capital internacional, empresas de semillas holandesas, básicamente, y de otros orígenes más dudosos. Actualmente, en España hay clubes de ocho mil personas, que son, en realidad, empresas disfrazadas de clubes. Por eso la gente del movimiento está muy interesada en una regulación de los clubes para delimitar claramente lo que es una empresa y lo que es un club social de cannabis. Últimamente ha habido unas sentencias del Tribunal Supremo que, por un lado, han cerrado la puerta a la tolerancia, pero por otro lado han puesto sobre la mesa la necesidad de cambiar la ley. Son sentencias que hacen una interpretación restrictiva de la ley existente pero al mismo tiempo reconocen la existencia de una red de asociados y demandan que la ley esté adecuada a esta realidad social.

Para terminar en este tema, querría hablaros de un grupo que se formó hace un par de años en España, el Grupo de Estudio de Políticas del Cannabis (GEPCA) juntando el sector más militante del movimiento del cannabis y la gente preocupada con la intervención en drogas, desde la perspectiva de la reducción de daños. En este grupo hay gente próxima a la FAD – Fundación de Ayuda a la Drogadicción, como Eusebio Mejías; está Domingo Comas, que es el presidente de la Fundación Atenea; Josep Rovira, que fue el fundador de Energy Control; hay la gente de Enlace, que es una federación de personas que trabajan con drogas en Andalucía; de ICEERS, que serían una nueva generación con alternativas políticas a las drogas, muy centradas en la psicodelia; y también estoy yo, como representando la línea del Grup IGIA. La propuesta de este grupo es muy sensata. Se trata de desarrollar, en el campo del cannabis, un primer modelo de regulación con el criterio de salud pública y de derechos humanos. Este modelo tiene que ser viable para que sea posible presentarlo en el parlamento y

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que convenza a un amplio espectro, para hacerlo factible de manera más o menos inmediata. Estamos a punto de editar los materiales que hemos terminado, y veremos si tenemos capacidad de influenciar17. Entendemos que el cannabis es la primera droga que hay que legalizar, pero nuestra perspectiva es que se empiece a pensar todas las demás. Esta ruta ya la planteábamos en el libro “Repensar las drogas18”, publicado en 1989, y que funcionaba en IGIA como nuestra declaración de principios. En aquel momento, ya decíamos que la legalización de todas las drogas era imprescindible, entre otras cosas, para posibilitar la intervención en los casos en los que hay realmente que intervenir socialmente. Un campo regularizado te permite intervenir mejor ante necesidades reales que el campo salvaje del prohibicionismo, que es lo que hay ahora.

Latinoamérica es una región inmensa y Brasil tal vez no sea el país que más conoces, pero nos gustaría oírte. ¿Qué podrías decirnos, como últimas palabras, sobre las políticas y programas de drogas en Brasil?

Yo Brasil lo conozco desde año 2000. En seguida me di cuenta de que allí había experiencias de reducción de daños interesantísimas en Bahía, en Porto Alegre, Belo Horizonte, cosas francamente interesantes, experiencias bien continuadas en el tiempo. Por otro lado, es evidente que si en algún lugar habría que empezar legalizando las drogas sería en Brasi l y en México, por la imbricación de la violencia social con ese tema. Estos dos países son los dos casos contemporáneos más clamorosos en ese sentido. Se está produciendo un daño tan terrible con esta situación que legalizar y regularizar las drogas debería ser, en Brasil, una emergencia nacional.

Barcelona, Belo Horizonte, João Pessoa, 31 de agosto de 2017__________17. En estos momentos, ya está publicada la propuesta, que se puede ver en: https://gepca.es/

González, Carlos; Funes, Jaume; González, Sergi; Mayol, Inma; Romaní, Oriol. Repensar las d r o g a s . B a r c e l o n a : G r u p I G I A , 1 9 8 9 . D i s p o n i b l e e n : http://hemerotecadrogues.cat/docs/repensar_las_drogas.pdf

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CAPÍTULO 1.3

Violência e Juvenicídio, encarceramento:

das políticas de segurança à defesa dos direitos humanos e do direito à vida

Marisa Feffermann

Introdução

As transformações da estrutura social e das relações sociais, econômicas e culturais que ocorrem nos grandes centros urbanos têm implicações na mudança do perfil epidemiológico brasileiro assim como nos efeitos sobre a produção da violência, e causam intensa influência na morbimortalidade das populações, pelo número de mortes, em especial, de adolescentes e jovens negros pertencentes às classes subalternas.

Em 1996, a 49ª Assembleia Mundial da Saúde declara a violência como importante problema de saúde pública e convoca a OMS para desenvolver uma tipologia da violência que caracterizasse “os diferentes tipos de violência e os elos que os conectariam” (WHO, 1996). Nessa perspectiva, a saúde pública parte do princípio da necessidade da compreensão da gênese e das formas de manifestação da violência e especificamente dos comportamentos violentos para refletir sobre as possibilidades de preveni-los, buscando, desta forma, compreender os possíveis fatores que permitem a emergência de ocorrências desse tipo de causas externas. Algumas hipóteses foram produzidas, desde a questão de comportamentos geradores de risco, o consumo abusivo de drogas lícitas e ilícitas e o envolvimento com o comércio ilegal de drogas

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têm sido apontados como os principais fatores de risco para a utilização de armas de fogo e, consequentemente, responsáveis por homicídios. Falbo e col (2001) e Gawryszewski (2002) demonstram que o registro de antecedentes policiais pode, igualmente, ser apontado como fator de risco, tanto para a morte precoce quanto para a ocorrência de deficiências físicas em jovens no começo da idade produtiva.

A mortalidade representa a violência no grau extremo e é uma das formas mais utilizadas pelo campo da saúde para identificar a sua magnitude. Bobadilla J. L. et al. (1995) reafirmam a mortalidade por homicídio como resultante de complexo processo de determinação, no qual atua uma série de fatores sociais, econômicos, culturais, familiares e psicológicos.

O contingente de jovens existentes na América Latina vivendo em situação de vulnerabilidade, aliada às turbulentas condições socioeconômicas de muitos países dessa região provoca grande tensão entre os jovens que agrava diretamente os processos de integração social e, em algumas situações, fomenta o aumento da violência e da criminalidade. Esta ordem dominante tem ampliado condições de precariedade e de vulnerabilidade dos jovens, a partir de perspectivas classistas, racistas, homofóbicas e de ordem proibicionista, que com o pretexto de combater o crime organizado, têm funcionado como estratégia de limitação dos espaços sociais de liberdade.

Nesse contexto, pesquisadores da América Latina (Valenzuela, 2015) têm buscado compreender o processo que implica em condições precarizadas e persistentes que têm custado a vida de centenas de milhares de jovens não só na América como, também, na Europa, com base no conceito de Juvenicídio.

O conceito de Juvenicídio amplia a ideia da morte real ou do simples registro da morte de jovens para um complexo processo de criminalização dos jovens, construída a partir do campo político e das indústrias culturais que estereotipam e estigmatizam as condutas e estilos juvenis, criando predisposições que desqualificam o mundo juvenil e os identifica como

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violentos, perigosos e criminosos. A criminalização dos jovens reforça o preconceito, estereótipo e estigma inscritos em processos estruturantes de racialização que constituem as condições de possibilidade de que produzam relações de produção e de reprodução das desigualdades sociais.

No Brasil, o tema do Juvenicídio está intimamente relacionado com o que podemos denominar como genocídio da Juventude Negra. O fenômeno do genocídio da juventude tem como fonte um conjunto de fatores que vão desde a explícita segregação social ao racismo velado. São condições que inferiorizam o negro, submetendo-os, por exemplo, às piores condições empregatícias e aos piores salários. O principal propulsor da construção desses estigmas, produzidos e reforçados pelos meios de comunicação, está alicerçado no processo histórico das discriminações e racismo no Brasil. Os indícios desses estigmas se expressam no número de mortes de jovens negros, na violência legitimada do Estado, nas chacinas e no encarceramento em massa, que tira de circulação inúmeros jovens, preferencialmente negros.

1. O Juvenicídio no Brasil – genocídio da juventude negraNo Brasil, o grupo que vem historicamente sendo exterminado e

encarcerado são os jovens negros e pobres que vivem nas periferias, em especial aqueles que são responsabilizados por uma crescente economia de drogas ilícitas. Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra. Segundo Cerqueira et al. (2017), no Atlas da violência (2017), de cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras.

Como uma das consequências dessa violência, observa-se um crescimento de homicídios de jovens no Brasil. A análise de causas de mortalidade de jovens nos anos de 2015, permite delinear um quadro que é, a um só tempo, complexo e preocupante. Essa situação aqui é apresentada a partir de dados constantes do “Mapa da Violência 2015”, com base no IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e

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Violência e Juvenicídio, encarceramento

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Estatística) e no Ministério da Saúde, chegando-se a conclusões alarmantes: o Brasil atingiu a marca recorde de 59.627 homicídios em 2014. Foram 3.749 jovens entre 16 e 17 anos vítimas de homicídios, 46% do total de 8.153 óbitos. A média é de 10,3 jovens assassinados por dia no país. O Brasil é o terceiro país no ranking de homicídios de jovens. Além da violência física, os jovens enfrentam vários tipos de preconceitos, o que significa que são vítimas não somente de uma violência física como também de uma violência que não mata mas, muitas vezes, fere e muito profundamente, que é a simbólica e a moral. O que se denomina juventude perdida é uma complexidade de fatores, desde a perda de vidas humanas até as ínfimas ou nenhuma oportunidade educacional e de trabalho, que condenam os jovens a uma vida destituída de todos os seus direitos.

Esses dados explicitam o que podemos definir como o genocídio da Juventude Negra. Ao longo dessa década, morreram ao todo 556 mil pessoas vítimas de homicídio, número que excede ao número de mortes da maioria dos conflitos armados registrados no mundo. Comparando 100 países que registraram taxa de homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, entre 2008 e 2012, o estudo conclui que o Brasil ocupa o sétimo lugar no ranking dos analisados. O executor mais contundente é o agente do Estado.

Segundo o Atlas da Violência 2017, entre 2005 e 2015 mais de 318 mil jovens foram assassinados no Brasil. No ano de 2015, foram 31.264 homicídios de pessoas com idade entre 15 e 29 anos, uma redução de 3,3% na taxa em relação a 2014. Os jovens do sexo masculino são as principais vítimas: mais de 92% dos homicídios acometem essa parcela da população. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com informações do Atlas, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontado o efeito da idade, escolaridade, sexo, estado civil e bairro de residência.

Os últimos dados disponíveis do Ministério da Saúde nos mostram um recrudescimento do problema, uma vez que, entre 2005 e 2015,

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observou-se um aumento de 17,2% na taxa de homicídio de indivíduos entre 15 e 29 anos, mais de 318 mil jovens foram assassinados no período considerado.

Em 2014 a violência foi responsável por uma perda de US$ 75.895 milhões para o país, num cenário conservador, representando 53% do custo total do crime na América Latina e Caribe e 78% no Cone Sul. Esse alto valor pode ser parcialmente explicado pelas dimensões continentais do país, já que cerca de metade da população da região vive no Brasil e o país responde por 43% do PIB e por 39,5% dos homicídios da região. Em termos relativos, a criminalidade custa uma quantia equivalente a 3,14% do PIB brasileiro, taxa ligeiramente acima da média da ALC (3,0%) e muito mais alta do que a média do Cone Sul (2,5%) (BID, 2017).

Trata-se de uma situação de extermínio dessa parcela da população causada por dois tipos de racismo arraigados na nossa cultura: institucional e estrutural.

É fácil concluir que se gasta muito e ineficientemente com o sistema carcerário vigente. O custo médio mensal de um preso em instituições estaduais é de R$ 1.800. Considerando o tempo de pena atribuída ao crime de tráfico, tem-se que ao final do tempo mínimo da prisão o Estado terá desembolsado R$ 108.000. Esses números são o resultado da “política de tolerância zero” que adotou o combate total a todo tipo de crime e a política de guerra às drogas. O resultado mais visível dessas políticas é a criminalização e encarceramento dos jovens negros pobres e marginalizados (Feffermann, 2006).

2. Letalidade policial/ Violência do Estado legitimada

Os dados sobre mortes decorrentes de intervenção policial apresentam um alto grau de subnotificação, como confirmam os números da segurança pública: “as analisadas por números do SIM na categoria “intervenções legais e operações de guerra” (942) e os números reunidos pelo FBSP (3.320) em todo o país” (Lima et al., 2017).

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A criminalização da juventude negra e pobre no Brasil tem como principal executor a polícia militar1, herança da ditadura civil/militar, que foi criada com o objetivo de defender o Estado de seus inimigos (políticos). O papel das Polícias Militares (em todo o território brasileiro) era na ocasião da sua criação, o de atuar no campo civil com o intuito de investigar e silenciar possíveis adversários políticos contrários à ditadura militar, de forma a zelar pelo regime instaurado, sob a alegação de defender a abstrata “segurança pública”. O obscurantismo por que passou o Estado brasileiro forjou um modelo de polícia alicerçado no arbítrio e na violência. Depois da ditadura, a polícia militar consolidou sua posição de responsável pela completa extensão do policiamento urbano à política de segurança interna, uma lógica militar. O controle social dos excluídos pela força é uma tradição secular no Brasil, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos armados, e que foi reeditado durante a ditadura militar. A identificação do inimigo por questões biológicas (Goes, 2015) – os negros e/ou sociais – o pobre como potenciais delinquentes gera o estereótipo do jovem, negro e pobre que aparece como a figura atual da ameaça. O recorte é feito para os crimes que atentam contra o patrimônio e que se referem ao varejo das drogas, criminalizando as populações que vivem em territórios periféricos, favelas ou morros das grandes cidades. A modernidade exige cidades limpas, onde a miséria, que não pode ser administrada e/ou escondida deve ser eliminada. Reforçando a lógica da Doutrina de Segurança Nacional.

No Brasil, a sua tradição autoritária, elitista e desigual é reforçada pelo período da ditadura civil/militar (1964-1985), que deixou um legado para a sociedade brasileira: a corrupção, a impunidade, torturas, desrespeito aos direitos civis, cadeia para os pobres, o rebaixamento do padrão de vida do povo, a entrega da economia nacional para o capital estrangeiro, a Dívida Externa e a Interna e, mas sobretudo, a violência e tortura policial contra o povo. O regime suspendeu direitos e garantias__________1. A Polícia Militar no Brasil surge depois do golpe civil-militar de 64, o decreto nº 1.072 de 30 de

dezembro de 1.969.

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institucionais, através de práticas autoritárias, utilizava-se do monopólio da violência legítima, que lhe garante a possibilidade de construção de aparatos do Estado para garantir a ordem pública no território nacional. Assim, atuava na supressão das liberdades individuais, permitindo que o exército e a polícia militar pudessem prender e encarcerar pessoas consideradas suspeitas, promovendo a violência instititucionalizada, e ampliando o nosso acúmulo social da violência. O autoritarismo que se expressa na ditadura tem sua gênese no colonialismo expresso como conservadorismo, patrimonialismo, nepotismo, mandonismo (Leal, 2012).

A Constituição do Brasil (Brasil, 1988), conseguiu incorporar muitos dos direitos individuais que foram violados sistematicamente no período da ditadura militar. Os direitos à vida, à liberdade e à integridade pessoal foram reconhecidos, e a tortura e a discriminação racial são consideradas crimes. No entanto, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a violência oficial continua. Este novo período não significou o rompimento com práticas de controle social advindos das Leis de Segurança Nacional e da lógica do “inimigo interno”. O jogo entre o poder Executivo e o Legislativo não foi alterado, o processo de democratização restringiu-se aos direitos políticos e ao sistema eleitoral.

Os processos de redemocratização do Estado Brasileiro ocorrem em meio à crise do petróleo, o crescimento da dívida externa e o fracasso do nacional-desenvolvimentismo diante da incapacidade de o país acompanhar a denominada terceira revolução industrial. Com a gradativa implantação de medidas neoliberais, ou seja, a consolidação do Estado Mínimo, flexibilização do trabalho, desestatização da economia, competitividade, livre comércio, privatização, precarização das relações de trabalho e aumento de desemprego.

Os veículos de comunicação anunciam o aumento da violência e a necessidade o recrudescimento das políticas de segurança nas principais metrópoles brasileiras. O discurso do medo é construído no espaço social e as relações sociais passam a ser pautadas pela desconfiança e pela disputa entre iguais. Este é um campo propício para a busca de um culpado para esta situação, um bode expiatório. A classes empobrecidas passam a ser

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alvo das políticas repressivas de controle social e da segurança: os jovens negros e pobres moradores das regiões periféricas das cidades. Obscurecem-se os problemas de desigualdade e da falta de condições econômicas a partir da lógica da criminalização dos pobres, estigmatizando as suas ações, cultura e lugar de moradia.

A estrutura violenta do capitalismo insurge e se configura como um Estado Punitivo e controlado que prioriza os mecanismos repressivos, acirrando as formas de vigilância social das populações empobrecidas. As políticas do Estado para os jovens que vivem nas periferias e morros das grandes cidades são o encarceramento e a execução sumária, realizada na maioria das vezes por agentes de Segurança Pública do Estado, consideradas ameaça à ordem instituída da sociedade burguesa. O modelo da guerra aplicado à Segurança Pública significa uma verdadeira ditadura contra os pobres, que cotidianamente sofrem a militarização na sua vida social com uma permanente suspensão de todas as garantias constitucionais. A ordem pública passa a se confundir com o controle da criminalidade, àqueles que estão fora do lugar normativo do trabalho e transformá-los em símbolo da violência (Reishoffer & Bicalho, 2009). É o que Wacquant (2001, p. 7) denominou como “a remediação de um ‘mais Estado’ policial e penal a um ‘menos Estado’ econômico e social”, e ainda completou que tal penalidade neoliberal é ainda mais funesta em países atingidos por fortes desigualdades de condições de vida e desprovidos de tradição democrática. É quando as questões sociais se tornam questões de polícia. Os “inimigos” da ordem são estes que ousam transpor a ordem do mercado e estão continuadamente expostos à violência policial.

São processos já presentes nos tempos ditatoriais que legitimam os procedimentos de exclusão, de não reconhecimento dos direitos, da ameaça da diferença, da construção dos não-humanos e não-cidadãos. Os inimigos passam a ser os “despossuídos” de forma indiscriminada ou, prioritariamente, aqueles que por algum motivo específico representam ameaças reais ou simbólicas ao acúmulo de riqueza das classes dominantes. Alguns dados demonstram que estas marcas ainda estão

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presentes no regime democrático vigente no Brasil: 61.619 mortes violentas em 2016, o maior número de homicídios da história, terceiro país que mais encarcera no mundo (Lima et al., 2017).

As Forças Armadas, durante a história do país, sempre foram utilizadas como um mecanismo de intervenção. Neste sentido, no Brasil existe lado a lado uma atuação policial e um sistema jurídico que operam dentro do “legalismo” em direção às classes dominantes, que em princípio se baseiam na cidadania; e com práticas de controle social horrendas, marcadas pelo discurso da “lei e ordem” e pela militarização das práticas policiais. Essas práticas são dirigidas a um público específico, os pobres, negros e moradores de territórios periféricos, aqueles que estão excluídos de uma cidadania a cada dia mais vinculada à capacidade de consumir, alvos de arbitrariedades que se contrapõem aos direitos fundamentais. As polícias militarizadas mantêm a concepção original de uma instituição organizada com fins bélicos – a mesma hierarquia vertical e a ausência de autonomia, que implica em uma obediência a comandos.

Segundo Wacquant (2001), a ação dessa violência policial garante a posição de que “[...] a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem” (p. 9). Exemplares são o caso das Policias Militares dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, os modos de atuação das corporações Rota (Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar) e Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) que apontam para uma confusão deliberada entre a criminalidade violenta e o terrorismo. O paradigma militarista da segurança pública e que tem no Bope a sua expressão mais acabada, considera que a manutenção da ordem urbana decorre do emprego da força guiada por uma lógica do confronto bélico. Podemos medir a intensificação desse aparato com o crescimento do número de autos de resistência ao longo dos anos, ou seja, dos mortos pela polícia. Recentemente uma matéria jornalística evidenciou outro canto de guerra. Os policiais entoam: – É o Bope preparando a incursão / E na incursão / Não tem negociação / O

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tiro é na cabeça / E o agressor no chão. / E volta pro quartel / pra comemoração2. O “Caveirão” é como foi batizado o veículo blindado do Bope utilizado em incursões nas favelas e espaços populares se transformou no símbolo da militarização da segurança pública.

Apesar de a Constituição Federal (1988) brasileira proibir a pena de morte3, pode-se afirmar que ela tem sido aplicada ilegalmente. São chacinas e execuções sumárias praticadas por forças policiais, em serviço e fora de serviço, e mortes de pessoas que se encontram sob custódia e responsabilidade do Estado. Falamos de mortes que estão diretamente relacionadas com torturas, maus tratos e condições degradantes a que são submetidos(as) os(as) detentos(as). A polícia e o Estado utilizam a violência letal como uma forma de controle social. Nos grandes centros brasileiros a altíssima letalidade4 da ação policial é recorrente na política de segurança pública adotada no país, mesmo no período pós-democrático. Quer sob o forjado “confronto” que se expressa pela categoria extrajurídica “resistência seguida de morte”, quer por manifestações mais deliberadas de execução de civis por grupos de extermínio e, mais recentemente, por atos de “encapuzados”. O uso direito para matar é justificado pela alegação comumente dada quando um jovem é exterminado pelas mãos da polícia - é o auto de resistência5. Desde o início da década de 1990, nas favelas e regiões mais pobres, agentes das forças policiais utilizam deste registro do auto de resistência – morte em confronto com a polícia – com o objetivo de mascarar homicídios cometidos por policiais civis e militares, alegando suposta resistência.

__________2 . D i s p o n í v e l e m :

http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/05/tropa-do-bope-canta-grito-de-guerraque-faz-apologia-violencia.html. Acesso em: 15 de agosto 2017.

3. artigo 5º, inciso XLVII.4. A letalidade policial é destacada no documento como uma das violações mais preocupantes no

país. Em 2012, morreram 1.890 pessoas nessas circunstâncias, conforme dados do Fórum de Segurança Pública. Human Rights Watch (HRW).

5. O auto de resistência, que surgiu na atividade policial logo após o AI-5, em 1968, é o dispositivo que serve para legitimar e impedir a investigação das execuções sumárias realizadas por policiais.https://jus.com.br/artigos/24119/o-debate-em-torno-do-auto-de-resistencia-morte-decorrente-de-intervencao-policial.

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Em 2011, no Rio de Janeiro e em São Paulo, 42% das mortes foram consideradas como autos de resistência. São exemplos disso os casos Amarildo, Rio Janeiro (2014), Davi Fiúza, Salvador (2014), ambos sumidos misteriosamente por policias, fora outros milhares de casos parecidos que ocorrem corriqueiramente. Assim, o auto de resistência tornou-se um procedimento padrão.

Desta forma, os estudos apontam a necessidade de uma mudança nas políticas de segurança pública e a urgência de políticas de garantia à defesa dos direitos humanos e do direito à vida.

Considerações finais

A exacerbação da violência contemporânea está relacionada com a dominação exercida pela implementação das políticas econômicas, que ao promover o desemprego estrutural nega a uma parte significativa da população os direitos sociais e políticos, tornando-os supérfluos e impondo uma política para conter e disciplinar esta população e assim justificar a omissão do Estado. A adesão à ordem estabelecida ocorre por intermédio do medo e da insegurança, assim a sociedade reforça uma dinâmica de contenção e disciplina. Uma parte da população é criminalizada, segregada e transformada, com auxílio da indústria cultural, em inimigos do Estado, que devem ser enfrentados para garantir e manter o poder estabelecido. No Brasil, o grupo a ser exterminado e encarcerado são os jovens negros, empobrecidos, que vivem nas periferias, em especial aqueles que são responsabilizados pela crescente economia de drogas ilícitas – os pequenos traficantes. Jovens, imprescindíveis e ao mesmo tempo descartáveis, que denunciam a barbárie civilizada que se vive hoje.

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PARTE 2

TRANSIÇÃO DE PARADIGMA NA CLÍNICA DAS DEPENDÊNCIAS

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CAPÍTULO 2.1

A clínica da drogadição no paradigma da complexidade:

as dependências e seus paradoxos

Maria Fátima Olivier Sudbrack

Introdução

Durante muito tempo, considerou-se que todos os dependentes de drogas viviam alienados da família e da sociedade, em um universo à parte que lhes era próprio e peculiar. A literatura clássica lhes confere uma identidade marginal e uma estrutura toxicônoma. Pela legislação, sofrem criminalização, pela visão medicalizada são doentes e pela religião são considerados distantes de Deus. Neste paradigma, tudo converge para abordagens individuais: o infrator, o doente, o pecador.

A clínica de famílias nos revelou o quanto é preciso repensar este paradigma, na medida em que passamos a compreender a complexidade do fenômeno da drogadição numa perspectiva sistêmica e relacional que nos conduz à abordagem transdisciplinar. A compreensão se amplia para uma leitura mais ampla situada no significado dos contextos de uso e nos contextos relacionais.

Ao longo de nossa trajetória de pesquisadora sobre a temática da drogadição na adolescência e como terapeuta de famílias, vimos trazendo construções que permitem aprofundar a compreensão do processo clínico das dependências, a partir desta nova concepção da drogadição no

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paradigma sistêmico e da complexidade. Trata-se de uma perspectiva que se constrói, articulando contribuições da terapia familiar sistêmica europeia (Neuburger, 1986; Segond, 2008; Ausloos, 1995) e argentina (Fuks, 2015), da psicanálise de famílias (Eiguer, 1985), da psicossociologia clínica francesa (Selosse, 1998), da leitura sistêmica da drogadição na adolescência (Stanton,1988) e dos sistemas aditivos ( Colle, 2001), da prática de redes (Pakman, 1995; Dabas, 1995) tendo como grade epistemológica a teoria do pensamento complexo (Morin, 1991).

Entendemos que, para avançarmos neste novo paradigma, é preciso reconhecer que muitos preconceitos e estereótipos encobriram a complexidade dos aspectos relacionais, associados à problemática das toxicomanias:

[...] a aplicação da epistemologia sistêmica às adicções favorece um outro olhar. As terapias familiares nos permitiram sair do maniqueísmo entre famílias inocentes ou culpadas. Elas representam um recurso precioso para mudar de ótica e para ajudar os sistemas familiares...”. As dependências relacionais no contexto socioafetivo destes sujeitos impedem a emergência da autonomia necessária. Introduzimos, assim, a perspectiva relacional das toxicomanias. [...] É importante descrever os esquemas relacionais entre as pessoas designadas dependentes e seu meio, pois precisamos entender como os sistemas vivos regulam trocas internas e externas sob bases adictivas. (Colle, 2001, p. 191)

A família é um espaço de pertencimento e de referência identitária, de funções múltiplas que constitui sistema complexo em constante evolução e aponta a crise em sua dimensão transformadora. A crise desequilibra o sistema, promovendo um salto qualitativo com relação à estrutura anterior. Assim, numa intervenção sistêmica, resgata-se o paradoxo inerente ao sintoma, dando-se visibilidade à sua dimensão reveladora da necessidade de mudanças. O abuso de drogas é entendido como sintoma-comunicação que encontrará seu sentido na vida relacional

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familiar. O trabalho terapêutico consiste em decodificar esta mensagem expressa na passagem ao ato de drogar-se para que possa ser integrada com sentido no contexto relacional familiar. A partir desta leitura, o usuário de drogas é redefinido como membro portador do sintoma da família, pois, por meio de seu comportamento sintomático, expressa o sofrimento coletivo do grupo familiar.

O termo Adicção, enquanto conceito sistêmico, permite descentralizar as observações focadas apenas no intrapsíquico, ampliando-as a um conjunto de relações e de comportamentos situados na rede socioafetiva do usuário. Por sua definição etimológica, este conceito nos coloca na pista das normas adictivas: relações particulares de submissão do corpo de uma pessoa a outras pessoas e, simultaneamente, designação da pessoa submissa. As condutas adictivas caracterizam-se pelo aspecto parcialmente consciente e voluntário do sujeito addictus, na medida em que ele se submete a diferentes pessoas de seu meio e, ao mesmo tempo, ignora o sentido desta atitude. O addictus, segundo a etimologia do termo, é portador de um sinal sobre si do qual a pessoa não conhece o significado, e estaria assumindo uma missão inconscientemente transmitida. A perspectiva sistêmica da drogadicção busca decodificar estas premissas relacionais ignoradas pelas pessoas assim marcadas. Os efeitos dos produtos utilizados variam segundo os indivíduos, mas também de acordo com os contextos de uso. O saber sobre as toxicomanias não pode jamais ser reduzido às modalidades farmacológicas e psicológicas ou psiquiátricas, sendo inerente a esta problemática a dimensão relacional e contextual. (Colle, 2001)

No contexto da adolescência, a drogadição exige uma intervenção para reconhecer e resgatar a competência das famílias (Ausloos, 1995) e devolver aos pais o comando das situações quando eles próprios já se colocam como demissionários impotentes e desqualificados. Nesta fase do ciclo da vida, a terapia familiar vem sendo reconhecida como indicação terapêutica que promove um novo olhar sobre a problemática e sobre o sujeito portador do sintoma. Por esta razão, mister se faz partirmos da conceituação sistêmica da adolescência, definida como uma fase do ciclo

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de vida da família que implica importantes transformações relacionais, em especial entre pais e filhos.

A conquista da autonomia do jovem perante sua família implica um processo de separação que requer importantes adaptações. Os problemas apresentados pelos adolescentes dificilmente são reconhecidos como tais pelo próprio adolescente, sendo, prioritariamente, terceiros que formulam uma demanda de intervenção: os pais, os professores, o médico, a escola, o juiz. O adolescente se coloca na interseção das interações entre os sistemas familiares, os sistemas educativos e os sistemas de tratamento. A crise adolescente não é um processo unicamente individual, mas concerne ao sistema familiar como um todo no qual o jovem deve ser resgatado em seu papel transformador. Cabe ao terapeuta descobrir, com a família, as possibilidades de uns e de outros de viverem estas transformações, a partir do seguinte questionamento: - A crise adolescente está induzindo novas interações no sistema ou está perpetuando interações redundantes? Qual o papel das drogas na denúncia daquilo que deve mudar?

Com frequência nos defrontamos com verdadeiras famílias adolescentes: os indivíduos se mostram pouco diferenciados, todos parecem jovens, fisicamente, manifestando um desejo de pertencimento a uma única e mesma geração; esta sensação confusional é reforçada pelas atitudes, linguagem e vestimentas típicas da cultura adolescente, enquanto norma dominante que rege o conjunto das interações. Tudo se passa como se fosse uma irmandade, sem hierarquias, sem a presença de pais. Temos encontrado esta mesma atmosfera também em estabelecimentos educativos de adolescentes. Em tais contextos, a violência, o abuso de drogas, as condutas destrutivas, os comportamentos antissociais são tentativas de diferenciação que clamam por mudanças funcionais, por limites e por regras que possam estabelecer referências de autoridade e de continência à instabilidade própria da fase adolescente.

Esta dimensão dos limites, da lei e da transgressão adquire importância fundamental, na medida em que o adolescente precisa c o n t e s t a r a a u t o r i d a d e d o s p a i s p a r a fir m a r s u a diferenciação/individuação do sistema rumo à sua autonomia. Por outro

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lado, a crise adolescente remete o casal parental a um questionamento a propósito da relação conjugal e de suas competências na função parental.

A temática da autoridade e da função paterna permeia a dinâmica encontrada nestas famílias, entendendo que uma leitura do significado do ato de transgressão do adolescente revela sua demanda paradoxal por referências e limites que denominamos “da falta do pai à busca da lei” (Sudbrack, 1987, 1992)

A adição às drogas na adolescência implica na abordagem do processo de pseudo-individuação (Stanton,1988), pois os conflitos relacionais subjacentes colocam em risco a questão da individuação do adolescente e de sua autonomia implicam sua separação da família — processo afetivo a ser trabalhado em diversos níveis.

A partir do referencial teórico acima esboçado, apresentamos, no presente capítulo, nossas construções teóricas sobre o que estamos denominando a clínica da complexidade na drogadição de adolescentes, acompanhado de vinhetas clínicas de atendimentos em curso junto às famílias com filhos adolescentes. Estas construções são resultado de prática clínica e de pesquisas com famílias desenvolvidas no percurso profissional e docente, numa postura de desconstrução da leitura linear, simplista e redutora do fenômeno da drogadição e das intervenções. A mudança de paradigma na drogadição de adolescentes, em nossa trajetória clínica e de pesquisadora, coloca-se como especial desafio na atuação com adolescentes em conflito com a lei, em contexto de vulnerabilidade social, resultando em décadas de pesquisa sobre a abordagem da drogadição no contexto da socioeducação do que resultou obra síntese da produção de uma equipe de mestrandos e doutorandos: Adolescentes, Drogas e Justiça (Sudbrack, 2015).

O tratamento da demanda é o primeiro momento desta clínica da complexidade na medida em que, reunindo os elementos da demanda dispersos no contexto sociofamiliar, permite a desconstrução da crença de falta de demanda para o tratamento. Contextualizada como questão da adolescência, torna-se fundamental a abordagem das dependências e

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seus paradoxos , reconhecendo os riscos do processo de pseudo-individuação, na busca da autonomia pelo adolescente.

1- O tratamento da demanda – desconstruindo a falta de demanda de tratamentoDenominamos tratamento da demanda o processo inicial da intervenção

clínica na área da drogadição, visando reunir os elementos da demanda que se encontram dispersos no contexto sociofamiliar. Este processo permite a desconstrução da crença muito difundida de que não existe demanda de tratamento para drogadição. Isto ocorre porque a noção de demanda é, frequentemente, limitada ao pedido de ajuda ou de tratamento pelo sujeito que apresenta o problema.

Os profissionais que atendem usuários de drogas deparam-se no seu cotidiano com este desafio, que é exatamente a especificidade da clínica das dependências: a ausência de um pedido próprio ou pessoal de tratamento. A procura pelo tratamento é, geralmente, feita por um terceiro: familiar, instituição ou outros. Esta resistência ao tratamento pelo paciente tende a prolongar-se, configurando total falta de adesão ao mesmo. Por esta razão, entendemos que é indicada uma consulta familiar, pois é recorrente que os elementos da demanda estejam dispersos no contexto das relações afetivas do paciente.

Fazemos aqui referência ao conceito sistêmico de demanda apresentado por nosso professor e formador, Dr. Robert Neuburger, estudioso da demanda em psicanálise e em terapia de famílias, e autor do livro “L’autre demande” (Neuburger, 1986). Para este autor, quando falamos de demanda, devemos considerar as três dimensões que a compõe: (1) o sintoma, (2) o sofrimento e (3) a alegação (pedido). A demanda torna-se relacional quando o sintoma é interpretado e vivido pela família como um sofrimento coletivo, pois ser identificado com o sintoma é o mesmo que ser identificado com a sua função para o grupo familiar. Prevalece a lógica imaginária do grupo sobre a lógica simbólica individual. Esta noção é fundamental na terapia familiar, pois o sintoma é considerado como sendo

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a metáfora da situação familiar. Coloca-se, aqui, a questão-chave entre ter ou ser o sintoma.

A demanda mostra-se na sua condição ideal quando temos um sujeito que apresenta um problema do qual ele sofre e para o qual ele pede ajuda. Se, por um lado, demanda implica desejo, é preciso considerar que se trata de um desejo que pode evoluir. Este aspecto dinâmico da demanda é reconhecido tanto pelos psicanalistas (Eiguer,1985) quanto pelos sistêmicos (Colle, 2001). A partir desta premissa, apostamos no desenvolvimento de uma expressão própria do sujeito para a ajuda profissional, inicialmente em uma etapa preliminar da intervenção clínica. Segundo Lacan, a demanda existe quando o desejo se torna necessidade.

A demanda define-se, assim, como um processo dinâmico e permeável a influências, no sentido de que seus elementos dispersos possam ser reunidos na melhor condição para que o sujeito que porta o sintoma possa expressar por si próprio seu sofrimento e assumir seu pedido de ajuda. O que nos interessa, nesta leitura sistêmica, é que o uso de drogas apresenta-se como elemento mobilizador da crise e revelador do funcionamento intrafamiliar rumo às transformações da vida relacional do grupo. Trata-se de um sintoma cujo sofrimento se registra primordialmente no social, ou seja, na relação com o outro. Por esta razão, temos situações complexas que exigem abordar o que se passa entre as pessoas envolvidas, antes de adentrarmos nos significados individuais e numa compreensão do nível intrapsíquico do sujeito. Amplia-se, assim, a perspectiva clássica trazida pela literatura do tratamento de dependentes conhecida como abordagem motivacional quando esta é focada apenas no indivíduo.

Nestes casos, aprendemos com Neuburger (1986) a importância de intervir junto à família para identificarmos no sistema ou na rede relacional do paciente, as pessoas que apresentam cada um dos diferentes elementos da demanda: o sintoma, o sofrimento, o pedido/alegação. A identificação dos diferentes elementos da demanda pode ser feita através das questões: para identificar o sintoma: - Quem apresenta o problema? para identificar o sofrimento: - Quem mais sofre? para identificar o

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pedido/alegação - Quem pede ajuda? e qual é o pedido? para quem o uso de drogas é problema?

Vemos que o ponto de partida é o próprio sintoma que constitui um elemento de demanda, ou seja, revela uma comunicação do adolescente que podemos interpretar como sua denúncia pela necessidade de mudanças. Se entendemos que a demanda é um desejo que pode evoluir (Eiguer, 1985), mister se faz construir este percurso, que se coloca como uma etapa importante da intervenção. Não é apenas uma etapa preliminar, mas se constitui a especificidade da clínica das dependências. Através de consultas familiares proporcionamos espaço de expressão para os diferentes membros, buscamos uma ressignificação do próprio sintoma ou ato de drogar-se no contexto relacional sociofamiliar. Este espaço inaugura-se com o acolhimento do adolescente em família, num processo que denominamos de tratamento da demanda (Sudbrack, 2003a).

Cabe destacar que não se trata apenas de convencer o paciente de que ele precisa de ajuda ou motivá-lo para o tratamento porque é doente... Este discurso não é recomendado para o paciente adolescente pois, além de gerar mais resistências, resulta em uma patologização pessoal, fechando o espaço para uma leitura das dificuldades relacionais atreladas e, assim, reveladas pela drogadição.

A perspectiva do tratamento da demanda nos remete, pois, a uma especificidade em torno das questões profundas do processo clínico e relacional. O novo paradigma se coloca quando, em vez de considerarmos a falta do pedido de ajuda pelo paciente simplesmente como uma resistência, negação do problema, ou um impeditivo pessoal para uma relação terapêutica, nos propomos a investigar a natureza desta trama relacional que está impedindo reunir os diferentes elementos da demanda para que cada um consiga assumir seu sofrimento e expressá-lo com autonomia na família. Para tanto, precisamos adentrar em processos relacionais complexos que constituem a trama que sustenta os sistemas aditivos (Colle, 2001). Como resultado desta trama que encobre o próprio movimento do sujeito para buscar ajuda, as equipes vivem uma impotência e, desestimuladas podem adotar duas posturas extremas: ou

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desistem da intervenção ou encaminham intervenções compulsórias, em geral, internações fracassadas.

O desafio é constante, pois jamais saberemos, a priori, quem é, verdadeiramente, o cliente. É preciso indagar constantemente: do que se trata ou de quem se trata ou quem trata quem? A experiência clínica com dependentes nos revela que aquele "que adoece pelo uso de drogas é a pessoa mais sensível ao sofrimento do outro e, por vezes, está assumindo a função paradoxal de ser, ao mesmo tempo, o sintoma e o terapeuta da família" (Colle, 2001).

O que propomos como um novo paradigma da drogadição amplia a definição da própria clientela-alvo da intervenção que vai sendo descoberta, na medida em que conhecemos a trama relacional subjacente e que sustenta o sintoma. Um dos paradoxos impressionantes do sintoma de drogar-se é que, ao mesmo tempo em que se presta para dizer o que não seria possível dizer sem drogas, trata-se de um impeditivo para que a verdade das relações seja desvelada. Concentrado no indivíduo que porta o sintoma, os conteúdos desta trama trazem vivências fortes de sofrimentos de traumas não resolvidos, em geral sobre separações não resolvidas e que se mantém ou como rupturas ou como dependências relacionais.

Ilustramos, na vinheta clínica, a seguir, nossa proposta de intervenção no tratamento da demanda.

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Vinheta clínica (1) da desconstrução do poder da droga ao resgate dos vínculos com os pais

Jovem de 17 anos (P), filho de pais divorciados que se desentendem na forma de lidar com o filho ao descobrirem que ele usa drogas. O pai quer sua internação urgente e a mãe discorda, mas encontra-se muito abalada e assustada, sem saber o que fazer. Na última discussão, houve confronto familiar, resultando em enfrentamento físico do pai com o filho que, partir de então, cortaram a comunicação. Após dois meses deste evento, a mãe procura sozinha um serviço de dependentes químicos da Universidade, que a remete ao contexto de atendimento familiar. Apresentamos como vinheta clínica um recorte das duas primeiras consultas familiares, no processo de acolhimento da família, sendo a primeira com a mãe e o filho, e a segunda com mãe, pai e filho.

Na primeira consulta, as narrativas e imagens da mãe e do filho se mostram dissonantes: enquanto para o adolescente, o consumo de drogas se dá no contexto das festas Rave, pura descontração e diversão, a mãe se mostra muito preocupada e imagina o filho perdido, desprotegido e desvitalizado. Solicitados a representar as drogas com as almofadas, enquanto a mãe escolhe uma almofada marrom, o filho escolhe almofada colorida. Fica claro o quanto a visão da mãe contrasta com a visão do filho, que representa as drogas como sua fonte de alegria e descontração de que precisa face ao tédio do cotidiano. Propusemos troca de papéis, utilizando técnicas psicodramáticas: o filho, colocando-se no lugar da mãe (Como você imagina que sua mãe está lhe vendo agora?): o adolescente se coloca deitado no chão, em posição fetal, com as mãos na cabeça, expressando horror e sofrimento. A mãe, mostrando como o filho a percebe, produz a seguinte imagem corporal: coloca-se de pé, andando em círculos, de braços estendidos e chamando-o para perto, com expressão aflita, desesperada. Enquanto isso, o filho é visto pela mãe dançando e se divertindo.

As imagens trazidas na cena psicodramática de ambos são fortes e reveladoras da trama relacional. Se, por um lado, a percepção da mãe e do filho são antagônicas, ficou claro o que se passa entre eles: ambos estão atribuindo imensa força e poder à droga que está gerando grande conflito e distanciamento entre eles. Para a mãe a droga teria a força de levar seu filho ou de destruí-lo, e para o filho a droga seria capaz de lhe proporcionar toda a felicidade e liberdade desejada, longe da família, apenas compartilhada com os amigos. Pontuamos para o adolescente os riscos de uma tal situação, caso se prolongasse e agravasse: a mãe com tanto sofrimento e insegurança, pelos cuidados que inspira com o abuso de drogas, passaria a tratá-lo de forma infantilizada, justamente quando precisa conquistar sua confiança para adquirir sua liberdade e autonomia. O adolescente ouviu atento e se mostrou reflexivo, compreendendo esta devolutiva provocativa de que a relação poderá regredir para uma condição infantilizada. Neste momento, a mãe se reconhece como totalmente despreparada para cuidar o filho adolescente, com muitos medos e inseguranças que a estão deixando doente, sem dormir, com palpitações, perdida no seu papel ...

Introduzimos, assim, o que denominamos a ressignificação do sintoma: o tema da confiança e do cuidado se coloca no lugar do uso de drogas e ambos se reaproximam, estimulados a conversar sobre a reconstrução da relação mãe-filho neste novo momento do ciclo de vida da família. O adolescente reconhece o sofrimento da mãe que foi o motivo dele ter aceito este atendimento psicológico. Pontuamos positivamente seu desejo de cuidar da mãe, que passa a destacar as qualidades do filho. Um novo diálogo entre ambos se inicia, compartilhando sobre a vida de família, sobre as dificuldades na escola e com os amigos. Como o adolescente está sem diálogo com o pai, com quem se confrontou fisicamente pela reação deste lhe proibindo o uso de drogas, propusemos a participação do pai para a próxima sessão, aceito pelo filho e pela mãe.

(continua)

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Vinheta clínica (1) da desconstrução do poder da droga ao resgate dos vínculos com os pais (fim)

Na segunda consulta familiar, com a presença do pai, cuja comunicação estava rompida há dois meses, foi possível avançar na compreensão sistêmica e relacional do sintoma. O depoimento do pai foi pesado, mostrando-se inicialmente muito bravo e decepcionado com o filho, considerando que ele jogou fora a educação e o amor dos pais, optando em tornar-se um “bandido”. Explicou sua reação de denunciar o filho para todos: na escola, no prédio, e também entre os amigos, pois acredita que ele está, inclusive, vendendo drogas, o que justifica pelo fato de que encontraram até uma balança de precisão em sua mochila. Por este motivo, argumenta que o filho deve ser internado e fazer um tratamento urgente. Neste momento, a mãe chora muito e o filho também. Procuramos qualificar o pai como figura de autoridade importante, mas que também estaria muito perdido e sofrido. Pedimos ao filho que revele ao pai seu projeto de vida e de consumo ... promovemos uma desconstrução de condição de dependência, sem minimizar os riscos presentes. Introduzimos que seria preciso ver melhor o papel do uso da maconha no alívio de sofrimento, além do prazer nas festas, e que esta avaliação dependeria de uma conversa individual com P. O adolescente esclarece sobre suas vivências nas festas e no consumo de drogas. A mãe ajuda a lembrar que ele sofreu decepção amorosa, que pode ter contribuído ... O pai se emociona e se identifica com o filho, dizendo que ele usa a bebida como alívio ... e gosta de acompanhar o filho nas festas, como já fizeram no Rock in Rio. Pontuamos a importância da presença do filho para o pai. Seu discurso muda de tom e passa a falar entre lágrimas sobre o amor que tem pelo filho que até então só trouxe alegrias para ele: “... meu menino carinhoso e companheiro ... como pode acontecer isto? “ estou com muita saudade, você não aparece mais em minha casa ... O filho explica que tem vergonha da família, depois que o pai o denunciou como um “maconheiro”...

Instaurado um clima de diálogo, com possibilidades de desabafo, muitas questões podem ser vistas, destacando-se o baixo aproveitamento escolar que inquieta sobremaneira os pais. O filho promete que vai deixar de usar drogas para recuperar suas notas. O pai pede para o filho visitá-lo com maior frequência e conviver com sua nova irmãzinha, filha de seu novo casamento. A mãe revela que, nesta confusão, acabou conhecendo a menina que já tem um ano.

A sessão finaliza com a pergunta do terapeuta: o que cada um tem como pedido para o outro? O pai pede para o filho deixar dos amigos da droga e cuidar da mãe, que está cansada e adoecida. A mãe pede para o pai prosseguir acompanhando o filho com ela. O filho pede confiança aos pais e crédito nas suas opções, pois não é mais criança. Pontuamos como desafio para o filho: como reconquistar a confiança dos pais? E para os pais: como cuidar do filho adolescente, sem impedir sua autonomia? A sessão foi finalizada colocando-se como temática a relação com os amigos: o adolescente informa que todos os seus amigos fumam maconha diariamente. O pai diz que ele precisa deixar de viver com estes “vagabundos”. Pontuamos que a desqualificação dos amigos do filho como “bandidos e vagabundos” não era favorável à reaproximação necessária entre pai-filho. Foram agendadas para a semana seguinte: sessão pai-filho, uma sessão de atendimento individual de apoio para a mãe e uma nova consulta familiar em quinze dias.

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A partir desta vinheta clínica, ilustramos importantes movimentos promovidos do que propomos como o processo de tratamento da demanda, cujos elementos aparecem dispersos na família: o filho apresenta o problema (uso de drogas – que para ele não é problema, está sendo diversão e alivio!); a mãe sofre (ansiosa, deprimida, somatizando, desesperada entra em conflito com o ex-marido); o pai quer internar o filho (visto como dependente e delinquente, e desaponta a ex-mulher com seu autoritarismo e repressão ao filho).

A mãe se disputava com filho para que ele parasse de usar drogas e com o ex-marido para que não o internasse. O filho se disputava com o pai para não ser internado, o pai disputava poder com a ex-mulher na condução do tipo de tratamento para o filho.

No decorrer de duas sessões, foi possível reunir os elementos da demanda através de pedidos reconhecidos como ajuda para todos: o filho aceitou refletir sobre a consequência do consumo na sua vida e no baixo rendimento escolar; o pai retoma o diálogo para ajudar o filho em acordo com a mãe e esta conscientiza-se de sua extrema ansiedade e fragilização com a situação, que decide compartilhar com o marido e ajuda profissional.

Coloca-se, aqui, uma importante dimensão metodológica da intervenção na clínica das dependências, propondo-se um acolhimento como processo diferenciado e efetivo no qual a demanda possa ser tratada até que reencontremos o sujeito demandante, ou seja, que o paciente possa reconhecer a dimensão do sofrimento atrelada ao sintoma e expressar seu desejo/pedido de ajuda, na medida em que todos os implicados possam rever suas vinculações com o problema e com o portador do sintoma.

2- A(s) dependência(s) e seus paradoxos: autonomia, pertencimento e o risco da pseudo-individuação As questões da drogadição na adolescência raramente se referem a

diagnósticos de dependência química propriamente dita. No entanto,

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podemos observar comportamentos de uso frequente ou abusivo se estruturando nesta fase, que são reveladores de riscos e tendências para um processo aditivo e que, se adequadamente abordados, podem ser prevenidos ou minimizados.

Por outro lado, sabemos que é na fase adolescente que os principais diagnósticos de doenças mentais se revelam e, por vezes, eles aparecem confundidos com a problemática do consumo de drogas que pode agir em dois sentidos: ou precipitando a eclosão da crise psicótica ou camuflando e “ retardando” a eclosão da mesma. Temos ainda uma terceira situação, que é a precipitação de quadros de desequilíbrios emocionais em decorrência do exagerado uso de spa na adolescência. Mesmo sem a precipitação de quadros mais graves ou definitivos, chamamos a atenção para os riscos do uso frequente e precoce que pode resultar em sequelas cognitivas e de socialização comprometedoras.

As condutas de adicção às drogas, de forma contrária ao que frequentemente é dito, não são apenas comportamentos de protesto e de revolta “adolescentes”. A dependência de substâncias psicoativas encobre, na maior parte das vezes, dependências ou rupturas relacionais e, em certos casos, mascara distúrbios severos de natureza psiquiátrica. Por outro lado, em psiquiatria o aspecto visível das condutas aditivas atrai a atenção para a dimensão farmacológica. As tentativas de mudar o nível lógico, quer dizer, avançar da questão dos produtos para uma definição das questões relacionais, provoca resistências que estão na origem da ausência de demanda para uma psicoterapia.

Na perspectiva sistêmica e da complexidade da drogadição de adolescentes, a análise extrapola em muito a dimensão da relação com o produto, pois temos a oportunidade de perceber a natureza das estruturas relacionais que serão risco para que uma dependência se instale, através do reforço de comportamentos aditivos que podem estar presentes na família ou no contexto mais amplo de influencias do adolescente. Nos colocamos, desta forma, em uma posição de tratarmos o que consideramos o contraponto da dependência que é a conquista da autonomia e o exercício da liberdade. Nos referimos, aqui, a uma noção

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mais ampla de dependências que inclui a possibilidade de fazer separações.

É importante destacar que o conceito de dependência, na perspectiva sistêmica, adquire uma conotação e significado diversos de sua concepção mais conhecida, originada na teoria psicanalítica. Em vez de associar-se a dependência aos estados necessariamente patológicos ou regressivos, próprios de etapas infantis do desenvolvimento humano, entende-se a dependência enquanto um mecanismo natural de adaptação (Bateson, 2008). Esta concepção da dependência em sua dimensão positiva adaptativa nos remete a uma nova epistemologia da drogadicção e das dependências, compreendidas, então, como busca de solução a questões que exigem do sujeito uma resposta adaptada ao contexto.

Um sistema aberto é um sistema que pode alimentar sua autonomia, mas através da dependência face ao meio externo. A noção de autonomia só pode ser concebida em relação à ideia de dependência. Quanto mais um sistema desenvolver sua complexidade, mais ele desenvolverá sua autonomia e mais ele terá dependências múltiplas. No paradigma da complexidade, toda vida humana autônoma é um tecido de dependências, pois construímos nossa autonomia psicológica através das dependências em contextos diversos, dentre os quais destacam-se a família e a escola. Sendo assim, tanto o conceito de autonomia como o de dependência são conceitos relacionais. Como síntese deste paradoxo, trazemos uma frase do fundador da teoria da complexidade: “A autonomia é o resultado de muitas dependências” (Morin, 1991). Portanto, os vínculos de dependência podem apresentar tanto aspectos positivos quanto negativos, tudo depende das condições apresentadas e construídas no contexto. Ora, na cultura ocidental nós somos condicionados a pensar a dependência como uma doença a partir de uma supervalorização da autonomia na sociedade moderna. Como nos ensina Bateson (2008), é preciso lembrar que a dependência é um mecanismo indispensável à sobrevivência da espécie humana.

Na prática clínica, os clientes e seus familiares tendem a centrar seus discursos e suas demandas no nível dos efeitos dos produtos, sem fazer

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referências aos seus conflitos relacionais, que se revelam na medida em que soubermos fazer a leitura sistêmica das situações trazidas como motivo da consulta. Nesta condição, para contemplar a complexidade do tema precisamos ser capazes de fazer saltos lógicos entre os diferentes níveis de dependência (Colle,1995), pontuando que a dependência deve ser avaliada em seus diferentes níveis qualitativos, os quais podem ser situados em, pelo menos, três categorias, a saber: (1) a dependência de substâncias (2) a dependência de pessoas e (3) a dependência do contexto.

Apresentamos, a seguir, uma descrição destes diferentes níveis e tipos de dependências a considerar na compreensão sistêmica da drogadição.

(1) Dependências dos efeitos da droga: o consumo pode ser de uma única substância ou efeito da combinação de várias substâncias consumidas simultaneamente. Além do produto em si, é importante conhecer as diferentes formas de consumo. Além das diferentes espécies adulteradas dentre as spa naturais, temos como atual desafio as “novas drogas”, em especial as anfetaminas e anestésicos, trazendo desafios especiais pelos efeitos desastrosos decorrentes em função do desconhecimento e da “glamourização” do consumo sem consciência dos riscos e sem maturidade para assumir as consequências.

(2) Dependências relacionais afetivas: referem-se às relações do casal e da família. Existe, sempre, em torno do dependente de drogas, pelo menos uma pessoa codependente. Esta ou estas pessoas podem ser ou ter sido igualmente dependentes de drogas.

(3) Dependências do fornecedor da droga: incluem-se nesta categoria a relação com os revendedores ou os passadores da droga, no caso das substância ilícitas, a relação com médicos ou farmacêuticos para os medicamentos e a relação com os outros tantos intermediários, fornecedores dos diferentes produtos.

(4) Dependências do financiador da droga: relações com aquelas pessoas que asseguram a possibilidade de adquirir a droga, do ponto de vista financeiro, podendo ser tanto os pais que sustentam o

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filho, como um traficante que fornece a droga em troca de serviços prestados ao tráfico pelo cliente.

(5) Dependências dos pares de consumo da droga: trata-se da rede de parceiros envolvidos na troca de informações e de endereços, no compartilhamento do uso, nas eventuais ajudas, enfim, toda a cultura ligada aos rituais de consumo da droga. Esta categoria é especialmente importante no caso de adolescentes para os quais, muitas vezes, o grupo da droga constitui o único grupo de referência e a dependência relacional do grupo pode ser, inclusive, mais importante e, frequentemente, anterior à dependência de substâncias.

(6) Dependências de crenças sobre o consumo de drogas: o usuário busca restabelecer suas dificuldades pessoais e relacionais. O efeito subjetivo dos diferentes produtos está intrinsecamente ligado às representações que o sujeito usuário possui sobre os efeitos das drogas que consome.

Conforme descrito acima, no enfoque sistêmico relacional buscamos visualizar a cristalização das relações de dependência em seus diferentes níveis, identificando e agindo sobre as estruturas disfuncionais que denominamos sistemas aditivos. Neste sentido, as questões que se colocam e que cada participante, desde a primeira entrevista, pode ser convidado a responder, são as seguintes:

• Qual a natureza dos vínculos que predomina nesta família?• Quem é dependente? De quem? E em quê?• Como se revelam e como se caracterizam as dependências relacionais na família? • Quem ganha e quem perde com as dependências?• Qual o preço, para si e para os outros, de permanecer na condição de dependência

nesta família?• Ou qual seria o preço de tornar-se autônomo nesta família?• Como cuidar das dependências sem impedir a autonomia?

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• Como se vive (ou não) as separações?• Existe uma história de rupturas relacionais?

Esta ampliação do conceito de dependência do produto, incluindo outros níveis de dependências nos diferentes contextos, onde a relação com as drogas se articula e adquire significados e também revela situações de riscos diferenciadas, tem se mostrado extremamente rica na nossa experiência na clínica de adolescentes e jovens.

O primeiro nível das dependências relacionais afetivas nos remete à temática da crise identitária e da conquista da autonomia do adolescente em relação à família que, por sua vez, está vinculada ao movimento de busca de vínculos externos ao núcleo afetivo primitivo.

A psicologia da adolescência destaca o valor das vivências grupais na resolução da crise de identidade, mostrando que a identificação com os pares é necessária para que o adolescente recupere a confiança em si mesmo, a qual fica abalada a partir das tantas transformações que vive nesta fase na qual ele nos surpreende a todo momento e, inclusive, surpreende-se a si próprio. Em face dessa estranheza vivenciada pelo adolescente, ele busca constantemente alguém que possa compreendê-lo como tal. Sente-se compreendido na medida em que encontra outras pessoas com os mesmos problemas com os quais se identifica e passa a confiar suas angústias, seus medos, seus desejos, e mesmo suas experiências mais íntimas relacionadas à sua vida amorosa e à sua sexualidade. Esta intimidade e confiança depositada nos amigos fazem com que eles se tornem um canal de forte influência na vida do jovem, superando, por vezes, a influência dos próprios pais e educadores. Por essa característica de busca constante de seus pares, os amigos constituem seu grupo de maior importância e de referência. A rede de amigos é um contexto que deve ser reconhecido no processo educativo e de socialização do jovem. O grupo na adolescência adquire o valor de objeto transicional, no sentido winnicotiano, necessário para que o adolescente possa viver seu processo de separação da família, projetando-se na sociedade no papel de adulto.

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Esta inserção em grupos de pares constitui, por sua vez, uma dimensão fundamental que faz parte da complexidade da clínica da drogadição na adolescência, trazendo como desafio a possibilidade de que os grupos de amigos se tornem grupos com práticas delinquentes, facilitadas pelo contexto de consumo de drogas. Nos referimos, aqui, não apenas ao contexto de ilegalidade das drogas ilícitas mas, também, à facilitação de condutas de violência ou transgressão associadas ao exagerado consumo de bebida alcóolica, por exemplo. Por esta razão, além das questões relacionais familiares, cabe avaliar-se, desde o acolhimento, os riscos presentes em relação às dependências de contexto, relacionadas às vinculações feitas pelo adolescente no recebimento, no pagamento e no consumo do produto, acima citadas como dependências do fornecedor da droga, dependências do financiador da droga e as dependências dos pares de consumo da droga.

De acordo com o nível social e o produto de consumo os riscos se colocam de forma diferente, mas cabe abordar com clareza os compromissos do adolescente e suas vivências com contextos de risco aos quais se expõe, por vezes ingenuamente, ou de forma onipotente, considerando-se fora dos riscos ou das traições ou das estratégias montadas pelos traficantes no caso das drogas ilícitas, assim como do mercado e da publicidade no caso das drogas lícitas.

Esta leitura sistêmica da drogadição na adolescência nos conduz a uma ampliação da análise da dinâmica familiar, em si mesma, incluindo as relações com os amigos, dimensão sempre presente no discurso dos pais e que são de vital importância no mundo afetivo do adolescente.

A rede de amigos e a natureza da sua participação grupal faz parte da compreensão do processo da pseudo-individuação do adolescente envolvido com drogas. Quando o grupo tem como único objetivo o acesso e consumo de drogas, torna-se um fim em si mesmo e deixa de ser um espaço transicional que promove a autonomização do jovem, pois as relações que se desenvolvem passam a ter conotação de dependência, fragilizando seus membros, na medida em que eles se comprometem mais e mais com as drogas. Neste caso, o grupo pode vir a excluir o adolescente ou algum evento externo pode tornar insustentável sua permanência no

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mesmo. O adolescente fragilizado e fracassado precisa retornar à família como seu único suporte, submetendo-se à obediência dos pais em uma condição de dependência tácita e inevitável dos mesmos.

Este ciclo pode durar períodos diferentes e se repetir num processo de recuperação da homeostase estabelecida entre a vida de família e a vida grupal que impede a autonomia e sustenta o processo de pseudo-individuação do adolescente (Stanton, 1988).

O caso J., relatado a seguir na vinheta clinica, oferece ilustração clínica da importância de pertencimento ao grupo de pares como alternativa de afirmação adolescente que se torna de extremo risco, na medida em que o adolescente se vincula a um contexto de consumo e distribuição de drogas ilícitas. Podemos também visualizar o difícil processo de resgate da referência familiar que impede a inserção desviante do filho, permeado de momentos críticos de um controle dos pais vividos como infantilização pelo filho ao suportar a submissão e obediência aos pais.

A seguir, ilustramos o risco da pseudo-individuação, através de um caso clínico

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Vinheta clínica (2): do poder e fama no grupo delinquente ao retorno para a família

J. é uma adolescente de 15 anos, tornou-se famoso com divulgação nas suas redes sociais de festas Rave que anunciava em sua página, via Instagram. Estas festas eram espaços de oferta de diversas drogas, mas do LSD em especial. Reconhece que oferecia sua colaboração para o sucesso dos eventos que bombavam, graças a sua mobilização e liderança que tinha junto à sua galera. Com esta função, conseguiu um impressionante número de seguidores nas redes sociais, sente-se muito prestigiado e poderoso. “... Antes eles me ignoravam. Agora eu saí da estatística, só faço coisa diferente. A lei não existe para mim, eu enfrento a autoridade. Sigo só a lei de Deus! Vender drogas, para mim, não é crime, é comércio. Sei que faço a diferença saindo das regras e eles me admiram pela minha coragem. Eu sou conhecido e respeitado pela galera! Isso é muito importante para mim – agora saí do anonimato...”

Confrontado pela família, nega que estivesse trabalhando para o tráfico, minimizando a consequência de sua atividade na divulgação dos eventos. No entanto, percebe-se que, paralelamente, passou a ter reconhecimento dos traficantes que lhe distribuem uma cota para uso pessoal. A mãe encontrou uma caixa de LSD escondida em gaveta de seu armário.

Além da gratificação pela popularidade nas redes sociais gerada pela sua colaboração nas festas, J. conquista a admiração dos colegas da escola pelo descumprimento de regras, enfrentamento de autoridades: costumava discutir com professores, usar drogas na sala de aula ... Seu comportamento resultou em expulsão da escola, pela segunda vez, com pedido para que os pais providenciassem urgentemente a sua internação pois estava dependente de drogas. Questionado sobre seu consumo, nega ser dependente, embora relate experiências diversas e familiaridade com muitos produtos: iniciou fumando maconha aos 13 anos, que ainda consome alternando com LSD e ecstasy nas festas Rave. Já experimentou cocaína mas não se deu bem ...

Além da expulsão da escola, a crise se agravou com a ocorrência de evento de violência entre J. e um amigo, surpreendidos pelo seu pai, brigando, no prédio de sua residência, ambos sob efeito de LSD. Ocorreu que o pai de J. entrou na briga para defender o filho, provocando entrada de outro adolescente para defender o colega, com agravamento das agressões, interrompidas pelo porteiro do prédio. Não houve registro policial do evento, a pedido da família de J.

O evento gerou ruptura de J. com o grupo e o amigo com quem se disputou, protegido pelo pai. Assim, seu melhor amigo tornou-se seu rival, ameaçando sua imagem, liderança e popularidade. A perda da liderança e de poder no grupo é o aspecto de maior sofrimento de J., que é invadido por fortes sentimentos de vingança e de ódio. Confessa desejo em recuperar seu espaço no grupo, fazendo justiça com as próprias mãos: “eu tenho meus meios para acabar com ele ”. Meu grupo é tudo para mim... eles sabem que eu não sou otário...”

A intervenção com J. e a família iniciou justamente após a crise do grupo, com violência física entre J. e seu melhor amigo H., envolvendo o pai de J.

(continua)

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Vinheta clínica (2): do poder e fama no grupo delinquente ao retorno para a família (cont.)

Os pais, muito desorientados, procuravam uma comunidade terapêutica, vista como única forma de proteger o filho e a família, ainda sob ameaças do grupo, consultam serviço universitário especializado em dependentes químicos que os remete à nossa equipe de terapia de família. Com a participação de J., seus pais e seu irmão menor (11anos), a equipe e a família acordam em construir, como alternativa à internação, uma rede protetiva para J. sem afastá-lo, mas submetendo-o a limites, permanecendo em casa. Com medo do grupo e reconhecendo as ameaças para a família, o adolescente recuou de seus ímpetos de vingança e aceitou os limites impostos pelos seus pais: proibido de sair de casa, de encontrar com os amigos, sem celular, J. mostra-se infeliz e inconformado com sua falta de liberdade. As sessões em família, permeadas por atendimentos individuais diários, permitiram uma continência da revolta e raiva vividas pelo adolescente, controlando seus ímpetos de revidar com violência a humilhação que sofrera. O tema da liberdade e da autonomia foi trabalhado em sessões de família, sendo criado espaço intermediário de expressão para todos. Os pais se mostraram chocados e puderam expressar suas angústias e medos pela situação gerada. Até então, a mãe assumira todo controle do filho, numa postura protetiva e controladora. O pai se revela decepcionado consigo mesmo e solicita ajuda para cuidar melhor do filho, pois não percebera os perigos que este vivia.

O exercício da autoridade do pai com o filho adolescente foi trabalhado em sessões pontuais do subsistema pai-filho. O pai se culpabiliza por ter ficado tão distante do filho, com viagens frequentes de trabalho. Avalia que o afastamento do filho foi agravado nos dois últimos anos por ter priorizado cuidar da esposa diagnosticada com câncer, que exigiu prolongado tratamento. Este momento foi o fator desencadeante das fugas do adolescente para a rua, sem controle dos pais, com apenas 13 anos, envolvendo-se com drogas e delinquência. J. revelou que, neste período, sentia uma grande tristeza porque se via abandonado e não entendia este distanciamento dos pais, que esconderam a doença da mãe para proteger os filhos. “Então, sem meus pais no meu pé, eu podia fazer tudo”. Mas sentia uma tristeza, porque eles nem ligavam mais...”

Uma reaproximação e fortalecimento do vínculo de confiança pai-filho foi possível como resultado da intervenção. O pai busca atividades para fazer com o filho e descobrem afinidades: futebol, aviação, filmes ... Na medida em que o adolescente se sente acolhido pela família, aceitou os limites colocados, estes sempre vistos como transitórios. Nas sessões individuais, trabalhava-se a importância de que reconquistasse a confiança perdida de seus pais. Aos poucos, J. inicia uma reflexão rumo ao seu amadurecimento com postura crítica de sua conduta, reconhecendo os riscos e gravidade dos fatos e dos atos cometidos. J. escolhe um novo colégio, que passa a frequentar, embora sem qualquer motivação para estudar.

Foi importante vislumbrar a recuperação de sua imagem e confiança na família, como base do processo. Mas a convivência no grupo de pares lhe faz falta e se constitui o próximo desafio dentre as negociações com os pais. Mesmo adaptado em nova escola, fazendo esforço para passar de ano, considera os colegas atuais “uns babacas” que não são do seu nível, pois são muito infantis ... Passa a ficar com meninas, pois tem facilidade em conquistar as garotas ... refere que deixou de usar drogas e pensa que não precisa disso para ser feliz ... Nunca assumiu ser dependente de drogas. Considera que usava apenas para “fazer bagunça”.

(continua)

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A criatividade do terapeuta é ingrediente fundamental na clínica da complexidade com adolescentes. Uma possibilidade de expressão é a redação de RAP, iniciativa do próprio adolescente que será explorada em seus potencial terapêutico, pois a arte se coloca como objeto intermediário, bem conhecido para estes casos.

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Vinheta clínica (2): do poder e fama no grupo delinquente ao retorno para a família (fim)

Após dois meses com diversos atendimentos, permeando-se sessões de família, com atendimentos individuais e com subsistemas (pai-filho e mãe –filho) percebe-se que o período de “obediência” atinge seu limite para J. e ele começa a apresentar novos comportamentos de rebeldia em casa e na escola. Em vez de estudar, escreve páginas e páginas de RAP que a mãe critica como sendo uma cultura de bandidagem... J. diz que vai ganhar dinheiro com estas poesias... seu projeto profissional é ser músico. Ao mesmo tempo em que temos a impressão que tudo vai recomeçar, pontuamos no que está fazendo a diferença, destacando que, agora, J. pode compartilhar falando para os seus pais, inclusive sobre esta necessidade de ser rebelde, o que foi pontuado como busca de criatividade para suportar tantas restrições na sua vida. J. desabafa na sessão de família o quanto ele está infeliz, vivendo uma rotina de vida imposta que detesta, vendo-se obrigado a estudar e fazer sempre as mesmas coisas ... os pais mostram-se inconformados, expressam sua decepção com o filho que não se mostra envolvido com os estudos e pedem que ele aproveite a escola de sua própria escolha e que estão pagando com sacrifício. J. desabafa que se surpreendeu com o nível de exigência desta escola e não sabe se será aprovado. Os pais pedem que se dedique mais aos estudos.

Em sessão individual, J. confessa que decidiu voltar à sua vida: preciso retornar a viver com meus amigos, não dá para ficar assim isolado. Sua maior reivindicação é recuperar seu celular, no qual tinha acesso a toda sua rede social ... Questionado sobre como se sente para este retorno e o que aprendeu da experiência sofrida? responde: - Descobri que lá, nada mudou, eu é que mudei. Percebi que queria ser o melhor de todos, mas não é assim ... A gente quando erra tem que saber pedir desculpas, sei que a galera ainda me aceita ... Trabalhamos sua crise identitária: sua identidade depende do que você pensa de si mesmo, do que os outros pensam de você e do que você pensa que eles pensam ... Questionamos se ele sabe o que quer para si mesmo, como projeto de vida: - Quem é você? - Quem deseja ser? Um trabalho pessoal, em processo, se revela com suas palavras sinceras e emocionadas: sei que estou mais fortalecido, mas ainda perdido...

O momento é precioso, com importantes questões: como reconstruir um novo espaço de reconhecimento e gratificação positivos de que J. necessita, além da família? Como mediar seus conflitos ainda presentes nas relações com o grupo? Quais riscos ainda apresenta de novos envolvimentos delinquentes? Como promover novos pertencimentos de que necessita para superar sua posição atual de isolamento, desmotivação e sentimentos de fracasso na vida social? Como se divertir sem se colocar em risco pelo envolvimento com drogas?

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Esta vinheta, embora relatando apenas uma etapa inicial (dois meses) do processo de intervenção sistêmica que apresentamos como uma clínica da complexidade na drogadição de adolescentes, ilustra que o maior foco não se coloca na relação com o produto, mas nos riscos atrelados pelos vínculos com os pares, numa análise que se amplia para as dependências de contexto. Entendemos que o resgate das referências familiares faz toda a diferença, neste momento. A natureza do vínculo que o adolescente constrói junto aos grupos de pares vai definir se as transgressões serão atos adolescentes apenas de passagem ou se vai ter uma inserção marginal mais definitiva, como alternativa compensatória da falta de referências familiares estruturantes.

3 - Drogadição e (a) filiações nos grupos de pares: transgressão, margem e desvioSe, por um lado, o vínculo grupal com os pares, na adolescência,

representa fonte importante de referência, de pertencimento e, portanto, de influência estruturante no seu processo de autonomização da família, o envolvimento com drogas pode contribuir para uma cumplicidade grupal que não seja estruturante, na medida em que promove comportamentos delinquentes que conduzem o adolescente a uma identidade desviante (Selosse, 1997).

O contraponto da vivência grupal construtiva e necessária à socialização é a inserção em gangues com fins destrutivos, nas quais o adolescente satisfaz sua necessidade gregária mas corre riscos de se envolver com a cultura marginal e riscos atrelados. Os jovens que não têm oportunidade de viver experiências em grupos sadios tenderão a fazê-lo em ambientes marginais, onde o grupo não sustentará sua finalidade estruturante de transição da família para o papel de adulto na sociedade. A inserção nos grupos juvenis poderá se tornar um contexto de risco se, em vez de uma ampliação das vivências afetivas e de socialização vividas no seio da família, representar um espaço de inclusão substitutivo à família. O grupo, nesse caso, não se coloca em benefício do

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amadurecimento de seus membros, mas torna-se um fim em si mesmo, com uma função de pertencimento identitário e não transitório. Neste caso, os vínculos de afiliação com os pares dão lugar a uma filiação, ou seja, preenchem uma função substitutiva da família.

Uma das dimensões da complexidade da clínica das dependências com adolescentes é que precisamos avançar do espaço restrito da família para uma compreensão dos comportamentos marginais como ampliação das experiências afiliativas próprias do processo de socialização. No entanto, devemos ficar atentos ao tipo de inserção e aos destinos dos grupos de pertencimento. É fundamental a distinção entre filiação e afiliação e também entre comportamentos à margem na adolescência e opção pelo desvio ou pela identidade marginal.

Um dos maiores desafios que o adolescente enfrenta quando se propõe a deixar ou diminuir o consumo de drogas, mesmo consciente de seus riscos e prejuízos, é o afastamento dos amigos, ou seja, sua dependência dos pares de consumo. Muitas dimensões da vida do jovem entram em jogo quando precisa se afastar daquele que, por vezes, é seu único espaço de acolhida e de pertencimento. A vinculação com os pares no contexto do uso de drogas ilícitas gera cumplicidades e também possibilidades em relação às demais dependências de contexto: dependência do provedor e dependência do fornecedor. Cabe aqui reconhecer a proteção do grupo e também a segurança relacionada à compra e ao pagamento da droga. Na clandestinidade do comércio ilegal, embora cada vez mais tolerado e facilitado pelas próprias redes sociais, os laços de confiança e de lealdade se constroem e se fortalecem. A união do grupo, por vezes, sobrepõe o interesse e a vontade individual.

Os atrativos pela transgressão, que são próprios da adolescência, encontram uma funcionalidade que se torna praticamente irresistível para o adolescente que se encontra fragilizado em sua imagem e autoestima, ou em conflito na família. O mercado de distribuição de drogas explora ao máximo esta condição que é, paradoxalmente, própria da condição adolescente, e de forma impiedosa lhes oferece oportunidades irresistíveis.

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A qualidade dos vínculos com a família determina o destino da participação grupal. Enquanto para os adolescentes marginais as atividades transicionais têm algo a ver com o interdito de criação, para os desviantes destaca-se o interdito de participação, quer dizer, uma recusa de toda identificação social e uma busca de gratificação pela exploração do outro. A natureza da participação grupal e do que buscam nos grupos é diferente: enquanto os adolescentes na condição de condutas “à margem” conseguem se expressar por meio de uma diversidade de pertencimentos grupais, aqueles que enveredam para o “desvio” se refugiam em situações que necessitam para se afirmarem no grupo e na sociedade, voltados apenas para suas necessidades primitivas de afirmação a qualquer custo e de inclusão desesperada. Assim, nada mais conseguem do que se deixar conduzir por um cego caminho, sem rumo claro, perdendo-se em reivindicações que podem acabar por compulsivos atos de destruição.

A literatura aponta esta problemática da separação afetiva como uma característica presente nas famílias dos jovens dependentes de drogas que, em geral, só conseguem sair em ruptura com os pais, o que metaforicamente se coloca com “sair pela janela ...”, pois um dia deverá ainda retornar para buscar suas coisas e sair pela porta da frente (Ausloos, 1983). Nos períodos de ruptura dos vínculos familiares podem encontrar substitutivo nos grupos de pares nos quais estabelecem filiações, pois se vinculam de forma substitutiva à família, em vez de construírem afiliações entre pares que ampliam seu mundo familiar para novos espaços afetivos.

Sendo a delinquência juvenil um fenômeno essencialmente gregário, os atos de transgressão cometidos por adolescentes em grupo e determinadas experiências na cultura marginal merecem sempre uma consideração destes aspectos da pressão grupal sobre o jovem, por um lado e, por outro, de seu fascínio por experiências de cunho “marginal”. Estes comportamentos marginais precisam ser compreendidos em sua natureza transitória e, paradoxalmente, estruturante na adolescência.

Como nos ensina Jacques Selosse (1997)

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a margem é, ao mesmo tempo, o campo da ilusão e o espaço de tensão que permite descobrir e testar a elasticidade, a diversidade e a finalidade das mudanças da adolescência (...). Nesta dupla perspectiva, as marginalidades juvenis podem ser consideradas como condutas de explorações, de tentativas e erros que utilizam um espaço de transição e de negociação para efetuar as ligações e re-ligações próprias à adolescência, a fim de estabelecer novas relações consigo mesmo e com novas pessoas significativas, através de diversas tentativas de trocas emocionais e corporais. O espaço adjacente à margem constitui, de certa forma, o acesso a uma outra cena, por uma outra representação de si. A margem é a zona de ilusão propícia às experiências, à criatividade e à efervescência sexual. O tempo da margem na adolescência pode ser considerado como o de uma nova gestação, de um renascimento. A margem é um tempo público, propício às identificações múltiplas e efêmeras, facilitando a tentativa de estilos de sociabilidade e de solidariedades. Mas, a margem é também, um tempo privado, no decorrer do qual o jovem tem como companheiro de viagem seu próprio corpo. Para a maioria dos adolescentes, a viagem da margem responde a um rito de passagem no decorrer do qual, separação gestação e reintegração vão marcar as etapas significativas. Permitindo a afirmação, a originalidade e a diferenciação, a saída do adolescente da margem poderá ser bem sucedida quando ele conseguir elaborar a angústia face à sua problemática identitária.

Seguindo esta fantástica contribuição em psicossociologia clínica, que aporta, a nosso ver, uma fundamental compreensão da complexidade do e dos paradoxos vividos pelos adolescentes, entendemos que a utilização do espaço da margem no curso da adolescência permite transpor para um espaço externo e tentar enfrentar as transformações não controladas da puberdade. Trata-se, para o adolescente, de redefinir novas fronteiras com o seu ambiente, entre seu espaço psíquico interno e o mundo externo, de

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descobrir os significados simbólicos da troca, de redistribuir valores aos objetos e de negociar novas relações com as normas e com os poderes.

O processo de afiliação e a continência encontrada no grupo de pares é estruturante na construção identitária. O grupo funciona como objeto transicional, rumo à autonomia e separação necessária da família. O grupo de adolescentes adquire coesão pela comunidade de interesses e de necessidades: praticam as mesmas atividades, padecem dos mesmos problemas. Esta identificação e aliança com o grupo que consome drogas confere aos adolescentes a segurança de que necessitam, permite protegerem-se do abandono, da repressão e, por vezes, das precariedades econômicas em que vivem. Articulam-se, aqui, muitas necessidades e o uso de drogas torna-se um ato inerente à subcultura do grupo de pares, adquirindo um efeito socializador.

A capacidade antidepressiva das substâncias psicotrópicas utilizadas, seus efeitos desinibidores que facilitam a comunicação e o sentimento de comunidade, criado pela cumplicidade de usar drogas, aliados ao contexto de transgressão, produzem um bem-estar artificial que se converte em antídoto frente à depressão que vivem os jovens em condições familiares e sociais adversas.

As imagens associadas à margem são as da curiosidade e da exploração, da diferença e da semelhança. A saída da adolescência pode, no entanto, fracassar se o jovem se mantiver prisioneiro da difusão de seu eu na multiplicidade de seus personagens. A margem é a borda do compromisso entre identidade social e pessoal.

A prática de transgressão pode gerar conflitos com relação a uma identidade delinquente:- Quem eu sou? - Sou mau?- Como pude fazer essa maldade? - O que está acontecendo comigo?- Como posso ser tão diferente em momentos diferentes? - Qual é o meu verdadeiro EU? - Como saber quem sou eu verdadeiramente?- Quem pode me dizer?- O que pensam sobre mim? - Como eles me veem? - Eu vou ser o que eu quero ser ou o que eles querem que eu seja?

É preciso distinguir, pois, os comportamentos à margem dos comportamentos desviantes dos adolescentes. Enquanto os

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comportamentos à margem representam movimentos transitórios de curiosidade, experimentação e de descobertas, inclusive de viver a transgressão passageira, ligada à busca de exploração e criação, os desvios consistem em dinamismos de condutas que derivam da trajetória da busca de referências espaciais que perdem sua orientação, que se chocam por falta de referências.

Os desvios remetem a processos de ruptura e de falta de referências, com imagens associadas à queda, à ruptura, ao afrontamento e ao fracasso. A queda evoca o desequilíbrio, o transbordamento, o desmoronamento por falta de envolvimento ou por falta de limite. A queda engendra a fratura; aqueles que caem são aqueles que tombam e que repetem os cenários do abandono. Os desviantes são aqueles que não possuem vínculos para retê-los ou cujos vínculos são muito rijos/arraigados/sem elasticidade ou muito sufocantes para que eles possam utilizá-los para desenvolver suas condições de controle dos impulsos para que se tornem mais donos de si mesmos. Mais do que os marginais, os desviantes reagem à privação de figuras afetivas. Não podendo representá-las, eles não podem antecipar as expectativas do outro e só encontram satisfação através da excitação gerada pela provocação social. Privados de ancoragem, de linhagem e de legados transgeracionais, os jovens desviantes utilizam a ruptura, a derrapagem social.

Além de uma carência primitiva e de uma falta fundamental, é a partir de um fantasma de dívida e de submissão a uma injustiça que a maioria dos desviantes age, por desafio, por reivindicação e por transgressão, em benefício único de sua afirmação, como se a vida lhes devesse satisfação e lhes autorizasse a serem sujeitos de exceção: fora da norma, fora da lei. Observemos igualmente que, para determinados desviantes, acrescentam-se ao sentimento de dívida os sentimentos de perseguição, com uma projeção do conflito para o exterior o que os coloca fora de si mesmos e fora da norma (Selosse, 1997).

Finalizamos apostando na possibilidade de avançarmos para uma clínica da complexidade da drogadição na adolescência, a qual resulta em uma intervenção com as famílias, contextualizada nos demais imperativos

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da socialização desta fase de vida que se prolonga junto aos grupos de pares. Estes, por sua, vez, nem sempre garantem o processo socializador, podendo, ao contrário, favorecer uma inserção desviante ou uma identidade delinquente. Para tanto, o desafio para uma intervenção complexa implica a ampliação dos atores envolvidos no processo terapêutico, através de intervenções sistêmicas que extrapolam a família, propriamente dita, incluindo-se atendimentos grupais e comunitários. Nesta perspectiva, vimos seguindo metodologia da prática de redes, na qual concebemos a rede como linguagem dos vínculos (Dabas e Najnamovich, 1995) e da terapia de redes (Saidon, 1995; Pakman, 1995).

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A clínica da drogadição no paradigma da complexidade

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Maria Fátima Olivier Sudbrack

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CAPÍTULO 2.2

O paradigma da toxicomania para além da droga:

a clínica das adições generalizadas

Giovana Quaglia

Hipermodernidade e satisfaçãoO dogma produtivista do alto conhecimento a qualquer preço, do consumo exagerado e da “rainha” economia não encontra mais eco entre os jovens que se interrogam sobre seu futuro, apontam a destruição ambiental, as humilhações escolares e as mortes por excesso de trabalho. Entretanto, quando a sociedade dominante não conhece outros deuses além do índice Nikkei e considera a abertura das lojas aos domingos um avanço social, em direção a que valores podem (os jovens) voltar-se? (Barral, 2001, p. 21)

A hipermodernidade define a situação paradoxal que a sociedade contemporânea se encontra entre a cultura dos excessos e o elogio da moderação. É preciso ser mais que o outro, ser o mais fashion, o mais descolado, mais bonito e, ao mesmo tempo, valorizar a natureza, o equilíbrio, a paz. Como nos indica Lipovetsky (2004):

No cerne do novo arranjo do tempo social, temos: a passagem do capitalismo de produção para uma economia de consumo e de comunicação de massa; e a substituição de uma sociedade rigorístico-disciplinar por uma sociedade-moda completamente

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reestruturada pelas técnicas do efêmero, da renovação e da sedução permanentes. (p. 60).

A temporalidade passa por um deslocamento do futuro para o presente. Observa-se a consagração do agora. A hipermodernidade revela-se em um excesso de velocidade. O tempo de espera, mistério, enigma, que jogava ao futuro uma interrogação, é substituído por uma procura desenfreada por respostas. Toda dúvida que ocorra pode ser subsumida ao acesso instantâneo de soluções oferecidas pelo consumo, tecnologia e conectividade. Se existe um mal-estar, se algo está fora do feliz, saudável, produtivo, eis uma razão para ir ao google e inferir rapidamente uma localização ao que antes era inexplicável, e assim buscar no mercado a solução mágica!

Estamos nos tempos do Wi-Fi, carregando no bolso aplicativos e soluções em softwares que me conectam ao mundo. Vivemos em fotos selfies, em que compulsivamente clico-posto minha pseudo-felicidade. Na imagem tudo posso! O tempo que não vivo é eternizado na exposição das imagens pelo Snapchat e Instagram. Os amigos que não tenho e não encontro falam comigo pelo Facebook e Whatsapp. As ideias que não desenvolvo são jogadas em frases no Twitter. Os heróis que não existem podem ser seguidos no Youtube. Para que esperar o próximo episódio de uma série se posso assisti-la inteira, de uma só vez, no domingo pelo Netflix?

Online é a tendência!Na apresentação do livro A Era do Vazio, Silva (2005) sinaliza: “Não

queremos a ilusão do futuro nem a coerção do passado. Postulamos a intensidade do aqui e do agora como necessidades vitais” (p. XIII). A satisfação imediata dos prazeres estimula a urgência do consumo, enaltece a imagem de um paraíso artificial do bem-estar, conforto e lazer. Para que esperar para amanhã a satisfação que posso ter hoje? “I can get now satisfaction”. Surge toda uma cultura hedonista e psicologista que estimula a urgência dos prazeres, incita à satisfação imediata das necessidades.

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Consumir sem aguardar. Postar a imagem sem saber exatamente quem viveu aquela cena.

Os tempos são de mostração (dizer as coisas que estão na aparência) e, distanciando da preocupação com a demonstração (dizer as coisas como são na essência).

Esvaziamento pelo excessoO hiperinvestimento online na satisfação exibicionista trouxe, por sua

vez, um voyeurismo invejoso promovido pelo ideal especular do discurso do capitalismo e seus avatares de prazer. Sempre parece ter alguém mais feliz, mais bonito, mais rico, mais saudável, viajando mais... indo a mais festas... com mais amigos.... mais... mais....

No mercado do consumo não cessam de ser lançados produtos. Ocorre uma desatualização constante dos objetos adquiridos, que passam a ser descartáveis e devem ser substituídos por outros mais novos, pois são ultrapassados.

Do mais ao menos. Como no Mito dos Carregadores de Água, os tonéis furados do Górgias (Platão), quanto mais tenho menos estou perto de ter! Vivemos para a encher a imagem e nos esvaziamos na existência, em uma precariedade de satisfação, efeito de uma falta que, forçosamente, exige ser suprida.

Lipovetsky (2005) sustenta:quanto mais se desenvolvem as possibilidades de encontro, mais os indivíduos se sentem sós; quanto mais as relações se tornam livres, emancipadas das antigas restrições, mais rara se torna a possibilidade de conhecer uma relação intensa. Por todo lado há solidão, vazio, dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si mesmo (p. 57).

Na hipermodernidade, para além da presença do esvaziamento pela mais-valia, poderíamos falar também de uma “solidão conectada”, que seria

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esse contraditório de estar só acompanhado, seja dos outros, seja dos dispositivos eletrônicos. Estar conectado 24 horas não é garantia de ter conexão afetiva. Esse é o paradoxo!

Solitário e esvaziado de um lado e, de outro, conectado a uma felicidade prometida da imagem. Vivência de insatisfação e isolamento fazem com que as pessoas se deparem cada vez mais com uma dor invasiva, sensação de abandono, falta de propósito, uma agonia incompreensível, um existir sem sentido.

Um mal-estar que se localiza em formações sintomáticas no corpo, ou em atos impulsivos, vazios de sentidos e inexplicáveis. Hoje recebemos pacientes com queixas sobre o inevitável, o incontrolável, um mal-estar que invade, salta e envolve o corpo.

Contudo, na hipermodernidade não existe muito tempo a perder com as desmedidas das emoções. Já não é mais possível ficar triste, angustiado; mas também não se pode ficar muito alegre, cantar sozinho ou falar com as paredes. Não é possível chorar e depois rir sem parecer estranho. Parece ser necessário estar sempre estabilizado. Quem não se encaixa no padrão equilibrado deve procurar um tratamento, pois o discurso social aponta que algo não está correto, não está normal!

A mercadoria simbólica da normalidadePresentificamos uma patologização dos sentimentos cotidianos,

qualquer emoção fora de uma normativa social é submetida ao anormal. Vivemos uma psicopatologia classificatória, com significantes mestres da medicina e das estatísticas. Se no olhar da psicanálise o significado do sintoma pode variar na singularidade de cada um, o significante promovido pelos manuais psicopalogiza as vicissitudes do viver. DSM e CID são sistemas de diagnóstico que transformam sintomas particulares em classes universalizantes de transtornos mentais. Exclui-se a subjetividade em prol da objetividade científica. Percebe-se a racionalização da dor (subjetiva) em transtornos classificáveis e curáveis, a partir do advento da vertente científica do pharmakon.

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A nomeação médica de um transtorno passa a ser um “alivio”, pois é um ato de sentido para o que não fazia sentido. O diagnóstico fornece um ganho rápido aplacando a angústia, a falta de significação para a dor, ancorando o sujeito numa formação imaginária de significado, mesmo que nessa rotulação ele se torne um “anormal”.

Essa explosão de categorias tem sempre seu reflexo na dinâmica dos grupos sociais. “Microgrupos, micrototalidades” que alojam uma pertinência possível vinculada a um modo de nomear como se sofre e se tem prazer (Sinatra, 2013). Nessa pretensão de pertencimento se vê uma tentativa de tamponar um vazio ineliminável singular, a cada um, em seu existir.

As condutas patologizantes estão no lugar comum e os diagnósticos são simplificados. Visando à objetividade apagou-se a fala, pergunta-se apenas por comportamentos, humores, por sintomas visíveis, e dessas informações se extrai um transtorno e um pharmakon prêt-à-porter.

Caímos no clichê. Eu sou... bipolar, alcoólatra, anoréxico, deprimido, hiperativo, traz um lugar comum e seguro para as diferenças. No eu sou, instala-se, pelo discurso da ciência, um saber sobre o mal-estar e uma fórmula de pertencimento.

Diante de tantos transtornos acompanhamos a revolução da farmacologia e seu arsenal de químicos, que passaram a ser os responsáveis pelo domínio da loucura fora dos manicômios. Tudo que foge do normal merece a aplicação da norma, e a química instrumentaliza a norma; passando a ser item indispensável para uma pseudoconvivência em uma sociedade feliz.

Em Fedro, Platão (1975) nos indicava que a linguagem é um pharmakon e, como tal, possui diferentes efeitos de sentido: poção mágica, cosmético, remédio, veneno. Se tomarmos o sentido de remédio, percebemos que no discurso da ciência o pharmakon, na cápsula química da indústria farmacêutica, passa a ocupar um lugar central na sociedade de capitalista. A medicação adquiriu um significado cultural de símbolo de saúde mental, bem como objeto de direito dentro do mercado de consumo.

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É alarmante, mas é quase impraticável alguém ir ao médico hoje, relatar um mal-estar na “alma” e não sair com a prescrição de algum medicamento. Ansiolítico, antidepressivos, estimulantes, estabilizadores do humor... poções mágicas dos xamãs da ciência na sociedade de consumo.

A droga prescrita é a droga do bem! Intoxicar-se passa a ser mercadoria de prateleira para a sobrevivência da cultura. “A farmácia da vida cotidiana abre sua maleta como modo de responder aos impasses do novo mundo” (Beneti, 2012).

Na medicalização dos sintomas ocorre a supressão química do sujeito do inconsciente. O medicamento torna o insight dispensável, reduzindo o mal-estar a um cérebro problemático, com um déficit químico. A equação da saúde mental é tratamento=supressão de sintomas. Com tanto mal-estar, tantos sintomas, caímos na ironia do “todos medicados!”.

Percebe-se, por um lado “uma sociedade de consumo que é caracterizada por ser uma sociedade de excessos e extravagâncias, de uma multiplicidade de objetos de desejo e, portanto, da redundância e de largo desperdício.” (Bauman, 2008, p. 126). Por outro, a explosão das classificações e seus espectros, que tentam descrever as mais variadas formas de sofrimento e tratá-las com um mercado de pharmakons produzidos em nível global e cada vez mais ao alcance de todos, com vistas a eliminar qualquer sintomatologia desestabilizadora do bem-estar social.

E é aqui que tempo, tecnologia, imagem, mercado e pharmakon se unem em um bem comum de normalidade, criando um paradigma sobre a toxicomania hoje.

Toxicomania ontem & Adições hojeEu diria que hoje vivemos uma toxicomania às avessas. A

toxicomania hiper-moderna não é a de Cristiane F, Tomaz de Quincey, William Burroughs. Esses são nomes de toxicômanos de outros tempos. Junks. Eram toxicômanos rebeldes, cínicos ao capitalista, insubmissos ao mercado consumista, na contracultura, entregues a um prazer localizado.

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O toxicômano hoje está dentro do discurso capitalista e sua produção infindável de objetos de consumo. Sua solução de pharmakon está em participar da competição social, ser produtivo, não manifestar oscilações de humor, não se irritar, não comer muito, não dormir muito, fazer exercícios, trabalhar, fazer shopping, seguir uma carreira, fazer crédito, ter uma família, ficar online, ser yuppie.

Isso se reflete no aumento do consumo de algumas drogas para aumentar a produtividade de trabalho e intelectual – drogas para manter o foco e humor estável. O sujeito é fabricado para estar em vigília, em um gozo homem-máquina que precisa estar concentrado, conectado e ser invencível 24 horas por dia, imerso na temporalidade urgente do relógio da consciência.

Sim, ainda observamos seres que usam drogas andando pelas ruas. Mas cabe refletir que embora usem drogas, não são obrigatoriamente toxicômanos. Aquilo que chamamos de cracolândia não é um lugar obrigatório de toxicômanos. Acima de tudo, é um local de excluídos do discurso capitalista, pessoas sem acesso aos bens de consumo e à inclusão via capital. Pessoas que podem usar drogas, mas que também são depositárias do racismo, violência, seres que passam fome, e sobrevivem na ausência do Estado de Direito. Essas regiões nas grandes cidades são locais que apontam para a complexidade das questões sociais no mundo contemporâneo e merecem um estudo mais despreconceituoso. Creio que é preciso ficar atento para não usarmos a imagem da exclusão e da segregação como imagem e nomeação da toxicomania.

Observamos que muito da confusão que existe advém do fato de que uma das principais questões conceituais na área das toxicomanias está no fato de que a ciência concebe o fenômeno das toxicomanias a partir de uma visão normativa, centrada no objeto droga. Um discurso que ao falar das drogas, situa o destino pharmakon como um veneno que intoxica e degrada a alma. A droga das ruas é a droga do mal!

Assim, tanto do ponto de vista jurídico como médico, encontramos uma concepção policialesca e repressora na relação de um sujeito com a

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substância, que tende a reduzir o usuário de drogas a um dejeto e confundi-lo com a sombra de um objeto persecutório, maligno, capaz de o deteriorar por inteiro.

Sem dúvida, na clínica enfrentamos situações que podem, por vezes, nos confundir a respeito do que seria o sujeito e o que é a toxidade da substância. Porém em um olhar mais atento, é necessário perceber que a toxidade, do ponto de vista psicanalítico, se coloca mais no sentido significante que o objeto toma na formação subjetiva de cada sujeito, do que diante de suas propriedades químicas inerentes.

Existe um divisor teórico e de abordagem entre a psicanálise e o ponto de vista médico ou jurídico. De um lado, temos uma nomenclatura para situar uma maneira subjetiva de um sujeito se ligar a um objeto em um determinado momento de sua vida, de outro, temos o nome dado a um quadro sindrômico ou normativo que estabelece a relação a partir da quantidade e da qualidade da substância. No primeiro, o destaque está no sujeito e, no segundo, importa-se com a substância, o que destaca o objeto e não o sujeito, produzindo um deslocamento que revela as políticas atuais de redução da subjetividade.

A ciência das dependências ou dos transtornos decorrentes do uso de drogas vem tentando classificar esse inclassificável do sentido subjetivo que uma substância pode ter para alguém, generalizando em veneno seu valor pharmakon. O esforço de tratamento, nesse sentido, é o de introduzir uma terapêutica da medida, da contabilidade, de um comportamento mensurável e modificável. Um discurso ideológico, justificado por estatísticas, que atribui uma natureza unicamente tóxica sobre a substância e seus efeitos patológicos.

Diante desse posicionamento, a substância torna-se central e é colocada como causa de uma espécie de “peste” que se alastra pelo mundo e, por isso, deve ser combatida e seu uso proibido. Porém, a cada momento surge uma nova substância e, a lista de drogas vai sendo ampliada. Um enxame de drogas na rua, uma infinidade de substâncias que deveriam ser controladas, reguladas, proibidas, evitadas.

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Como consequência desta hipervalorização da substância criou-se uma cultura de guerra às drogas e aos usuários, o que justifica políticas repressivas e de tratamento compulsórios, invasões de privacidade, aprisionamento indevido, imposições de condições desumanas e degradantes. A guerra também alimenta um imaginário social que reforça atitudes preconceituosas e segregacionistas em direção aos seres que consideram “amaldiçoados das drogas”, entre eles: negros, moradores de rua, desempregados, abandonados. A grande confusão imaginária faz até hoje estereótipo dos usuários de drogas com os excluídos sociais, dificultando ações mais humanitárias e cidadãs.

Porém, também é observável, na atualidade, uma crescente tendência de queda da política repressiva e sua abissal lista de drogas malignas. O debate sobre a possibilidade de legalizar o consumo de drogas está em pauta. A política de redução de danos vem se confirmando como uma maneira mais humana de lidar com a questão. Não há dúvida, em um amplo espectro político e social, de que a guerra às drogas falhou. Se antes o sistema classificatório pretendia localizar o mal da desmedida e controlá-lo, hoje, como apontei no inicio, com as mudanças da hipermodernidade e a ascensão do hiperconsumismo, temos uma onipresença do direito ao descomedimento, tornando praticamente impossível tentar regular a via de satisfação que uma pessoa pretende obter. A possibilidade de obtenção de prazer deixa de estar localizada em uma substância e passa a estar por toda parte.

O paradigma que se coloca na contemporaneidade é o de que ao situarmos uma patologia em um objeto, não observamos exatamente a capacidade de deslizamento do desejo para além da necessidade. A velocidade de produção de pseudonecessidades e o consumismo desenfreado promovido pelo capitalismo, conjugados à oferta dos mais variados tipos e combinações de pharmakons, nos faz refletir se não estaríamos passando da era das toxicomanias para a das adições generalizadas?

Hoje, não vemos na clínica mais tantos casos clássicos de toxicomanias. O que percebemos é um mal-estar causado a partir da

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relação das pessoas com os objetos de consumo cuja aquisição e falta norteiam o cotidiano. O que seria direito torna-se dever. O imperativo é “você tem que ter!” O direito acabou tornando-se obrigação. Os objetos se impõem e a busca por eles causa um empuxo aditivo decorrente da promoção incessante de mercadorias para consumo.

Com isso, podemos afirmar que o que chamamos de tóxico mudou. Se antes o tóxico era uma droga, hoje as listas infindáveis de objetos do desejo nos apontam que o tóxico pode ser qualquer coisa: drogas, sexo, comida, internet, bebida, dinheiro, amor, roupas, trabalho... O discurso atual impulsiona para a plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha no universo do consumo. A cultura do consumo fomenta uma busca ativa de objetos descartáveis, na tentativa de obtenção da tal satisfação plena e generalizada.

Ao falar adições, o que se pretende é uma provocação via esse plural. Adições nos convoca a refletir que não existe uma única forma de um sujeito intoxicar-se. Fazer da droga o mal e com ela guerrilhar chega a ser uma piada. Constatamos que na atualidade tudo ou qualquer coisa pode tornar-se “droga”, num escorregar metonímico: facebook, relacionamentos, celular, jogos, séries de TV, roupas, música, comida, jogo, sexo, fotos, viagens.

“Todos adictos ao consumo de massa” (Sinatra, 2010, p. 13). Nesse sentido, a discussão acerca das toxicomanias pode ser ampliada a partir da abordagem desta não somente enquanto uma configuração sintomática atual relacionada ao abuso de drogas, mas também enquanto o próprio caráter adictivo da civilização hipermoderna, ancorado num modelo capitalista.

O paradigma do sujeito dos nossos tempos é o do consumidor voraz, seja de pharmakons ou da infinitude de objetos lançados no mercado de consumo.

Ao falar de adições generalizadas, situamos um sujeito que tem um modo constante de busca por prazeres e sua face sem-limite. Uma maneira incansável de ser insatisfeito. Seria pensar as adições nos termos do que se repete sem parar de repetir. Assim, embora seja um modo de prazer, ele

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nunca se sacia, “o gozo é o tonel das Danaídes, e que uma vez que ali se entra não se sabe aonde isso vai dar. Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina" (Lacan, 1992, p. 68).

O paradigma da toxicomania está nesse mais além das drogas que se impõem na atualidade, essa busca do prazer que vai das “cócegas a labaredas”. Se Freud nos indicava que uma das saídas para o mal-estar era a intoxicação, hoje observamos uma intoxicação generalizada. Não há nada mais atual do que ser adicto!

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Giovana Quaglia

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CAPÍTULO 2.3

Toxicomania e adições:a clínica viva de Olievenstein

Diva RealeMarcelo Soares da Cruz

Fabio Carezzato

Um Quilt para OlievensteinSomos todos caudatários dos ensinamentos de Olievesntein: a

geração dos pioneiros de forma direta, criadores dos primeiros grupos de estudo e serviços de atendimento que reproduziam seu pensamento clínico. Este foi o meu caso. Quando ainda residente de Psiquiatria do Instituto de Psiquiatria, durante o preparo de uma aula sobre farmacodependências para alunos do 5º ano da Faculdade Medicina da USP, encontrei e li o “Não há drogados felizes”, de Claude Olievenstein. Se havia alguma dúvida se esta clínica poderia vir a me interessar, essa leitura produziu um encantamento imediato.

O apaixonamento por esta clínica motivou – a mim e a dois colegas, todos nós residentes de psiquiatria – a fundar, em 1983, o primeiro grupo de estudos sobre drogas e dependência, e no ano seguinte, iniciar o atendimento de pacientes dependentes de drogas ilícitas e outras substâncias psicoativas. O Gref/HC-IPQ/FMUSP, Grupo de Estudos de Drogas e Farmacopendência, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, teve vida solo por quatro anos, vindo a ser incorporado ao Grea desse mesmo instituto, que à época era um grupo que cuidava exclusivamente de alcoolistas.

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Em 1984, conheci pessoalmente Olievenstein, por ocasião de sua primeira vinda a São Paulo, em evento organizado por nós, grupo formado por estudiosos do assunto, universitários, médicos, educadores e psicanalistas, reunidos pelo Padre Charboneau, do Colégio Santa Cruz. Assim foi que São Paulo durante os dez anos seguintes passou a ser incluída no circuito de viagens de Olieve visitando, fomentando, supervisionando os recém-fundados e principais centros de referência de drogas brasileiros. Até o ano de 2001, quando de sua aposentadoria, Olieve havia recebido centenas de brasileiros como estagiários no Hospital Marmottan, deste namoro de Olieve com o Brasil.

Nestes tempos difíceis em nosso país, verificamos os efeitos nefastos do retrocesso político sobre os mais vulneráveis, dentre ele, os usuários de drogas – aqueles em situação de rua, da conhecida Cracolândia. A publicação deste livro dedicado ao pensamento clínico de Olievenstein é uma contribuição ao enfrentamento.

1971: nascimento de MarmottanO estigma: Olievenstein contava que na inauguração da Clínica

Marmottan houve queixas de alguns vizinhos, que reclamavam de pequenos roubos nas lojas do bairro. As queixas chegaram à policia. O detalhe é saboroso: as portas de Marmottan ainda não tinham sido abertas, e, portanto, não tinha recebido pacientes!!

Não nos esqueçamos que Marmottan foi “l’enfant terrible” de maio de 1968….

O que almeja: Marmottan é um lugar de vida, tal como foi proposto por J. Oury1, um lugar onde viver com a loucura. A instituição seria, então, o quadro que contém o contrato, o local, a repetição, o projeto de uma lei na maneira de falar, garantindo a liberdade da palavra, com o compromisso de renunciar a toda crítica a ela.__________1. La Borde ou le Droit à la Folie, documentário disponível no site l’Institut National d’Audiovisuel (INA):

http://www.ina.fr/sciences-et-techniques/medecine-sante/video/CPA77052152/la-borde-ou-le-droit-a-la-folie.fr.html, 24/08/2017.

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Diva Reale, Marcelo Soares Cruz e Fabio Carezzato

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Foto da capa: Edwin Kats

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Marmottan foi a resposta política de saúde pública para um sistema sanitário no qual os drogadictos não encontravam seu lugar, porque não eram tratados como pessoas que mereciam ser atendidos antes de ser julgados, discriminados, estigmatizados.

Da acolhida e tratamento dos pacientesA arte da negociação, com a finalidade de criar uma aliança

terapêutica, é a arte da paciência e do respeito. O paciente que entra em Marmottan deve ter presente “o contrato”. Prévia explicação, repetida e detalhada com os argumentos que respondem a suas questões, ele as aceita e se compromete a respeitar: a violência verbal ou física, o uso de drogas ou outro medicamento não prescrito, assim como o não respeito às regras da vida em grupo podem provocar uma “ruptura de contrato” a qualquer momento do dia ou da noite, dependendo da gravidade do fato.

O objetivo, o projeto terapêutico, está marcado pela demanda – e a ilusão – de terminar com o consumo da droga, da parte do paciente. A equipe está consciente que sua função é fazer que este momento, particularmente delicado, doloroso, de questionamento intenso, seja o menos traumático possível.

O trabalho da equipe exige muita coerência no manejo de situações críticas que podem levar à expulsão do paciente. São momentos de grande tensão; o cuidado com esta situação visava a tentar evitar prejudicar tanto o conjunto de pacientes, como o paciente que transgrediu.

Marmottan: relações humanas no trabalhoLembro-me da acolhida de Olive: “esqueça tudo que aprendeu.

Escute, fale, questione, equivoque-se, mas sobretudo, não se feche em nenhum saber teórico que se aplique como uma receita. A porta do meu escritório está sempre aberta, se tiver necessidade.”

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Não é possível trabalhar sem solidariedade honesta e sem deixar de contribuir para controlar um comportamento fraco, imparcial ou autoritário de parte de algum membro da equipe.

A necessidade de reuniões, seminários que permitissem debater temas de interesse eram regulares. Uma ou duas vezes por ano partia-se para um castelo afastado de Paris, para o grande debate de dois ou três dias, para compartilhar trabalho e convivência sem que faltem boa comida e bebida nas prolongadas “noitadas” festivas. Olive se retirava para seu quarto e deixava que seus colaboradores se divertissem por sua conta.

Ressonâncias do pensamento clínico de Olieve...a inclusão do termo transicional [...] se refere à articulação das

modalidades terapêuticas – internação hospitalar curta, alojamento em serviço de pós-cura e psicoterapia específica. A ideia de transicional aqui busca explicitar um cuidado na forma de fazer a indicação e condução da passagem do paciente de uma etapa a outra. Implica um rigor em envolver e acompanhar algo que possa traduzir uma demanda do paciente, oferecendo ou apresentando aos pacientes uma condução cautelosa da tradução de suas necessidades em ofertas que possam guardar afinidades eletivas. Aprendemos na prática marmoteana que indicação de um lugar/ambiente para a etapa de pós-cura leva em conta não apenas características psíquicas e dinâmicas, como também existenciais, culturais e relacionais. Esta condução corresponde, na prática, ao cuidado que se considera apropriado à natureza do ser toxicômano, tal como encontramos presente na sua teoria sobre a construção identitária do toxicômano.

Olievenstein: amarrado ao mastroEste clima de disputas acirradas entre as diferentes e recém-formadas

escolas psicanalíticas podem ter contribuído para Olievenstein se manter independente, evitando afiliar-se; talvez tenha sido uma forma de poupar energia para travar a luta que de fato ele quis abraçar: a luta pela garantia

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dos direitos humanos dos usuários de drogas. Seu esforço era lhes assegurar a melhor qualidade possível no atendimento a sua saúde, através da implantação e aprimoramento da cadeia terapêutica que constitui o ponto central do modelo de cura francês.

Sua relação com a psicanálise sempre intrigou aqueles que não eram tão próximos a ele. Bebe de sua fonte com a liberdade abusada de quem nunca se afiliou. Também nunca se entregou ao divã alheio. Entregar-se à análise parece carregar algo tão perigoso quanto teria sido para Ulisses ceder ao canto da sereia, correndo o risco de não cumprir sua jornada, destino e vida.

Bebendo de fontes psicanalíticas, e adaptando-as às necessidades que seus pacientes traziam, Olieve manteve-se livre para criar as práticas que melhor respondessem a elas. E de fato, uma cuidadosa reconstrução de leituras, contatos, trocas e ressonâncias mútuas entre Lacan e Winnicott pôde enriquecer nosso entendimento das relações explícitas, implícitas, e mesmo inconscientes deste encontro refletido no pensamento clínico de Olieve. Isto não quer dizer que lhe faltasse rigor na sua forma de construir.

Abstinência: a qualquer custo?O tema da abstinência costuma dividir opiniões de profissionais que

se mantêm restritos a um único modelo de atenção (seja o modelo médico, seja o modelo cognitivo-comportamental). Sua descrição do sentido e função que a droga pode adquirir para os grandes toxicômanos é um alerta para respeitar o tempo do paciente na eleição de metas muito ambiciosas ou apressadas para atingir a abstinência:

Estamos diante de uma verdadeira guerra civil interior, entre o desejo de normalidade e o sentimento íntimo profundo, visceral de que esta normalidade não é acessível, e que tomar este caminho é correr o risco de fazer o sujeito perder.... todos os benefícios que ele adquiriu no campo imaginário, simbólico e corporal graças ao produto”...“hoje, a morte está no jardim: Alexandre, rapaz magnífico de transparência, se matou: ‘curado’. (Olievenstein, p. 126

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Uma Clínica TransicionalAo invés de desvelamentos, ordenações, desembaraçamentos de

sentido, esta clínica se desdobra no campo da opinião. Opinião compreendida como aquilo que se opõe ao científico, no sentido estrito, e pode ser encontrado. Olievenstein oferece pistas de que a noção de opinião apresentada no texto se aproxima das referências de construção e criação. A opinião é e não é, assim como o objeto transicional de Winnicott, primeira posse não-eu, inauguração da alteridade. Nesse sentido, a opinião comparece a serviço da simbolização.

Não se trata de psicopedagogia, na qual pudesse supor a supressão do sofrimento pelo saber cognitivo, mas opinião como um material intersubjetivo capaz de enriquecer e alimentar figurações em um psiquismo impedido de construir mediações da linguagem, da imagem para conter as intensidades. Portanto, Olievenstein apresenta uma oferta clínica ativa, próxima do que Green expôs para os pacientes fronteiriços que carregam a marca de uma mãe morta. Este autor sugere que a atitude clássica do terapeuta corre o risco de repetir, por meio do silêncio, a frieza e o vazio da relação que tiveram com a mãe morta. Ele propõe, ao contrário, que o analista funcione como um objeto vivo e interessado, acordado e testemunhando sua vitalidade por meio dos laços associativos que comunica ao analisando. É a experiência viva, sentir-se vivo e real, atuante no mundo com sua singularidade, que possibilita à dupla paciente-analista viver uma experiência criativa. Em contraposição à mãe morta, ao espelho quebrado e ao objeto inerte, um terapeuta vivo pode gerar, em algum nível, uma experiência de onipotência que, na concepção winnicottianna, corresponde à ilusão do bebê de encontrar aquilo que criou.

Nesta relação perversa, por ser muito íntima, muito próxima, quase fusional, no início, há uma necessidade de imunização contra a intensidade do afeto bruto, brutalmente doloroso. Frente a esta delicadeza, os compromissos instáveis, as seduções e desseduções comparecem como recursos ativos capazes de incrementar um caminho consoante com objetivo da independência psíquica do sujeito.

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Finalizando...

Esta crônica foi escrita reunindo alguns trechos3 escolhidos de autores do livro Toxicomania e Adições: A Clínica Viva de Olievenstein, que esteve em pré-lançamento no 6º Congresso da Abramd, novembro 2017.

Referência

Olievenstein, C. (1989). O não-dito. In C. Olivenstein, A clínica do toxicômano. A falta da falta.Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

__________3. Foram seleccionados os trechos a seguir e respectivos autores: “1971: nascimento de Marmottan”,

“Da acolhida e tratamento dos pacientes”, “Marmottan: relações humanas no trabalho”, de Zorka Domic; “Ressonâncias do pensamento clinico de Olieve”, “Olievenstein: Amarrado Ao Mastro”, de Diva Reale; “Uma Clínica Transicional”, de Marcelo Soares da Cruz.

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C A P Í T U L O 2 . 4

A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

Amanda Guedes BuenoIsabela Machado da Silva

Neste capítulo, discutiremos como a terapia de família pode ser utilizada como um importante recurso no contexto de uso de drogas na adolescência. Com esse intuito, apresentaremos uma revisão narrativa da literatura que englobará: (a) a adolescência como fase do desenvolvimento; (b) o uso de drogas na adolescência, incluindo os fatores de risco e proteção potencialmente envolvidos; (c) a família como fator de proteção e risco quanto ao uso de drogas na adolescência; (d) as especificidades da terapia de família com adolescentes; e (e) a terapia de família com adolescentes que usam drogas, incluindo recomendações gerais para os profissionais que atuam nesse contexto e as evidências apresentadas na literatura quanto a sua efetividade.

A adolescênciaA adolescência é considerada em nossa sociedade como a passagem

da infância para a vida adulta. É reconhecida por suas transições – físicas, psicológicas e sociais – e marcada por rupturas e novas ligações (Vitale, 2014; Zappe & Dias, 2012). A adolescência tem sido relacionada a questões como independência e busca por uma identidade social; preocupação em ser parte de um grupo; interesse em parceiros românticos

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(ficar, namorar, iniciar a vida sexual etc.); pensamento idealista e egocêntrico; e possível envolvimento em comportamentos de risco (Cerqueira-Santos, Melo Neto, & Koller, 2014; Morais, Lima, & Fernandes, 2014).

Autoras como Lordello (2015), Senna e Dessen (2012) destacam que a adolescência tem sido, tradicionalmente, retratada de forma generalista e negativa, sendo caracterizada por conflitos e dificuldades. Estudos mais recentes, porém, descrevem a adolescência como um período marcado pela inter-relação de fatores de ordem individual, histórica e cultural. Nesse sentido, propõe-se uma perspectiva integradora, segundo a qual se deve contextualizar o adolescente. Assim, é possível destacar duas principais ideias: (a) não há uma única forma de vivenciar a adolescência; e (b) esse período não deve ser definido apenas por suas dificuldades; deve-se também evidenciar as potencialidades dos jovens (Lordello, 2015; Morais et al., 2014; Senna & Dessen, 2012; Vitale, 2014). Assim, embora se devam reconhecer os aspectos normativos dessa fase, o adolescente deve ser visto como um sujeito ativo e situado em contextos específicos, em um processo em que é influenciado por eles assim como os influencia (Lordello, 2015).

Um importante contexto a ser considerado quando se aborda a adolescência é a família, que afeta de modo significativo o desenvolvimento do adolescente. A família é o primeiro ambiente social no qual a pessoa se desenvolve, em que tende a estabelecer suas primeiras relações interpessoais e em que vivencia algumas de suas experiências mais significativas (Fishman, 1988). Na adolescência, as interações da vida familiar mantêm-se relevantes, mesmo diante da proeminência dos grupos de amigos. Os pais e outros membros da família constituem importantes recursos para o adolescente, representando um sistema de apoio social ao qual pode recorrer (Cerveny & Berthoud, 1997; Morais et al., 2014; Schenker & Minayo, 2003; Senna & Dessen, 2012).

Questões características da adolescência também trazem repercussões para a vida familiar. De forma geral, a adolescência exige renegociação de papéis e mudanças na estrutura e nos padrões de relacionamento das

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famílias. A família, que antes protegia e nutria os filhos pequenos, agora deve ajudar a preparar o jovem para a entrada na vida adulta, com maior autonomia e independência. Para tal, é necessário que haja flexibilidade – para modificar estruturas, regras e relações, em resposta a diferentes situações – e modulação da autoridade parental – necessária para a negociação de mudanças nas relações entre pais e filhos (Morais et al., 2014; Preto, 1995).

Cabe destacar que o processo de adolescer representa um desafio para todos os membros do sistema familiar adolescente (Cerveny & Berthoud, 1997). Porém, dependendo da forma como esses desafios são manejados, grandes possibilidades podem se desvelar diante do adolescente e de sua família.

O uso de drogas na adolescênciaO consumo de drogas representa um problema de saúde pública,

especialmente entre os adolescentes. Possui tanto repercussões individuais – perda de empregos, rupturas familiares, instabilidade financeira – quanto coletivas – crimes e acidentes relacionados às drogas, alto custo de encarceramento e tratamento (Fuentes, Alarcón, García, & Gracia, 2015; Schenker & Minayo, 2003). Assim, diversos estudos têm procurado analisar e descrever os fatores que influenciam o uso de drogas entre os jovens (Álvarez, Martín, Vergeles, & Martín, 2003; Calleja, García-Señorán, & González, 1996; Cerutti, Ramos, & Argimon, 2015; Fuentes et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003, 2005).

A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar-2015 (PeNSE-2015; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2016), que estudou o consumo de álcool, cigarro e drogas ilícitas entre escolares do 9º ano do ensino fundamental em todo Brasil, aponta para o início precoce do consumo de drogas entre adolescentes. A PeNSE-2015 mostrou que a experimentação do cigarro foi de 18,4%, entre os participantes. Já em relação ao álcool, 55,5% dos adolescentes responderam positivamente

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quando perguntados se alguma vez já haviam ingerido bebida alcoólica, e 21,4% informaram já ter sofrido algum episódio de embriaguez. Por fim, os dados mostraram que 9,0% dos entrevistados já haviam utilizado drogas ilícitas (IBGE, 2016).

O uso de drogas tende a apresentar significados diversos para o adolescente e para o grupo do qual faz parte. Pode representar uma forma de buscar refúgio frente as transformações necessárias à vida adulta; de repudiar normas e valores convencionais (Cerveny & Berthoud, 1997; Schenker & Minayo, 2005); de socialização, visando à aceitação e ao respeito dos pares; e de lidar com a ansiedade e a frustração (Schenker & Minayo, 2003, 2005). Schenker e Minayo (2005) argumentam que as drogas – sem que haja abuso – podem cumprir funções pessoais e sociais importantes para os adolescentes. Assim, devem ser consideradas um possível elemento do desenvolvimento psicossocial do jovem e não um comportamento perverso ou patológico.

O consumo de substâncias é um fenômeno complexo e múltiplo (Calleja et al., 1996). Schenker e Minayo (2005) destacam que os variados fatores envolvidos no consumo de drogas entre adolescentes não devem ser analisados de forma isolada e fragmentada, sendo necessária uma perspectiva integrativa e contextual da situação. Os fatores de risco são aqueles que aumentam as chances de o adolescente se envolver com drogas, enquanto os fatores de proteção diminuem essa chance (Hogue, Dauber, Faw, & Liddle, 2005):

Fatores de risco e proteção atuam juntos para determinar o nível de risco do adolescente em um dado ponto de sua vida. (...) Ao se preparar para tratar um adolescente que usa drogas, é importante acessar não apenas as variáveis que colocam o adolescente em risco, mas também as forças do adolescente e de seu ambiente. (p. 379)

Há diversas variáveis que podem ser citadas como fatores de risco. Entre os individuais, podemos citar: (a) a idade em que se inicia o uso de substâncias psicoativas, sendo o início precoce considerado um preditor

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para a dependência e o posterior abuso de drogas (Álvarez et al., 2003; Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015); (b) traços de personalidade, como baixa autoestima e sintomas depressivos (Schenker & Minayo, 2003).

Já entre os fatores sociais, incluem-se: (a) falta de motivação para os estudos e mau desempenho escolar; (b) a escola como um local que proporciona condições para o uso de substâncias (Schenker & Minayo, 2005); (c) comunidades inseguras, com presença e disponibilidade de drogas (Fuentes et al., 2015; Schenker & Minayo, 2005); (d) grupos de amigos que consomem drogas ou que incentivam seu uso (Calleja et al., 1996; Pereya & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003, 2005); e (e) meios de comunicação que atuam como fonte de imagens favoráveis e de normalização do uso de drogas, principalmente lícitas (Calleja et al., 1996; Fuentes et al., 2015; Schenker & Minayo, 2005).

Tanto fatores extrafamiliares – questões sociais, econômicas e demográficas –, quanto intrafamiliares, são associados ao consumo de drogas na adolescência (Álvarez et al., 2003; Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015; Fuentes et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003, 2005). Na próxima seção, abordaremos a influência que a família desempenha nesse contexto.

A família e o uso de drogas por adolescentesA família é considerada um sistema complexo e seu funcionamento

tende a representar uma importante influência para o desenvolvimento e os comportamentos do adolescente. Nesse sentido, pode tanto contribuir para protegê-lo, diminuindo a probabilidade de seu envolvimento em comportamentos de risco, quanto pode aumentar sua vulnerabilidade (Calleja et al., 1996; Morais et al., 2014; Schenker & Minayo, 2003, 2005).

Diversos são os estudos que descrevem e analisam os fatores familiares que podem influenciar o consumo de drogas por jovens (Álvarez et al., 2003; Bertrand et al., 2013; Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015; Fuentes et al., 2015; Le Poire, 2004; Morais et al., 2014; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003, 2005). Entre esses estudos, os fatores de

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risco e proteção que mais se destacam são: (a) estilos parentais; (b) monitoramento/supervisão parental; (c) afeto/apoio; (d) aprovação e uso de drogas pelos pais; (e) saúde mental dos pais; (f) participação dos pais no tratamento do filho. É importante destacar, como afirmam Morais et al. (2014), que os fatores familiares de risco e proteção, ambos, devem ser vistos como processos. É necessário contextualizar e analisar esses fatores e suas relações, não considerando de forma linear a relação entre sua presença e o comportamento adolescente.

O estilo parental tem sido abordado em diversas pesquisas como um fator de proteção e risco para adolescentes em contexto de uso de substâncias (Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015; Fuentes et al., 2015; Morais et al., 2014; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003). O estilo parental é definido e associado às práticas educativas, ou seja, às estratégias e técnicas utilizadas pelos pais para orientar o comportamento de seus filhos. As principais dimensões para definir o estilo parental são o controle e o afeto. Assim, podemos citá-los como sendo: (a) autoritário: com alto controle parental – comportamento restritivo e impositivo sobre a conduta dos filhos – e pouco envolvimento afetivo; (b) permissivo: com pouco controle parental e alta afetividade – marcada por receptividade e comunicação; (c) democrático: equilíbrio entre afeto e controle, no qual os pais reconhecem e respeitam a individualidade dos filhos, mas deixam claras as normas e os limites (Bem & Wagner, 2006).

De forma geral, autores têm apontado que estilos parentais que encorajam independência, mas que colocam limites, estão mais associados com um desenvolvimento positivo (Morais et al., 2014; Schenker & Minayo, 2003), enquanto estilos caracterizados por excessiva permissividade ou rigidez são relacionados ao aumento do uso de substâncias (Calleja et al., 1996; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003). Nesse sentido, Cerutti et al. (2015), em sua pesquisa, analisaram que o controle parental é um fator protetivo em relação ao uso de drogas. Esse controle é apenas visto como protetivo, no entanto, quando é percebido pelos adolescentes em um contexto afetivo. Fuentes et al. (2015) corroboram essa ideia ao descreverem que o estilo parental

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caracterizado pelo afeto e a aceitação é percebido como fator de proteção, mesmo em comunidades inseguras com presença e disponibilidade de drogas – consideradas um fator de risco nesse contexto.

O monitoramento/supervisão parental são comportamentos que permitem que os pais tenham conhecimento das atividades cotidianas, associações e locais que seu filho frequenta, para assegurar sua segurança e seu desenvolvimento (Álvarez et al., 2003; Bertrand et al., 2013; Pereyra & Bean, 2017). Segundo Bertrand et al. (2013), existem diversas formas pelas quais os responsáveis podem obter essas informações, tais como a solicitação parental – fazer perguntas diretamente ao adolescente – e a auto-revelação – o próprio jovem falar sobre suas atividades.

Diferentes estudos relacionam o monitoramento parental com a diminuição de uso de substâncias psicoativas, tanto em situações em que o abuso já ocorre quanto como forma de prevenção (Álvarez et al., 2003; Bertrand et al., 2013; Cerutti et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017). Nesse sentido, Pereyra e Bean (2017) observaram que a supervisão materna de jovens latinos norte-americanos mostrou-se associada com menor uso de drogas, mesmo em contextos nos quais havia influência de grupos de amigos usuários – considerado um fator de risco. No entanto, Álvarez et al. (2003), assim como Bertrand et al. (2013), ressaltam que o monitoramento parental citado não é coercitivo ou controlador, podendo ser considerado um fator de risco quando exercido dessa forma.

Autores como Pereyra e Bean (2017) relacionam o afeto/apoio dos pais com a percepção que os adolescentes têm dos comportamentos parentais que transmitem amor, aceitação e proximidade. Estudos mostram que essa variável pode ser considerada tanto um fator de risco como um fator protetivo, no qual jovens que percebem maior afeto/apoio parental têm menor chance de consumir drogas, tanto em situações nas quais o abuso já ocorre como em situações de prevenção (Álvarez et al., 2003; Bertrand et al., 2013; Cerutti et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2005). Destaca-se, também, como a presença dessa variável pode influenciar como é percebido o monitoramento/supervisão dos pais, o qual é considerado protetivo em contextos de afeto e apoio,

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mas não em situações de coerção e controle (Álvarez et al., 2003; Bertrand et al., 2013).

De forma geral, afirma-se que jovens que fazem parte de famílias com atitudes favoráveis ou tolerantes em relação ao uso de drogas têm maior chance de consumir tais substâncias (Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015; Schenker & Minayo, 2005). Da mesma forma, o uso de drogas pelos próprios pais, ou mesmo em suas famílias de origem (Krestan & Bepko, 1995) é considerado um fator de risco para o adolescente. O jovem, nesse contexto, pode apresentar um maior risco de vir a consumir, ele mesmo, tais substâncias (Cerutti et al., 2015; Le Poire, 2004) como também de vir, futuramente, a se envolver com parceiros que as utilizam (Le Poire, 2004).

A saúde mental dos pais foi apontada por Bertrand et al. (2013) como um fator a ser considerado em contextos de uso de drogas pelo adolescente, destacando situações em que o abuso já ocorre. Na sua pesquisa, eles demonstraram que a saúde mental dos pais influenciou as práticas parentais adotadas que, por sua vez, tendem a representar um fator de risco ou de proteção quanto ao uso de substâncias. Assim, os autores destacam a necessidade de os centros de tratamento investigarem e tratarem a saúde mental dos pais, o que se relaciona à melhora das práticas parentais e à consequente diminuição do consumo de drogas (Bertrand et al., 2013). Argumenta-se que o resultado da intervenção tende a ser mais positivo quando os pais se envolvem, favorecendo a diminuição do uso de drogas (Bertrand et al., 2013; Le Poire, 2004). Bertrand et al. (2013) especificam, ainda, que essa relação é indireta, sendo mediada por práticas parentais. Dessa forma, ao se envolverem e participarem no tratamento de seus filhos, os pais passam a adotar práticas parentais baseadas em comunicação e confiança, o que contribui para a diminuição do consumo pelo jovem.

A influência parental no consumo de álcool, cigarro e outras drogas é complexa e deve ser analisada e considerada de forma combinada com outras questões (Krestan & Bepko, 1995; Schenker & Minayo, 2005). A família representa um importante recurso no atendimento a adolescentes

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que usam drogas, o demonstra o potencial da terapia familiar em contextos de uso de drogas por adolescentes.

A terapia familiar na adolescênciaA terapia familiar é fruto da ideia de que “as vidas das pessoas são

inextricavelmente entrelaçadas e que o comportamento dos membros da família é, em grande medida, uma função da forma como uns interagem com os outros” (Minuchin, Nichols, & Lee, 2009, p. 15). Ela tem como objetivo, portanto, a transformação de padrões de interação que se mostram disfuncionais (Fishman, 1988), ou seja, que limitam as possibilidades de atuação dos membros do sistema familiar diante da realidade cotidiana, gerando conflitos e sofrimento. Essa transformação pode ser vista tanto como decorrente de um processo de reorganização do sistema familiar, em que são redefinidas as fronteiras que delimitam os subsistemas, bem como de um processo de ampliação dos significados que seus membros atribuem a si mesmos, a seus comportamentos e aos eventos que marcam sua história (Minuchin et al., 2009). Assim, o terapeuta familiar trabalhará com a forma como os membros de uma família organizam suas relações e estabelecem limites entre si, bem como com a forma como essas pessoas veem a si mesmas e como interpretam aquilo que lhes acontece, para que possam transformar a forma de se relacionarem entre si e com o mundo que as rodeia. Embora haja diferentes modelos de terapia familiar, ideias como a de que se deve atentar à história da família (P. Minuchin, 1985) e ao contexto do qual ela faz parte (Nichols & Schwartz, 2007) atravessam a maior parte deles: “alguns objetivos são praticamente universais – esclarecer as comunicações, resolver problemas, promover autonomia individual” (Nichols & Schwartz, 2007, p. 391).

Fishman (1988), em uma obra clássica sobre terapia familiar com adolescentes, destaca os benefícios dessa abordagem. Seguindo os princípios básicos da terapia de família, esse autor defende que os adolescentes são influenciados por sua família, ao mesmo tempo em que a

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A terapia de família diante do uso de drogas na adolescência

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influenciam. Dificuldades vivenciadas pelo adolescente são vistas como um sinal de alerta para possíveis dificuldades vivenciadas pela família, assim como possível fonte de sofrimento para os demais membros (Fishman, 1988). É possível, por exemplo, que dificuldades no relacionamento conjugal dos pais repercutam no comportamento dos filhos, assim como é provável que dificuldades apresentadas pelo adolescente afetem seus pais e irmãos, influenciando seus relacionamentos. Dessa forma, Fishman (1988) considera que o atendimento à família pode ser considerado um compromisso ético, além de um recurso que potencializa o atendimento do adolescente. O terapeuta, ao unir os membros de uma família em terapia, tem a possibilidade de presenciar, em primeira mão, seus padrões interacionais e de intervir nas suas relações. Ao trabalhar com vários membros, as possibilidades de mudança multiplicam-se: as mudanças de um são reforçadas pelas mudanças dos demais, em um círculo virtuoso, que beneficia não só o adolescente, mas a família como um todo. O autor destaca, ainda, que a forma como a terapia familiar compreende o ser humano se mostra em consonância com a visão mais positiva e contextual do adolescente: modificando-se as relações e o contexto, o adolescente – assim como os demais membros de sua família – tem condições de desenvolver seu potencial e superar suas dificuldades.

Essa visão também se mostra especialmente relevante ao considerarmos que muitas das famílias que buscam a terapia familiar apresentam um de seus membros como “o problema”, ou seja, o chamado paciente identificado (Nichols & Schwartz, 2002). Essa rotulação de um dos membros é especialmente delicada no caso de crianças e adolescentes, pois pode fomentar uma profecia auto-realizadora. Assim, eles passam a acreditar cada vez menos em suas próprias habilidades, que passam também a ser menos reconhecidas pela família, pela escola e por outros sistemas em que se inserem (Selekman, 2017).

Esse processo de rotulação se insere no que Micucci (2009) denomina de ciclo sintomático. Conforme falham as tentativas da família para eliminar o “comportamento problema” do adolescente, crescem sua frustração e desesperança. O foco da família no “comportamento problema” tende a

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ser cada vez maior, de forma que ficam em segundo plano as qualidades e demais características do adolescente, assim como outras dimensões do relacionamento familiar. O adolescente, por sua vez, tende a se sentir cada vez mais inadequado e isolado, o que contribui para o aumento do “comportamento problema”, reforçando a atitude familiar de, cada vez mais, focar-se no mesmo e dando continuidade ao ciclo.

Selekman (2017) destaca que os terapeutas devem compreender que esses comportamentos apresentados pelo adolescente podem representar sua forma de lidar com uma situação difícil com a qual se depara em sua vida e para a qual não encontra outras alternativas:

Tenho observado que existe uma dimensão lógica em comportamentos provocativos, intimidantes, perturbadoramente auto-destrutivos e destrutivos. Para muitos adolescentes, esses comportamentos de alto-risco têm servido como recompensas, recursos e tentativas de solução para ajudá-los a manejar estressores individuais, familiares e sociais em suas vidas. Não é surpresa que gravitem ao redor de comportamentos particulares que têm funcionado para eles. (...) Isso não quer dizer que esses comportamentos sejam benignos ou que devam ser encorajados. Quanto mais o adolescente se engaja em comportamentos de alto-risco, mais tende a utilizá-lo e menos medo tende a apresentar. (Selekman, 2017, p. 04)

Cabe ao terapeuta ajudar o adolescente a desenvolver novas estratégias de enfrentamento e a família a conseguir ver além do “comportamento problema” e a desenvolver novos padrões interacionais. De forma geral, a terapia de família com adolescentes tende a envolver: (a) a reorganização da família e de seus limites; (b) a compreensão das especificidades da adolescência; (c) o desenvolvimento ou aprimoramento de habilidades parentais que se mostrem adequadas a essa fase do ciclo vital; (d) a reflexão dos pais – e de outros membros da família – sobre como suas próprias atitudes podem influenciar o adolescente; (e) a

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consolidação de canais de comunicação entre o adolescente e a família; (f) a ampliação da forma como os membros da família veem uns aos outros; e (g) a criação de um espaço em que o adolescente possa refletir sobre suas próprias questões (Taibbi, 2010; Selekman, 2017).

O estabelecimento de limites claros, que sejam adequados ao desenvolvimento do adolescente e que sejam compreendidos por ele, é uma meta importante da terapia de família junto a essa população. Para que isso seja possível, no entanto, é importante que os pais compreendam que é necessário ir além das estratégias utilizadas quando seus filhos eram crianças (Taibbi, 2010). A capacidade de compreensão do adolescente, suas relações e seus objetivos são outros, assim como o papel a ser desempenhado pelos pais. Na adolescência, além de proteger, os pais têm a função de ajudar o filho a desenvolver sua autonomia e a tornar-se responsável por suas próprias escolhas, o que não é possível apenas com proibições ou castigos (Preto, 1995, Taibbi, 2010). O lugar de autoridade dos pais – que, por vezes, encontra-se abalado diante de um adolescente que não aceita os limites impostos – deve ser reforçado na terapia, mas a forma como essa autoridade será exercida e seus objetivos devem ser revistos (Taibbi, 2010). Alguns pais foram criados com tapas e castigos, não enxergando outras possibilidades na criação dos filhos. Mostra-se necessário, assim, que o terapeuta auxilie os pais a desenvolver novas formas de impor limites ao adolescente (Taibbi, 2010).

O terapeuta, para que possa colaborar com essas famílias, deve conhecer as estratégias que são, ou que já foram, utilizadas (Selekman, 2017). Quais não deram certo? Quais se mostraram bem-sucedidas, mesmo que não tenham sido mantidas com o passar do tempo? Além disso, pode-se mostrar útil a reflexão sobre o papel desempenhado pela história dos pais na forma como se relacionam com o filho adolescente (Taibbi, 2010). Como sua história influencia os objetivos e medos que apresentam quanto ao futuro dos filhos? Quais estratégias parentais foram utilizadas por seus próprios pais quando eles eram adolescentes e que efeito exerceram sobre eles?

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É importante que todos os membros da família percebam que deverão se envolver no processo de mudança. Taibbi (2010) destaca que não se trata de culpabilizar os pais pela situação do adolescente, mas de ajudá-los a aceitar sua responsabilidade sobre a qualidade das relações familiares. Quando as diferentes partes se percebem como corresponsáveis por suas relações, minimiza-se o risco de que o adolescente continue sendo visto como “o problema” e de que siga rotulado como tal. Nesse processo, também se mostra essencial a realização de intervenções voltadas ao reconhecimento das habilidades e potencialidades do adolescente, tanto junto à família, como um todo, como em sessões individuais com ele (Selekman, 2017).

O terapeuta deve estar sensível às especificidades de cada membro para que todos se sintam parte do processo terapêutico. Em uma família, é pouco provável que todos tenham a mesma visão quanto à necessidade de mudanças. Selekman (2017) destaca que o terapeuta deve usar estratégias diferentes se a pessoa está vindo “obrigada” à terapia e não está certa de que precisa se envolver ou mudar. No caso, antes de propor intervenções voltadas à mudança, é necessário propiciar uma reflexão sobre as repercussões do próprio comportamento.

Para que as diferentes necessidades dos membros de uma família possam ser adequadamente contempladas, o uso de sessões separadas com os diferentes subsistemas pode se mostrar útil. A realização de sessões exclusivas com os pais pode contribuir para favorecer sua reflexão quanto ao papel que desempenham no comportamento tido como problemático, permitindo que sejam escutados quanto às suas histórias, seus receios e suas dificuldades (Taibbi, 2010; Selekman, 2017). Em relação aos adolescentes, sessões individuais propiciam o espaço na terapia para refletirem acerca de suas próprias questões e a forma como se relacionam e se comunicam com os seus pais e demais membros da família (Taibbi, 2010). Outro recurso de que o terapeuta dispõe é o trabalho junto a outros sistemas significativos do adolescente, tal como a escola (Selekman, 2017).

Percebe-se, assim, que a terapia de famílias com adolescentes requer algum “malabarismo – entre adolescentes e pais, passado e presente,

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trabalho individual e trabalho em família (...) requer caminhar sobre uma linha delicada, cuidadosamente equilibrar as necessidades dos adolescentes com aquelas das famílias” (Taibbi, 2010, p. 146). É necessário para o terapeuta “estabelecer fortes vínculos com cada membro da família, manter a segurança emocional nas sessões e propiciar um senso de propósito comum com a família” (Selekman, 2017, p. 18). Desse modo, o terapeuta deve manter-se em sintonia com o sistema, estabelecendo, em conjunto, as metas do atendimento, respeitando seus valores e percepções, além de dar a mesma atenção a todos os seus níveis (Selekman, 2017).

Em um estudo que investigou o impacto de intervenções sistêmicas junto a famílias de crianças e adolescentes com dificuldades diversas, Carr (2014) procedeu a uma ampla revisão de pesquisas que enfocaram a efetividade da terapia familiar e de intervenções como o treinamento parental junto a essa população. As intervenções sistêmicas apresentaram evidências de efetividade para questões como problemas de conduta, depressão, ansiedade, luto, automutilação, transtornos alimentares e uso de drogas, entre outras. O autor destaca, ainda, que dados americanos demonstram que os benefícios trazidos pela terapia de família tendem a superar os custos de sua oferta para os sistemas de saúde (Carr, 2014). Embora esses resultados sejam animadores, deve-se destacar que algumas dessas evidências de efetividade restringem-se a modelos particulares de intervenções sistêmicas, não podendo ser generalizadas para a ampla diversidade de modelos existente. Muitas das intervenções investigadas referem-se a modelos manualizados, ou seja, modelos em que os terapeutas devem seguir um roteiro pré-definido pelos pesquisadores que o desenvolveram e que teve sua efetividade validada em pesquisa.

Reconhecendo a dificuldade de implementar modelos manualizados na prática clínica, Hogue et al. (2015) desenvolveram um estudo em que investigaram a efetividade da terapia familiar tal como usualmente aplicada – ou seja, sem seguir um modelo manualizado – para o tratamento de adolescentes. Os autores constataram que a terapia familiar contribuiu para a redução de sintomas externalizantes e internalizantes, de comportamentos delinquentes e do uso de substâncias em adolescentes.

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Deve-se destacar, porém, que tanto o estudo de Hogue et al. (2015) como o de Carr (2014) são estudos internacionais, de forma que não é possível assegurar se os mesmos resultados seriam obtidos na realidade brasileira.

Na próxima seção, serão destacadas as particularidades da terapia com família de adolescentes que usam drogas. Serão abordadas recomendações gerais apresentadas aos terapeutas de família que atendem essa população e os modelos manualizados de terapia familiar propostos para uso nesse contexto.

A terapia familiar com adolescentes diante do uso de drogasA terapia de família com adolescentes que usam drogas alia

características gerais da terapia de família com adolescentes, tais como vistas na seção passada, e especificidades próprias do contexto. A seguir, discutiremos algumas orientações voltadas ao atendimento dessa população, conforme propostas na literatura.

O início da terapia. Carr (2006) destaca a importância de que seja envolvido o maior número de pessoas da família, com o propósito de que o adolescente também se engaje no atendimento. Esse autor destaca que é comum que aqueles que buscam a terapia tenham receios quanto à vinda dos demais membros. Cabe, portanto, ao terapeuta compreender esses medos e agir no sentido de reassegurar os clientes de que os mesmos não se concretizarão.

No que se refere ao processo de avaliação, Carr (2006) sugere a necessidade de compreender o uso que o adolescente faz das drogas, ou seja, se é um uso experimental ou se é um padrão já estabelecido. O terapeuta deve conhecer tanto os recursos – pessoais e sociais – de que o adolescente e sua família dispõem como os fatores que influenciam o consumo de drogas; compreendendo, assim, os “gatilhos” que favorecem o uso (Carr, 2006; Downs, Seedall, Taylor, & Downs, 2015). Downs et al. (2015) destacam, ainda, que o terapeuta deve buscar compreender como diferentes membros da família veem o uso de drogas e como as mesmas estiveram presentes ao longo de sua história. Nesse sentido, podem se

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mostrar úteis informações sobre “a dinâmica familiar, tais como proximidade relacional, poder, controle, crenças sobre a terapia, crenças s o b r e o u s o d e s u b s t â n c i a s e c o m p o r t a m e n t o s permissivos/codependentes” (Downs et al. 2015, p. 30). Informações sobre o uso de drogas na família e sobre como os pais manejaram essa questão anteriormente também se mostram relevantes (Downs et al., 2015).

O estabelecimento de metas junto à família será construído a partir das informações levantadas durante essa avaliação inicial (Carr, 2006). É importante que o terapeuta se mostre sensível às expectativas da família, para que a esperança coexista com o reconhecimento de que se trata de um processo desafiador, que exigirá esforço e envolvimento de todos (Downs et al., 2015).

O andamento da terapia. A reorganização dos padrões familiares constitui uma meta importante, como em todos os demais tipos de terapia familiar. Nesse caso, porém, o terapeuta e a família devem estar atentos aos padrões que se mostram relacionados ao uso de drogas. Conforme assinala Carr (2006):

A tarefa central na reorganização familiar é ajudar a família a alterar os padrões que evoluíram ao redor dos comportamentos relacionados ao uso de drogas pelo adolescente. Esses comportamentos incluem a obtenção de dinheiro e recursos para conseguir a droga; prática de ações antissociais quando sob influência da droga; e problemas de conduta, tais como desobediência às regras sobre o horário de voltar para casa, faltar aula, não fazer as tarefas de casa, roubo, destruição de propriedade e assim por diante. Para alterar padrões interacionais relacionados ao uso de drogas e aos comportamentos associados, os membros da família devem ser ajudados a estabelecer metas claras, observáveis e realistas tanto com relação ao comportamento do adolescente como em relação ao próprio comportamento parental. (pp. 399-400)

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Por outro lado, é também necessário atentar aos padrões interacionais que constituem potenciais fatores de risco para o adolescente, tais como a presença de conflitos ou de um estilo parental predominante controlador e com espaço reduzido para a afetividade (Bem & Wagner, 2006; Robbins et al., 2008). O terapeuta deve evitar que o adolescente se torne o único foco de suas intervenções. Todos os membros da família devem compreender que fazem parte de um “ciclo interacional” (Downs et al., 2015, p. 33). Nesse sentido, o uso que os outros membros da família fazem de drogas lícitas e ilícitas é um tema que precisa ser conversado entre a família. Que efeito esse uso exerce sobre o adolescente? Que limites precisarão ser estabelecidos para que esse uso não sirva de “gatilho” para o adolescente? (Downs et al., 2015). No entanto, é importante que o terapeuta busque fomentar um clima não culpabilizador na terapia (Carr, 2006; Downs et al., 2015). Por vezes, os pais já buscam a terapia com o sentimento de que são “os culpados” pela dificuldade do filho. Embora os pais devam reconhecer o papel desempenhado pelos padrões interacionais presentes na família, não é produtivo reforçar sentimentos de culpa. O importante é que eles passem a se ver como como meio para a solução das questões que os levaram à terapia (Carr, 2006).

É necessário também se mostrar atento aos subsistemas conjugal e parental, uma vez que a aliança entre os pais, ou seja, sua sintonia em relação às metas familiares e o apoio que prestarão um ao outro para alcançá-las, constitui um importante recurso familiar diante de momentos de crise como esse (Carr, 2006). Sessões específicas com os pais podem ser utilizadas com esse objetivo.

Outros recursos passíveis de utilização, nesse momento da terapia, são a psicoeducação, que pode se mostrar útil para que a família compreenda a complexidade envolvida no uso de drogas (Downs et al., 2015); treinos de comunicação e de solução de problemas; bem como o acompanhamento multidisciplinar do adolescente e de outros membros da família (Carr, 2006).

Nessa fase, o terapeuta deve mostrar-se sensível ao fato de que tanto o adolescente como seus pais vivenciam uma situação de perda e luto. O

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adolescente está abrindo mão das drogas, enquanto os pais estão lidando com a perda da imagem que tinham de sua família (Downs et al., 2015).

O encerramento da terapia. O terapeuta costuma abordar a chamada prevenção da recaída, em que se busca identificar os fatores de risco – tais como exposição à droga, situações de alto estresse etc. –, bem como os recursos de que o adolescente e a família dispõem para enfrentá-los (Carr, 2006). No entanto, a possibilidade de que uma recaída venha realmente a acontecer precisa ser abordada de forma explícita. É importante que a família compreenda a importância de manter os esforços e as habilidades desenvolvidas na terapia. Mesmo que o adolescente tenha uma recaída, isso não significa o fracasso de todo o processo (Carr, 2006; Downs et al., 2015).

Em um estudo conduzido com famílias atendidas em terapia familiar sem o uso de modelos manualizados, Hogue et al. (2015) argumentam que essa modalidade de terapia representa um recurso efetivo diante do uso de drogas por adolescentes. Ao avaliarem os adolescentes que participaram de terapia familiar um ano após os atendimentos, constataram que 40% deles não usavam drogas há três meses ou mais. Entre os adolescentes que realizaram terapias de outro tipo, essa taxa foi de 26%. Os autores destacam, no entanto, a importância de que a prática seja baseada nas evidências disponíveis sobre o tema e que se invista na supervisão dos casos e no monitoramento dos resultados.

Alguns modelos manualizados de terapia familiar tiveram corroborada sua efetividade no tratamento de adolescentes que usam drogas. Entre eles, destacam-se a Terapia Familiar Estratégica Breve (TFEB), a Terapia Familiar Funcional (TFF) e a Terapia Familiar Multissistêmica (TFM; Carr, 2014, 2016). Pesquisas também evidenciam a potencialidade desses modelos para a melhora de problemas de comportamentos e do desempenho escolar do adolescente, bem como dos relacionamentos familiares, como um todo (Carr, 2014). Embora a descrição detalhada desses modelos ultrapasse o escopo deste capítulo, abordaremos seus pontos comuns, bem como suas principais contribuições para o atendimento de famílias com adolescentes que usam drogas. Carr

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(2016) destaca que, de forma geral, esses modelos têm em comum uma abordagem focal, que prioriza a atuação sobre os fatores de risco relacionados ao uso de drogas na adolescência: estratégias parentais, nível de estresse familiar, participação em grupos de risco e baixo apoio social. Resumindo-se, o terapeuta deve preocupar-se em “aumentar os fatores de proteção e reduzir os fatores de risco” (Hogue et al., 2005, p. 384). Somando-se as contribuições de cada um desses modelos, temos como importantes características da terapia familiar nesse contexto:

(a) Identificação de padrões disfuncionais que possam estar relacionados ao uso de drogas e o uso das sessões terapêuticas como um espaço para questioná-las e reformulá-las (TFEB; Carr, 2014, 2016). “Espera-se que os terapeutas encorajem os membros da família a interagirem para que possam identificar interações não adaptativas e, quando esses padrões forem revelados, tentar mudá-los no decorrer da sessão” (Robbins, Bachrach, & Szapoczinik, 2002, p. 125). Os padrões comumente abordados referem-se às estratégias parentais utilizadas, à comunicação entre pais e filhos e aos conflitos existentes entre eles (Robbins et al., 2008);(b) Desenvolvimento de novas habilidades relacionais e de solução de

problemas, que possam ser generalizadas para diversas situações além da terapia (TFF; Carr, 2016);(c) Identificação das potencialidades da família e redução da

negatividade em suas relações, ao fomentar-se uma nova perspectiva sobre o problema (TFF; Carr, 2016);(d) Atuação junto a outros sistemas dos quais o adolescente faz parte,

de forma que seja possível uma reflexão conjunta quanto aos fatores de risco para esse adolescente e sobre como todos podem se envolver em sua superação. Nesse sentido, podem ser realizados encontros com membros da escola, do grupo de amigos do adolescente, dos serviços de justiça etc. (TFM; Carr, 2014, 2016; Robbins et al., 2008).

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Considerações finaisA literatura revisada neste capítulo demonstra a importância de

compreender o adolescente de forma contextualizada, reconhecendo a família como um de seus principais contextos de desenvolvimento (Lordello, 2015; Morais et al., 2014; Senna & Dessen, 2012; Vitale, 2014). Nesse sentido, tornam-se necessárias medidas que busquem fomentar os fatores de proteção que podem ser identificados no ambiente familiar, principalmente no que se refere a um estilo parental caracterizado por afetividade, confiança e limites claros (Álvarez et al., 2003; Bertrand et al., 2013; Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015; Fuentes et al., 2015; Morais et al., 2014; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003). O papel desempenhado pela saúde-mental dos pais (Bertrand et al., 2013) e pelo uso de drogas destes (Cerutti et al., 2015; Krestan & Bepko, 1995; Le Poire, 2004) na vulnerabilidade do adolescente diante das drogas reforça a importância de um olhar sensível às necessidades de todos os membros da família.

A terapia com famílias de adolescentes que usam drogas deve seguir os preceitos gerais da terapia familiar com adolescentes, considerando-se as especificidades desse contexto. Assim, o terapeuta deve estar atento às seguintes questões: (a) Engajamento de diferentes membros da família e de outros sistemas significativos para o adolescente (Carr, 2014, 2016; Robbins et al., 2008; Selekman, 2017; Taibbi, 2009); (b) Necessidade de contemplar as demandas dos diferentes membros da família e de estabelecer uma boa aliança terapêutica com todos eles (Carr, 2006; Selekman, 2017); (c) Reconhecimento do papel desempenhado pelos padrões interacionais presentes na família e superação de rótulos que estabeleçam um único “culpado” ou “problema” (Carr, 2006, 2014, 2016; Downs et al., 2015; Micucci, 2009; Robbins et al., 2002); (d) Estilos parentais predominantes e sua possível atuação como fator de risco ou de proteção quanto ao uso de drogas pelo adolescente (Carr, 2014; Robbins et al., 2008); (e) Dinâmica de uso de drogas pelo adolescente e histórico de uso de drogas pela família (Carr, 2006; Downs et al., 2015); (f) Compreensão dos comportamentos que se desenvolveram ao redor do uso de drogas (Carr, 2006); (g) Desenvolvimento ou aprimoramento de habilidades relacionais e/ou de

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solução de problemas, tanto por parte do adolescente como de sua família (Carr, 2016; Selekman, 2017; Taibbi, 2009). Embora a terapia familiar enfoque as relações entre os membros da família, sessões exclusivas com determinados membros podem se mostrar um recurso útil (Carr, 2006, 2014, 2016; Selekman, 2017; Taubbi, 2009). No mesmo sentido, podem ser necessários encaminhamentos multidisciplinares para o adolescente ou outros membros (Carr, 2006; 2014, 2016).

Deve-se destacar que reconhecer a importância da família para o atendimento ao adolescente não é o mesmo que dizer que ela seja a culpada pelo uso de drogas (Carr, 2006; Downs et al., 2015). O uso de drogas é um fenômeno complexo, atravessado por fatores presentes na família e fora dela (Álvarez et al., 2003; Calleja et al., 1996; Cerutti et al., 2015; Fuentes et al., 2015; Pereyra & Bean, 2017; Schenker & Minayo, 2003, 2005). Como assinala Carr (2006), o que realmente importa é que a família se veja como parte da solução e esteja disposta a agir nesse sentido.

A partir da revisão da literatura sobre o tema, sugere-se a realização de mais estudos nacionais que investiguem as potencialidades da terapia de família para o atendimento a essa população, bem como para a prevenção ao uso de drogas e a outros comportamentos de risco na adolescência. Estudos que apresentem técnicas e processos a serem seguidos no atendimento a essa população, contemplando as especificidades de nossa cultura, mostram-se especialmente relevantes.

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CAPÍTULO 2.5

Dicotomias na atenção integral e no cuidado das pessoas que usam de crack:

a acessibilidade em foco

Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque Anna Carolina Vidal Matos

Renata Barreto Fernandes de Almeida Joselaine Ida da Cruz

Solange Aparecida Nappo

IntroduçãoDentro da complexidade que é a atenção à saúde, com suas

dimensões - biológica, social, cultural, econômica, política etc. –, um aspecto que passa muitas vezes despercebido, e é de fundamental importância para entendermos esse fenômeno, trata-se da acessibilidade. Somado a tal conceito, pensar no acesso à saúde por parte das pessoas que usam drogas, singularmente as que têm problemas decorrentes do abuso do crack, traz para a discussão vários pontos que extrapolam a relação dicotômica do processo saúde-doença.

Para tanto, precisamos definir o que estamos tomando por acessibilidade. Travassos e Martins (2004) apontam a complexidade da definição do termo e sua variância entre autores, enfoque, contexto e tempo. A acessibilidade define-se, então, como um conjunto de aspectos que influenciam na relação de prestação de um determinado serviço para atender demandas de saúde, que passa pelas dimensões do usuário, dos profissionais do serviço, da organização do serviço, e ainda as dimensões sociais, política, econômica e simbólica (Assis & Jesus, 2012, Donabidean,

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1988; Travassos & Martins, 2004). O alcance da complexidade dessa definição é importante porque supera limitações de conceitualizações sobre o tema, que costumam reduzir a acessibilidade ao alcance físico ou somente ao acesso a um serviço de saúde específico.

Nessa concepção, pensar a acessibilidade para as pessoas que fazem uso prejudicial de drogas passa também por entender quais são e como operam os serviços oferecidos a estas. É na direção de aprofundar essa discussão que o presente texto se insere.

Em recente publicação, que traz uma revisão crítica acerca dos estudos acadêmicos sobre as Redes de Atenção aos Usuários de Drogas (RedesUD), Costa, Mota, Paiva e Ronzani (2015) revelam que existe uma forte contradição entre o que é prescrito pelas leis e normativas brasileiras referente a essas redes e o que é real: o Estado vem transferindo a responsabilidade em cuidar das pessoas que fazem uso prejudicial de drogas para a sociedade civil.

Nessa revisão, para refletir sobre as RedesUD, os autores também consideraram o atual conceito de Redes de Atenção à Saúde (RAS), do Ministério da Saúde (MS), que são entendidas como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado” (Brasil, 2010). Deste modo, as RedesUD são redes específicas, voltadas para a atenção às pessoas que fazem uso prejudicial de drogas.

Costa et al. (2015) destacam que:1) De modo prioritário, as RedesUD ainda se alicerçam em modelos

pulverizados, com cobertura e qualidade de serviços exíguos às necessidades de cuidado e tratamento;2) A concepção sobre Drogas está ampliada apenas teoricamente, ou

seja; ampliada no discurso político, mas ainda com práticas des in teg radas, fo r muladas e rea l i zadas se tor ia lmente, consequentemente, as práticas acabam por não atingir as diferentes realidades existentes junto aos atores que compõem as RAS;

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3) O modelo hospitalocêntrico ainda prevalece acima do modelo psicossocial, apesar de sua aparente indisposição ou inaptidão de trabalhar com a temática. Questão observada a partir da baixa adesão dos hospitais gerais (HG) à oferta de leitos;4) Grande parte dos investimentos continuam focados nas internações

hospitalares psiquiátricas, e;5) Apresenta-se uma incipiente participação do Estado na distribuição

dos serviços e na implementação das políticas sobre Drogas: prevalecendo a composição das RedesUD por serviços de natureza não governamental.

Destarte, quanto a participação das comunidades terapêuticas (CT) na composição das RedesUD, podemos observar a ratificação dos achados de Costa et al. (2015) na realidade nacional, apresentado por meio do relatório do “Mapeamento das Instituições governamentais e não governamentais de atenção às questões relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no Brasil” (Carvalho, 2007) de que, das 1.256 instituições de tratamento mapeadas, apenas 389 eram de natureza governamental, obrigando-nos à reflexão sobre a necessidade de uma rede complementar ter sido invertida, pois esta tem se apresentado como majoritária à rede pública.

Pitta (2011) trará justamente que é no vazio de ofertas e possibilidades de serviços nas RedesUD que os dispositivos de natureza não estatal encontram o terreno fértil para se fixarem como alternativas e respostas viáveis ao tratamento e acesso das pessoas que usam drogas. Observa-se inclusive o protagonismo político desses atores na construção das políticas de drogas, apesar de ser o país um Estado laico e democrático (Siqueira, 2006), o que é refletido por Machado e Miranda (2007) quando destacam que as instituições religiosas conseguiram exercer pressão política junto aos órgãos governamentais, estabelecendo-se como opções prioritárias como modelo de tratamento.

Haja vista a recente Portaria nº 1.482, publicada no Diário Oficial da União em 27 de outubro de 2016, que “inclui na Tabela de Tipos de

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Estabelecimentos de Saúde do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES, o tipo 83 – Polo de Prevenção de Doenças e Agravos de Promoção da Saúde”, colocando as CT no patamar de um serviço de saúde, inclusive, possibilitando, a partir desta publicação, que os gestores locais de saúde possam proceder regularmente ao cadastramento e convênio das entidades, considerando, prioritariamente, as que respondam para fins de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas).

Nesse sentido, a discussão sobre a necessidade de um “marco regulatório” para a inserção das CT nas RedesUD ganha outro contorno, mesmo com a discussão preocupada em diversos territórios brasileiros, a exemplo do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de Pernambuco (Ceoad/PE) que publicou uma nota técnica a fim de discutir as “inúmeras contradições e lacunas teóricas, metodológicas e textuais” trazidos pelo Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad). Haja vista, também, o levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) que observou que em um edital de cadastramento e convênio das CT, na seleção destas

as fragilidades do edital permitiram que 55% das comunidades apoiadas financeiramente pelo Governo Federal sequer possuíssem licença sanitária, segundo informações fornecidas pela Anvisa, colocando em risco a qualidade dos serviços a serem prestados aos dependentes de álcool e outras drogas dirigidos a essas comunidades terapêuticas” (Brasil, 2012, p. 66).

É justamente no último item trazido por Costa et al. (2015), sobre a composição das RedesUD por serviços de natureza não governamental, que complementaremos a discussão, trazendo outros aspectos observados em nossa pesquisa que não foram aprofundados na revisão crítica dos autores, visto que o foco dos mesmos, apesar de trazer todas essas questões que envolvem as CT, foi a análise das RedesUD a partir do papel dos Centros de Atenção Psicossociais para pessoas que usam drogas (Caps-AD), da articulação das RAS entre o Sistema Único de Saúde

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(SUS) e o Sistema Único da Assistência Social (Suas) e ainda nas dificuldades das interlocuções entre a Reforma Psiquiátrica (RP) e a construção das políticas de drogas no Brasil.

Sabe-se que os municípios comprometidos com as diretrizes organizativas e os princípios do SUS (Borges & Batista, 2008) passam por mudanças significativas no planejamento e ordenamento dos serviços de saúde, com reflexões, discussões e possibilidades de reorganização do acesso nas Unidades de Saúde (Prefeitura Municipal de Curitiba, s/d). Cada vez mais o processo de trabalho busca estar fundamentado nas necessidades de saúde da população, no fortalecimento do vínculo e da continuidade do cuidado. Oferecer um acesso com qualidade a toda rede de serviços e resolver a maior parte dos problemas e necessidades de saúde da população, no ponto mais próximo do seu local de residência ou trabalho, é uma diretriz perseguida e compreendida como fundamental.

Investe-se em horários ampliados de atendimentos das Unidades de Saúde e expansão da Estratégia Saúde da Família como possibilidade de melhoria do acesso da população (Brasil, 1990). É também nesse aspecto que observamos o distanciamento da lógica utilizada pelas CT quando nos referimos à sua participação na oferta de cuidado e na composição das RedesUD, pois estas não possuem nenhum tipo de articulação territorial que as coloque em confluência com os princípios e diretrizes do SUS.

Amarante e Guljor (2005) discutem a importância do princípio da integralidade na construção da garantia dos direitos e da participação da população nos espaços públicos de saúde. Aspecto negligenciado pelas CT pela sua não inserção real e concreta na articulação das RedesUD. Se a construção dessas redes deve ser coletiva, considerando as propostas advindas das equipes locais de saúde e com a rede de serviços e gerências centrais e distritais, ainda mais trazendo a intersetorialidade como premissa (Brasil, 1990), observamos que as CT de fato, não consideram tais aspectos, pois mantêm-se isoladas por princípio, desde a concepção de que a distância e o afastamento ajudam na busca da abstinência, quanto a ideia de que tal retraimento seja necessário às pessoas em tratamento

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como medida de “fortalecimento” para a concentração e aceite da sua condição de dependente.

Nesse sentido é importante trazer rapidamente a discussão acerca do estigma e preconceito a que as pessoas que usam drogas estão submetidas. Segundo Silveira, Soares, Noto e Ronzani (2013), a ideia corroborada pela mídia de que todo usuário de droga é um “doente” ou possui um “desvio de caráter”, parece exigir apenas dois tipos de intervenção, quais sejam: a internação ou a prisão. Nesse sentido, criam uma relevante barreira de acesso das pessoas que usam drogas aos serviços de saúde. O estigma se dá de modo tão nefasto que a percepção negativa da população sobre estas pessoas cria essa falsa necessidade de um tratamento afastado e distante da família e da comunidade: “muitas pessoas que provavelmente se beneficiariam de vários tratamentos disponíveis na rede pública ou na privada de saúde escolhem não começá-los ou optam por terminá-los prematuramente” (Silveira et al., 2013, p. 256).

Um ponto importante para ressaltar a reflexão sobre a acessibilidade das pessoas que usam drogas aos tratamentos é a forma de olhar o fenômeno do uso de drogas. É possível definir quatro perspectivas sobre as drogas que, segundo Passos e Souza (2011), seriam: saúde, justiça, religião e redução de danos (RD). Por meio da saúde, enquadra a pessoa que usa drogas como incapacitada e doente, que necessita de um tratamento baseado unicamente na vertente da clínica psiquiátrica, tendo como base o tratamento medicamentoso e a abstinência. A perspectiva da justiça vê a pessoa como uma delinquente, uma infratora, e ao invés do tratamento, segue a linha da punição. A religião, ou moral cristã, terceira perspectiva, vê a prática do consumo através do pecado. O sujeito escolhe seguir por este caminho de impurezas, os desvios da “carne”, então sua única salvação é por meio da conversão. A última perspectiva é a redução de danos, a qual diverge das outras perspectivas ao se basear no direito de escolha do sujeito, e vê a cidadania como um direito a ser promovido.

Nas três primeiras perspectivas observa-se uma tradicional recorrência das ações das políticas públicas direcionadas às pessoas que usam drogas (Nascimento, 2006). Para o autor, essas perspectivas se

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fundamentam no divisor comum da punição. Dessa forma, a pessoa que chega aos serviços oferecidos já está estigmatizada como um risco ao bom funcionamento social e com seu “distúrbio” identificado, ou seja, sua chegada ao serviço se dá por apresentar conduta condenada, e a causa está no consumo de drogas. Como reflexo a esta questão, o estigma é um fator que influencia negativamente as intervenções na busca de melhoria da qualidade de vida das pessoas que usam drogas (Silveira et al., 2013).

Por fim, a perspectiva da RD, conceito que orienta os serviços de atenção às pessoas que usam álcool e outras drogas, busca diferir das abordagens estigmatizantes e punitivas, de cunho moralista, e é a principal estratégia norteadora adotada pelo Ministério da Saúde. A iniciativa busca uma forma de intervenção em saúde pública que ultrapasse a perspectiva moralista e antidrogas que acompanham as estratégias até aqui apresentadas (Machado & Boarini, 2013; Vasconcelos, 2008). Vale, então, ressaltar a divergência das CT com a perspectiva da RD. Essas instituições possuem viés fortemente religioso e carregam consigo a perspectiva moral presente nessa relação. Mesmo diante dessa divergência conceitual com a estratégia norteadora do Ministério da Saúde, hoje, as CT vêm se apresentando como uma das principais ofertas no tratamento das pessoas que fazem uso prejudicial de alguma droga, principalmente o crack, indo, em vários aspectos, de encontro aos princípios e diretrizes que constituem o SUS e a própria RD.

Acrescenta-se a estes apontamentos uma rápida nota sobre a história do descaso dado pela Reforma Psiquiátrica brasileira em sua demora por assumir as questões de álcool e outras drogas (AD) no âmbito do SUS. Vasconcelos (2008) pontua que, apenas no que ele denominou de “terceira fase da reforma”, haverá uma realocação das questões AD, que antes eram restritas ao campo da justiça, para a saúde mental, com a criação dos Caps AD e a referida assunção da RD como política norteadora de Estado para esse campo. Nesse momento, percebe-se a natureza integrante da RD no sentido de melhorar o acesso das pessoas que usam drogas aos serviços de saúde (Marlatt, 1999).

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Desse modo, o objetivo deste capítulo é discutir a implantação das RedesUD a partir da crescente participação das CT como oferta expressiva de tratamento e acesso das pessoas que usam drogas, partindo do conceito da acessibilidade. Para tanto, vamos utilizar os achados secundários de nossa pesquisa.

MetodologiaO presente capítulo traz reflexões advindas a partir do relatório final

do projeto de pesquisa “Motivos apontados por usuários de crack como desencadeadores de recaída e avaliação de fatores predisponentes que levam a esse quadro”, financiado pelo CNPq de acordo com o processo 402776/2010-0 referente à chamada pública Edital 41/2010 – Faixa I (Nappo, 2010). Neste, observa-se que o estudo teve por objetivo levantar os motivos apontados por pessoas que usam crack no processo do fenômeno da recaída.

No projeto de pesquisa foram selecionadas amostras de pessoas que procuraram tratamento devido ao uso de crack em três domínios: Comunidades Terapêuticas (CTs); Caps–AD; e Clínicas médicas de internação, domínios estes que comumente compõem as RedesUD no Brasil. Os três domínios totais de amostragem foram definidos nos Estados de São Paulo e Pernambuco, considerando-se prioritariamente as capitais e regiões metropolitanas. A pesquisa foi dividida em duas etapas. A primeira etapa foi quantitativa, aplicação de questionário. E a segunda etapa foi baseada em metodologia qualitativa, em que foi construído um roteiro de entrevista, a partir dos dados da etapa quantitativa, e realizadas entrevistas semiestruturadas com os participantes. Nas duas etapas da pesquisa foram visitados 85 serviços, sendo 12 clínicas, 24 Caps–AD e 13 CTs, em São Paulo; e sete clínicas, 11 Caps–AD e 18 CTs, em Pernambuco.

Durante toda a imersão no campo se fez uso do diário de campo. Essas anotações foram realizadas com o intuito de registrar outros elementos que apareciam no campo e que não estavam previstos no

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recorte do objeto de pesquisa. Dessa forma, foi feita uma análise de conteúdo baseada em Bardin (2004), a partir dos diários de campo.

O diário de campo é um instrumento metodológico de origem dos estudos etnográficos, que permite ao pesquisador registrar observações, comentários e reflexões sobre o campo de pesquisa. Entretanto, esse instrumento vai além de um registro sistematizado, mas parte de uma compreensão de pesquisa não neutra, isto é, considera que a relação entre pesquisador e os sujeitos estudados geram novos dados que trazem expressões diferentes do cotidiano. Nisso, tal interação traz para a pesquisa dados que não seriam acessados se utilizado outro instrumento de coleta (Frizzo, 2010).

Assim, para fins deste estudo, escolhemos explorar os diários de campo. Esses registros são parte dos achados secundários da referida pesquisa, contudo contemplam aspectos da realidade estudada que os demais instrumentos não possibilitaram acessar, permitindo um aprofundamento na compreensão do objeto sob investigação. Desse modo, foi analisada a acessibilidade das pessoas que usam drogas a partir da inserção das CTs como ofertas prioritárias para tratamento.

Resultados e discussãoAo falarmos de acessibilidade dividimos tal categoria em duas formas:

aspectos objetivos (distância territorial, oferta de vagas, perfil de atendimento, valores cobrados pelos serviços, descontinuidade na oferta do tratamento pós-alta e regras e normas institucionais) e aspectos subjetivos (modelos de tratamento, acolhimento, necessidades e demandas das pessoas que usam drogas). Esses aspectos foram organizados dessa maneira por questões didáticas, mas é importante destacar que em muitos casos eles se permeiam ou se complementam. Finalmente, dizem respeito a tudo que possa impedir ou limitar a garantia do acesso integral à saúde, que no caso específico deste estudo, às pessoas que fazem uso prejudicial de drogas.

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Dos aspectos objetivos podemos exemplificar alguns trechos dos diários de campo:

Para chegar à CT o usuário anda dois km da estrada a pé... não tem transporte. (Diário de Campo, nº 18 – Recife);O tratamento custa R$ 3.500,00 por mês. Até agora o usuário não sabe como vai pagar. (Diário de Campo, nº 21 – São Paulo);Este usuário é originalmente de Salvador, mas está em tratamento na CT em Pernambuco porque essa comunidade trabalha assim, trocando de cidade os usuários. (Diário de Campo, nº 58 – Recife);Para entrar nesse serviço tem que estar a três meses sem usar droga. (Diário de Campo, nº 80 – São Paulo).

A distância territorial das CTs e valores cobrados pelos serviços são questões que aparecem recorrentemente nos diários de campo. Essas questões mostram como a promoção de saúde na rede pública é ainda problemática, seja ela nos Caps-AD, seja nos leitos dos hospitais gerais. A partir dos princípios do SUS, a rede deve ser pensada a partir do território e suas necessidades, contudo a lógica das CTs não se organiza dentro da mesma perspectiva, assim, implicando em problemas no acesso conforme os relatos acima.

Para Lima e Rivera (2010), “a diversidade dos processos de atenção à saúde, o seu caráter transversal e o amplo número de atores e serviços envolvidos exigem uma estrutura em rede para dar conta da coordenação das interdependências e, assim, garantir a integralidade” (p. 1). Nesse contexto, pensar a rede vai além da comunicação dos serviços, e passa pela construção dos vínculos estabelecidos entre eles, na direção de um interesse comum, possibilitando uma relação que incorpore os diferentes atores e interesses. Essas relações não devem ser hierarquizadas, mas sim garantidas para que a interdependência entre as partes do sistema ocorra de forma colaborativa. Percebemos que as CTs não fazem parte desse processo imbricado que busca garantir uma acessibilidade horizontal e não apenas verticalizada pelos processos de internação.

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A qualificação e humanização da assistência – a inseparabilidade entre modos de atender e de gerir os serviços é precipuamente esquecida! O reconhecimento da necessidade em qualquer serviço de saúde de lidar com a demanda não agendada ou espontânea de forma qualificada, e com critérios de acesso implicados com o sofrimento das pessoas que procuram o serviço, ainda são dificuldades que implicam diretamente no acesso das pessoas que usam drogas aos serviços.

Também destacamos na observação das CTs o rompimento com a lógica de perguntas necessárias e frequentes à garantia do acesso das pessoas que usam drogas na RedeUD: são identificados os riscos e as vulnerabilidades conjugando as necessidades das pessoas ou apenas às necessidades do serviço? São feitos encaminhamentos responsáveis e resolutivos para os demais serviços da RAS? São respeitadas as especificidades de cada pessoa quanto à sua religiosidade e ou subjetividade?

Outro ponto importante é que ao não fazerem link entre si, os serviços ofertados, em especial as CTs, não conseguem cumprir com o princípio da integralidade, primordial ao SUS. Ou seja, compor a RedeUD implica prestar um atendimento com resolutividade e responsabilização, orientando, quando for o caso, a pessoa e sua família em relação a outros serviços de saúde para continuidade da assistência, estabelecendo articulações com estes serviços para garantir a eficácia desses encaminhamentos.

Além desses elementos objetivos discutidos como limitadores da acessibilidade, também se destacam aqueles que são subjetivos. Em um dos Diários de Campo encontramos a seguinte anotação:

Usuário encontra-se com ferida na perna relativa ao esfaqueamento da namorada por ciúmes. A pastora responsável pela CT não quer levar o usuário a um PSF por este ainda não ter completado seus 30 dias iniciais à adesão ao tratamento. (Diário de Campo, nº 37 – Recife).

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Na anotação acima percebemos algo ainda mais grave que as dificuldades objetivas de acessibilidade. Refere-se à negativa de acesso a um tratamento básico de saúde, ou seja, a violação propriamente dita de um direito básico da pessoa que está sendo atendida. Vemos nessa anotação a dificuldade na acessibilidade em termos mais subjetivos, no sentido de que são aspectos de ordem moral da perspectiva de tratamento da própria CT que limitam a garantia à saúde.

Outra questão diz respeito ao fato de que nem todas as pessoas querem ou podem se tratar apenas na perspectiva da abstinência. Nesse sentido, todos os serviços apresentaram dificuldades no acesso, no sentido do acolhimento e da adesão das pessoas que usam drogas, pois hegemonicamente definem o sucesso do tratamento a partir do alcance ou da manutenção da abstinência. Nas idas ao campo alguns pesquisadores registraram em seus diários sobre a necessidade de estar três meses sem usar drogas para acessar o serviço. Também no trecho abaixo vemos essa dimensão:

Usou droga, leva alta. Este é seu 17º tratamento. (Diário de Campo, nº 11 – Recife)

Tal perspectiva, a da abstinência de drogas para todos, vai na contramão do que já é há muito discutido e preconizado no Brasil, a partir da entrada da Política de Redução de Danos (Machado & Boarini, 2013). A diretriz da Redução de Danos depende do funcionamento de uma rede articulada por instituições e segmentos profissionais que coloquem em prática tal modelo, em contraponto com o ainda vigente modelo punitivo e moral da abstinência. Essa relação das CTs mostra-se contrária ao modelo de redução de danos, reforçando a segregação social e desconsiderando a rede de saúde mental que se articula para o suporte do usuário (Caps–AD, Consultórios na Rua e Casas de Acolhimento Transitório – ou Unidades de Acolhimento), assim dificultando o acesso das pessoas que usam drogas ao cuidado em saúde.

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O caráter moral desse modelo como elemento que limita a acessibilidade pode ser vista também no registro abaixo:

Cochichando o usuário me diz que sabe que vai fugir no final do tratamento, pois já é o terceiro que ele faz e toda vez exigem que ele se converta – o usuário é espírita. (Diário de Campo, nº 10 – São Paulo)

Considerando a Política Nacional de Humanização do SUS (PNH, Brasil, 2004), um de seus objetivos é garantir os princípios constitucionais aprovados por meio da Carta Magna de 1988. Para o setor de saúde, no sentido de operar o trabalho e os modos da atenção e gestão em saúde como direito de todos e dever do Estado, observa-se que as CTs não se coadunam com tais objetivos, quando não compreendem o coletivo como plano de produção da vida e o cotidiano das pessoas como plano de reprodução e de experimentação/invenção de vida, pois a indissociabilidade entre o modo como nos produzimos sujeitos e os modos de vida das pessoas que usam drogas não são considerados, haja vista a quase completa imposição através das abordagens de tratamento ofertadas pelas CTs serem prioritariamente religiosas.

A exclusão e o asilamento em CTs acabam sendo as alternativas viáveis, na contramão do que deveria ser a RedeUD, pois percebemos o constante silenciamento das próprias pessoas em tratamento e uma enorme dificuldade em discutirmos outras formas de cuidado, a exemplo da RD. Esse silêncio também é reflexo do processo de estigma internalizado vivenciado pelas pessoas que usam drogas, que está diretamente relacionado aos menores índices de adesão ao tratamento, pois a discriminação a que estão submetidos faz com que desejem esconder sua problemática com a droga, acirrando a descrença no tratamento e diminuindo a sua adesão (Silveira et al., 2015).

Segundo Machado e Miranda (2007), a participação da sociedade civil na resolução das mazelas sociais é resultado de uma agenda neoliberal que predomina no cenário político e econômico brasileiro desde

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o final da década de 1970. Deste modo, como pontua Costa et al. (2015), “no tocante ao tratamento dos usuários de drogas, permeiam discursos religiosos, moralizantes e jurídicos fixados em um horizonte de cura ou abstinência” (p. 4), que parece responder como apenso a este modelo.

Não foi à toa que a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract) e as Associações Religiosas de diversas denominações, em especial as evangélicas, espíritas e católicas, encontraram meios de tornar as CTs financiáveis pelo SUS, rompendo uma resistência de anos ligada à Luta Antimanicomial. A já referida Portaria nº 1.482, que “Inclui na tabela de tipos de estabelecimentos de saúde do cadastro nacional de estabelecimentos de saúde – CNES, o tipo 83 – Polo de prevenção de Doenças e Agravos de Promoção da Saúde”, demonstra o quanto é difícil rompermos com a lógica asilar, os estigmas e preconceitos ligados ao cuidado das pessoas que usam drogas. Mais do que isso, o que os dados mostram é que esses preconceitos e estigmas são barreiras para a própria acessibilidade para as pessoas que usam drogas.

Nesta última reflexão pinçamos outras anotações dos diários de campo que refletem o quanto a imposição religiosa é um aspecto discrepante com o que é preconizado pelo SUS e pelos Direitos Humanos – o direito à liberdade de expressão religiosa ou mesmo o de não ter nenhuma afiliação ou considerar-se ateu:

A usuária afirma que já é a terceira vez que faz esse mesmo tratamento, mas que sempre retorna para o começo porque no 12º passo ela precisa se converter e virar crente. Ela diz que não gosta de ser crente porque gosta de ir à praia e tomar cerveja com os amigos, porque ela veio se tratar do crack e não da cerveja. (Diário de Campo, nº 91 – Recife);Eles disseram a MCDR (iniciais do entrevistado) que sem Jesus no coração a recaída vai ser certeira e que eles só podem aceitar que ele continue na obra se virar exemplo para os demais. (Diário de Campo, nº 19 – Recife);

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Essa CT também trabalha com o método Minesotta, e a conversão no final do tratamento é uma exigência. (Diário de Campo, nº 03 – São Paulo);P. é ex-presidiário, tendo sido preso já por três vezes. Afirmou que estudou até o 1º ano. É flanelinha, tem 23 anos, refere que usa crack há 10 anos. Já usou mesclado, capeta e diversas outras drogas. Nesta CT, P. refere já ter sido coagido a ‘falar com os espíritos’ em uma ‘mesa branca’ porque disseram a ele que só assim ele vai parar de usar o crack. (Diário de Campo, nº 22 – São Paulo).

Não há processos de comunicação e de interação social no momento em que as pessoas que usam drogas são “sequestradas” de suas vidas, não mais pelo uso abusivo das substâncias, mas sim pela forma imposta de tratamento sem que seja dada outra alternativa.

Considerações finaisApesar de, inicialmente, os objetivos da pesquisa que inspiraram este

estudo terem sido os fatores intrínsecos e extrínsecos que desencadeiam a recaída, a partir da forma como o participante da pesquisa avalia o fenômeno, o olhar a partir dos diários de campo aumentou a compreensão das relações com a RedeUD, a partir da acessibilidade aos serviços de saúde, em especial às comunidades terapêuticas (CTs).

O diário de campo mostrou-se uma ferramenta importante na contextualização e aprofundamento da compreensão das práticas estudadas. A partir deles foi possível ter acesso a elementos que não são contemplados em instrumentos estruturados a priori, sejam eles de caráter quantitativo ou qualitativo.

Assim, foi possível identificar que desde o acolhimento, que é visto como barreira ao acesso, até a inadequação da área física e a compatibilização entre a oferta e demanda por ações de saúde, há uma série de aspectos que carecem de maior estudo e observação por parte dos

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que compõem as RedesUD. As formas de organização dos serviços de saúde, em especial as CTs, com a baixa ou nenhuma governabilidade das equipes e governos locais, a falta de humanização das relações dos profissionais desses serviços, os modelos de cuidado vigentes nas CTs (geralmente religiosos), a falta de escuta e a pouca produção de vínculo como ação terapêutica, são problemas também identificados que merecem a nossa atenção.

É necessária a análise e ordenação das tecnologias dos serviços que atuam com objetivos diferentes, nem sempre complementares, pois por vezes são excludentes, na perspectiva da discussão sobre acessibilidade. Neste sentido, Costa et al. (2015) dizem que em relação aos usuários com maior comprometimento e em situações de grande vulnerabilidade social, recomenda-se uma aproximação dos serviços com essa população, facilitando a “acessibilidade”. Nessa direção, os Programas de Redução de Danos e os Consultórios de/na Rua apresentam-se como importantes estratégias da Raps e da RedesUD ao focarem in loco as pessoas com transtornos mentais e usuários de drogas em situação de rua, baseando-se na perspectiva da RD e possibilitando a aproximação entre serviços e comunidade, tarefa inexistente junto às CTs pesquisadas.

Alguns questionamentos precisam ser feitos para que os trabalhadores, gestores e familiares possam continuar buscando a construção de uma RedeUD de fato coerente com os princípios e diretrizes do SUS:

Podem as CTs coexistir ou funcionar separadamente dos demais serviços da RAS, seja no contexto físico ou mesmo nas abordagens impostas por estas, sem serem díspares nessa construção?

Até que ponto a acessibilidade das pessoas que usam drogas está garantido a partir dos princípios e diretrizes do SUS e da Constituição Federal aqui trazidos?

De que maneira e por que as CTs têm sido a “porta de entrada” de maior facilidade e acesso às pessoas que usam drogas por conta da complexidade e fragilidade frente ao problema e têm lucrado de forma

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assustadora com tratamentos caros, sem monitoramento e fiscalização adequadas do SUS?

Qual o papel do Estado e do Controle Social na regulamentação e fiscalização da participação das CTs nas RAS e RedeUD?

O que significa ao Estado Brasileiro a assunção desse modelo de serviço como parte da RedeUD, quando este deveria ser um estado laico e, no entanto, as CTs imprimem o modelo religioso em sua maioria?

Por fim, observamos que a temática drogas é um dos campos em que mais transformações de concepções e práticas no campo da saúde têm ocorrido, demonstrando um infeliz distanciamento teórico-prático na construção das RedesUD. Algumas ofertas de serviços que vem crescendo, como o caso das CTs, não respondem e nem se coadunam com as perspectivas dos movimentos da Reforma Psiquiátrica, da Redução de Danos, da Política de Humanização e da própria Constituição Federal, quando diz que saúde é direito de todos e dever do Estado. Dessa forma, cabe ao Estado assumir sua função dando as condições necessárias para que os princípios de diretrizes do SUS possam de fato constituir dispositivos e arranjos institucionais pautados na gestão democrática e laica dos serviços ofertados às pessoas que usam drogas, bem como no acesso humanizado e de qualidade, sem a fragmentação ora percebida.

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CAPÍTULO 2.6

Uso de maconha e adolescência

Maria Inês Gandolfo ConceiçãoSilvia Renata Magalhães Lordello Borba Santos

A questão das drogas entre adolescentes tem sido extensivamente estudada em muitos países e, de acordo com as pesquisas, as substâncias mais comumente utilizadas nessa idade são o álcool, o tabaco e a maconha (Johnston et al., 2014; Latimer & Zur, 2010; Mason, Hanson, Fleming, Ringle, & Haggert, 2015; Moss, Chen, & Yi, 2014; UNODC, 2013).

A tendência de uso de maconha tem aumentado nos últimos anos. A idade média de início situa-se entre os 12 e 15 anos de idade em diferentes países e não há uma relação inversa entre a percepção de perigo que esses adolescentes têm e seu uso (Johnston et al., 2014). Vários estudos mostram que o início mais comum do uso de drogas ocorre durante a passagem da infância para a adolescência, seja como mera experimentação, uso ocasional, abuso ou mau uso (Faria Filho, 2014; Marques & Cruz, 2000; Schenker & Minayo, 2005; Silva et al., 2014).

A razão pela qual os adolescentes começam a utilizar drogas não é fácil de determinar. A questão é muito complexa e envolve uma série de variáveis. Como Olievenstein (1990) apontou, o fenômeno da drogadição deve ser estudado à luz de uma equação complexa, com pelo menos três

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aspectos a serem considerados: a substância, o indivíduo e o contexto. A relação entre esses aspectos conduz a uma grande quantidade de configurações possíveis, que devem ser consideradas para explicar o significado da utilização de drogas.

A abordagem bioecológica do desenvolvimento humano pode contribuir com um referencial teórico que permita o estudo desses aspectos. De acordo com Bronfenbrenner (2005), a pessoa em desenvolvimento, no caso aqui, o adolescente, possui características biopsicológicas, determinadas pela herança e também construídas na interação com os sistemas nos quais se insere. Esses sistemas são os contextos dos quais o adolescente participa. Deve-se considerar todos os contextos: desde os mais imediatos, denominados microssistemas, como casa, escola e ambientes de lazer, até aqueles ambientes que não contam com a presença do adolescente, mas que afetam seu desenvolvimento, como o trabalho dos pais, denominado exossistema. Há ainda o mesossistema, que se refere ao conjunto dos microssistemas dos quais a pessoa participa e às interações estabelecidas entre eles, e o macrossistema, relativo aos costumes, valores e códigos que regem o grupo social do qual o adolescente faz parte.

Dentro dos microssistemas ocorrem os processos proximais que são considerados motores do desenvolvimento. Os microssistemas são ambientes que contam com padrões de atividades, papéis sociais e relações interpessoais. Os adolescentes, com a ampliação de seu espectro social, integram vários microssistemas nos quais os processos proximais são ativados: a casa, a escola, os ambientes de lazer são exemplos. O uso de drogas e as percepções que os adolescentes têm a respeito delas são construções, que ocorrem dentro de uma progressão e que se estabelecem a partir de algumas características do processo.

Bronfenbrenner (2005) argumenta que o processo está associado a algumas condições: o engajamento em uma atividade, interações regulares, através de períodos estendidos de tempo, atividades progressivamente complexas, contando com reciprocidade nas relações interpessoais e, por fim, objetos e símbolos presentes no ambiente

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imediato que estimulem a atenção, exploração, manipulação e imaginação da pessoa. Todos esses aspectos que integram os processos proximais podem contribuir para um melhor entendimento de como o adolescente constrói sua relação com as drogas. Os processos proximais podem gerar dois tipos de efeitos: o de competência e o de disfunção. Mas é importante lembrar que essa não é uma classificação linear. Os processos variam em função das características da pessoa, dos contextos nos quais interagiu ou interage, da natureza dos resultados evolutivos, do período sócio-histórico em que o adolescente se encontra.

Por isso, para investigar a relação do adolescente com a maconha, é preciso tomar cuidado para evitar visões deterministas de causa e efeito, que podem levar a posturas de julgamento. As adolescências devem ser vistas de forma plural, consideradas em sua complexidade.

O uso de drogas entre os adolescentes pode estar relacionado com uma infinidade de razões, dentre os quais sobressaem as seguintes: estratégia de socialização; tentativa de adquirir uma identidade de grupo; forma de ocupar o tempo livre; busca de prazer ou alívio de dor, ansiedade, sentimentos e pensamentos ruins; necessidade de satisfazer a busca de sensação e curiosidade; maneira de desafiar a lei atual ou o status quo; caminho para alcançar estados psíquicos da mente que permitem pensamento produtivo/processo criativo, estímulo para criar coragem para executar alguma ação; fuga da realidade; caminho para experiências transcendentais, entre outros motivos. Portanto, não se pode negar que as pessoas (e, neste caso, adolescentes) usam drogas porque percebem (ou ganham) benefícios nisso (Conceição & Oliveira, 2008).

Os precursores de problemas com álcool e outras drogas têm sido denominados como fatores de risco para o abuso de drogas (Hawkins, Catalano, & Miller, 1992). Os fatores de risco estão estatisticamente associados com uma maior probabilidade de abuso de drogas. Além disso, fatores de risco para o uso de drogas são características ou atributos de um indivíduo, grupo ou ambiente de interação social que contribuem em maior ou menor grau, para aumentar a probabilidade de sua utilização.

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Uso de maconha e adolescência

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Não existe um único determinante do uso de drogas entre os adolescentes (Chakravarthy, Shah, & Lotfipour, 2013; Kliewer & Murrelle, 2007).

O padrão de uso de drogas em adolescentes pode ser compreendido situando os possíveis fatores de risco e de proteção em diferentes domínios da vida. Assim, para cada domínio da vida de um adolescente, pode ou não haver fatores de risco, bem como fatores de proteção para o uso de drogas. É importante notar que esses fatores de risco não ocorrem de uma forma isolada ou estática. Há considerável inter-relação e variabilidade de influência entre eles.

O uso da maconha tem sido associado a efeitos adversos substanciais, alguns dos quais determinados por pesquisas bem delineadas (Volkow et al., 2014). Considerando o atual debate gerado por novas regulamentações e intenções de mudar as políticas em alguns países onde a maconha é ilegal ou criminalizada, e a falta de informações conclusivas sobre os benefícios e malefícios, é necessário analisar cuidadosamente as informações disponíveis sobre o tema para subsidiar o debate acerca da legalização da maconha.

Maconha e dependênciaApesar de algumas discussões controversas a respeito da dependência

de maconha, algumas evidências indicam que o uso da maconha a longo prazo pode levar à dependência (Budney, Roffman, Stephens, & Walker, 2007; Volkow et al., 2014). Resultados de pesquisa mostram que aproximadamente 9% dos que experimentam maconha, tornam-se dependentes (Lopez-Quintero et al., 2011). Segundo a Pesquisa Nacional de 2012 sobre uso de drogas e saúde realizada nos EUA, estima-se que 2,7 milhões de pessoas com 12 anos ou mais, reúnem os critérios para dependência de maconha de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), e que 5,1 milhão de pessoas preenchiam os critérios para dependência de qualquer droga ilícita (Lopez-Quintero et al., 2011). O número sobe para cerca de um em cada seis daqueles que começaram a usar maconha na adolescência e 25 a 50%

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entre aqueles que fumam maconha diariamente (Hall & Degenhardt, 2009). Também se reconhece a existência de uma síndrome de abstinência de maconha (com sintomas que incluem irritabilidade, dificuldades para dormir, disforia, desejo incontrolável de consumir e ansiedade), que torna difícil a cessação do uso e contribui para a recaída (Budney & Hughes, 2006; Gorelick et al., 2012). Além disso, o uso problemático e a dependência têm sido estudados como fatores de risco e consequências de doença mental, tornando-se necessária a realização de uma revisão cuidadosa da literatura, a fim de analisar essa associação (Budney & Hughes, 2006; Gorelick et al., 2012).

Maconha e Doença Mental Em relação à doença mental, Patton, Degenhardt, Lynskey, Hall e

Wayne (2002) referem que a utilização regular de maconha está associada a um risco aumentado de ansiedade e depressão, embora não seja estabelecida causalidade. A maconha também está relacionada com psicoses, especialmente entre pessoas com uma vulnerabilidade genética pré-existente (Meier et al., 2012; Volkow et al., 2014), e agrava o curso da doença em pacientes com esquizofrenia. O uso mais frequente de maconha, a maior potência da droga e a exposição em idades mais precoces, podem afetar negativamente a trajetória da doença, por exemplo, com a antecipação do primeiro episódio psicótico em dois a seis anos (Di Forti et al., 2013). Entretanto, é impossível estabelecer causalidade nesses tipos de estudos, pois fatores outros, que não a maconha, podem estar diretamente associados com o risco de doença mental. Além disso, outros fatores podem predispor uma pessoa tanto ao uso da maconha quanto à doença mental. Isto torna difícil atribuir o aumento do risco de doença mental ao uso de maconha (Volkow et al., 2014).

Volkow et al. (2014) assinalaram que a maconha tem um efeito no desenvolvimento do cérebro. Em comparação com controles não expostos, adultos que fumavam maconha regularmente durante a adolescência

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tinham uma conectividade neural prejudicada em regiões específicas do cérebro que estão envolvidas em funções que exigem um alto grau de integração (por exemplo, estado de alerta e autoconsciente consciência), e na aprendizagem e memória (Volkow et al., 2014; Zalesky et al., 2012). Filbey e Yezhuvath (2013) também relataram que a conectividade funcional reduzida tem sido associada a redes pré-frontais responsáveis pela função executiva (incluindo controle inibitório) e as redes subcorticais que processam hábitos e rotinas. Além disso, estudos de imagem em pessoas que usam maconha revelaram diminuição da atividade em regiões pré-frontais e volumes reduzidos no hipocampo (Batalla et al., 2013).

Além disso, o efeito negativo do uso da maconha na conectividade funcional do cérebro é particularmente proeminente quando a utilização começa na adolescência ou início da idade adulta (Zalesky et al., 2012), o que pode ajudar a explicar a associação encontrada entre o uso frequente de maconha desde a adolescência até a idade adulta e o declínio significativo nos escores do Quociente de Inteligência (Meier et al., 2012). Os prejuízos na conectividade do cérebro associados com a exposição à maconha na adolescência são consistentes com achados pré-clínicos, indicando que o sistema canabinóide desempenha um papel de destaque na formação de sinapses durante o desenvolvimento do cérebro (Gaffuri, Ladarre, & Lenkei, 2012; Volkow et al., 2014).

Portanto, a relação entre o uso de maconha pelos adolescentes e o dano psicossocial é susceptível de ser multifacetada, o que pode explicar as inconsistências encontradas entre os estudos. Por exemplo, um estudo sugere que déficits de longo prazo podem ser reversíveis e permanecer sutis em lugar de produzir incapacidades, uma vez que a pessoa se abstenha do uso (Macleod et al., 2004). Outros estudos mostram que o uso frequente e de longo prazo de maconha pode resultar em deficiências da memória e da atenção que persistem e pioram com os anos de uso regular (Solowij et al., 2011), e com o início do uso durante a adolescência (Schweinsburg, Tapert, & Brown, 2008; Volkow et al., 2014).

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Danos físicos do uso da maconhaO consumo de maconha também tem sido apontado como fator de

risco para o desenvolvimento de doença física. Volkow et al. (2014) observaram que os efeitos do fumo da maconha a longo prazo sobre o risco de câncer de pulmão não são claros. Nesse cenário, o uso de maconha para equivalente a 30 ou mais anos consecutivos (um ano-consumo equivale a fumar um cigarro de maconha por dia por um ano) foi associado a um aumento da incidência de câncer de pulmão e vários cânceres do trato aero-digestivo superior. No entanto, a associação desapareceu após ajuste dos resultados potenciais fatores de confusão como o uso de tabaco (Hashibe et al., 2006). Embora a possibilidade de uma associação positiva entre fumar maconha e câncer não possa ser descartada (Callaghan, Allebeck, & Sidorchuk, 2013), evidências sugerem que o risco é menor com o consumo de maconha do que com o de tabaco (Hashibe et al., 2006). No entanto, o consumo de cigarros que contêm produtos de maconha e tabaco é um potencial fator de confusão com uma prevalência que varia drasticamente entre os países (Volkow et al., 2014).

Na área da saúde física, Gordon, Conley e Gordon (2013) descreveram a relação entre o consumo de maconha e o aumento do risco de infecção associado com a alteração da resposta celular imune. Eles também sugerem que pode haver uma provável associação com a ocorrência de problemas respiratórios e cardiovasculares com o uso da maconha.

Fumar maconha também está associado com inflamação das vias aéreas maiores, aumento da resistência das vias aéreas, e hiperinflação pulmonar, associações que são consistentes com o fato de que fumantes regulares de maconha são mais propensos a relatar sintomas de bronquite crônica do que os não-fumantes (Tashkin, 2013; Volkow et al., 2014). No entanto, o efeito a longo prazo de baixos níveis de exposição a maconha não parece ser significativo (Pletcher et al., 2012). A competência imunológica do sistema respiratório em usuários de maconha também pode ser comprometida, como indicado pelo aumento das taxas de infecções respiratórias e pneumonia (Owen, Sutter, & Albertson, 2014). O

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uso da maconha também tem sido associado a problemas vasculares que aumentam os riscos de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e ataques isquêmicos transitórios durante a intoxicação por maconha (Thomas, Kloner, & Rezkalla, 2014). Os reais mecanismos subjacentes aos efeitos da maconha nos sistemas cardiovasculares e cerebrovasculares são complexos e não totalmente compreendidos (Volkow et al., 2014).

Efeitos do uso da maconha em adolescentesAlém da discussão sobre os benefícios e ou malefícios do uso da

maconha e as implicações políticas da legalização ou descriminalização entre os diferentes países, os efeitos do consumo de cannabis em idades precoces na vida têm sido estudados por muitos pesquisadores. Eles consideram os possíveis impactos sobre a saúde física, psicológica e social durante a adolescência e a idade adulta.

Estudos têm sido realizados para determinar os efeitos do consumo de maconha em adolescentes. Dougherty et al. (2013) mostraram que o uso de maconha está associada com a perda de memória a curto prazo. Essa perda se mantém mesmo depois de seis semanas abstinência e ocorre num período de tempo mais curto de utilização em adolescentes que quando um adulto consome. O mesmo estudo indica que há uma maior tendência à impulsividade em adolescentes que usam maconha, o que poderá, a médio prazo, ter impacto sobre o desenvolvimento do uso problemático. O mesmo efeito sobre a memória tanto em usuários ocasionais como frequentes foi encontrado em uma revisão desenvolvida por Crane, Schuster, Fusar-Poli e Gonzalez (2013). Essa revisão aponta que outros efeitos neuro-cognitivos não são tão consistentes em sua associação com a maconha e afirma que a capacidade de tomar decisões e assumir riscos permanecem intactos durante os episódios de intoxicação aguda, mas é alterada no consumo regular, e pode ter algum efeito sobre o desenvolvimento do consumo problemático. Além disso, tomar a decisão de parar de usar maconha é mais difícil, mesmo quando os riscos são conhecidos (Crane et al., 2013).

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Solowij et al. (2011) encontraram memória e aprendizagem verbal prejudicadas em adolescentes com uma média de consumo de 2,4 anos de uso. Na mesma linha, Meier et al. (2012) demonstraram que o uso persistente de maconha foi associado com declínio neuropsicológico, especialmente funcionamento executivo e velocidade de processamento. Esse estudo observou que o QI diminui na idade adulta, quando a idade de início do uso se dá na adolescência, enquanto que quando o consumo começa quando adultos, esse declínio de QI não ocorre. Finalmente, quando cessa o consumo de cannabis, o funcionamento cerebral prévio não é totalmente restaurado.

Os efeitos da maconha no cérebro do adolescente têm sido estudados por muitos pesquisadores e alterações corticais têm sido amplamente descritas. James, James e Thwaites (2013) encontraram alterações corticais em adolescentes normais, associando-as com efeitos em reforçadores primários, como o paladar e o tato, persistindo após seis meses de abstinência. Em sua revisão, os autores observaram que quando as demandas cognitivas são baixas, tanto o grupo controle como o de usuários de maconha funcionam bem, mas quando as exigências são maiores, o funcionamento de consumidores declina e há perda de inibição. Em outro estudo, Jacobus et al. (2012) relataram mudanças no fluxo cerebral, com diminuição de irrigação sanguínea e declínio de perfusão, que podem ser críticos para o desenvolvimento do cérebro no final da adolescência.

Outros sistemas orgânicos também podem ser afetados pelo consumo de cannabis. Ditmyer et al. (2013) sugerem que existe uma associação entre saúde bucal e uso de tabaco e maconha, pois são um fator de risco para cáries graves na adolescência. Por sua vez, um estudo descreveu o impacto da fumaça da maconha sobre o sistema cardiovascular, demonstrando que a frequência da variabilidade cardíaca aumentou significativamente em usuários jovens do sexo masculino. Em suma, a maconha não só afeta o cérebro, mas outros sistemas relevantes no desenvolvimento do adolescente também são por ela afetados (Schmid, Schönlebe, Drexler, & Mueck-Weymann, 2010).

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Os pares têm forte influência no uso da maconha e são um fator de risco importante. Ali, Amialchuk e Dwyer (2011) determinaram que aumentando a proporção de amigos e colegas mais próximos consumidores de maconha, o consumo aumenta em cinco pontos percentuais, o que significa uma forte relação entre a identificação entre o comportamento do adolescente e o comportamento de seus pares.

Asbridge, Hayden e Cartwright (2012) encontraram uma associação entre o uso agudo de maconha e a ocorrência de acidentes, especialmente aqueles com resultados fatais. Porém, Arterberry et al. (2013), em uma amostra de 597 adolescentes usuários, encontraram que 35,4% relataram dirigir depois de fumar maconha, sem expectativa de diminuir o controle ou prejudicar a condução. Outros estudos observaram que dirigir sob os efeitos da maconha é mais comum entre usuários frequentes (Bergeron, Langlois, & Cheang, 2014, Fischer et al., 2014). Brady e Li (2014) mostraram que a substância não-alcoólica mais comum detectada em acidentes de carro com resultados fatais foi a maconha, contribuindo para um aumento de mortalidade nos indivíduos com menos de 25 anos de idade. Considerando o impacto de outras substâncias como o álcool, alguns achados sobre o desenvolvimento do cérebro do adolescente usuário relativos a impulsividade e comportamentos de risco sugerem que existe um aumento em acidentes de carro pelo efeito adicional de uso da maconha (Brady & Li, 2014). Assim, o uso de maconha na adolescência tem vários efeitos sobre os diferentes aspectos da vida. Esses efeitos têm impactos tanto de curto como de longo prazo, e podem afetar o desenvolvimento e a vida na fase adulta.

Leis sobre a maconhaAs políticas regulatórias sobre o uso da maconha têm sido discutidas

há anos no contexto das drogas ilícitas. Nesta análise, diferentes aspectos devem ser considerados, tais como questões econômicas (mercado), premissas morais duvidosas (os usuários precisam ser corrigidos e/ou punidos), consequências para a saúde e justiça (Velleman, 2013). O

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sistema de monitoramento internacional de drogas é baseado em três convenções principais que emanaram do sistema das Nações Unidas: a Convenção Única de 1961 sobre Entorpecentes; a Convenção de 1971 sobre Substâncias Psicotrópicas; e a Convenção de 1988 contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas. Nas três convenções, a cannabis é apresentada como uma substância altamente aditiva e “suscetível de abuso”, com propriedades particularmente perigosas, que deve ser proibida (United Nations, 1961, 1971, 1988). No entanto, mesmo quando obrigados pelas convenções das Nações Unidas, decisões de legalizar a produção e o consumo de maconha para uso pessoal em dois estados dos EUA (Colorado e Washington, embora ainda seja uma substância ilegal de acordo com leis federais) e Uruguai levantaram novos cenários e abriram a discussão para temas não relacionados exclusivamente com a maconha como uma substância aditiva (Room, 2014).

Nesse cenário global, algumas declarações, tais como “a maioria das drogas ilícitas é menos prejudicial do que o álcool e o tabaco”, “a proibição transforma um grande número de cidadãos em criminosos” são muito comuns no debate das mudanças de regulamentação (Velleman, 2013). A influência da proibição no preço das drogas, o impacto sobre o crime organizado, a violência e a corrupção associadas ao problema de drogas, e a demonstração de que a “guerra às drogas” fracassou, devem ser considerados antes de alterar regulamentos locais ou estabelecer novas convenções internacionais.

Nesse contexto, os conceitos de legalização, despenalização ou descriminalização da maconha tornam-se um chavão, criando debates acalorados e controversos. Os resultados de alguns desses debates seriam considerados impossíveis no passado, porém legalização, despenalização ou descriminalização já se tornou uma realidade para alguns países do hemisfério ocidental (Joffe & Yancy, 2004). Os termos legalização, despenalização e descriminalização são frequentemente usados como sinônimos, no entanto eles não se referem ao mesmo conceito:

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Descriminalização inclui sanções não criminais, como multas ou intervenções destinadas a dissuadir os usuários de continuar a consumir drogas ilícitas. O termo despenalização é agora amplamente utilizado na discussão de regimes jurídicos alternativos. Refere-se a uma redução dos níveis atuais de penalidades formais de qualquer tipo de posse de drogas para uso pessoal, enquanto que legalização refere-se a um regime em que a produção e o consumo são legais. Pode haver restrições legais de ambos os lados do mercado, até mesmo com sanções penais para as violações. Legalização significa que é possível para uma ampla classe de indivíduos obter a droga sem penalização e a droga pode ser produzida e distribuída por algumas entidades sem penalidade. (Organization of American States - Cicad, 2013, p. 8)

A legalização e/ou descriminalização da maconha têm implicações difíceis de serem previstas. A Organização dos Estados Américas (2013) afirma que “a legalização de substâncias controladas, especialmente se comercializadas, poderia complicar os esforços de prevenção, diminuir os preços e, assim, expandir o uso e dependência, com todas as consequências negativas que acompanham essas tendências. (p. 5).” No entanto, a organização também enfatiza que as questões sociais, tais como a criminalidade e a violência podem diminuir. Essencialmente, os países só vão descobrir esse impacto depois de algum tempo de acompanhamento, monitoramento e avaliação dessas alterações regulamentares.

De acordo com o modelo bioecológico, as leis e marcos regulatórios que envolvem a temática das drogas correspondem ao macrossistema. Esse contexto, que para Bronfenbrenner (2005) representa o mais inclusivo dos sistemas, refere-se ao conjunto de ideologias, valores, crenças, religiões, culturas e subculturas presentes no cotidiano da pessoa que está em desenvolvimento. Os adolescentes elaboram suas percepções influenciados por essas construções sociais e é muito importante oportunizar a sua participação na discussão destes conceitos e como vigoram em sua cultura.

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Percepção de danos do uso da maconha entre adolescentesMudanças regulatórias sobre o uso da maconha em vários países

provaram ser uma luta constante para as políticas globais de saúde, com a possibilidade de ter um impacto considerável na percepção do adolescente sobre de danos em relação ao uso de maconha. O relatório afirma que, para adolescentes e adultos jovens, os regulamentos mais permissivos sobre a maconha se correlacionam com diminuição do risco percebido, e baixa percepção de risco foi encontrado como preditivo de aumento na utilização. O relatório também adverte que, embora o público em geral possa perceber a maconha como a droga ilícita menos danosa, entre 2003 e 2012, a proporção do total de admissões para tratamento de dependência de cannabis aumentou em vários países (UNODC, 2014).

O relatório afirma que o início do uso da maconha entre os adolescentes é particularmente preocupante devido ao risco aumentado de dano. Algumas delas incluem: o uso de outras drogas e dependência, problemas pulmonares, perda de memória, problemas de desenvolvimento psicossocial, problemas de saúde mental, diminuição do desempenho cognitivo associado ao início precoce e uso persistente entre os anos do início da adolescência e idade adulta (UNODC, 2014).

Segundo a pesquisa “Monitoring the Future” (Johnston et al., 2014), a percepção dos riscos associados ao uso da maconha mudou e agora menos adolescentes acreditam que as drogas são prejudiciais. Os autores observaram que essa mudança com frequência prevê o aumento do uso futuro de uma droga. A pesquisa constatou que apenas 41,7% dos alunos da 8a série veem o uso ocasional da maconha como prejudicial, enquanto 66,9% consideram o uso regular como prejudicial. Além disso, os autores afirmam que este foi o menor nível documentado nessa faixa etária desde 1991, quando o estudo começou a monitorar a percepção de risco entre os alunos da 8a série. É de particular importância observar que a percepção do risco associado ao uso de maconha continuou a declinar acentuadamente nos últimos anos escolares. A desaprovação do consumo também diminuiu um pouco em 2013. Essas alterações muitas vezes são presságios de aumento na prevalência de maconha no futuro. A

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disponibilidade percebida manteve-se relativamente estável. O uso da maconha no 3o ano do ensino médio foi maior do que fumar cigarros (21,4% versus 19,2% nos últimos 30 dias).

Kilmer, Hunt, Lee e Neighbors (2007) descobriram que a percepção de risco foi maior entre os não usuários de maconha do que entre aqueles que relataram uso de maconha (e, por sua vez, que eram mais propensos a ter realmente experimentado uma consequência relacionada com a droga). Entre os usuários de maconha, a percepção de risco não foi influenciada pela frequência de uso de maconha, nem foi influenciada pela experiência real de uma consequência relacionada com a droga. Para os abstêmios, o risco percebido e as possíveis consequências do uso de maconha podem ter um papel protetor contra o início do uso da droga. Para aqueles que usam maconha, as intervenções que utilizam enfoques motivacionais poderiam explorar a discrepância que há entre os riscos percebidos e as consequências reais experimentadas.

Um levantamento domiciliar australiano sobre os riscos à saúde provocados pelo consumo de cannabis mostrou que os entrevistados acreditavam que o uso de cannabis pode causar problemas de saúde e sociais, podem afetar adversamente a capacidade de uma pessoa em dirigir um carro, pode causar dependência, e pode levar ao uso de outras drogas ilícitas (Calabria, Swift, Slade, Hall, & Copeland, 2012). Os entrevistados tinham dúvidas quanto ao fato de se a cannabis podia ou não causar esquizofrenia e depressão, e se a cannabis tornar-se-ia mais potente ao longo do tempo. No mesmo contexto, os resultados de um estudo realizado em Bogotá e em Barcelona com 865 alunos (de 15 a 18 anos de idade) mostrou que o medo das consequências ou a percepção de risco de danos ou lesão e as condições que favoreçam a utilização não parecem ter uma influência óbvia sobre os diversos hábitos de consumo entre adolescentes mais velhos (Trujillo, Fornsi-Santacana, & Pérez-Gomez, 2007).

Thornton, Baker, Johnson e Lewin (2013) encontraram que no caso do tabaco e do álcool, o consumo foi inversamente e significativamente relacionado com a percepção de dano. Eles concluíram que maiores

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percepções de risco para tabaco e maconha se associam ao sexo feminino e à percepção da efetividade de campanhas de prevenção do consumo. Também notam que as pessoas com alterações de saúde mental percebem a maconha como mais prejudicial do que as pessoas sem nenhuma alteração.

Um estudo no qual se aplicou um modelo bioecológico para predizer a percepção de risco de consumo de maconha na adolescência encontrou que os adolescentes tendem a perceber a si mesmos como invulneráveis ao dano e tomam decisões relativas aos comportamentos de risco para a saúde baseadas nessa percepção (Fleary, Heffer, McKyer, & Newman, 2010). No entanto, não há suficiente pesquisas sobre as razões para as quais alguns adolescentes se envolvem em comportamentos de risco, mesmo quando têm uma percepção similar aos daqueles que se abstém de comportamentos de risco.

Muitos modelos e teorias foram desenvolvidos para explicar o uso de drogas em diferentes populações, incluindo o modelo das crenças em saúde, que assume que a percepção de risco está relacionada negativamente com os comportamentos de risco, mas falha em incorporar variáveis bioecológicas que são cruciais na tomada de decisões na adolescência.

Conforme aponta Bronfenbrenner (2005), as variáveis de contexto, pessoa, processo e tempo, podem ser muito úteis para a análise e o planejamento da intervenção, sobretudo no campo da prevenção. Os contextos dos quais o adolescente participa constituem um privilegiado campo de interações, no interior do qual os processos proximais ocorrem. Planejar ações que não sejam exclusivamente normativas e informativas e investir no protagonismo adolescente, assumindo uma visão que transcenda a ideia restritiva de culpabilização do indivíduo, pode ser uma boa estratégia para esse trabalho.

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PARTE 3

TRANSIÇÃO DE PARADIGMA NA PREVENÇÃO

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CAPÍTULO 3.1

A Escola como uma Comunidade Educativa e Protetiva:

a experiência do Prodequi/UnB na prevenção do uso abusivo de drogas

Maria Lizabete Pinheiro de SouzaMaria Inês Gandolfo ConceiçãoMaria Fátima Olivier Sudbrack

O objetivo deste texto é traçar uma retrospectiva das ações do Prodequi/UnB na prevenção do uso de drogas em escolas, apresentar os fatores de risco e proteção do uso de drogas, o paradigma sistêmico da educação para a saúde e os fatores de risco e proteção da escola associados à variável “clima escolar”, conforme pesquisa de Souza (2017).

A função da escola, como espaço de socialização e lócus da prevenção, não pode ser negligenciada. No entanto, ainda há muito o que realizar nesse sentido, sobretudo no que se refere à prevenção do uso abusivo de drogas. A pesquisa PenSE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2015) revela que o contato das crianças com as drogas inicia-se muito cedo. Essa pesquisa informou que cerca 9% dos estudantes, na faixa etária de 13 a 15 anos, experimentaram drogas ilícitas. Já entre os escolares de 16 a 17 anos, o nível é de aproximadamente 17%. O consumo de drogas ilícitas aumentava com a idade, sendo de 7,2% entre os escolares de 16 a 17 anos de idade, tendo em vista que um quarto dos escolares alegaram ter amigos usuários. Dentre os estudantes que já haviam experimentado bebidas alcóolicas, 73% estavam na faixa etária de 16 a 17 anos, destes pouco mais de 21% iniciaram o uso com menos de 14 anos de idade, e cerca de 60% tinham amigos usuários. O consumo de

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álcool cresceu 56,5%, sendo 24%, aproximadamente, na faixa etária de 13 a 15 anos, e de 38,0% entre 16 a 17 anos. “Em torno de 37% dos escolares de 16 a 17 anos de idade já sofreram com episódios de embriaguez e aproximadamente 12,0% deles tiveram problemas, com família ou amigos, porque haviam bebido” (IBGE, 2015, p. 90).

O papel da escola na prevenção do uso abusivo de drogasPrevenir, segundo a Carta de Ottawa de 1986, implica saber acolher e

possibilitar a construção identitária de educadores e alunos, o desenvolvimento das potencialidades humanas e a inserção na cultura. Consiste em permitir a subjetivação, ou seja, possibilitar ao estudante tornar-se pessoa, pertencer a um espaço próprio e construir um projeto de vida.

A ação preventiva visa à formação, capacitação e conscientização sobre determinada situação de risco e deve ser realizada em três níveis: primário, secundário e terciário. A prevenção primária acontece quando o uso de drogas não está ainda instalado; na prevenção secundária, é possível identificar um nível moderado de uso de drogas; na prevenção terciária, por sua vez, o problema já está instalado e requer tratamento especializado.

Os programas de prevenção são efetivados quando integram várias abordagens, setores e instituições. Portanto, o cuidado com a vida deve ser partilhado entre os poderes públicos, privados e comunitários, e as intervenções preventivas devem ser feitas com planejamento, avaliação e transparência, em comunidades pequenas e específicas (Souza, Sudbrack, & Conceição, 2015).

O espaço escolar, como já foi dito, é potencialmente capaz de proteger crianças e jovens de situações que envolvam risco social. Proteger, segundo Schenker e Minayo (2005), significa oferecer condições de crescimento, de amparo e de fortalecimento da pessoa em formação.

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Os fatores de proteção e de risco da escolaOs fatores de proteção referem-se às condições que contribuem para

diminuir a probabilidade de envolvimento com drogas e outros comportamentos de risco, bem como o aparecimento de novos casos quando há fatores de risco, como os conflitos de ordem familiar e social. Referem-se às influências que modificam, melhoram ou alteram respostas pessoais a determinados riscos, evitando que os indivíduos expostos às situações de risco tenham seu desenvolvimento prejudicado. Os fatores de risco são circunstâncias presentes no indivíduo, na família, na escola, no grupo de pares e na comunidade que, de forma isolada ou conjunta, aumentam a probabilidade de o indivíduo apresentar problemas de ordem física, emocional, social. O risco, na área da saúde, envolve o conhecimento e a experiência acumulada sobre o perigo de alguém ou de a coletividade ser acometida por doenças e agravos. A exposição ao perigo potencializa os riscos de diversas formas e em vários contextos, exacerbando, por exemplo, fatores individuais, educação infantil insatisfatória, fracassos escolares, relações sociais problemáticas entre os pares ou com desorganização da comunidade.

O produto final da interação entre fatores de risco e de proteção associa-se diretamente com os processos de resiliência (Libório, 2009), entendida como a capacidade de suportar as condições adversas e crescer apesar delas, como, por exemplo, em precárias condições socioeconômicas da família e da comunidade. Para Yaria (2005), a escola desenvolve o capital social e é território social que privilegia os valores humanos. O desafio dessa instituição é suplantar a “atomização dos vínculos” e a “consequente atomização dos seres humanos” (Yaria, 2005, p. 77). A escolarização, portanto, contribui para a promoção da resiliência. A conclusão dos ciclos de estudos, ainda que em situações adversas, são fatores de imunização e de proteção.

Entre os estudiosos desse assunto, Conceição e Sudbrack (2004) apresentaram os fatores de risco e proteção no Paradigma Sistêmico da Educação para a Saúde em diferentes domínios da vida: o individual, o de pares, o familiar, o comunitário e o escolar. No domínio da escola, os seguintes fatores foram apresentados por Sudbrack e Dalbosco (2005 maio):

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A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

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Tabela 1– Fatores de Proteção e de Risco

Fonte: “Escola como contexto de proteção: refletindo sobre o papel do educador na prevenção ao uso indevido de drogas”, Sudbrack & Dalbosco, 2005, maio, p. 10.

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Fatores de Proteção Fatores de RiscoDefinição, comunicação e negociação de

normas, regras e limites.Indefinição ou falta de comunicação e negociação de normas, regras e limites.

Coerência e congruência entre agentes educativos na aplicação de normas e regras escolares.

Incoerência e incongruência entre os agentes educativos na prática de normas.

Relação de respeito mútuo, compromisso e c o o p e r a ç ã o e n t r e o s a g e n t e s educativos.

Relação desrespei tosa e fa l ta de responsabilidade e compromisso entre os agentes educativos.

Relações amistosas e de cooperação entre a família e a escola.

Ausência da relação entre família e escola.

Estímulo às práticas escolares. Falta de estímulo às práticas escolares.Verbalização das expectativas positivas

com relação ao desempenho dos alunos.

Ausência de expectativas positivas em relação ao desempenho dos alunos.

Promoção de prát icas cr ia t ivas e estimulantes, com atividades escolares e extraescolares que concorram para a criação de vínculos entre o aluno e a escola, os pais e a comunidade.

Ausência de atividades criativas e estimulantes que ajudem na criação de vínculos entre o aluno e a escola.

Fortes vínculos afetivos e de confiança entre alunos e professores e dentro do ambiente escolar.

Ausência de afetividade e confiança na relação professor-aluno e no ambiente escolar.

Relações professor-aluno baseadas no respeito mútuo.

Relações professor-aluno baseadas no au t o r i t a r i smo ou no exce s so de permissividade.

Presença e afetividade e confiança no ambiente escolar.

Ausência de afetividade e confiança na relação professor-aluno e no ambiente escolar.

Estímulo e exercício dos princípios da cooperação e da solidariedade.

Falta de estímulo às práticas educativas de cooperação e solidariedade.

Controle da presença de drogas. Falta de controle quanto à presença de drogas na escola.

Postura repressora e reflexiva quanto ao uso de drogas pelos jovens.

Tolerância em relação ao cigarro, álcool e outras drogas.

Maria Lizabete Pinheiro de Souza et al

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Justino, Lima e Sudbrack (2015), em pesquisas realizadas junto aos tutores que participaram da sexta edição do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas destacaram os seguintes fatores de proteção: “o pertencimento e valorização do educando; a relação respeitosa entre educando e educador; a cooperação entre família e escola; e o ambiente escolar seguro e protetor” (p. 278).

Para Schenker e Minayo (2005), os fatores de risco são circunstâncias que, de forma isolada ou conjunta, aumentam a probabilidade de o indivíduo apresentar problemas de ordem física, emocional, social; implicam a manifestação ou permanência de algum comportamento de risco – uso frequente e abusivo de drogas, atos de violência e delinquenciais, práticas sexuais não protegidas etc. No âmbito educacional, existem fatores específicos que predispõem os adolescentes ao uso de drogas, como: (a) falta de motivação para os estudos, absenteísmo e mal desempenho escolar; (b) insuficiência no aproveitamento e falta de compromisso com o sentido da educação; (c) intensa vontade de ser independente, combinada com pouco interesse de investir na realização pessoal; (d) busca de novidade a qualquer preço e baixa oposição a situações perigosas, rebeldia constante associada à dependência a recompensas (p. 710). Para Justino et al. (2015), dentre os fatores de risco da escola, destacam-se: “a presença do uso ou abuso de drogas lícitas e ilícitas no ambiente familiar; relações conflituosas na família; ausência de referência de autoridade e limites; ausência de cooperação entre família e escola, proximidade de distribuição de drogas na escola” (pp. 278-279).

O Paradigma sistêmico da educação para a saúdeA partir do entendimento de que prevenir é impedir que algo de mal

aconteça, e dentro do paradigma da promoção da saúde, o Prodequi/UnB, por meio do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas, apresentou estratégias e abordagens interdisciplinares e intersetoriais, propondo a integração de órgãos e de profissionais (da saúde, da assistência social, da educação, entre outros)

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A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

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que compõem as redes sociais do sujeito, redes essas que integram elementos econômicos, sociais e culturais e operam mudanças macro e microssociais. Desse modo, destaca-se a abordagem sistêmica de educação para a saúde, proposta por Sudbrack (2014b), que utiliza o conceito de redes sociais de Sluzki (1997), que concebe uma teia relacional entre pessoas e grupos sociais, propondo como estratégia o reforço dos vínculos sociais, baseado na confiança, permitindo, assim, “[...] a circulação das informações necessárias, troca de experiências, aprendizados recíprocos e construção de soluções coletivas” (p. 174).

Tratando-se de prevenção, existem duas visões: a tradicional e a sistêmica. Dentro da visão tradicional, o usuário é percebido como delinquente ou doente, submisso ao controle da família, o que dificulta a sua relação no contexto familiar e social. Na visão sistêmica, proposta por Sudbrack, Conceição e Costa (2014a), o usuário é percebido como sujeito de direitos, agente de mudança, com autonomia para tomar decisões e negociar regras, o que facilita a sua relação com a família e a sociedade. A perspectiva sistêmica, defendida pelo Prodequi/UnB, possibilita ter uma compreensão do contexto vivencial do sujeito levando em conta os fatores internos e externos que atuam na sua formação. Assim sendo, as relações escolares podem se constituir em um fator de proteção que fortalece a autoestima do estudante, contribuindo para que tenha um estilo de vida saudável. Desse modo, as práticas educativas devem romper com a cultura do medo (que não diferencia os diferentes usos) e adotar a visão sistêmica que propõe “o fortalecimento do sujeito em busca de autonomia, exercitada no protagonismo social para uma vivência plena de cidadania” (Bottechia et al., 2015, p. 131).

A visão comparativa dos dois enfoques descritos por Sudbrack (2014b, p. 172) é apresentada a seguir.

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Tabela 2 – Comparativo entre dois enfoques sobre prevenção do uso de drogas

Fonte: Sudbrack (2014b, p. 172).

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Enfoque do medo Enfoque sistêmico

Controle da oferta: preocupação em controlar a oferta de drogas ilícitas, com pretensão de acabar com as drogas.

Redução da demanda: preocupação em reduzir a procura por drogas, com limites para crianças e jovens no acesso às drogas lícitas e ilícitas.

Controle externo: criminalização do usuário de drogas, com abordagem policial centrada nas drogas ilícitas.

Autonomia: consc ient ização da população sobre o uso de drogas lícitas e ilícitas.

Ampliação da violência que gera insegurança e paralisia: ênfase no medo e nas ameaças, promovendo impotência e inércia.

Ampliação do conhecimento e competência para ação: ênfase na au toes t ima e na au toconfiança , promovendo iniciativas para soluções criativas.

Abordagem isolada: problema reduzido à questão do produto, atribuindo poder à substância sem considerar o sujeito.

Abordagem integrada: problema definido a partir do encontro de uma pessoa com um produto em um contexto sociocultural.

Repressão: prevenção centrada na fuga do problema, usando um discurso estereotipado e amedrontador, impondo posturas e decisões autoritárias.

Educação: prevenção centrada no conhecimento da realidade, quebrando tabus, reconhecendo situações de risco, promovendo a opção pela saúde e pela vida.

Questão individual: envolvimento com drogas visto como um problema pessoal, tratado como um processo psicológico individual.

Questão relacional: envolvimento com drogas visto como um problema de relações tratado como processo de mudanças no contexto familiar.

S o l u ç õ e s h i e r a r q u i z a d a s e parciais: isolamento dos usuários do convívio social, transferindo o problema para especialistas.

S o l u ç õ e s p a r t i c i p a t i v a s e contextualizadas: mobilização dos recursos comunitários, construindo v íncu los a fe t i vos , redes soc ia i s , integrando os diferentes saberes.

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A partir dessa perspectiva sistêmica, as formas de intervenções pedagógicas devem mudar a visão sobre o jovem, por vezes considerado negativo e destrutivo, que “passa a ser o protagonista das mudanças necessárias à evolução e à melhora nas relações da família ou dos demais sistemas nos quais interage” (Sudbrack, 2014a, p. 164). Desse modo, de acordo com Souza, Sudbrack, et al., (2015), os educadores, enquanto mediadores do desenvolvimento da personalidade do educando, devem desconstruir visões preconceituosas em relação ao uso e ao usuário, e promover uma nova compreensão da relação professor-aluno-comunidade e da prática pedagógica na escola. Assim sendo, poderão desenvolver ações contínuas e integradas que possibilitam que o estudante se sinta integrado e valorizado, fortalecendo as relações escolares e construindo redes de proteção intra e extraescolares.

O curso de Prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas

O Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas – Prodequi/UnB, dedicou-se, nos últimos dez anos, à formação de educadores de escolas públicas no Curso de Prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas, em parceria com o Ministério da Educação e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça.

O curso se baseia no modelo sistêmico de educação para a saúde. A primeira publicação sobre esse modelo foi apresentada por Sudbrack (1996). Tal modelo, que contrapõe o modelo do medo, integrou o conteúdo pedagógico de diversos cursos, dentre eles o de Prevenção ao uso de indevido de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua e o Diga Sim à Vida (Costa, Seidl, & Sudbrack (1999). O novo modelo proposto voltado para a educação, para a saúde e valorização da participação da comunidade, fez parte da base teórica do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas (Sudbrack et al., 2014a). “O desafio da mudança paradigmática do modelo do medo para o modelo sistêmico da educação

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para a saúde foi amplamente explorado em diversas publicações (Sudbrack, 1996, 1999, 2004a, 2006, 2014a, 2014b, 2014c; Sudbrack, Conceição, & Costa, 2008, 2010)” (Souza, 2017, p. 18).

O curso apresenta-se em formato de Educação a Distância (EaD), possui 180 horas/aula, foi realizado de 2004 a 2014, e resultou de uma parceria entre a Universidade de Brasília (UnB), o Ministério da Educação (MEC) e a Secretaria de Políticas Nacionais sobre Drogas (Senad) – vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Foram oferecidas mais de 195.000 mil vagas para cursistas em todo o Brasil, em seis edições, durante dez anos de vigência do curso. Em 2012, o curso foi ofertado para todo o Brasil como a principal ação preventiva no eixo de prevenção do programa Federal “Crack é Possível Vencer!” (Brasil, 2011). O curso objetivou contribuir no fortalecimento das redes de proteção da escola, propondo a integração de órgãos e profissionais da saúde, da assistência social, da segurança pública e da justiça, além de representantes da comunidade (Souza, 2017).

A Tabela 3, a seguir, apresenta os dados das cinco últimas edições (a primeira foi uma edição-piloto ofertada a 5.000 cursistas do país), destacando o número de selecionados, de educadores certificados, de escolas atendidas e de projetos desenvolvidos. Nos dez anos de vigência do curso, foram certificados 94.072 cursistas, participaram 33.040 escolas, que apresentaram 19.354 projetos de prevenção.

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Tabela 3 – Panorama da oferta e da Certificação no Curso de Prevenção

Fonte: Rodrigues e Bias, 2015, p. 95.

Durante a vigência do curso, instrumentos diagnósticos foram desenvolvidos em várias pesquisas de mestrado e doutorado: (a) entrevista de acolhimento do adolescente em situação de risco (Pereira, Sudbrack, & Almeida, 2015); (b) termômetro de fatores de risco e de proteção da escola (Borges, 2006); (c) o mapa da rede social da escola (Sudbrack & Vasconcelos, 2014). O banco de dados do Prodequi/UnB também serviu de base empírica para várias pesquisas de mestrado e doutorado. As teses realizadas foram de: (a) Souza (2017) sobre os fatores de risco e proteção da escola e a sua relação com o clima escolar; (b) Dalbosco (2012), que trata das representações sociais dos educadores sobre as situações-problema relativas uso de álcool e drogas no contexto escolar, e Pereira (2009) sobre as redes sociais dos adolescentes em situação de vulnerabilidade e o risco do envolvimento com o tráfico de drogas. As dissertações realizadas foram de: (a) Marques (2011), que pesquisou as narrativas dos educadores sobre as situações-problema relativas ao uso de álcool e outras drogas no contexto escolar da região Centro-Oeste; (b) Sobrinho (2014), sobre o papel do policial como parceiro da escola na prevenção do uso de drogas; (c) Silva (2011), que pesquisou sobre a

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Edição Selecionados Certificados Escolas Projetos2ª (2006-2007) 20.097 13.432 2.289 1.7563ª (2008-2009) 24.583 14.601 6.419 4.3044ª (2010-2011) 23.297 10.170 3.357 2.2015ª (2012-2013) 70.951 33.306 9.201 5.6126ª (2014) 61.603 24.563 11.774 5.481

Somatório das edições do “Plano crack”

132.554 55.975 20.975 11.093

Somatório “10 anos” 200.531 94.072 33.040 19.345

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questão das drogas e da violência na escola sob a ótica dos educadores sociais da segurança pública; e (d) Vasconcelos (2008), que destacou a avaliação da rede social da escola como forma de prevenção. Importa ressaltar, também, que no biênio de 2013-2014 foram realizadas pesquisas: uma pesquisa geral sobre o impacto do curso, desenvolvidas por Polonia, Neiva, Justino, Totugui e Sudbrack, (2015), e oito dos polos regionais do curso, desenvolvidas por Asinelli-Luz e Wisniewki (2015), Borloti et al. (2015), Noto et al. (2015), Souza, Alencar, et al. (2015), Sudbrack, Millão, Vione, Santos e Almeida Junior (2015), Teixeira e Nascimento (2015), Viana e Vianna (2015). É importante ressaltar que, no decorrer das quatro últimas edições, foram feitas avaliações externas sistemáticas, sendo que, na última delas, Pereira (2015) pesquisou o impacto das 5ª e 6ª edições em todo Brasil.

O papel do educador na prevenção do uso de drogas não é fácil. Muitos professores abraçam a causa e o aluno, mas estão muito sobrecarregados e adoecidos. Destacam a necessidade de envolver o aluno na prevenção, inclusive nos cursos oferecidos sobre a temática. Para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef, 2002), os estudantes podem e devem manifestar suas opiniões e interferir nas políticas e programas educativos, porém, no protagonismo juvenil preconizado pelas Diretrizes e Bases da Educação Brasileira em 1996, a participação juvenil ainda é tratada como despolitizada e conformista. Muitos não se identificam com a escola, quando o contexto escolar não se constitui um espaço público e democrático que acolhe as culturas juvenis e oferece condições para o aluno se socializar e construir o seu projeto de não se subjugar às ingerências políticas, socioeconômicas e pedagógicas (Souza, 2017, p. 157).

O clima escolar como fator de proteção na escolaNa pesquisa realizada por Souza (2017) com educadores que

concluíram a 5a e a 6a edições do curso, foram destacados fatores de proteção ao uso de drogas em escolas do DF e a sua relação com o clima

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escolar, definido como: “construto relativo à qualidade dos relacionamentos e da prática pedagógica produzidos no âmbito escolar; inclui valores, atitudes, sentimentos e sensações partilhados entre os atores escolares (alunos, educadores, gestores e funcionários da educação) e as famílias e a comunidade” (p. 171). Os fatores destacados pelos participantes da pesquisa foram: (a): o respeito, o compromisso e a cooperação, entre os agentes educativos, (b) a afetividade e confiança no ambiente escolar, (c) a presença de normas claras e consistentes, (d) a prática escolar com atividades diversificadas, inclusivas, criativas voltadas para o desenvolvimento de habilidades sociais; (e) atitudes positivas e valorativas para com as famílias, promovendo a cooperação entre família/escola, alunos esforçados e interessados; (f) estabelecimento de parceria com a rede social da escola, a participação ativa da comunidade no ambiente escolar; e (g) gestores capazes de dialogar e agregar valor à comunidade escolar. O acolhimento do aluno e de sua família foram considerados os fatores mais protetores. A “confiança coletiva” gera “sentimentos de pertencimento e ligação entre os atores escolares, aumenta o senso de bem-estar e a probabilidade de resultados positivos”. Conforme a proposição de Hoy (2012), pode-se dizer que a confiança coletiva (confiança nos alunos, educadores e funcionários, gestores, pais e comunidade) se constitui numa amálgama relacional que propicia a saúde nas relações escolares.

Foram apontados pelos participantes da pesquisa os seguintes fatores de risco: (a) a localização da escola em áreas de risco social e proximidade da rede de distribuição de drogas; (b) a qualidade das relações escolares, sobretudo as relações da escola com a família e com a comunidade, em que se observa a falta de interação. Outros fatores importantes que comprometem as relações interpessoais na escola são: (c) a ausência de projetos e práticas que envolvam toda a comunidade escolar apostando no protagonismo do aluno; (d) a ausência de interação positiva mestre-aprendiz, permeada por preconceitos, cobranças e dúvidas, leva (e) os educadores a trabalharem de forma isolada, sujeitos a uma prática escolar fragmentada, que pode concorrer para a invisibilidade de fatores

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de risco próprios da escola e visualização do clima escolar positivo como o principal fator de prevenção do uso de drogas (Souza, 2017).

Há uma tendência em responsabilizar a família e a comunidade (o entorno escolar) pelas mazelas existentes no interior da escola (o envolvimento dos alunos com as drogas, por exemplo), bem como em responsabilizar os alunos por não terem um bom desempenho escolar. A relação professor-aluno com atitudes excludentes e punitivas, por vezes permeadas de agressividade, também vem sendo questionada. Foram apontadas também questões cruciais, como a falta de um espaço de escuta dos alunos e o receio da equipe gestora em tratar de questões difíceis, tais como a das drogas e da dificuldade na gestão. Também foram apontadas a falta de articulação entre os professores, a ausência de trabalho coletivo e a dificuldade de articulação com a própria secretaria e com os demais parceiros (Souza, 2017).

O clima escolar promove a dinâmica relacional da instituição e incrementa as ações propostas no Projeto Político-Pedagógico (PPP) das escolas, marca identitária e única de cada escola, que resulta da parceria entre todos os representantes da comunidade escolar (diretores, coordenadores, orientadores, psicólogos e membros do Conselho Escolar, professores, funcionários da escola, alunos e seus pais e familiares), para dar sentido e qualificação ao ensino e à educação. O educador é mediador do processo de conhecimento, que reconhece, inscreve, institui o sujeito (estudantes) na rede de relações humanas, assim sendo, precisa também ser formado, reconhecido e instituído no universo simbólico e relacional da escola. Vale lembrar que, para Souza (2017),

o papel do professor se torna sólido quando confirmado por uma equipe consolidada, reflexiva, legitimada e comprometida com a construção do sujeito que está por traz do aluno. Desse modo, o professor deve ser cooptado pela escola, para que possa crescer nesse espaço institucional e relacional. (p. 171).

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Cabe aos educadores conquistar “a confiança das famílias e das pessoas que compõem o entorno escolar, abrindo espaço para um diálogo permanente que compartilhe os valores comuns que sedimentam o clima escolar e oferece aos alunos a proteção que eles requerem” (p. 171). Recomenda-se, portanto, “que os dirigentes das unidades escolares e das diversas instâncias do sistema escolar avaliem o clima escolar das escolas, utilizando métodos multivariados aplicados aos diferentes atores que compõem a instituição escolar” (p. 171).

Uma boa relação professor-aluno, conforme Blaya (2002), deve conter os seguintes elementos: (a) comunicação clara e honesta; (b) atividades extracurriculares; (c) disciplina justa e coerente; (d) oportunidades para os alunos desenvolverem a autoestima e o sentimento de pertencimento; (e) incentivo à participação, à colaboração, ao desenvolvimento de lideranças e desenvolvimento de uma cultura compartilhada. Para Sudbrack, Conceição e Ramos (2014), a mobilização da rede interna e externa da escola oferece as condições para o pertencimento e o desenvolvimento de projetos de prevenção articulados de promoção da saúde na escola. A criação de um clima interpessoal escolar positivo pode favorecer o funcionamento escolar e o desenvolvimento socioemocional dos professores (Cohen, 2006; Cohen, Mccabe, Michelli, & Pickeral, 2009; McGiboney, 2016) e dos estudantes (Hoy, 2012). Portanto, o acolhimento do aluno e de sua família, o investimento no aluno como um agente de prevenção, no professor como mediador do conhecimento, e nas relações interpessoais é essencial para a criação de um clima de “confiança coletiva” (Hoy, 2012, p. 76). A participação efetiva e constante da rede interna, com os seus diferentes atores (gestores, professores, alunos, funcionários) e as instâncias educacionais (conselho escolar, grêmio, associação de pais e mestres, etc.), e a rede externa (parceiros e comunidade) concorrem para a proteção da escola. Essa instituição, ao se constituir em um agente catalisador e mobilizar a rede interna e externa, fortalece a si própria e à comunidade na qual está inserida, conquistando os insumos disponibilizados pelas políticas públicas e adequando-os ao seu trabalho protetivo e preventivo (Souza, 2017).

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Considerações FinaisA escola se torna protetora quando estende sua ação educativa à

comunidade e inscreve-se simbolicamente como um espaço de acolhida e de pertencimento, bem como quando aproveita o potencial de cada parceiro para oferecer cursos e atividades que visem à formação do cidadão. Importa lembrar que as escolas criam civilizações, projetos de vida, assim, na formulação e no desenvolvimento do Projeto Político-Pedagógico a participação dos estudantes, dos familiares e da comunidade é imprescindível.

O contexto escolar liga cognição, afeto e aprendizagem, e seu clima pode se constituir um lugar de proteção e concorrer para a diminuição de riscos quando os educadores recebem o suporte acadêmico e emocional para desenvolver a sua tarefa pedagógica. Portanto, a política educacional deve ter por direcionamento a medição detalhada e constante dessa importante variável que, por si só, é o fator de proteção mais importante para a prevenção de comportamentos de risco como, por exemplo, o uso de drogas.

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A Escola como uma comunidade Educativa e Protetiva

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CAPÍTULO 3.2

Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas:

caminhos e possibilidadesLarissa Polejack

Gustavo CostaFabiane Braga Pereira

Leandro Moreira dos Santos de Figueiredo

Prevenção e Promoção da Saúde: olhares e intervençõesExistem vários conceitos de prevenção e de promoção de saúde. Para

Czeresnia (2009), a dificuldade principal na definição desses dois conceitos está na própria definição do que é saúde. De acordo com Sciliar (2007), o conceito de saúde reflete uma conjuntura social, econômica, política e cultural e depende da época, do lugar e da classe social. Diante da dificuldade de uma compreensão comum do que seria saúde, coube a Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgar uma carta de princípios em 7 de abril de 1948, reconhecendo a saúde como um direito e como obrigação do Estado na promoção e proteção da saúde. Nesta carta a OMS apresenta a definição de saúde como “ estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade”.

Entretanto, o próprio conceito é passível de várias críticas e, em que pese a visão ampliada (e até utópica) desse conceito, na prática o que se observa em geral em Saúde Pública é que as ações ainda estão voltadas para a lógica de evitar a doença e não na lógica de fortalecer o potencial de saúde dos sujeitos e das comunidades.

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Czeresnia (2009) ressalta que a saúde pública se define como responsável pela promoção da saúde enquanto suas práticas se organizam em torno de conceitos de doença. Outra questão é que suas práticas tendem a não levar em conta a distância entre conceito de doença – construção mental – e o adoecer – experiência da vida –, produzindo-se a “substituição” de um pelo outro. Para a autora, reside aí uma incoerência entre conceitos e práticas que pretendemos discutir neste capítulo.

O conceito de prevenção, proposto por Caplan (citado por Abreu, Barletta & Murta, 2015), foi dividido em três: prevenção primária, secundária e terciária. A primeira dizia sobre ações voltadas para todas as pessoas, com ênfase na redução de novos casos. A segunda era direcionada ao público que já apresentava sintomas iniciais do transtorno que se buscava evitar. Por fim, a terceira focava naqueles que apresentam a doença diagnosticada e buscava reduzir novas ocorrências e complicações dela (Abreu et al., 2015). Esse modelo foi revisado e uma atualização foi proposta em que a prevenção primária foi dividida em prevenção universal, a qual é realizada com foco em todos os membros da população; prevenção seletiva, que tem como foco membros da população que apresentam fatores de risco maiores que o resto da população para o desenvolvimento do transtorno alvo; e prevenção indicada, que é prevista para aqueles que apresentam sintomas iniciais do transtorno, mas que ainda não satisfazem todos os critérios de diagnóstico. A prevenção secundária foi renomeada para tratamento, que inclui identificação dos casos e o tratamento propriamente dito, e a terciária foi renomeada para manutenção, que consiste em serviço de reabilitação e prevenção de recaídas (Abreu et al., 2015).

Tal modelo foi revisto novamente e chegou-se ao modelo atual, de Weiz, Sandler, Dulak e Anton (citado por Abreu et al., 2015), em que “ações de promoção de saúde mental e de prevenção aos transtornos mentais como atividades de um mesmo contínuo, isto é, que têm uma intersecção parcial ainda que mantenham metas distintas” (Abreu et al., 2015, p. 58). Segundo esses autores, a promoção de saúde almeja o desenvolvimento de habilidades e criação de recursos para que o indivíduo

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enfrente problemas pessoais e contextuais. Já a prevenção objetiva o aumento de fatores de proteção, bem como a diminuição de fatores de risco.

Czeresnia (2009) também se ocupa em fazer a distinção entre os dois conceitos. A autora cita Ferreira, que afirma que o termo “prevenir” tem o significado de “preparar; chegar antes de; dispor de maneira que evite (dano, mal); impedir que se realize”. Neste sentido, as ações preventivas têm como base o conhecimento epidemiológico, estão orientadas a evitar o surgimento de doenças específicas, reduzindo sua incidência e prevalência nas populações, e os projetos de prevenção e de educação em saúde estruturam-se mediante a divulgação de informação científica e de recomendações normativas de mudanças de hábitos. “Promover” tem o significado de dar impulso a; fomentar; originar; gerar (Ferreira, citado por Czeresnia, 2009). Nesse sentido, a promoção da saúde traz uma visão mais ampla do que a prevenção, pois refere-se a medidas que não se dirigem a uma determinada doença, mas servem para aumentar a saúde e o bem-estar gerais, tendo como principais estratégias a transformação das condições de vida e de trabalho por meio do fortalecimento da autonomia dos sujeitos e dos coletivos.

Na abordagem da promoção da saúde parte-se do pressuposto de que a saúde tem vários determinantes sociais, econômicos e culturais, portanto a abordagem de fortalecimento da saúde deve considerar a complexidade das relações envolvidas e desenhar estratégias intersetoriais e em diferentes níveis de intervenção (individuais, familiares, comunitárias e governamentais).

Cabe lembrar que a Carta de Otawa, de 1986 (Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, 1986), define a promoção da saúde como um processo que se consubstancia na autonomia da comunidade para desempenhar um papel ativo na melhoria de sua qualidade de vida, o que inclui participação e controle social em todo o processo. Portanto, ao falarmos de promoção da saúde é importante compreender a saúde como um direito que se efetiva com o exercício da cidadania.

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Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

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Czeresnia (2009) destaca que a ideia de promoção envolve a de fortalecimento da capacidade individual e coletiva para lidar com a multiplicidade dos condicionantes da saúde, não bastando conhecer o funcionamento das doenças ou encontrar mecanismos para seu controle. A Promoção da Saúde diz respeito ainda ao fortalecimento da saúde por meio da construção de capacidade de escolha, bem como a utilização do conhecimento com o discernimento de atentar para as diferenças e singularidades dos acontecimentos, bem como a experiência subjetiva presente no processo saúde-doença.

A concepção de saúde como um direito proveniente do princípio da dignidade da pessoa humana, tanto quanto outros também previstos na Constituição Federal Brasileira (Brasil, 1988), nos leva ao entendimento de que a sua promoção não se procede isolada desses outros direitos e nem se desenvolve plenamente em indivíduos separados de sua coletividade.

Prevenção do uso abusivo de drogas: estratégias e desafiosNa área das drogas também vamos encontrar os desafios apontados

na seção anterior, uma vez que, apesar de buscarmos estratégias que promovam saúde, ainda se percebe que muitas ações se desenvolvem na lógica da prevenção de doenças e agravos, ou seja, ainda lidamos com várias intervenções focadas no problema/doença e poucas intervenções focadas no fortalecimento do potencial dos sujeitos e dos coletivos.

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) publicou um documento intitulado “Normas Internacionais sobre a Prevenção do uso de Drogas” (UNODC, 2015). O objetivo desse documento é prevenir o primeiro uso e que a sua evolução se torne um transtorno relacionado ao uso de substâncias psicoativas. A fim de atingir esse objetivo são apresentadas características de um sistema de prevenção eficaz, partindo de intervenções baseadas em evidências daquelas realizadas em diversos países. As intervenções analisadas foram separadas levando em consideração as fases de desenvolvimento, entendendo que os

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fatores de risco e proteção se alteram e um dos fatores que influenciam nessa mudança é a idade.

Ainda que não trate da questão da redução de danos em situações de abuso e dependência de álcool e outras drogas, o documento ressalta a importância da estratégia de redução de danos em situações que fujam ao objetivo do documento. Por fim, apresenta as seguintes características de um sistema de prevenção eficaz: série de intervenções e políticas baseadas em evidências; política de apoio e enquadramento regulamentar; forte base em evidências científicas e pesquisas; diferentes setores envolvidos em diferentes níveis; forte infraestrutura do sistema de aplicação; e sustentabilidade. Além disso, indicam tópicos de pesquisa que necessitam de mais estudos e evidências para, futuramente, basearem programas de prevenção. Temas como esportes, atividades de lazer e uso não medicinal de remédios controlados são exemplos de tópicos que necessitam de estudos mais profundos e controlados baseados em evidências.

O Ministério da Saúde junto com o UNODC implementou três programas baseados em evidências visando à prevenção do uso de substâncias e tiveram resultados avaliados como bons. Os programas eram baseados em ações intersetoriais, na medida em que se valiam de dispositivos de educação, saúde e assistência social (Abreu et al., 2015). Pode-se inferir que o Brasil começa a aplicar as normas internacionais para prevenção do uso de drogas em seu território, ainda que de maneira incipiente.

Após a publicação da Lei 11.243/2016, a redução de danos passou a ser uma estratégia também de prevenção do uso de substâncias psicoativas. Dessa forma, intervenções voltadas ao uso de substâncias devem seguir essa lógica, levando em consideração que o consumo de substâncias envolve fatores pessoais, sociais, culturais, entre outros. Cabe ressaltar que, na nossa avaliação, a abordagem da redução de danos seria a mais coerente com a lógica proposta da promoção da saúde, conforme discutiremos posteriormente.

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Promoção da Saúde e prevenção do uso abusivo de drogas: caminhos e possibilidades

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Büchele, Coelho e Lindner (2009) realizaram um estudo com o objetivo de descrever a promoção da saúde e prevenção do uso de substâncias psicoativas. As autoras distinguem seis abordagens para prevenção do uso de drogas no Brasil, quais sejam: enfoque de princípio moral; amedrontamento; conhecimento científico; educação afetiva; pressão positiva do grupo; e qualidade de vida. Inicialmente, as ações de prevenção focaram nas escolas, apresentando as consequências negativas do uso de drogas, ligado à lógica da abstinência, ao amedrontamento e ao enfoque de princípio moral. Não foram observados bons resultados dessas práticas, apesar de ainda existirem estratégias com essas abordagens. Intervenções focadas em conhecimentos científicos fazem oposição ao amedrontamento e transmitem informações objetivas para que a pessoa decida sobre o uso ou não, favorecendo a autonomia do indivíduo na decisão do consumo ou não. Em geral não é, porém, suficiente para que cause diminuição do consumo (Büchele et al., 2009; Carlini-Cotrim & Pinsky, 1989)

A educação afetiva propõe o desenvolvimento de habilidades de lidar com tensões, frustrações, fortalecimento de fatores de proteção e habilidades sociais, procurando prevenir o uso de drogas. Existe dificuldade de implementação por exigir treinamentos de funcionários e profissionais, além de necessitar de disposição interna na mudança de comportamento (Büchele et al., 2009; Carlini-Cotrim & Pinsky, 1989).

A pressão positiva do grupo visa à mobilização de líderes de jovens, tendo em vista que eles assumam posturas contrárias ao uso de drogas e formem, a partir de coesão afetiva dos próprios jovens, redes de apoio e mútua ajuda. Por fim, a abordagem de qualidade de vida procura estimular práticas saudáveis de vida, desestimulando assim a busca pelo uso de drogas (Büchele et al., 2009; Carlini-Cotrim & Pinsky, 1989). As autoras citam ainda a necessidade de união entre poderes públicos, instituições privadas e sociedade civil para efetiva construção de compromissos de corresponsabilização em relação à qualidade de vida da população, entendendo que todos são responsáveis pelo seu bem-estar.

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Uma das diversas estratégias de prevenção do uso de substâncias psicoativas é a educação por pares, que é definida como “ensinar ou compartilhar informações de saúde, valores e comportamentos por membros com idades ou situações similares” (Tolli citado por Santos & Polejack, 2015). Essa estratégia também é coerente com a lógica da promoção da saúde e tem grande potencial para criação de redes sociais entre os pares, fortalecimento do controle social e favorecimento da autonomia da comunidade, uma vez que incentiva a participação de líderes e membros comunitários. Entretanto, é preciso ter o cuidado de não transformar os pares em apenas reprodutores de informações e recomendações técnicas/normativas determinadas por outras pessoas, correndo o risco de perder a essência da estratégia que é justamente o desenvolvimento de reflexão crítica sobre a realidade, mobilização grupal para as mudanças e fortalecimento de autonomia.

A participação de profissionais de saúde também é importante na construção, implementação e avaliação conjunta das ações de prevenção. Entretanto, cabe ressaltar a importância de formar tais profissionais para saberem atuar na lógica da promoção da saúde e não de forma verticalizada e prescritiva. Um dos aspectos a serem considerados nessa formação é aprender a trabalhar em redes e desenvolver atividades com grupos.

A intervenções de prevenção que visam ao fortalecimento de fatores de proteção, como o desenvolvimento de habilidades parentais e estratégias de enfrentamento ao uso de drogas, apresentam maior coerência com a lógica da promoção da saúde e favorecem a autonomia dos indivíduos em nível pessoal, familiar e comunitário, auxiliando também no exercício da cidadania, entrando em consonância com a PNAD e com a estratégia de redução de danos.

Apesar de existirem exemplos de programas de prevenção do uso de drogas com base em evidências, no Brasil, eles ainda são incipientes (Abreu, Miranda, & Murta, 2016). Faz-se necessário que se realizem testes de mais intervenções, partindo sempre da adaptação ao contexto que vão ser inseridas, e que sejam feitas as devidas avaliações de eficácia e

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efetividade. Além disso, é mister que os autores avaliem suas intervenções de modo sistemático, a fim de utilizar as tecnologias já produzidas em outras cidades e outros contextos com as devidas adaptações culturais e contextuais, porque nem sempre uma intervenção que é bem-sucedida em uma determinada cultura ou contexto poderá ser aplicada em outra população ou lugar, reforçando a importância do envolvimento do Estado e das Universidades no processo de avaliação das intervenções e no desenvolvimento de políticas públicas coerentes com a necessidade da população.

Mas, em termos de políticas públicas, como será que o Brasil tem se organizado para atuar na prevenção do uso abusivo de drogas?

Drogas e políticas públicas no Brasil: um breve históricoO paradigma vigente durante quase todo o século XX em relação às

drogas foi de combate e proibição total, conhecido como “guerra às drogas”. Em relação ao usuário, entendia-se que este deveria estar em completa abstinência. Neste período, o Brasil seguiu o rumo mundial e combateu a produção, uso e venda de substâncias, salvo o álcool e o tabaco. Como exemplo, a maconha foi proibida no Brasil em 1932 (Fiori, 2012). Assim, durante grande parte do século passado, o Brasil e boa parte do mundo viveram a caça às drogas, e em alguns momentos, intervenções estrangeiras em países considerados produtores de drogas, como na Bolívia e na Colômbia (Fiori, 2012; Passos & Souza, 2011).

No fim século passado, porém, aconteceram as primeiras experiências da chamada estratégia de redução de danos. A primeira experiência de redução de danos no Brasil ocorreu em Santos, nos anos 1980, com a distribuição de seringas para que usuários de drogas injetáveis não precisassem compartilhar, visando, assim, a diminuir a transmissão de doenças entre os usuários (Scheffer, Antunes, & Büchelle, 2011). Essa iniciativa sofreu fortes críticas e repressão por ser confundida com incentivo ao uso de substâncias ilícitas, mas se mostrou uma intervenção bem-sucedida nesse contexto.

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Em 1998, o Conselho Federal de Entorpecentes foi transformado em Conselho Nacional Antidrogas (Conad) e também foi criada a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), ligada à Casa Militar da Presidência da República. Posteriormente, no ano de 2002, foi criada a primeira Política Nacional Antidrogas (Pnad). Percebendo a necessidade de reavaliar e atualizar a política, foi instituída pelo Conad, em 2005, a nova Política Nacional Sobre Drogas (Pnad) com participação de vários agentes de sociedade, a partir de seis fóruns regionais e um nacional. A nova Pnad traz os pressupostos e os objetivos da política, bem como orientações gerais e diretrizes dos eixos: prevenção; tratamento, recuperação e reinserção social; redução de danos sociais e à saúde; redução da oferta; e estudos, pesquisas e avaliações (Conad, 2005). Em 2008, foi instituída a Lei nº 11.754/2008 (2008) que alterou o nome do Conad para Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas e da Senad para Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Essa mudança alinhou os nomes desses órgãos com a mudança de perspectiva das políticas públicas sobre drogas no Brasil. Em 2011, a Senad foi transferida da estrutura do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República para o Ministério da Justiça, visando a potencializar as ações de redução de oferta de substâncias ilícitas.

Atualmente, no Brasil, a Lei sobre drogas, no Código Penal, é a n º 11.343/2006 (2006) e causou uma grande mudança no paradigma do uso de substâncias no Brasil. A antiga lei de drogas (Lei n.º 6.368/1976) era pautada sob o paradigma da abstinência e “guerra as drogas”, tendo foco na segurança e não na saúde pública (Machado & Boarini, 2013). Os artigos 18 a 26 da lei 11.343/2006, em especial o artigo 19, inciso VI, trazem o embasamento legal, junto com a Pnad, para as estratégias de redução de danos se tornarem políticas públicas. Foram, também, criadas diferenciações penais aos usuários e aos traficantes de substâncias ilícitas. Enquanto aqueles caracterizados como usuários de substâncias (artigo nº 28) deixaram de ter penas privativas de liberdade como sanções, os caracterizados como traficantes (artigo nº 33) tiveram aumento de pena mínima de prisão de três para cinco anos.

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Ainda que a lei proponha modernizações na forma de tratar a questão das drogas no Brasil, ela não propôs questões objetivas para a diferenciação entre usuários e traficantes, como quantidade de drogas (Rodrigues, 2006). Ou seja, ainda fica a critério subjetivo do policial no momento da abordagem, do delegado e do Ministério Público no momento de caracterizar o crime, dando, assim, margem para diversas interpretações e que pode causar diversos erros.

Em 2014 foi publicado o Levantamento Nacional de Informações Prisionais, Infopen (Brasil, 2014), com o perfil da população carcerária brasileira. Desde 2006, a população carcerária continuou crescendo, e uma grande quantidade de pessoas presas ainda é proveniente de crimes relacionados às substâncias ilícitas (28%). Uma parcela grande da população carcerária feminina também está em prisões em virtude de questões relacionadas à lei de drogas (64%). Alguns autores apontam que grande parte das pessoas cumprindo pena de prisão por causa de tráfico não portavam quantidades grandes, foram presas em flagrante, levando a crer que eram pequenos traficantes e, em certos casos, possivelmente, usuários (Instituto Sou da Paz, 2012; Veríssimo, 2010). A baixa necessidade investigativa, no geral, das prisões em flagrante indica que grande parte dos traficantes presos são aqueles que faziam a venda final das substâncias, ou seja, não são, normalmente, os grandes traficantes responsáveis pelo comando de organizações criminosas (Instituto Sou da Paz, 2012).

Uma das críticas à Lei 11.343/2006 é que o critério subjetivo da distinção entre usuário e traficantes tem causado confusões na caracterização dos crimes (Veríssimo, 2010). O perfil das pessoas que estão cumprindo pena privativa de liberdade no Brasil é majoritariamente negro, jovem e com escolaridade até o ensino fundamental. Tais informações nos chamam a atenção para a necessidade de pensar a questão das drogas considerando o contexto social e a complexidade dos fatores que permeiam a relação entre o tráfico e o uso de drogas.

Ademais, o aumento do tempo mínimo de prisão para os traficantes de drogas pode ter contribuído para a superlotação das prisões, tendo em

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vista a quantidade de pessoas que são presas por esse tipo de infração penal e a quantidade de vagas disponíveis pelo sistema prisional brasileiro. Há que se ressaltar também o baixo número de vagas para regimes abertos e semiabertos pelo sistema prisional brasileiro.

Mas será que o foco na punição é coerente com a aposta na promoção da saúde?

Compreendemos a importância do avanço na legislação, entretanto, conforme dissemos anteriormente, é fundamental que as políticas públicas se ocupem de diferentes níveis de intervenção e que considerem que, quanto mais investimentos forem feitos em estratégias de fortalecimento comunitário e de promoção da saúde, menos terá que ser investido em prisões, comunidades terapêuticas ou internações.

Política de Redução de Danos: uma estratégia de promoção da saúde?

A redução de danos, segundo a Associação Internacional de Redução de Danos,

se refere a políticas, programas e práticas que visam primeiramente reduzir as consequências adversas para a saúde, sociais e econômicas do uso de drogas lícitas e ilícitas, sem necessariamente reduzir o seu consumo. Redução de Danos beneficia pessoas que usam drogas, suas famílias e a comunidade. (Associação Internacional de Redução de Danos, 2010, p. 1)

O descritor “Harm Reduction”, segundo o Medical Subject Headings da United States National Library of Medicine (2002), é conceituado como “a aplicação de métodos projetados para reduzir os riscos de danos associados a certos comportamentos sem a redução da frequência desses comportamentos”. Esses dois conceitos abrangem o caráter ativo do usuário de drogas na decisão sobre o uso de substâncias, respeitando-o como cidadão de direitos, garantindo acesso à cidadania e evitando a

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privação do convívio de sua família e de sua comunidade, com internações involuntárias.

Apesar de a primeira estratégia de redução de danos datar da primeira metade do século XX na Inglaterra, com o Relatório de Rolleston (O’hare, citado por Santos, Soares & Campos, 2010), a disseminação das ações e políticas de redução de danos são consideradas recentes, sendo as primeiras experiências, após a tentativa inglesa, ocorridas na Holanda no início da década de 1980, com a distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis, focando diminuir a propagação de doenças transmissão sanguínea como Hepatite B e HIV (Scheffer et al., 2011). Vale comentar que houve grande participação dos usuários de drogas na implementação e na forma que seria realizada essa ação. Posteriormente, Estados Unidos, Austrália e outros países europeus também adotaram medidas semelhantes, chegando ao Brasil no fim dessa mesma década.

Como mencionado anteriormente, a primeira estratégia de Redução de Danos no Brasil aconteceu na cidade de Santos, SP, em 1989, e teve como objetivo evitar a transmissão de doenças e agravos à saúde a partir da distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis. Santos apresentava um índice alto de contaminação de HIV e estava muito relacionado ao compartilhamento de seringas, justificando, assim, a estratégia apresentada. Apesar disso, o secretário municipal de saúde e o coordenador do programa de DST/Aids sofreram uma ação judicial e foram acusados de incentivar o uso de substâncias (Passos & Souza, 2011).

Pode-se perceber que ainda prevalecia a ideia vigente de guerra às drogas, marcada pelo combate à produção, ao uso sob a lógica da proibição e da abstinência. Ainda assim, avanços foram obtidos e, em 2003, as ações de redução de danos “deixam de ser uma estratégia exclusiva dos Programas de DST/Aids e se tornam uma estratégia norteadora da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas e da política de Saúde Mental” (Passos & Souza, 2011 p. 154). Em 2006, com a nova lei de drogas, a redução de danos entra como parte da lei dentro das “atividades de

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prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”.

Almeida, Elias e Bastos (2011) fizeram uma revisão de literatura referente a programas de redução de danos e interface com a saúde pública. Os dados encontrados apontam que a grande maioria das publicações encontradas tem pouca inter-relação com a saúde pública, focando mais na Redução de Danos em si. Santos et al. (2010) realizaram um estudo em que analisaram 46 publicações brasileiras sobre o tema da Redução de Danos e classificaram-nas com base no “que estava sendo tomado como objeto/sujeito da RD” (p. 1000). Tais autoras fazem a ressalva de que algumas publicações se encaixavam em mais de uma categoria a depender da situação apresentada. Dessa forma, sete publicações ainda tinham como foco a abstinência. Vinte e duas focavam principalmente na prevenção de doenças e agravos à saúde. Dezessete publicações apresentavam como meta da redução de danos a produção de estratégias de diminuição de danos e riscos em relação ao uso prejudicial. Oito tinham como interesse o modo de viver comunitário e discutiam ações de promoção de saúde e melhoria na qualidade de vida dos usuários. Seis trabalhos ressaltaram a dimensão mais ampla dos riscos individuais, chegando a esfera social, tendo em vista a redução dos danos sociais da população. Considerando os achados dos autores, percebe-se uma tendência geral de afastamento da lógica da abstinência e guerra às drogas.

Machado e Boarini (2011) realizaram uma pesquisa bibliográfica e traçaram um apanhado da história da redução de danos no Brasil, partindo da Legislação e de publicações acadêmicas. As autoras apontam como desafios atuais: a necessidade de estratégias voltadas para as diferentes drogas e suas especificidades, o que impacta diretamente no orçamento para essas ações; maior integração do tema da redução de danos a questões sociais como violência, exclusão e preconceito; a ainda existente resistência de alguns setores da sociedade na aceitação da redução de danos, o que dificulta a implementação das estratégias por apresentar confusão entre repressão e segurança de um lado, e prevenção

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e saúde de outro. As autoras alertam ainda para as mudanças nas políticas públicas em tentar corrigir o problema de invisibilidade do usuário, abrindo possibilidades de respeito a sua cidadania e seus direitos, mas que ao mesmo tempo vem surgindo um grande debate voltado principalmente ao financiamento de comunidades terapêuticas, que, em muitos casos, ainda atuam sob a lógica da abstinência e isolamento social.

Em relação a este último aspecto, em 2016, foi publicada a Portaria nº 1.482 (Brasil, 2016) do Ministério da Saúde que adiciona um novo tipo de Estabelecimento de Saúde no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) chamado “Polo de Prevenção de Doenças e Agravos e Promoção da Saúde” incluindo nesse tipo as comunidades terapêuticas. Dessa forma, torna-se possível o financiamento, via Ministério da Saúde, das comunidades terapêuticas, deslocando a verba de outras unidades de saúde mental, principalmente no atual momento em que foram restringidos os gastos públicos incluindo o da Saúde por meio da Proposta de Emenda à Constituição 55/2016 (Brasil, 2016). Além disso, existem graves denúncias contra algumas comunidades terapêuticas (Conselho Federal de Psicologia, 2011) nas quais ainda persistem a ideia manicomial contrária à Lei 10.216/2001 (2001) que rege a Reforma Psiquiátrica brasileira. Vale ressaltar que as comunidades terapêuticas não estão reguladas pela política da assistência social ou da saúde, não havendo políticas de implementação na sociedade brasileira. Após a publicação dessa portaria, fica o questionamento sobre como serão as demais políticas relacionadas ao álcool e outras drogas, uma vez que parte da verba que antes seria enviada para os dispositivos de saúde voltados para a lógica da redução de danos, que em sua grande maioria já sofria com a falta de recursos, serão repassados às comunidades terapêuticas. Cabe notar que tal portaria já havia sido suspensa pelo Poder Judiciário e foi alvo de um Projeto de Decreto Legislativo na Câmara dos Deputados visando a sustá-la.

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Educação Popular: uma possibilidade de fortalecer ações de prevenção na lógica da promoção da saúde

A promoção à saúde efetiva-se de modo mais pleno nas ações coletivas. A educação popular na saúde vem sendo tema de discussão pelos órgãos que regem a saúde pública brasileira desde o início da década passada. A trajetória de entrada nas políticas de saúde tem um marco em 2003, com a instituição da Educação Popular como área técnica do Ministério da Saúde. Em 2005 foi alocada na Coordenação Geral de Apoio à Educação Popular e à Mobilização Social, ficando, assim, como um método importante de efetivação da Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa no SUS (ParticipaSUS) (Correia, 2010).

Em 2013, foi aprovada a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (Pnep-SUS) pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Pnep- SUS

propõe uma prática político-pedagógica que perpassa as ações voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a partir do diálogo entre a diversidade de saberes valorizando os saberes populares, a ancestralidade, o incentivo à produção individual e coletiva de conhecimentos e a sua inserção destes no SUS. (Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2013)

Além disso, propõe pressupostos para a prática da educação popular na saúde, quais sejam: o diálogo, a amorosidade, a problematização, a construção compartilhada do conhecimento, a emancipação e o compromisso com a construção do projeto democrático e popular (Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2013).

A educação popular vem sido utilizada em vários contextos e a área de saúde é um campo em que ela é aplicável com diversas possibilidades e resultados positivos. No Brasil, diversos estudos com intervenções foram realizados principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS). O Ministério da Saúde publicou o II Caderno de Educação Popular em Saúde (Brasil, 2014) e traz diretrizes e exemplos de aplicações no SUS. As

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mudanças acontecidas nas políticas públicas de saúde desde que a Educação Popular se tornou área técnica, em 2003, até a publicação da Pnep-SUS em 2013, trouxeram maiores possibilidades de aplicações desse conhecimento de maneira sistematizada e de participação da população na gestão do SUS. O caderno apresenta exemplos de intervenções bem-sucedidas no âmbito da saúde e em consonância com os princípios da Pnep-SUS, além de trazer relatos de agentes da saúde que participaram dessas ações.

Um estudo de revisão integrativa foi realizado por Pinheiro e Bittar (2016) visando às publicações sobre a temática da educação popular, os serviços de atenção primária de saúde e se eles estão alinhados com os princípios do SUS. Os resultados da revisão foram inseridos nas seguintes categorias temáticas: “Caracterização das práticas e ações de Educação Popular em Saúde na Atenção Primária”; “Estratégias e recursos adotados no desenvolvimento das práticas”; “As práticas de Educação Popular em Saúde e a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (Pnep-SUS)”; “Entraves e desafios à sistematização e ampliação das propostas de Educação Popular em Saúde”. As autoras apontam que, dentre as intervenções estudadas, algumas delas focaram mais na mudança de perspectiva da educação de saúde verticalizada para a troca de saberes horizontal entre a equipe de saúde e os usuários do serviço, que vai em direção aos pressupostos da Pnep-SUS. Destacam formas de inserir a educação popular nos serviços de saúde a partir de estratégias adotadas pelas equipes de saúde e também as dificuldades encontradas pelos pesquisadores na implementação dessas práticas. Por fim, ressaltam a importância de investimento financeiro nas instituições para que seja possível a realização conforme as prerrogativas do Pnep-SUS e também a necessidade de capacitação dos profissionais desde a formação nas universidades até aqueles que já atuam no campo, principalmente apontando para o entendimento de que o conhecimento popular pode se aliar ao técnico.

Em um estudo sobre a concepção de saúde pela ótica de adolescentes (Ferreira, Alvim, Teixeira & Veloso, 2007), a educação popular foi

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utilizada como instrumento metodológico de pesquisa em que houve preferência pela metodologia participativa. Os adolescentes foram ouvidos e, ainda que não fosse o foco da pesquisa, o tema de álcool e outras drogas surgiu durante a realização dos grupos focais. É possível perceber estratégias de redução de danos a partir da fala de alguns adolescentes como evitar misturas de bebidas alcoólicas diferentes, evitar ingerir álcool sem comer e prolongar o tempo de esvaziamento do copo. Essas medidas têm como foco evitar a embriaguez e, ainda que indiretamente, evitar comportamentos de risco derivados do uso excessivo de bebidas alcoólicas. Ademais, as autoras destacam que o conhecimento do conceito de saúde daquela população ajuda a elencar as prioridades de atendimentos e programas a serem desenvolvidos na comunidade.

Levando em consideração as possibilidades de inter-relação entre a educação popular e a saúde mental foi realizado um estudo por residentes e profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps-AD) (Carneiro et al., 2010). Os Caps-AD são importantes dispositivos de rede pública de saúde e atenção a usuários de drogas. São descentralizados para atendimento in loco a essa população. Além disso, a partir da preservação da territorialidade, os Caps-AD buscam a integração e participação dos usuários na comunidade em que estão inseridos e são regidos pela lógica da redução de danos. Novamente tomada como ferramenta metodológica, a educação popular foi utilizada como estratégia política nesse estudo, na medida em que é uma forma de “dar voz” àqueles que historicamente foram negados a esse direito. Os autores mapearam a rede de saúde mental e convidaram diversos membros da comunidade para fóruns com o propósito de discutir temas relacionados à saúde mental. A partir das discussões foi possível perceber o empoderamento em relação ao tema e do conhecimento da rede por parte dos membros da comunidade. A partir dessas ações foi possível a ocupação de espaços e o exercício da cidadania por parte de pessoas em sofrimento mental. Além disso, foram montados stands de caráter com informações sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis,

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drogas, Caps e direitos dos usuários do SUS. Dessa forma, essa intervenção teve caráter preventivo também.

A educação popular está alinhada aos princípios das políticas de redução de danos no sentido de que valoriza a fala e experiência de vida de agentes comumente marginalizados, usuários de drogas, e também respeita suas decisões sobre usar ou não a substância. Abrindo espaço para o exercício de cidadania, seja na ocupação de espaços antes relegados a ele, seja no aprendizado de conhecimentos sobre seus direitos, os princípios da Pnad e da Pnep-SUS são alcançados na reinserção social e garantia de direitos dessa população. As ações de prevenção aliadas à educação popular têm apresentado bons resultados, apesar de ainda faltarem avaliações de efetividade e eficácia para intervenções com essa estratégia. Há que se ressaltar que a educação popular é uma tecnologia de baixo custo e pode se tornar um grande aliado em futuras intervenções com o objetivo de prevenir o uso abusivo de substâncias psicoativas.

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Larissa Polejack et al

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CAPÍTULO 3.3

Acolhimento para adolescentes em situação de risco

Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira Maria Fátima Olivier Sudbrack

Marília Mendes Almeida

IntroduçãoA proposta do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de

Escolas Públicas – oferecido entre 2004 e 2014 pelo Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas da Universidade de Brasília (Prodequi/UnB), em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça (Senad/MJ) e a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC), destacou a importância de o educador conhecer fatores de risco e de proteção presentes na vida de seus alunos. O que fazer quando se percebe que o aluno está vivendo uma situação de risco? O que fazer quando um aluno procura o educador para contar uma situação pessoal? Para ajudar o educador a lidar com situações específicas como essas construímos um instrumento de avaliação de redes, de aplicação individual, que possibilita ao educador visualizar como os adolescentes estão estruturando suas relações, assim como as funções que estas relações ocupam em sua vida. Além disso, permite o aquecimento, a vinculação com o entrevistador e a expressão espontânea dos adolescentes na construção das informações, tornando-se evidente a sensibilização provocada pela sua utilização.

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A partir da metodologia de avaliação de redes sociais, que aponta para a mobilização dos potenciais e minimização dos riscos, foram desenvolvidos instrumentos adaptados a diferentes contextos de intervenção (jurídico, escolar e comunitário). O presente instrumento foi um desses, desenvolvido como parte da tese de doutorado realizada no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, defendida pela primeira autora, sob orientação da segunda. A terceira autora contribuiu na redação do seu manual de aplicação e exploração.

Sendo a prevenção na área de drogas caracterizada por ações de promoção da saúde integral do adolescente, destacamos a importância de posturas sempre inclusivas face ao adolescente, em especial àqueles em condição de maior vulnerabilidade social. Dessa forma, o nosso intuito foi desenvolver uma metodologia para ações preventivas com o adolescente a partir do modelo de educação para a saúde, sendo este o novo paradigma de prevenção do uso de drogas apontado pela Política Nacional sobre Drogas (Senad).

Metodologia de mapeamento das redes sociaisTrazemos como uma das estratégias protetivas e de inclusão, o

acolhimento do adolescente em situação de risco – no contexto da escola. “Acolher” significa evitar ao máximo seu afastamento do meio escolar, o que constitui grave fator de risco para seu envolvimento com drogas. Por isso, ações de acolhimento exigem uma competência do educador, em especial no resgate dos vínculos positivos do adolescente com sua escola.

Assim, o objetivo dessa atividade é a abordagem individual de adolescentes em contexto de risco para o envolvimento com drogas. É uma estratégia de ação especificamente importante para as escolas que estão inseridas em um contexto social e comunitário de risco. Nesses casos, há maior probabilidade de existirem alunos que já estejam em uma

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situação de envolvimento com drogas. É o caso de comunidades com fácil acesso ao crack, por exemplo.

O mapeamento das redes sociais permite-nos compreender os níveis gradativos de intimidade do sujeito com os elementos da rede, presentes nos diversos contextos de pertencimento (família, amizades, relações escolares ou de trabalho, relações comunitárias, de serviço ou de credo). Permite ainda a avaliação das características estruturais, das funções específicas e dos atributos dos vínculos presentes na rede e situa o observador e o informante em um nível de análise relacional, que também adquire um caráter terapêutico.

Esse mapeamento, portanto, mobiliza os sujeitos. Em primeiro lugar, a exploração da rede social pessoal, por meio da aplicação do mapa, torna essa rede “visível” tanto para quem o está aplicando quanto para quem o está fazendo, pois o ato de nomear a rede, de falar sobre ela, é uma forma de ter contato com ela; em segundo lugar, o traçado do mapa das redes permite ao sujeito decidir quais delas devem ser ativadas, desativadas ou modificadas; em terceiro lugar, a partir da exploração do mapa podem surgir atividades recomendadas às pessoas para ativarem, mobilizarem, desativarem e recortarem suas redes, de acordo com o que estão vivendo; e, finalmente, o mapa formaliza o impacto da rede social sobre o sujeito em contato com ele.

Alguns conceitos que fundamentam a metodologiaA rede social pode ser considerada uma metáfora que permite falar

das relações sociais, pensar e repensar novas formas de convivência, vinculações, conexões e relações com os contextos. A utilização da prática de redes sociais ganha força e evidência em trabalhos na área de saúde mental e terapia familiar e tem como referência a abordagem sistêmica e o modelo de psicologia comunitária. Seja em contexto de saúde, clínico ou comunitário, a inclusão da rede de apoio social torna-se de fundamental importância para a prática e pesquisa.

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Três níveis de análise da rede social pessoal são estabelecidos: as características estruturais da rede, que são as propriedades em seu conjunto (tamanho, densidade, composição ou distribuição, dispersão, homogeneidade ou heterogeneidade e atributos do vínculo); as funções presentes na rede, que são os tipos predominantes de trocas que se estabelecem entre o informante e os elementos da rede, ou seja, companhia social, apoio emocional, guia cognitivo e de conselhos, ajuda material e de serviços, acesso a novos contatos, entre outros; e os atributos do vínculo presentes na rede social, que são as formas como cada vínculo se comporta dentro da rede, como: função predominante, multidimensionalidade, reciprocidade, intensidade, frequência e história da relação.

Manual da aplicação da entrevista de acolhimentoA entrevista tem o objetivo de mapear a rede social do adolescente e

levantar fatores de risco e proteção relativos ao uso de drogas. Com base nesse levantamento, o educador poderá refletir, com o adolescente, sobre estratégias de prevenção que possam diminuir os fatores de risco e fortalecer os de proteção.

Da entrevista surgem aspectos da vida do adolescente que podem precisar de um pouco mais de atenção, mas não tem como objetivo diagnosticar. Além disso, é importante que o educador não veja as respostas da entrevista de forma preconceituosa. Deve procurar olhar o adolescente sem rótulos tais como: “adolescente problema”, “drogado”, “marginal”, “doente”. Se o educador utilizar a entrevista para colocar o adolescente em categorias como essas, o adolescente será prejudicado e a entrevista terá sua finalidade deslocada para um olhar preconceituoso do educador.

Consideramos que deve ser utilizada em casos mais específicos, em que o educador percebe que o adolescente está em uma situação de risco e queira entender melhor quais são esses riscos. Portanto, não é uma entrevista para ser aplicada em todos os alunos de uma escola e sim, de

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forma individual, em local reservado (a fim de preservar a privacidade) e com o livre consentimento tanto do adolescente como de sua família.

O primeiro passo para iniciar a entrevista é encaminhar o convite aos pais do aluno em quem se pretende aplicar a entrevista. Depois da aceitação dos pais, é a hora de convidar o adolescente. Deve-se explicar a ele que a escola e o educador querem conhecê-lo melhor, querem entender como está a sua vida para ver em que podem ajudá-lo.

A entrevista é composta de duas partes: o mapeamento da rede social e o mapeamento das funções da rede. Elas podem ser realizadas em momentos diferentes, sendo que o período entre uma aplicação e outra não deve exceder uma semana. O adolescente deve preencher o mapa sozinho, a não ser que solicite auxílio ou que esteja de alguma forma impedido de preenchê-lo. Segue então, a entrevista:

Primeira parte da entrevista: O mapa das redes sociaisPara conhecer como o adolescente percebe sua rede social pessoal, o

educador solicita que preencha o mapa com desenhos que representem todas as pessoas que perceba como significativas em sua vida naquele momento. Propõe-se que o adolescente mostre, por meio do mapa, com quem se relaciona e como estão suas relações na família, no trabalho, na escola, entre pares, no namoro e na comunidade.

Neste momento, então, é importante entregar o mapa ao adolescente lendo o convite que se segue:

Um dos pontos que consideramos mais importantes na vida dos jovens são suas relações na família, com os amigos, na escola, no trabalho e também na comunidade de uma forma mais ampla. Por isso, a primeira parte desta nossa conversa trata desse assunto e vamos iniciá-la convidando você para fazer um mapa da sua rede de relações. Podemos iniciar?

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Mapa das redes sociais

O mapa é composto por quatro quadrantes ( famíl ia , amizades/namoro, escola/trabalho e comunidade) e três círculos concêntricos, determinando a proximidade e o distanciamento com os membros da rede, isto é, o grau de intimidade, a frequência e o compromisso das relações.

Após a entrega do mapa, o educador prossegue então com a consigna:

Quais são as pessoas mais importantes para você atualmente e que você pode dizer que fazem parte da sua vida afetiva? Use esse desenho para fazer um mapa que vai ajudá-lo a explicar sobre como estão seus relacionamentos nos diferentes aspectos da sua vida, hoje.

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Depois vamos conversar sobre o mapa e você poderá explicar melhor, combinado?Assim, o adolescente vai representar todas as relações que ele tem,

colocando-as no mapa da seguinte forma: o adolescente está localizado no centro do mapa. O mapa possui quatro quadrantes representados pela família, amizades (namoro), escola/trabalho e comunidade. Ele, então, deve colocar em cada quadrante as pessoas que considera daquele contexto em sua vida. Caso o adolescente tenha dúvidas sobre o que é comunidade, o educador diz a ele: "Comunidade são as pessoas ou lugares como vizinhos, igreja, clube, quadra de esportes, posto de saúde, posto policial, associação de moradores e outros lugares que você frequenta."

Deve representar as mulheres por um círculo e os homens por um quadrado. Não deve colocar nomes ou identificar pessoas, apenas representá-las por círculos ou quadrados. O primeiro círculo é para colocar as pessoas que são das relações mais íntimas, mais próximas, confiáveis, de quem se gosta mais. O segundo círculo é para colocar as pessoas consideradas importantes, mas não tão próximas. E o terceiro círculo é o espaço das pessoas consideradas parte das relações, mas que estão mais distantes naquele momento da sua vida.

Seguem algumas situações para exemplificar as consignas: se o adolescente tem uma relação próxima com a mãe, ele vai representá-la no quadrante da família e no círculo mais interno. Se o adolescente tem um amigo na escola, ele pode ficar na dúvida se o representa no quadrante da escola ou das amizades. É importante investigar então se essa amizade se expande para outros níveis ou se fica restrita à escola. Se ficar restrita à escola, o adolescente deve representá-lo no quadrante escola. Caso a amizade vá para além da escola, ele deve representar o amigo no quadrante das amizades. Suponha, ainda, que o adolescente tenha uma relação de amizade com um colega da escola, mas que essa relação está afastada, ele o colocará no quadrante da escola, mas no terceiro círculo.

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Exploração do mapa das redes sociaisApós o preenchimento do mapa, o educador inicia as perguntas:Sobre as características gerais da rede:1. O que você achou de como ficou o mapa? Você acha que ficou

bem assim? É isso mesmo? Gostaria ainda de fazer alguma mudança? Qual? Por que?

2. Olhando para o mapa, você acha que ele o ajuda a mostrar como estão seus relacionamentos neste momento da sua vida?

3. O que você percebe quanto à quantidade de pessoas que você colocou no mapa? Sempre foi assim? Aumentou ou diminuiu? Desde quando?

4. Agora me diga: dessas pessoas que você representou no mapa, quais se relacionam entre si? Vamos fazer um traço ligando essas pessoas. Lembre-se de relacionar as diferentes áreas da sua vida: família, escola/trabalho, amizades/namoro e comunidade.

5. E quanto ao lugar em que você colocou as pessoas acima? Existem uma ou mais pessoas que você acha que estão se afastando de você ou que você gostaria que se afastassem? Vamos fazer uma seta para o lado externo nessas pessoas.

6. Das pessoas que você representou acima, existe uma ou mais pessoas que você acha que estão se aproximando de você ou que você gostaria que se aproximassem? Vamos fazer uma seta para o lado interno nessas pessoas.

7. O que precisaria acontecer entre você e essas pessoas (marcadas pelas setas) para que continuassem hoje no lugar que ocupam no seu mapa ou para que, se for do seu desejo, ocupassem esse outro lugar na sua vida?

8. Há algum lugar no seu mapa onde existem situações de risco para você, como: uso de drogas, venda de drogas, brigas, situação de violência? Represente com um triângulo onde existem situações de risco no seu mapa.

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Sobre as pessoas que compõem a rede:Agora, gostaria que você me falasse um pouco sobre essas pessoas que você representou no mapa: onde moram, como as conheceu, onde se encontram, com que frequência se encontram, que idade elas têm, se elas têm a mesma condição financeira que você, o que elas fazem, o que você acha que há de parecido entre elas, o que acha que há de diferente, como é seu relacionamento com elas. Além disso, gostaria também que me falasse sobre as situações de risco que representou no mapa através do triângulo: que situações são estas?

Você não precisa apresentar todas as pessoas e situações, se não quiser. Assim, você pode falar apenas de quem você se sentir à vontade, ou seja, das pessoas que são mais importantes pra você neste momento. Você pode dizer somente o que quiser sobre elas, da forma como achar melhor. E à medida que você for apresentando as pessoas e situações que desenhou no mapa, vá ao lado do círculo, do quadrado ou do triângulo que as representa e coloque um número. Em seguida, faça uma legenda ao lado do mapa, identificando essas pessoas.Quanto ao pertencimento:A seguir, seguem sugestões de perguntas sobre os segmentos da rede.

O educador pode fazer apenas as perguntas que achar mais interessantes e pode optar sobre quais segmentos da rede irá fazê-las. É importante que o educador faça somente as perguntas que achar necessárias e se entender que o adolescente está disposto para respondê-las. Caso contrário, a entrevista pode ficar muito longa e cansativa. Segue a consigna:

Agora que você me falou sobre algumas pessoas que compõem sua rede, que tal falarmos sobre sua visão sobre elas? Cada um destes quadrantes que compõe o seu mapa é visto de forma diferente por cada pessoa, pois o que significa a família, a escola, os amigos e a comunidade vai depender do tipo de relacionamento que se estabelece em cada um destes contextos, bem como da cultura e da educação que cada um vai adquirindo ao longo da vida. Assim, o que

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é família para você, por exemplo, pode não ser o mesmo para outra pessoa. E já que estamos na escola, gostaria, então, de iniciar nossa conversa por ela. Pode ser?Escola/Trabalho1. O que é a escola pra você? Para que serve?2. O que fez você vir para esta escola?3. Como tem sido sua vida escolar?4. Você já mudou muito de escola? Por que? Quais as consequências

disso para você?5. Você se sente parte desta escola? A escola faz parte da sua vida? De

que forma?6. Como é sua relação com as pessoas desta escola? Você considera

que há alguém para apoiar você quando está na pior? Você tem alguém para pedir conselhos quando está na dúvida de como agir?

7. A escola é um bom lugar para se fazer amigos? Que tipo de amizade você encontrou nesta escola?

8. De que forma o adolescente é visto pela escola? O que poderia mudar?

9. Você se sente protegido ou em risco na escola? O que pode ser feito?

10. Quais são os pontos positivos da escola? E os negativos?11. O que você espera dos professores, direção, funcionários e

colegas?12. O que é o trabalho para você? Para que serve?13. Você já trabalhou? Qual foi sua experiência?14. O que pensa em exercer no futuro como trabalho?15. Qual a relação entre seus estudos e o trabalho que deseja?

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Família16. Com relação à família, você se sente parte de uma família? Sente

que tem uma família? Se sim, quem você considera da família? Por que?

17. Eles consideram você parte da família?18. Como é seu relacionamento com sua família?19. Você gostaria que mudasse alguma coisa na sua relação com eles?20. O que a sua família espera de você?21. O que você espera da sua família?Amigos22. Agora, com relação aos amigos, o que significa um grupo de

amigos para você?23. Você tem um grupo de amigos?24. Como eles são? O que vocês costumam fazer juntos?25. Como você se aproximou desse grupo? O que teve que fazer para

isso?26. Como é a sua relação com eles? Do que você mais gosta neles? E

do que você não gosta?27. Você gostaria que mudasse alguma coisa na sua relação com eles?Comunidade28. De que localidade você vem?29. Onde você mora e onde reside sua família?30. Você sente que faz parte de uma comunidade? Qual? Como?31. Você mudaria alguma coisa na sua comunidade? O quê?32. A escola faz parte da sua comunidade? De que forma?33. Você frequenta alguma instituição na sua comunidade (como uma

igreja, por exemplo)?

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Projeto de vida34. Como você se vê no futuro em relação à sua família, às amizades,

à escola, ao trabalho, na sociedade?

Segunda parte da entrevista: o mapa das funções da rede socialPara a segunda parte da entrevista, o educador entrega ao

adolescente o mapa das funções da rede e inicia a conversa da seguinte forma:

Na primeira parte da entrevista, você me apresentou às pessoas que fazem parte da sua rede social e conversamos um pouco sobre como é seu relacionamento com elas. Mas sabemos também que cada relacionamento é construído de acordo com a (ou as) função (ou funções) que um desempenha na vida do outro. Por exemplo: você pode se lembrar de um determinado amigo quando você está com problemas e precisa desabafar; e se lembrar de outro amigo quando apenas quer companhia para se divertir, para ir às baladas. O primeiro deles teria, então, a função de ‘apoio emocional’ para você, pois o ajuda nos momentos difíceis. Já o segundo exerceria a função de ‘companhia social’, já que você pensa nele sempre que está sozinho e quer sair para se divertir.

Assim, nesta segunda etapa da entrevista, gostaríamos que você retomasse o mapa das suas redes (que você preencheu anteriormente) e pensasse sobre as funções que aquelas pessoas representadas ali exercem em sua vida. Essa é outra questão que nos chama a atenção na vida dos nossos alunos: que tipos de relação os jovens estão construindo na escola, na comunidade, na família, entre amigos? São relações afetivas, fortes, duradouras, ou são relações ameaçadoras, de controle, de risco? O que você acha? Nós convidamos você, então, a preencher este novo mapa, colocando nele as pessoas que exercem na sua vida as funções nele apresentadas.

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Cada balão do mapa tem uma palavra-chave. O adolescente deve preencher os balões colocando as pessoas que exercem a função ali escrita. Por exemplo: no balão em que está escrito ‘segurança e proteção’, o educador pode dizer: “Quem lhe oferece proteção e segurança?” O adolescente pode colocar mais de uma pessoa ou instituição no mesmo balão e pode deixar balões em branco, se existirem funções que não tenha ninguém cumprindo. O adolescente deve colocar nomes.

O preenchimento do mapa das funções da rede consiste em retomar as relações identificadas como significativas na vida do adolescente e já trazidas no primeiro mapa (mapa das redes sociais) e buscar relacioná-las às funções que desempenham (ou que ele gostaria que desempenhassem).

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Por exemplo: se o adolescente desenha a namorada no mapa das redes sociais (primeiro mapa), bem próxima a ele, dizendo que ela era a figura mais importante de sua vida, ao olhar o mapa das funções da rede, o adolescente pode colocá-la na função de “afeto/amor”, “diversão/lazer”, “segurança/proteção” e explicar o motivo de tê-la colocado em cada uma destas funções.

Exploração do mapa das funções da redeAo finalizar o mapeamento das funções, o educador dá continuidade

à entrevista:Agora que você terminou de preencher este mapa, vamos conversar um pouco a respeito dele? Apresente-me as funções que identificou no mapa como importantes e as pessoas ou instituições que as exercem hoje em sua vida. Fale apenas sobre as pessoas e funções que quiser e que são importantes para você neste momento. Novamente, você não precisa apresentar todas as pessoas, se não quiser. Fale apenas de quem você se sentir à vontade e diga o que quiser sobre a função que ela exerce na sua vida, da forma que achar melhor.

Se entender que o adolescente está se sentindo à vontade e disposto – enquanto estiver falando sobre as funções identificadas na rede – o educador pode pedir a ele que explique o motivo de cada uma dessas pessoas ou instituições representadas no mapa ocupar a função escolhida.

A seguir há uma breve explicação e sugestões de perguntas sobre cada uma das funções que constam no mapa, o que pode auxiliar tanto o educador quanto o adolescente na construção das informações sobre o assunto.

Sobre a identificação: pessoa que é um exemplo que você gostaria de seguir. Com quais pessoas da sua vida você se identifica mais? Por que?

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Sobre afeto/amor: pessoa de quem você recebe afeto; ambiente onde recebe amor, carinho. Quais são as pessoas que você mais gosta? Quais são as pessoas que você se sente bem em estar perto, em se relacionar, que fazem você se sentir feliz?Amizade/confiança: pessoa ou lugar em que você tenha amizade e relação de confiança. Quem você considera seu amigo de verdade? Em quem você realmente confia? O que já aconteceu entre vocês que faz você considerá-lo um amigo?Ajuda financeira: pessoa ou um lugar que lhe oferece ajuda financeira. Quem o sustenta? Quem lhe dá dinheiro quando você precisa ou paga as coisas pra você?Justiça: pessoa ou lugar que representa justiça na sua vida. Quem representa justiça na sua vida? Você já procurou ajuda de policiais ou da própria justiça no exercício desta função? Por quê?Segurança/proteção: pessoa ou lugar que te oferece segurança e proteção. Existem pessoas em sua vida que lhe dão segurança? Pessoas que fazem você se sentir protegido de alguma forma? Quem são? Como elas protegem você?Perigo/risco: pessoa ou lugar que representa perigo e risco na sua vida. Existem pessoas com quem você se relaciona que o levam a situações perigosas? Que o colocam em situações de risco? Como?Autoridade: pessoa ou lugar que estabelece limites e regras para você. Existem pessoas em sua vida que lhe cobram responsabilidades? Que lhe dizem o que você pode ou não fazer? Que estipulam regras e lhe dão limites? Quem são? Como são estabelecidos estes limites? O que você pensa sobre isso?Saúde: pessoa ou lugar que lhe oferece suporte nas questões relativas à saúde. Quem cuida de você? Você já procurou ajuda profissional alguma vez? Serviço de saúde, médico, psicólogo?Experiências sexuais/namoro: pessoa com quem você tem relação sexual ou de namoro. Quando você pensa em um

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relacionamento amoroso, de quem você se lembra? Você já gostou ou gosta de alguém? Já sofreu por amor? Já viveu um grande amor? E quanto às curtições do momento? Apenas “ficar”? Como acontecem estas situações na sua vida? Como são estas experiências para você? Em quem você pensa quando fala sobre “experiências sexuais” ou “namoro”?Novas relações: pessoa ou lugar que te apresenta para novas pessoas, que lhe oferece a oportunidade de fazer novas amizades, ter novas relações. Existem pessoas na sua rede que o levam a conhecer outras pessoas e fazer novas amizades? Quem são? Que tipo de pessoas elas o levam a conhecer?Diversão e lazer: pessoa ou lugar que representa diversão e lazer na sua vida. Quem costuma estar com você nos momentos de lazer? Quando você quer se divertir, quem você convida para estar com você? Que tipo de diversão vocês gostam de ter juntos?Controle e poder: pessoa ou lugar que representa controle e poder sobre você. Nas suas relações, você se sente controlado de alguma forma? Por quem? Existe alguém que o obriga a fazer coisas, a ter determinadas atitudes? Existem pessoas que exercem poder sobre você? Em que sentido?Medo/ameaça: pessoa ou lugar que representa medo e ameaça para você. Existem pessoas nos seus relacionamentos que fazem você sentir medo? Quem? Medo de quê? Você se sente ameaçado por alguém? Quem? De que forma?Aventura/transgressão: pessoa ou lugar que representa aventura e quebra de regras na sua vida. Você já participou ou participa de situações de aventura? Vive situações que de transgressão às regras? Gosta de situações que o colocam em perigo ou risco, mas que o fazem sentir “adrenalina”? Que situações são essas? Com quem você costuma viver essas aventuras?Decisões/conselhos: pessoas ou instituições que lhe oferecem ajuda quando você tem que tomar uma decisão. Alguém que lhe

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oferece conselhos. Quando você tem que decidir alguma coisa, você pede conselho para alguém? Quem?Acesso às drogas: pessoa ou lugar que lhe possibilita o envolvimento com drogas. Você conhece alguém envolvido com drogas? Que já usou ou usa? Que vende drogas? Você já usou drogas com estas pessoas? Já os ajudou a vendê-las? Em relação à bebida alcoólica, você sai com pessoas que bebem? Você se encontra com elas para beber também? Em que ocasiões? Que pessoas são essas?Competição/gangue: pessoa com quem você estabelece uma relação de competição, de disputa. Existem situações de competição em sua vida? Pessoas que competem com você por algum motivo? Você compete com alguém? Em relação a quê? Quem são as pessoas que travam disputas com você? Como essas situações acontecem?Apoio/ajuda: pessoa ou lugar com que você conta quando precisa de apoio e ajuda. Você tem alguém para procurar quando está na pior? Alguém para desabafar? Falar sobre seus sentimentos, suas aflições? Alguém para pedir ajuda quando precisa? Quem? É a mesma pessoa com quem você compartilha alegrias e conquistas?

Após a entrevistaComo vimos, essa entrevista permite ao educador compreender como

o adolescente está construindo suas relações nos diferentes espaços de socialização pelos quais circula, assim como quem exerce e como estão sendo exercidas as funções (papéis) sociais de proteção e risco (afetivas, educativas, impositivas) na vida do adolescente.

Por isso, é muito importante que o educador marque com o adolescente um horário para dar a devolutiva da entrevista. A devolutiva não deve passar de uma semana da entrevista. O educador e o adolescente devem conversar sobre os pontos levantados, a fim de confirmar ou afastar as suspeitas. O objetivo principal da devolutiva é pensar com o adolescente algumas estratégias para diminuir os fatores de risco e

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Acolhimento para adolescentes em situação de risco

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fortalecer os de proteção levantados na entrevista e confirmados na devolutiva.

ReferênciaPereira, S.E.F.N. Redes sociais de adolescentes em contexto de vulnerabilidade social e

sua relação com os riscos de envolvimento com o tráfico de drogas. Tese de Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura. Instituto de Psicologia. Brasília: Universidade de Brasília, 2009, orientada pela Professora Dra. Maria Fátima Olivier Sudbrack.

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Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira et al

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PARTE 4:

DROGAS E POPULAÇÕES EM CONDIÇÃO

DE VULNERABILIDADES:

O PARADIGMA DA DIVERSIDADE

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CAPÍTULO 4.1

Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

Lidiane ToledoCarolina Coutinho

Francisco Inácio Bastos

O consumo de diferentes substâncias (lícitas, ilícitas e, de forma bastante mais complexa, substâncias que por suas características intrínsecas e/ou da dissociação entre suas aplicações básicas e derivadas – se situam na interface entre os usos lícitos e ilícitos, como é o caso da imensa maioria das substâncias enfeixadas sob a rubrica “solventes”) perpassa todas as sociedades humanas, ao longo da história, ainda que com ampla variação das substâncias consumidas, suas apresentações, assim como dos hábitos, atitudes e valores a elas associados (Escohotado, 2016).

Pessoas que usam substâncias psicoativas (doravante denominadas “substâncias”, em prol da concisão) regularmente e de forma problemática, tendem a ter mais chance de apresentar problemas graves de saúde e, eventualmente, de morrer precocemente. Segundo o último relatório mundial sobre drogas do United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC, 2016b), cerca de 200 mil pessoas perdem a vida a cada ano no mundo, devido a problemas relacionados a essas substâncias.

Ademais, o uso regular e problemático de substâncias constitui um importante fator de risco para a transmissão de doenças infecciosas, tais como o HIV e as Hepatites B e C, particularmente, em função da

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possibilidade do compartilhamento de apetrechos para uso injetável, fumado e/ou inalado e da troca de sexo por drogas, além da baixa adesão ao uso de preservativos (Fiocruz, 2014; UNODC, 2016a).

No Brasil, a proporção de casos notificados de Aids pela categoria de exposição “uso de drogas injetável” vem diminuindo, progressivamente, nos últimos anos. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, em 2015 essa categoria correspondia a 2,2% dos novos casos entre homens e 1,3% dos novos casos entre mulheres; já a macrocategoria de transmissão sexual (ou seja, sexo desprotegido entre parceiros hetero ou homoafetivos) correspondeu a 95,3% dos novos casos registrados entre homens e 97,1% dos novos casos entre mulheres (Brasil, 2016).

Além disso, dados recentes da Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack (PNC), que entrevistou usuários regulares de crack/similares numa amostra probabilística de cenas abertas de uso de todo o país, evidenciou prevalências em torno de 4,97% (IC95%:3,75-6,56) para HIV e 2,63% (IC95%:1,69-4,07) para HCV (vírus da hepatite C) nessa população, ambas muito mais elevadas do que a prevalência estimada para população geral do Brasil (Fiocruz, 2014), embora nem de longe tão elevadas como as taxas de infecção entre usuários de drogas injetáveis, nos mais diversos contextos, inclusive o Brasil, décadas atrás (ver revisão e meta-análise sobre taxas de incidência entre pessoas que injetam substâncias, em Tavitian-Exley, Vickerman, Bastos, & Boily, 2015).

Na trigésima sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre drogas e temas correlatos (UNODC, 2016a), do qual o Brasil participou como pais membro, foi repactuado o compromisso com o cumprimento das metas de desenvolvimento sustentável até o ano de 2030, o que no que diz respeito à temática de uso prejudicial/dependente de substâncias inclui, principalmente, o fortalecimento de ações de prevenção e de tratamento do uso/abuso de substâncias, contribuindo desta forma para o controle e talvez mesmo a erradicação, em alguns contextos, das epidemias de Aids e redução dos casos de tuberculose e de novas infecções pelos vírus das hepatites B e C.

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Lidiane Toledo, Carolina Coutinho e Francisco Inácio Bastos

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Desta forma, há a necessidade premente de se estabelecer um compromisso político e sanitário amplo em torno da agenda global nas áreas de vigilância, monitoramento e busca de indicadores epidemiológicos – o mais consensuais possíveis – que permitam identificar as prioridades, populações-alvo e programas baseados em evidências no campo da prevenção e tratamento do uso prejudicial/dependente de substâncias. Para tanto, se faz necessário compreender melhor os determinantes sociais e os fatores de risco envolvidos, além dos padrões e modos de uso/abuso dessas substâncias (WHO, 2016).

Bertoni e Bastos (2014) destacam:Uma etapa essencial à formulação, monitoramento e avaliação destas ações é ser capaz de proceder ao correto dimensionamento da magnitude e das características desta população, ou seja, saber para quem e para quantos essas políticas devem ser formuladas e implementadas. (p. 133).

A pesquisa epidemiológica no campo de drogas tem um importante papel de informar os gestores públicos e a sociedade de forma geral, subsidiar a definição clara de indicadores essenciais, o que requer estimativas de tamanho das populações-alvo, taxas de diferentes infecções (idealmente, prevalência e incidência), padrões de uso, comportamentos de risco para doenças transmissíveis, utilização de serviços básicos de saúde e assistência social, dentre muitos outros. Conhecer o tamanho dessas populações, por exemplo, se faz necessário para otimizar a alocação dos recursos financeiros e humanos, possibilitando também a avaliação do alcance e da cobertura dos serviços de saúde e sociais já existentes e dos que ainda precisam ser ofertados (Wesson, Reingold, & McFarland, 2017).

Porém, a pesquisa epidemiológica na área de drogas apresenta inúmeros desafios aos pesquisadores e talvez o principal deles seja como acessar e entrevistar um indivíduo que compõe uma população considerada bastante móvel (Horyniak et al., 2016), que está associada a comportamentos estigmatizados e marginalizados, e por vezes ainda

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Desafios da pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas

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inserida em contextos de extrema vulnerabilidade, violência e criminalização (Wesson, Reingold et al., 2017). Esse conjunto de características que muitas das vezes dizem respeito à população de usuários de drogas, define-a como população difícil acesso/oculta.

Neste sentido, trataremos neste capítulo de questões metodológicas, éticas e operacionais da pesquisa epidemiológica sobre uso de drogas, com o intuito de sumarizar os principais desafios do trabalho de pesquisa com esta população.

População de difícil acesso ou ocultas: conceitosOs termos “população de difícil acesso” (do inglês hard-to-reach

populations) e “população oculta” (do inglês hidden populations), costumam ser empregados de forma intercambiável e sem uma definição bem delimitada e específica. Para alguns autores, populações de difícil acesso seriam aquelas que devido à sua localização geográfica apresentam maiores dificuldades de serem alcançadas, como pessoas que moram em locais isolados e distantes da área urbana, como populações que vivem em locais escarpados/montanhas, desertos, tribos indígenas; populações de alta mobilidade geográfica, como refugiados de guerra e vítimas de desastres naturais; populações que compartilham comportamentos/características que levam à sua estigmatização, discriminação e criminalização, como homens que fazem sexo com homens e usuários de droga (Shaghaghi, Bhopal, & Sheikh, 2011; Sydor, 2013), o que não exclui a inserção conjunta em mais de uma dessas circunstâncias/características. Já a conceito de população oculta, segundo Sydor (2013), se aplica quando não é possível saber, a priori, o tamanho da população sob estudo. Neste sentido, uma vez que o pesquisador tenha dificuldade de acessar aquela população, muito provavelmente não terá, a priori, conhecimento do seu tamanho/magnitude. Desta forma, os conceitos são usualmente utilizados como equivalentes na literatura.

Vasconcellos e Silva (2012) definem o conceito de população de difícil acesso como:

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Na terminologia de amostragem, uma população é considerada de difícil acesso se tiver pelo menos um dos atributos seguintes: ser rara (pouco frequente, geograficamente concentrada ou espalhada), ser oculta (por comportamentos ilegais ou especiais) ou flutuante (alteração de sua associação a pontos do espaço geográfico). Todas têm em comum o fato de não existir um cadastro completo das suas unidades constituintes. (p. 33).

Conforme formulado por Vasconcellos e Silva (2012), uma dificuldade adicional no estudo das populações de difícil acesso/ocultas diz respeito ao tamanho e/ou dispersão desses subgrupos, geralmente, de pequena magnitude em termos populacionais (frente à população geral), e muitas vezes dispersos por diferentes contextos e localidades. Sendo a proporção deste subgrupo na população geral muito pequena, metodologias clássicas de amostragem probabilística não são capazes de captar um número suficiente de membros desta subpopulação de modo que seja possível realizar inferência estatística (Spreen, 1992).

O National Institute on Drug Abuse (Nida, 1990) aponta que muitas vezes essas populações de difícil acesso/ocultas são omitidas das pesquisas representativas da população geral, como os inquéritos domiciliares clássicos ou as pesquisas com populações ditas “cativas”, como escolares, porque além das questões supracitadas, referente ao pequeno tamanho populacional desses subgrupos, e sua eventual dispersão geográfica, grande parte deles não possui endereço fixo ou raramente estão em casa, não sendo captados, por exemplo, por inquéritos domiciliares clássicos e/ou não tem inserção regular em instituições como escolas, serviços de saúde etc.

Apesar da extrema importância das pesquisas com desenho de amostra probabilística, a capacidade de um inquérito populacional clássico acessar as populações de difícil acesso/ocultas é limitada (Caiaffa & Bastos, 1998). Isto porque é extremamente complexo, se não impossível, estabelecer um marco amostral de referência (sampling frame), que seja de

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fato enumerável dessas populações (Magnani, Sabin, Saidel, & Heckathorn, 2005; Semaan, Lauby, & Liebman, 2002; Spreen, 1992; Sydor, 2013).

Considerando ainda que, na maioria das vezes, as entrevistas são realizadas nos domicílios/ambiente escolar e universitário, os entrevistados podem se sentir inibidos em relação a questões passíveis de críticas ou sanções, podendo levar a uma omissão das informações, comprometendo a qualidade e veracidade das informações. Para Magnani et al. (2005), inquéritos domiciliares, por exemplo, são, na maioria das vezes, inviáveis ou pouco práticos nas pesquisas realizadas com população de difícil acesso/ocultas, embora sigam sendo essenciais na compreensão do quadro mais abrangente da população geral.

Via de regra, em função da natureza marcadamente pessoal, frequentemente objeto de estigma e, em diversos contextos e sociedades, sanções, que vão de punições brandas (como multas e advertências) até um leque de sanções penais, que incluem uma miríade de ações repressivas, desde internações compulsórias até a detenção e o encarceramento, lida-se aqui com uma epidemiologia sui generis, bastante afastada dos estudos ancorados em amostragens clássicas e utilização de questionários padrão que lidem com questões menos sensíveis.

Nas últimas décadas, observa-se uma explosão de métodos e procedimentos de análise, que parecem fruto da necessidade crescente de lidar com populações de difícil acesso/ocultas em nível da saúde pública global (populações sem teto e outros segmentos em situação de rua; pessoas deslocadas no âmbito de um dado país em função de situações epidêmicas, desastres naturais, violência etc.; migrações em massa; guerras civis, entre outros fenômenos), além dos rápidos progressos no âmbito da modelagem matemática, estatística e das ciências da computação (Loscalzo et al., 2017; Salganik, 2017). A seguir apresentaremos brevemente alguns destes métodos, com o propósito de iniciar o debate acerca desta temática, entre leitores interessados.

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Alguns métodos de estimação e/ou amostragem de populações de difícil acesso/ocultas

Qualquer população de difícil acesso, e especialmente aquelas que são objeto de estigma e preconceito profundamente enraizados, é definida tecnicamente como população não-contável ou não-enumerável. Um termo que talvez soe sofisticado esconde uma constatação incrivelmente simples: as populações de difícil acesso NÃO podem ser contadas por quaisquer métodos.

A tarefa seria impossível, seja porque essas populações são de difícil acesso/ocultas, seja porque se recusam a reconhecer que são usuários de determinadas substâncias (especialmente ilícitas), por exemplo, no contexto cotidiano de seus domicílios (caso tenham domicílio, obviamente), ou não possam ser localizados nos centros de saúde, nas escolas ou nos seus locais de moradia. Desta forma, essas populações não podem ser contadas, embora possam (e devam) ser estimadas. Para fins deste capítulo, estimativas podem ser definidas como o palpite (ou inferência possível, uma vez que não referendada por nenhuma estratégia que permita esquadrinhar de forma exaustiva o universo de referência) mais bem informado que se pode extrair de uma realidade que não pode ser plenamente revelada ou explorada.

Pesquisas que lidam com usuários de substâncias em seus contextos ditos “naturais” de uso, apesar de relativamente frequentes, são quase invariavelmente realizadas utilizando-se métodos de natureza etnográfica, e não epidemiológica, e, deliberadamente, perdem em abrangência e generalizibilidade o que ganham em detalhe e observação estendida no tempo.

Até muito recentemente, os métodos e ferramentas estatísticas e computacionais para lidar com estas populações eram bastante limitados, quando não inexistentes, e habitualmente lançava-se mão de métodos originalmente implementados em outras áreas do conhecimento, como os estudos ecológicos que lidam com a estratégia de captura-recaptura (Royle, Chandler, Sollmann, & Gardner, 2013), ou de métodos de

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estimação definidos a partir de dados oriundos de múltiplas fontes de dados, como a triangulação de informações cadastrais com base em modelos log-lineares (Frisher et al., 1993).

Uma vez que as populações de usuários de drogas em contexto estabelecem complexas redes de inter-relacionamento e têm habitualmente grande mobilidade e estão sujeitas a frequentes mudanças de hábitos e de formas de interação com a sociedade em que estão inseridas (Friedman, Curtis, Neaigus, Jose, & Des Jarlais, 1999), a incorporação de métodos que abordam redes sociais por exemplo, passou a se mostrar essencial.

Neste sentindo, diferentes métodos de amostragem têm sido introduzidos para acessar/recrutar populações de difícil acesso/ocultas. Tais métodos de amostragem se aproximam (ou buscam se aproximar) da amostragem probabilística, com os quais, idealmente, geram estimativas bastante convergentes. Nesta seção apresentaremos sumariamente os métodos de amostragem e de estimação de populações de difícil acesso recomendados por organismos internacionais e que já foram aplicados por pesquisadores no contexto brasileiro, a saber: Respondent Driven-Sampling − RDS (Unaids, 2010; 2013); Time Location Sampling – TLS (recomendado pelos Centers for Disease Control and Prevention; ver Katz et al., 1998 e Lemp et al., 1994); Captura e Recaptura (UNODC, 2003) e o Network Scale-up (Unaids, 2010). Este último, por ser um método indireto, não serve de estratégia de abordagem da população em si, mas apenas de sua estimação e caracterização.

Uso do Respondent-Driven Sampling (RDS) e o Time-Location Sampling (TLS) na pesquisa epidemiológica de drogas

Diante do reconhecimento da importância de obter mais informações sobre os comportamentos, atitudes e práticas das populações de difícil acesso/ocultas, e tendo em vista as dificuldades em produzir estimativas válidas a partir de estudos de base populacional, no início da 1ª década do século XXI o Brasil realizou a transferência de metodologias alternativas

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de amostragem, especificamente duas, a saber: Respondent-Driven Sampling e o Time-Location Sampling (Barbosa Júnior, Pascom, Szwarcwald, Kendall, & McFarland, 2011).

Tais metodologias são consideradas adequadas para estudos com populações sob maior risco à infecção pelo HIV e foram inicialmente aplicadas no Brasil a outras populações ditas de difícil acesso/ocultas, como nos estudos que se valeram dos dois métodos em Fortaleza, Ceará, com homens que fazem sexo com homens (Kendall et al., 2008).

Respondent Driven-Sampling (RDS)O RDS é uma variante do método Snowball Sampling (bola-de-neve)

que tem sido amplamente utilizado, por décadas, como um método chave no monitoramento da epidemia de HIV/Aids e outros agravos em populações de difíceis de acesso/ocultas em diferentes contextos (Malekinejad, Johnston, Kendall, Rifkin, & Rutherford, 2008; Strathdee et al., 2008). Com o RDS, a moldura amostral é construída durante o próprio processo de amostragem, uma vez que os membros da população sob estudo recrutam seus pares e os padrões de recrutamento são documentados e quantificados (Magnani et al., 2005).

Desde sua criação em 1997, por Douglas Heckathorn, o processo de recrutamento do RDS tem sido aperfeiçoado de maneira a permitir o cálculo das probabilidades de seleção, podendo assim ser, a princípio, classificado entre os métodos quase-probabilísticos de amostragem, superando muitos dos vícios dos outros tipos de amostragem por cadeia de referência, como o método bola de neve (Semaan et al., 2009).

Na implementação do RDS, primeiramente é realizada uma pesquisa formativa, com objetivo de coletar informações acerca das redes locais e dos mais diversos perfis dos membros da população, por exemplo, usuários de drogas com nível superior de educação versus sem ou com baixa escolaridade, usuários de drogas domiciliados versus não domiciliados, e assim por diante. Essas informações são colhidas com serviços governamentais e não governamentais, com lideranças locais e outros

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informantes chave e instituições com atuação nos contextos sob análise (Heckathorn, 1997).

Nesta etapa são realizados grupos focais e entrevistas em profundidade para embasar a escolha dos primeiros participantes do estudo, as chamadas sementes, seguindo os critérios de diversidade do perfil e tamanho da rede pessoal informado. Uma vez escolhidas as sementes, cada uma recebe um número fixo de cupons (em geral inicia-se com três convites), para que eles sejam distribuídos aos conhecidos da sua rede social, que compartilhem com a semente alguma característica ou hábito que defina o processo de recrutamento (por exemplo, ter utilizado alguma substância ilícita nos 6 meses anteriores à entrevista) (Unaids, 2010, 2013).

O número limitado de cupons minimiza a influência eventualmente muito heterogênea das sementes na composição final da amostra, podendo gerar cadeias de recrutamento mais longas, e assim obter maior diversidade das sub-redes. Com isso, aumenta a probabilidade de representação de sujeitos mais “escondidos” da população-alvo e busca-se minimizar o papel de eventuais “super-recrutadores” (Biernacki & Waldorf, 1981), ou seja, pessoas com amplas redes sociais e contatos dinâmicos, que tendem a dominar as amostras baseadas em processos de nominação (Magnani et al., 2005; Malekinejad et al., 2008).

Os participantes que chegam ao local do estudo com um convite, e que se enquadram nos critérios de inclusão, são considerados elegíveis, e constituem a primeira “onda” do estudo. Estes por sua vez, recebem novos cupons, para convidar seus conhecidos do mesmo grupo populacional para participar do estudo. Assim, a amostra vai crescendo, por ondas sucessivas. Esse processo se repete, até que o tamanho de amostra previamente estabelecido seja atingido, a população-alvo se esgote ou que o tempo/recursos alocados para a pesquisa acabem (Heckathorn, 1997; Toledo et al., 2011). Obviamente, como discutido em Toledo et al. (2011), é possível que o processo de recrutamento sucessivo esbarre em dificuldades ou barreiras, algumas delas intransponíveis, geralmente denominadas “gargalos”, quando por exemplo membros de uma

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determinada facção criminal se recusam a distribuir cupons para membros de outras facções, que conhecem, mas com quem mantêm uma relação de conflito e rivalidade.

O número de cupons a ser distribuído para os participantes é continuamente monitorado e pode ser aumentado ou reduzido (“calibrado”), de acordo com a velocidade da chegada dos participantes e o percentual de perdas, para se obter o tamanho de amostra esperado no tempo previsto. Um código único é atribuído a cada convite, de modo a tornar possível a identificação de quem recrutou quem (Heckathorn, 1997; Semaan et al., 2009).

A entrega dos cupons foi uma inovação na amostragem em cadeia, constituindo uma etapa importante para a calibração da amostra, já que permite conhecer as relações das díades recrutador-recrutado e a elaboração da rede de conhecidos entre os participantes (Heckathorn, 1997; Semaan et al., 2009), e sua posterior visualização, por meio de ferramentas computacionais simples, como o pacote de domínio público N e t d r a w ® ( d i s p o n í v e l e m : https://sites.google.com/site/netdrawsoftware/download). A documentação da relação recrutador-recrutado permite que os possíveis vícios de recrutamento possam ser identificados, avaliados e eventualmente corrigidos na análise. As informações referentes à rede pessoal de cada entrevistado também são colhidas, visando a permitir uma análise ponderada pelo tamanho das mesmas, evitando a super-representação daqueles com uma rede pessoal maior (Magnani et al., 2005; Semaan et al., 2009).

Outro ponto central do RDS é que ele está baseado num sistema de duplo incentivo: o ressarcimento pelos gastos do entrevistado com transporte e alimentação no decorrer da sua participação na pesquisa, e o incentivo secundário, por sujeito recrutado que seja elegível e que tenha aceitado participar do estudo (Magnani et al., 2005, Semaan et al., 2009).

Os elementos essenciais do RDS são quatro: a obrigatoriedade do registro das relações de recrutamento (quem recrutou quem), identificadas

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por meio de um sistema de cupons numerados; a limitação do número de recrutados, usualmente, não mais que três convites por entrevistado; o registro do tamanho das redes sociais dos entrevistados (em termos do número de conhecidos do grupo de interesse); e o vínculo de conhecimento entre os recrutadores e os recrutados, isto é, o pressuposto de que eles devem ter um relacionamento anterior ao processo de amostragem (Barbosa Júnior et al., 2010; Magnani et al., 2005).

Alguns estudos têm evidenciado limitações nas análises de dados com amostras obtidas pelo método RDS. Por exemplo, Baptista, Dourado, Brignol, Andrade e Bastos (2017) analisaram os dados de um estudo realizado em 2009, com uma população de poliusuários no município de Salvador, Bahia, apontando uma limitação quanto à não generalização dos resultados devido à evidência de dependência entre as observações. Já o estudo de Toledo et al. (2011), que também trabalhou em 2009 com uma população de poliusuários, no Município do Rio de Janeiro, mostrou que houve barreiras estruturais quanto à distribuição geográfica dos indivíduos recrutados pelo método RDS no município. Toledo el al. (2011) observaram que a maioria dos recrutados se concentrou na região centro-norte do município – local onde as sementes referiam residir, deixando áreas inteiras da cidade sem um único recrutado, ou seja, violando o pressuposto inicial de Heckathorn de que os segmentos de rede tenderiam a ser unificar, a partir de um dado número de ondas (originalmente, seis ondas), definindo o que o autor formulou como sendo uma única rede abrangente (que denominou originalmente “a single component”).

Embora o RDS tenha sido criticado por apresentar resultados enviesados, devido a um recrutamento desproporcional de indivíduos mais empobrecidos e socialmente desfavorecidos no estudo de McCreesh et al. (2012), que trabalhou com chefes de família, integrantes de uma coorte aberta na área rural de Uganda, África, no estudo de De Boni Bertoni, Bastos e Bastos (2014), que recrutou indivíduos de 12 a 65 anos que referiram beber em binge bebidas alcoólicas não registradas (ou seja, não rastreáveis pelos métodos convencionais de rotulagem e registro), no ano

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de 2010, no Munícipio do Rio de Janeiro, o método RSD serviu como uma ferramenta eficiente no recrutamento, sendo possível abordar em um curto período de tempo, um número razoável de indivíduos, o que teria sido impossível com estratégias alternativas.

Time Location SamplingO Time Location Sampling (TLS) foi desenvolvido pelo escritório central

dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), sediado em Atlanta, Geórgia, em colaboração com departamentos estaduais e locais de saúde dos Estados Unidos (como de São Francisco, Califórnia, que se tornou um protagonista central do desenvolvimento e aplicação deste método, autores do mais conhecido Manual referente ao método, d i s p o n í v e l e m https://globalhealthsciences.ucsf.edu/sites/globalhealthsciences.ucsf.edu/files/tls-res-guide-2nd-edition.pdf), para compreender melhor a epidemia de HIV na população de homens jovens homossexuais, sendo empregado pela primeira vez na década de 1990, para estimar a prevalência da infecção pelo HIV e comportamentos de risco nesta população (Lemp et al., 1994, MacKellar, Valleroy, Karon, Lemp, & Janssen, 1996).

Considerando que muitas populações de difícil acesso/ocultas tendem a se concentrar em determinados lugares (por exemplo, trabalhadoras do sexo em casas de massagem, determinadas ruas e boates; homens que fazem sexo com homens em bares/boates, saunas; usuários de drogas em cenas abertas de uso), o TLS se inicia com uma fase formativa, realizando um mapeamento (o mais exaustivo possível, ainda que, como dito antes, uma enumeração perfeitamente abrangente e exaustiva não seja exequível) dos locais, dias e horários de concentração da população sob estudo, em um determinado espaço geográfico (por exemplo, um município) (Karon & Wejnert., 2012; Magnani et al., 2005; Raymond, Ick, Grasso, Vaudrey, & McFarland, 2007).

Este mapeamento tem por objetivo fornecer um cadastro base que servirá como universo amostral do estudo (sampling frame), a partir do qual

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os pesquisadores selecionarão aleatoriamente os locais, dias e horários que serão visitados para obtenção da amostra efetivamente recrutada. De posse da lista dos locais, dias e horários que deverão visitar, a equipe de pesquisa vai a campo para iniciar a coleta de dados.

Ao chegar no local, a equipe estabelece um ponto de referência para o recrutamento (uma linha imaginária, por exemplo), e toda pessoa que passar pela primeira vez por este ponto será abordada e contabilizada para verificação dos critérios de elegibilidade e convite para participação na pesquisa dentro de um período pré-determinado de tempo de pelo menos 4 horas (Raymond et al., 2007). Uma vez que a pessoa abordada aceite participar da pesquisa, será encaminhada para responder ao questionário.

No Brasil, o TLS (com modificações em relação à sua formulação original), foi utilizado no maior inquérito epidemiológico sobre uso de crack e similares em cenas abertas do mundo, a Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack, realizada entre os anos de 2011 e 2012, nas 26 capitais brasileiras e Distrito Federal, nove regiões metropolitanas (RMs) federais (Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, e Porto Alegre) e municípios de cinco macrorregiões (que incluíam municípios de médio e pequeno porte, além da zona rural, estrato este denominado “Estrato Brasil” (EB) (Fiocruz, 2014).

Em primeiro lugar, as equipes realizaram o mapeamento/cadastro das cenas abertas de uso nos municípios pré-selecionados, coletando informações junto a órgãos públicos (como Secretarias de Saúde e Assistência Social, Polícia, etc.) e Organizações Não-Governamentais (ONGs) envolvidos com a temática, sobre os locais onde se congregavam os usuários de crack e/ou similares para uso da substância e a frequência dos usuários nesses locais, por dia da semana e turno (manhã, tarde e noite) (Fiocruz, 2014).

Tal cadastro foi utilizado como universo amostral conforme recomendado. Sendo assim, a amostra foi obtida através de dois ou três estágios de seleção. Para os estratos das capitais, houve dois estágios: (1)

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combinação de cena-dia-turno; e (2) usuário. Nos demais estratos, a amostra foi selecionada em três estágios: (1) município (nas RMs) ou grupos de municípios (no EB); (2) cena-dia-turno; e (3) usuário.

A forma de seleção dos membros da população no último estágio de seleção (seleção dos usuários) tem gerado controvérsias a respeito de se tratar ou não de um método probabilístico. Vasconcellos e Silva (2012) não consideram originalmente o TLS como um método de amostragem probabilístico, uma vez que as tais linhas imaginárias − que estabelecem o ponto de abordagem e recrutamento do indivíduo no último estágio de seleção, não delimitam este último estrato de recrutamento, de forma a que sua probabilidade seja definível e conhecida.

Porém, mais recentemente, o TLS foi aprimorado de forma a torná-lo um método que produz amostras probabilísticas (De Boni, Silva, Bastos, Pechansky, & Vasconcellos, 2012), através do emprego da amostragem inversa (Haldane, 1945). Em poucas palavras, o método de amostragem inversa pode ser definido como uma técnica de amostragem utilizada para verificar quantas unidades amostrais precisam ser observadas para obter um número pré-fixado de “sucessos”, neste caso, número de pessoas recrutadas que realizaram entrevistas (Haldane, 1945; Vasconcellos, Silva, & Szwarcwald, 2005; Vasconcellos & Silva, 2012). Na Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack, o recrutamento dos usuários para participação na pesquisa foi realizado por meio de um procedimento de amostragem inversa.

Assim como no RDS, alguns autores têm registrado limitações do método que, basicamente, podem ser resumidas em dois pontos: (1) os locais onde os membros da população sob estudo se concentram podem mudar com o tempo, havendo perda de alguns dos locais previamente mapeados, o que pode gerar viés referente ao método de amostragem empregado; (2) as estimativas geradas pelo TLS são limitadas ao subgrupo da população que frequenta os locais mapeados, ou seja indivíduos que não frequentam tais locais, não estarão representados na amostra, como por exemplo no caso da PNC, usuários que fazem uso de crack e similares, porém nunca ou raramente frequentam cenas abertas de uso, mas fazem

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seu uso em casa ou em locais fechados (Karon & Wejnert, 2012; Magnani et al., 2005; Shaghaghi et al., 2011).

Captura e RecapturaA formulação matemática do método captura-recaptura se deu

inicialmente na França em 1783, desenvolvido originalmente por Pierre Laplace (1749-1827) para estimar a população daquele pais (Laplace citado por Dun & Andreoli, 1994), e desde então vem sendo utilizado no campo da ecologia para estimar o tamanho da população de animais em uma determinada área, mantida sua denominação original, mesmo depois de ter “migrado” do estudo com os animais para os estudos com seres humanos, em relação aos quais o processo de “captura” corresponde a uma denominação simbólica, e não a uma captura efetiva.

Na área da ecologia, a metodologia acontece com a coleta de duas amostras independentes, em dois momentos distintos. Na primeira coleta, realiza-se a captura dos animais (amostra A), que são contados, marcados (por exemplo, com uma anilha ou um chip) e, em seguida, libertados. Após um certo tempo, suficientemente longo para que os animais marcados se misturem aos animais não marcados, a segunda amostra é coletada (amostra B). A interseção da amostra A com B define a extensão da população de origem, no momento da recaptura, ou seja, neste segundo momento, os animais capturados pela primeira vez e os animais recapturados seriam identificados e contados, verificando-se se houve ou não sobreposição (Royle et al., 2013).

Levando em consideração o pressuposto da independência entre as amostras, poderíamos concluir que a proporção de animais recapturados em relação ao total de capturados pela segunda amostra é igual à proporção de animais capturados pela primeira amostra em relação ao total da população. A partir daí, o tamanho da população seria estimado pelo estimador de Lincoln-Petersen (LP). O estimador de LP tem sido amplamente utilizado, inclusive em estimativas de populações humanas ocultas. Essa estimativa pressupõe que os indivíduos apresentem

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probabilidades iguais de serem observados no primeiro e segundo momentos (Coeli, Veras, & Coutinho, 2000; Royle et al., 2013).

Nas pesquisas com seres humanos, o método de captura-recaptura pode se iniciar de duas maneiras. Uma destas maneiras é através de um mapeamento de todos os locais onde a população-alvo do estudo pode ser encontrada (cenas abertas de uso, por exemplo). Após o mapeamento, a equipe de pesquisa deverá visitar os locais mapeados para coletar a primeira amostra e “marcar” a população encontrada no local. A marcação pode se dar através da entrega de um cartão contendo um código de barras único para cada membro ou um brinde da pesquisa, por exemplo um chaveiro. Neste momento, a equipe de pesquisa realizará a contagem dos membros da população no local visitado (Caiaffa & Bastos, 1998; Mastro et al., 1994).

Assim como na pesquisa com os animais, depois de certo tempo retorna-se aos locais previamente visitados para coleta da segunda amostra para uma nova contagem e marcação dos membros da população. Neste momento, serão identificadas e contabilizadas as pessoas que foram marcadas na primeira visita, ou seja, aqueles que possuem um cartão com código de barras da pesquisa ou chaveiro e aqueles que estão sendo marcados pela primeira vez (Caiaffa & Bastos, 1998; Mastro et al., 1994; Wesson, Lechtenberg, Reingold, McFarland, & Murgai, 2017).

Quando por algum motivo não é possível realizar o mapeamento dos locais de concentração da população de interesse, devido à falta de tempo e recursos, por exemplo, lança-se mão de listas (o mais possível) exaustivas, contendo os membros (potenciais) da população (enfatizando-se novamente aqui que a exaustividade absoluta não é uma meta factível). Essas listas podem ser de usuários de drogas que recebem um benefício social, cadastrado nos Centros de Referência da Assistência Social (Cras) e dos usuários em tratamento nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD), por exemplo (Wesson Lechtenberg, et al., 2017).

Como a segunda amostra deve ser independente da primeira, idealmente deve-se obter as listas de locais diferentes na primeira e na

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segunda coleta. A forma de marcação dos indivíduos também se restringe a códigos alfanuméricos (Unaids, 2010; Wesson, Reingold et al., 2017).

Em ambos os casos (utilizando o mapeamento ou as listas cadastrais), o número de membros da população observados em cada amostra e o número de membros da população observados em ambas as amostras são registrados. A partir desses números, o tamanho da população pode ser estimado, o que consiste, de forma bastante simplificada, em multiplicar o número de indivíduos capturados na primeira amostra pelo número de indivíduos capturados na segunda amostra, dividido pelo número de pessoas capturadas em ambos (recapturas) (Coeli et al., 2000; Unaids, 2010).

Na aplicação da metodologia de captura-recaptura há alguns pressupostos importantes a serem observados. O primeiro é que a população sobretudo deve ser fechada, ou seja, não são observados nascimentos, mortes ou migrações (na verdade, tal pressuposto é impossível, mas constitui uma simplificação necessária ao modelo básico) durante o período de estudo. Este é um dos pressupostos mais facilmente violados nos estudos com usuários de drogas marginalizados, visto que se trata de uma população dinâmica, apresentando alta mobilidade e taxas de mortalidade e encarceramento, diferentes de outras populações de difícil acesso/ocultas, tais como homens que fazem sexo com outros homens (Mastro et al., 1994, Unaids, 2010).

Na tentativa de encontrar uma população razoavelmente “estável’ nas duas amostras durante o período do estudo, pesquisadores têm estabelecido tempos mais curtos entre a primeira e a segunda coleta. Um exemplo é o estudo de Mastro et al. (1994), que trabalhou com uma população de pessoas em tratamento com metadona para dependência de opióide, no ano de 1991, em Bangkok, e realizou a segunda coleta em menos de seis meses. Caiaffa et al. (2003) estimaram o número de usuários de droga injetável, clientes de um programa de troca de seringas que estavam infectados por HIV e pelo vírus da Hepatite C em 1998, em Porto Alegre, e realizaram a segunda coleta com apenas três meses de intervalo da primeira coleta.

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Outro princípio, que já foi citado aqui é o da independência entre as amostras, ou seja, os indivíduos capturados na primeira amostra não apresentam probabilidade diferencial de serem selecionados na segunda amostra. Para lidar com este problema da dependência, pesquisadores têm desenvolvido técnicas para detectar possíveis estruturas subjacentes de dependência entre as amostras, como por exemplo a aplicação de modelos log-lineares (Coeli et al., 2000).

Por fim, o último pressuposto do método assume que todos os membros da população têm a mesma probabilidade de serem capturados, o que pode ser um problema quando pesquisadores utilizam listas de serviços de saúde para obter as amostras, visto que frequentemente os usuários enfrentam problemas de acesso a tais serviços ou simplesmente não os frequentam (Fiocruz, 2014). A violação desses pressupostos pode produzir vícios que superestimem ou subestimem o tamanho da população, e por este motivo devem ser cautelosamente observados (Mastro et al., 1994).

Network Scale-upO Network Scale-up foi utilizado pela primeira vez para estimar o

número de vítimas de um terremoto na Cidade do México, México, em 1985, pelo antropólogo Russel Bernard, em parceria com o matemático inglês Peter Killworth, e desde então vem sendo utilizado para atender aos mais diferentes objetivos (Bernard, Johnsen, Killworth, & Robinson, 1991).

Este método utiliza informações coletadas em pesquisas domiciliares com a população geral para estimar o tamanho de populações de difícil acesso/ocultas. No entanto, ao invés de perguntar ao entrevistado sobre os seus comportamentos e hábitos, pergunta-se sobre os comportamentos e hábitos de conhecidos da sua rede social (Bernard et al., 2010; Bertoni & Bastos, 2014).

Durante a entrevista são feitas perguntas sobre quantas pessoas o entrevistado conhece, pertencentes a populações enumeráveis, ou seja, populações que possuem tamanho previamente conhecido (por exemplo,

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escolares ou membros das forças armadas), e quantas pessoas o entrevistado conhece pertencentes a populações com tamanho desconhecido (por exemplo, usuários de crack e similares, mulheres que fizeram aborto) (Bernard et al., 2010; Bertoni & Bastos, 2014).

Desta forma, o Network Scale-up (Nsum) é considerado um método indireto de estimação, pois não pergunta diretamente aos indivíduos da população geral se eles fazem ou não parte da população-alvo a ser estimada, ou seja, se os entrevistados têm determinados hábitos ou comportamentos que os caracterizem como usuários de drogas, por exemplo (Abdul-Quader, Baughman, & Hladik, 2014; Unaids, 2010). O Nsum difere dos métodos de estimação oriundos de inquéritos domiciliares, que por perguntar diretamente à população sobre uma prática marginalizada como o uso de drogas, tendem a subestimar tais estimativas (Morral, McCaffrey, & Chien, 2003).

Com base na média do tamanho da rede pessoal e na média de indivíduos pertencentes à população de difícil acesso/ocultas que os entrevistados conhecem, o tamanho da população de difícil/ocultas acesso é estimada.

Bertoni e Bastos (2014) elencam as vantagens dos métodos indiretos sob os métodos diretos na estimação da prevalência de uso de drogas na população geral: (1) redução do erro derivado do estigma associado ao uso de drogas, pois em se tratando de um comportamento marginalizado, as pessoas tendem a não falar abertamente sobre o tema; (2) mesmo sendo um estudo de base domiciliar, o método consequentemente inclui na estimativa gerada, pessoas em situação de rua, que moram em abrigos, internadas em clínicas para tratamento da dependência química, presas, exatamente por perguntar sobre comportamentos de terceiros e não do respondente no domicílio pesquisado.

Porém, como em relação a todo e qualquer método, existem algumas limitações em relação ao Network Scale-up que devem ser consideradas. O primeiro problema se refere à estimativa do tamanho da rede pessoal, isto porque o entrevistado pode desconhecer ou não se lembrar que alguém da

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sua rede seja membro da população de interesse (conhecido como “erro de transmissão”), ou seja porque não sabe/não lembra que alguém de sua rede social usa substâncias psicoativas (Bernard et al., 2010).

O segundo problema é chamado de efeito de barreira, que significa dizer que a depender de algumas barreiras sociais ou estruturais, tais como ocupação e localização do seu domicílio (pessoas de áreas rurais, por exemplo), a probabilidade do entrevistado conhecer alguma pessoa que use substâncias pode variar. Pode ser que ele não conheça, não queira informar que conheça, ou conheça menos membros do que seria esperado, em relação ao tamanho da sua rede pessoal (Bernard et al., 2010; Unaids 2010).

Diversos esforços têm sido empreendidos para minimizar/corrigir tais erros. Pesquisadores brasileiros, em parceria com pesquisadores de Princeton, Nova Jérsei, Estados Unidos implementaram uma pesquisa de redes sociais para estimar o erro de transmissão e introduzir um fator de ajuste no cálculo das estimativas do tamanho da população (Salganik et al., 2011). Outro esforço tem sido realizado envolvendo modelos matemáticos e procedimentos de simulação para investigar as consequências dos efeitos de barreira (Bernard et al., 2010).

No Brasil, no campo da saúde pública, o método foi introduzido de maneira pioneira através de uma parceria entre pesquisadores da Fiocruz e da Universidade de Princeton, Nova Jérsei, EUA, com a realização de dois estudos. O primeiro estudo estimou o número de usuários de drogas ilícitas no município de Curitiba, Paraná, no ano de 2009 (Salganik et al., 2011). O segundo estudo correspondeu ao componente domiciliar da Pesquisa Nacional sobre uso de Crack, que estimou o número de usuários de crack e/ou similares em cenas abertas de uso das capitais 26 capitais brasileiras e Distrito Federal (Bertoni & Bastos, 2014).

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Questões éticas e operacionais do campo: o Caso da Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack

A população de usuários de crack é altamente estigmatizada, está frequentemente envolvida em comportamentos ilegais, sendo de extrema importância assegurar o cumprimento dos preceitos éticos que minimizem os riscos de danos associados a sua participação em pesquisas (Royle et al. 2013).

Sendo assim, os pesquisadores devem informar aos seus respectivos comitês de ética em pesquisa os métodos de amostragem a serem utilizados e a(s) justificativa(s) para execução da pesquisa de forma clara (Greaney et al., 2012). A pesquisa epidemiológica em drogas difere das pesquisas biomédicas tradicionais, como as pesquisas clínicas, pois raramente envolve intervenções invasivas que podem prejudicar ou beneficiar o voluntário diretamente, com exceção dos estudos de ensaios clínicos randomizados referentes às terapias de substituição de metadona, mais frequentemente empregados na América do Norte e Europa (Ahmadi & Razeghian, 2017; Ling, Wesson, Charuvastra, & Klett, 1996), além de estudos com a utilização de medicamentos em que haja evidências empíricas anteriores, em populações com características similares em alguns pontos (por exemplo, pacientes com quadros depressivos e ansiosos) bastante consistentes, no sentido de alívio dos sintomas. Ainda assim, são comuns as falhas, e não existe até o momento, um único medicamento comprovadamente eficaz no tratamento da dependência por cocaína/crack, referendado pelas agências reguladoras.

Em pesquisas em que a população de estudo apresenta comportamentos criminalizados, passíveis de intervenções jurídicas e de segurança pública ou em que os questionários contenham perguntas sensíveis sobre o comportamento sexual, por exemplo, há sempre um medo dos voluntários quanto a um possível “vazamento” de informações e que sua identidade seja revelada.

Estudos que não protegem a privacidade e a confidencialidade das informações fornecidas pelos participantes do estudo são suscetíveis de

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produzir resultados de confiabilidade incerta e de possível risco para os entrevistados (que poderiam vir a ser estigmatizados, presos etc.), devido ao descrédito e confiança do usuário para com a equipe de pesquisa e, por conseguinte, fomentar o falseamento de informações sobre o que se é perguntado, por medo ou desconfiança de terem seus dados revelados ou de serem identificados de alguma forma (UNODC, 2004).

Questão igualmente importante é a capacidade de consentir dos voluntários de um estudo. Sobre este ponto, no caso de pesquisas com usuários de droga, algumas questões importantes devem ser consideradas: se a intoxicação aguda deve ser critério de exclusão no estudo (o que poderia diminuir em muito o tamanho amostral a ser obtido), qual seria a melhor forma de avaliar a capacidade de consentir (o bom senso e a experiência clínica do pesquisador ou aplicação de escalas), e se é possível realizar os procedimentos de pesquisa com voluntários sob efeito de algumas substâncias, mas que se apresentem lúcidos (ao menos, no que tange aos procedimentos a serem realizados).

No caso da Pesquisa Nacional do Crack, como o recrutamento de voluntários era realizado nas cenas abertas de uso de drogas, e já era sabido que a maioria dos usuários estaria sob efeito da droga no momento do recrutamento, foram estabelecidos alguns critérios para exclusão de voluntário do estudo, de maneira a garantir a fidedignidade das informações coletadas. Eram excluídos do estudo indivíduos que não conseguiam responder as questões de forma minimamente razoável ou que apresentavam quadros de abstinência grave, com agitação, perturbação psicomotora e/ou sonolência extrema, comum após uso prolongado do crack que prejudicasse o bem-estar do voluntário e a coleta de informações para pesquisa.

O componente que descreveu o perfil dos usuários, na Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack, utilizou o TLS como método de amostragem. Conforme apresentamos no presente capítulo, o TLS exige um mapeamento prévio dos locais de concentração da população alvo, para recrutamento e participação na pesquisa (Fiocruz, 2014). Na época em que o mapeamento foi realizado, no início do ano de 2011, havia um

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clamor social por respostas rápidas frente à então (erroneamente) denominada “epidemia de crack” do Brasil e havia também uma ampla mobilização e cobertura da mídia sobre as ações em torno da temática. Foi neste período que a equipe do projeto vivenciou a todo instante questões éticas complexas, pois a pesquisa precisava “ir para rua” e ao mesmo tempo a pressão para a divulgação da “lista de cenas de uso de crack” eram crescentes (Zeferino, Fermo, Fialho, & Bastos, 2017).

À época, vários meios de comunicação e até mesmo entidades públicas e autoridades policiais e de gestão solicitavam à coordenação do projeto as informações sobre o mapeamento das cenas de uso em todo país. Porém, em consonância com o princípio ético da beneficência e não maleficência, a equipe de pesquisa JAMAIS cedeu a estas solicitações, o que significaria: violação dos preceitos éticos, fim das relações baseadas na confiança mútua entre equipe e potenciais entrevistados, além de utilização de bases de dados oriundas da saúde para subsidiar ações de repressão aos usuários.

Quando teve início a coleta de dados em campo, com a realização das etapas de observação, recrutamento e entrevista, novos desafios foram surgindo. Um dos primeiros desafios encontrados foi em relação a ações de repressão policial nas cenas de uso versus a presença da equipe de pesquisa nestes locais. Muitas das cenas mapeadas também se configuravam como locais de tráfico (principalmente varejista), e na maioria das vezes havia a presença de indivíduos armados, e para coleta dos dados era necessário acessar esses locais, muitas vezes em horários noturnos, o que se traduzia em risco à segurança dos pesquisadores.

As ameaças à segurança pessoal, tanto dos pesquisadores quanto dos voluntários da pesquisa, em cenas de uso de substâncias ilícitas são descritas em diferentes estudos epidemiológicos, mas, principalmente em estudos etnográficos, e se apresentam não só como uma questão ética, em função da possibilidade de colocar em risco a vida das pessoas, mas também como um desafio operacional relacionado à necessidade do cumprimento de determinados procedimentos em função dos métodos de

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amostragem empregados (Librett & Perrone, 2010; Williams, Dunlap, Johnson, & Hamid, 1992; Wright, Klee, & Reid, 1998).

A Pesquisa Nacional do Crack realizou coleta de dados em campo de 2011 (mapeamento) a 2012 (Inquérito epidemiológico). Durante esses três anos, a equipe de pesquisa vivenciou e testemunhou diferentes situações, desde ameaças (por parte de facções criminosas, milícias e esquadrões de policiais), até expulsão da equipe do campo e impossibilidade da conclusão do trabalho em determinados locais.

Além das ações do ponto de vista segurança pública (desde ações policiais corriqueiras até a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora) que interferiram na coleta de dados quase que diariamente, em diferentes municípios de trabalho, também foram desenvolvidas ações de recolhimento compulsório de usuários nas cenas de uso. Desta forma, ainda durante a coleta de dados, em muitos locais ocorreu uma reconfiguração da dinâmica das cenas, com o espalhamento e reagrupamento dos usuários para localidades vizinhas, o que acarretava em uma nova reconfiguração das redes de interação e a abertura de novos espaços de uso (Bastos, 2014).

Do posto de vista metodológico e operacional, isso significa uma redefinição de todos os parâmetros previamente estabelecidos, o que significa muitas vezes perder voluntários em potencial (pois o método adotado só “permite” visitar cenas previamente selecionadas a partir de um mapeamento inicial, que por vezes já não representava mais a realidade local, e desta forma, as novas configurações de cenas, em localidades não mapeadas, ficavam de “fora” da pesquisa). Outro ponto a ressaltar é a possível “perda da confiança” ou “aumento da desconfiança” dos usuários, potenciais voluntários da pesquisa, uma vez que a ação da pesquisa poderia ser confundida ou interpretada como parte de uma ação policial ou de internação compulsória. Todos estes acontecimentos dificultavam (e dificultam) a abordagem dos usuários e o recrutamento para pesquisa (Bastos, 2014).

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Em alguns municípios não foi possível realizar a coleta de dados em algumas cenas previamente mapeadas em função dos conflitos constantes e de ameaça à equipe de pesquisa. Nesses casos, a estratégia metodológica utilizada foi lançar mão de reposições de unidades amostrais, pois excluir unidades amostrais inteiras sem reposição determinaria inferências estatísticas enviesadas.

Quando do início da pesquisa, como exigência da Presidência da Fiocruz em função da preocupação da coordenação do projeto acerca da segurança da equipe em campo, foi realizado um seguro de vida e acidentes pessoais com cobertura para toda a equipe de pesquisa envolvida no projeto (que felizmente não precisou ser utilizado em nenhum momento). A coordenação estabeleceu também um protocolo de segurança com orientações básicas de como entrar e se comportar nas cenas de uso de drogas (o que fazer e principalmente o que NÃO fazer) e como proceder no caso de uma abordagem ou confronto policial no local. Ainda, como alternativa operacional para garantir o acesso às cenas de uso e dar condições mínimas de segurança aos pesquisadores em campo, além de toda a indumentária que identificava os pesquisadores em campo (camisas com a logo da Fiocruz e crachás de identificação), a equipe identificava “articuladores locais” (que podiam ser desde agentes de saúde e sociais, redutores de danos, membros de ONGs, passando por lideranças religiosas e até donos de bar), que fossem reconhecidos e respeitados pelas comunidades locais e que tinham a função de facilitar a entrada da equipe no território e apresentá-los à comunidade.

Além das questões estruturais de violência e confronto encontradas em campo, outras situações sensíveis e delicadas e igualmente preocupantes apareceram com certa frequência. Era frequente a equipe identificar mulheres grávidas, pessoas aparentemente com complicações de saúde e menores de idade em condições sub-humanas nas cenas, e não havia como permanecer alheio a estas situações. O que possibilitou que a equipe conduzisse o trabalho em campo de forma respeitosa e ética, sem “passar por cima” de situações complexas de saúde e sociais, foi a articulação com os serviços de assistência social e de saúde locais.

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Inúmeras vezes a equipe era acompanhada por esses profissionais, o que possibilitava o atendimento aos casos mais graves de forma rápida. Na maioria dos territórios onde a pesquisa esteve, foi possível articular unidades de atenção primária e até mesmo de urgência (como as Upas, para os casos das atividades noturnas), para realização das entrevistas e testagens rápidas. Desta forma, a pesquisa cumpriu também o papel de ser “a porta de entrada” dos usuários a um serviço de saúde, pois na maioria das vezes havia a possibilidade de encaminhamento imediato a estes serviços.

Considerações finaisO presente capítulo apresentou brevemente ao leitor alternativas

metodológicas para realização de pesquisa epidemiológica com populações de difícil acesso/ocultas, especialmente a população de usuários de drogas pesadas, cuja marginalização leva à discriminação e estigmatização, dificultando a sua participação em pesquisas. Muito ainda pode (e deve) ser aprofundando, sobre as potencialidades e limitações de cada método apresentado, e para tanto, o capitulo dispõe de ampla bibliografia, que pode servir como ponto de partida para estudos aprofundados no tema.

O texto também versa sobre aspectos éticos e desafios operacionais de pesquisa epidemiológica de campo, trazendo como contraponto alguns pontos da experiência da Pesquisa Nacional sobre o Uso do Crack.

Como em qualquer pesquisa, além da pergunta à qual se quer responder, para a escolha do método adequado deve-se levar em consideração o processo logístico e operacional necessário para implementação do método, além do tempo disponível para execução do projeto e do orçamento disponível para tal. Cabe ao pesquisador ponderar os recursos disponíveis para fundamentar a escolha do método de pesquisa mais apropriado frente às solicitações do poder público e da sociedade.

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CAPÍTULO 4.2

O “dispositivo do crack”:estratégia, saber e poder

Iara Flor Richwin

A questão do crack, dos usuários e dos espaços de consumo, nos últimos 15 anos, aproximadamente, assumiu uma posição central e eminente no cenário social brasileiro e ganhou um foco de atenção significativo dos meios de comunicação, da ciência, da moral, da religião, da política e do Estado. Além do propagado aumento vertiginoso do consumo de crack, houve uma inquestionável e acentuada ascensão dos discursos sobre o crack (Lancetti, 2015; Rui, 2014), construídos, predominantemente, a partir de um léxico trágico, moral, epidêmico e bélico (Richwin & Celes, 2017).

Emerge, então, a narrativa dominante de uma grave epidemia de crack que assola todo o país e as figuras escandalosas e espetaculares dos usuários, pejorativamente rotulados como noias, cracudos, zumbis. Esse destaque e clamor constituídos em torno da questão do crack produziram efeitos, gestões e intervenções e se manifestam no acionamento e na centralização de recursos, intervenções, políticas públicas, dispositivos políticos e institucionais e diferentes mecanismos assistenciais, repressivos, sanitários, urbanísticos, morais e religiosos em torno do fenômeno do crack (Lancetti, 2015; Rui, 2014).

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Este texto tem o objetivo de tomar a noção foucaultiana de dispositivo para identificar, analisar e discutir essa configuração de diferentes elementos em torno do fenômeno do crack no Brasil e compreender as relações que se estabelecem entre eles, suas funções e efeitos. A partir da perspectiva aberta por Vargas (2001) e Tiburi e Dias (2013), que formularam a ideia de um “dispositivo das drogas”, proponho pensar sobre a constituição e funcionamento de um “dispositivo do crack” na contemporaneidade brasileira. Segundo Foucault, a noção de dispositivo demarca:

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (Foucault, 2016, p. 364).

O que proponho sob a noção de “dispositivo do crack” não corresponde, portanto, a nenhuma medida ou elemento específico, mas à complexa e emaranhada rede que se estabelece entre diferentes elementos. Trata-se de um “novelo ou meada” – como Deleuze (1990) define o dispositivo –, um conjunto multilinear de agenciamentos coletivos que não se fixam de forma exclusiva em nenhuma instância específica, mas que perpassam o campo social através da mediação dos elementos mais diversos (Vargas, 2001).

Sem pretender ser exaustiva em relação a todos os elementos que compõem essa rede, foco meu olhar e análise em dois eixos principais: (1) os discursos, representações e interpretações sobre o crack e os usuários que circulam socialmente de forma predominante; e (2) o campo de intervenções atravessado por paradoxos e disputas terapêuticas e políticas que se conforma em torno do usuário de crack.

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Iara Flor Richwin

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Os discursos, imagens e representações dominantes sobre o crack e os usuários

É notório e central o papel que os meios de comunicação desempenham na construção e disseminação dos significados e discursos dominantes sobre o crack e seus usuários. As narrativas midiáticas constituem o principal agente de produção dos sentidos que circulam socialmente sobre essa droga, influenciando as representações, as identidades, o imaginário social, o debate e inclusive as políticas públicas relacionadas ao crack (Borges & Borges, 2013; Cunda & Silva, 2014; Medeiros, 2015; Rocha & Silva, 2016; Rodrigues, 2016; Romanini & Roso, 2012).

Apesar da enorme exposição da qual o crack desfruta, há muito desconhecimento e distorção em relação ao perfil dos usuários, aos efeitos reais da substância e aos significados, contextos e padrões de uso (Raupp, 2011; Toffoli, 2014). Com relação às propriedades químicas, é veiculada de forma prevalecente a ideia de uma substância suja que não passou pelo processo de refino (Tiburi & Dias, 2013), mas extremamente poderosa, com efeitos rápidos, intensos e “sequestradores” (Nery, Soares, Nuñez, & MacRae, 2013), capaz de provocar fissuras incontroláveis por uma nova tragada e dependências graves a partir de pouquíssimos usos.

Como observado em estudos que se dedicaram à análise do material midiático sobre o crack (Borges & Borges, 2013; Cunda & Silva, 2014; Medeiros, 2015; Rocha & Silva, 2016; Rodrigues, 2016; Romanini & Roso, 2012; Rui, 2014), ele é situado num lugar absoluto de mal contagioso a ser combatido e extirpado e enfatizado como o responsável por inúmeras tragédias individuais, familiares e sociais; por trajetórias de decadência, ruína e fracasso; por perdas materiais, afetivas e morais; pela degradação física e psíquica e pela destruição dos laços sociais e familiares. O crack é frequentemente associado ao flagelo, à violência, à criminalidade, à morte, à periculosidade, à doença e à desordem urbana, e representa a demarcação de “territórios crônicos” de precariedade, caos e periculosidade nas cidades (Medeiros, 2010, 2015; Rodrigues, 2016; Rui, 2014). Em suma, os discursos e interpretações dominantes, sobretudo

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aqueles veiculados pelos meios de comunicação, operam uma demonização do crack, a tal ponto que levam à construção de enunciados como o que ouvi de um paciente de um Caps-AD, em que o crack é concebido como uma substância “feita com a raspa do chifre do diabo”1.

Atrelada à imagem do crack como um mal poderoso, é construída a figura espetacular dos usuários de crack – os “noias”, “noiados”, “cracudos” ou “craqueiros”, como são pejorativamente rotulados –, interpretados unicamente em termos de faltas, falhas ou fraquezas, sejam físicas, morais, psíquicas ou sociais; pela perda do controle, da autonomia individual, do caráter e da “dignidade” e pela completa sujeição aos poderes da droga (Rui, 2014). Os usuários de crack são apresentados pelas interpretações e discursos dominantes como zumbis, mortos-vivos, monstros, doentes, incapazes de pensar ou desejar outra coisa que não o crack, mas capazes de fazer qualquer coisa por ele. Como identificado por Rui (2014) em pesquisa feita sobre o material da imprensa em torno do crack, as notícias relatam que, por causa dele, perde-se o controle e o caráter, a vergonha e a dignidade, até a alma perde-se um pouco (Folha de S. Paulo, 15/01/2005, Cf, Rui, 2014). O crack transforma um “sujeito-homem” em “noia” (Biondi, 2010), em zumbis que perdem qualquer traço de humanidade (Rui, 2014), “defecam na frente de todo mundo; fazem sexo em qualquer lugar. E, se você reclama, atacam de forma repulsiva. Escarram em você, abrem suas feridas, vomitam em você” (Fala de um policial militar na cracolândia de São Paulo, segundo matéria de 26/06/2009, da Folha de S. Paulo. Cf. Rui, 2014).

Rocha e Silva (2016) apontam que a desumanização e a animalização dos usuários constituem as categorias fundamentais que estruturam os discursos mais recorrentes sobre o crack; contudo, nesse processo de animalização, lhes é poupada e preservada uma determinada característica humana: a responsabilidade moral e exclusivamente

__________1. Valença (2013) também identificou construção narrativa semelhante, enunciada por um pastor,

líder de uma comunidade terapêutica.

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individual pelo problema. Como destacado por Rodrigues (2016), a cobertura midiática, salvo raríssimas exceções, vela e escamoteia a relação do problema do crack com a precariedade e vulnerabilidade produzidas pela desigualdade social no Brasil. O fracasso e degradação associados aos “noias” e “cracudos” são interpretados somente em termos de culpa individual, fraqueza, falta de vergonha, de caráter e de vontade, associados aos “superpoderes” do crack. Os usuários de crack são ainda concebidos e representados como seres compulsivos, sujos, perigosos, incapazes para o mercado e para o trabalho. “Lixos e refugos-humanos” que subtraem o espaço urbano e são responsáveis pela deterioração das cidades, constituindo os “antagonistas da ordem social”, o avesso da civilização (Rocha & Silva, 2016; Rodrigues, 2016).

O canal “Quebrando o Tabu”2 reuniu alguns comentários feitos na rede social Facebook que revelam o olhar de repugnância e desumanização lançado aos usuários de crack e ilustram bem as imagens e representações que são construídas, veiculadas e assimiladas de forma dominante, radicalizadas aqui ao extremo da hostilidade, do ódio e do desejo de extermínio:

-“Não tenho paciência pro irmão cracudo, quero que ele morra”.-“Pelo amor joga uma bomba nisso. Muito mais do que cracudos, não produzem nada à sociedade, ainda sujam, roubam e depredam”.-“Aproveita e dá chumbinho pra esses pestes, cambada de vagabundos!!! ZUMBIS!!! Brasil adora alimentar o que não presta. Coitadinho cracudo? Leva um pra casa”.-“Dá logo 1 kg de pedra pra cada um morrer logo. Lixo humano, não produz nada e transforma as ruas em latrinas”.-“Você que é contra a internação de um viciado em crack, leve um noia para a sua casa”.

__________2. https://www.youtube.com/watch?v=810NYv9KPdk Direção e edição do vídeo de Melles & DYG

(2016)

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É certo que o crack apresenta um potencial aditivo e uma competência de danos e desorganização física, psíquica e social consideráveis (MacRae, 2013; Nery et al., 2013). No entanto, para além dos efeitos reais da substância química – que são generalizados e homogeneizados pelos discursos dominantes –, é feita sobre o crack e sobre os usuários uma valoração moral (Rui, 2014), que os aloca não apenas na pior das possibilidades de uso de drogas, mas na pior das possibilidades de existência, que arrisca sequer ganhar o estatuto de “existência humana”. E, como o mostra Rui (2014), essa valoração moral parece se estender e se reproduzir em diversos meios e contextos sociais, em que o crack e a figura do “noia” e do “cracudo” demarcam limites identitários, morais e corporais, estabelecem fronteiras significativas em diferentes grupos sociais e figuram como a “alteridade radical”, marcada pela “categoria da abjeção” (p. 54).

Em alguns aspectos e com roupagens científicas, determinados segmentos da medicina e da psiquiatria tendem a corroborar os discursos midiáticos sobre o crack3, o que atribui força e autoridade científica às abordagens estereotipadas, alarmistas e estigmatizantes e aos discursos eivados de generalizações, homogeneizações e pressupostos morais. É possível afirmar que, de modo geral, fenômeno semelhante se dá no campo da religião, cujas concepções e discursos sobre as drogas e sobre o crack vão endossar e conferir autoridade religiosa às narrativas e representações que circulam de forma predominante sobre a questão.

Todas essas narrativas, discursos e representações sobre o usuário de crack têm o efeito de produzir o pânico moral e social e a ideia de um perigo a combater de forma emergencial. Diante desse quadro, configura-se um “furor intervencionista-bélico” (Amarante, 2015), uma “contrafissura”4 que, conforme destaca Lancetti (2015), operando na __________3. Cumpre ressaltar, contudo, que também há diversos representantes e pesquisadores do campo da

medicina e da psiquiatria que abordam a questão do crack de forma ampla e complexa, levam realmente em consideração os aspectos subjetivos, sociais, culturais e políticos implicados e distanciam-se de uma visão alarmista, reducionista e estigmatizante, focada apenas na psicopatologia ou no determinismo farmacológico da substância.

4. Jogo de palavras feito por Lancetti (2015) com a ideia de que o crack causa uma fissura irrefreável.

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mídia, na política, na clínica e nas subjetividades, consiste nesse desespero, fissura ou afã por resolver de forma imediata e simplificada um problema de tamanha complexidade como o do crack e da vulnerabilidade social que lhe é intrínseca.

O campo de intervenções, atenção e cuidado aos usuários de crack: paradoxos e disputas políticas e terapêuticas

Um dos efeitos da centralidade e do grande clamor em torno do consumo de crack no Brasil foi a aceleração da implantação e efetivação de políticas públicas para os usuários de drogas (Rui, 2014). Diante da ampla exposição midiática sobre o crack e da construção da ideia de uma “urgência a ser enfrentada”, o governo Federal desenvolveu e implantou planos de ação específicos para a área. Em 2009, o Ministério da Saúde lançou o Plano Emergencial de Ampliação ao Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde (Pead – portaria 1.190/2009), em decorrência do cenário epidemiológico que mostrava a expansão do consumo principalmente de álcool e de crack (Brasil, Ministério da Saúde, 2009). De acordo com Teixeira (2015), esse plano já revela que o crack vinha ganhando o foco dos órgãos públicos e sendo considerado como uma droga que demandava atenção e políticas públicas específicas.

Em 2010, por meio do Decreto 7.179/2010 da Presidência da República, instituiu-se o “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas” e, em 2011, foi lançado o programa “Crack, é possível vencer”. Basta atentar para os títulos desses programas e para o destaque especial que passa a ser dado ao crack – no que antes era denominado genericamente como “Drogas” ou “Álcool e outras Drogas” –, para perceber que ele assume um lugar privilegiado nas pautas de políticas públicas.

A análise do programa “Crack, é possível vencer” mostra que ele é permeado pela polaridade repressão/cuidado, segurança pública/ saúde pública, que historicamente atravessa as políticas públicas para usuários de

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drogas, seja na forma do conflito dicotômico ou na tentativa aparentemente paradoxal de amálgama. A partir das diretrizes do eixo Cuidado, o programa preconiza a ampliação e fortalecimento da rede de apoio, atenção e cuidado para os usuários de drogas e familiares, com a multiplicação dos serviços de assistência social e de saúde, como os Caps-AD, os leitos hospitalares, as unidades de acolhimento, vagas em comunidades terapêuticas, serviços da atenção básica e consultórios de rua. Já o eixo Autoridade prevê uma frente de ações voltadas para o combate ao narcotráfico e repressão aos traficantes, e outra frente de policiamento ostensivo nas áreas de concentração de uso de crack e outras drogas, com o objetivo de “recuperação” e “segurança dos espaços” (Brasil, 2011). Sem pressupor de antemão a incompatibilidade entre a repressão/segurança e a assistência/saúde, recorro ao exemplo da emblemática “cracolândia” de São Paulo em que, segundo Clemente (2014), Lancetti (2015) e Rui (2014), essas esferas têm suas relações marcadas por acentuadas tensões, conflitos e desacordos profissionais e políticos e não logram atuar em conjunto.

Os paradoxos e contradições relacionados à questão do uso de crack, contudo, não se limitam a um posicionamento dicotômico entre repressão e saúde, entre o campo jurídico-penal e o campo sanitário. Ao contrário, esses campos parecem mesclar-se e constituir um continuum (Silva, 2014). No Brasil, de acordo com Silva (2014), até o início do século XXI a questão do uso de drogas restringia-se ao campo jurídico-penal, com medidas repressivas e punitivas. Gradativamente, as estratégias de atenção e cuidado, prevenção, tratamento, redução de danos e reinserção social começaram a ganhar maior ênfase no âmbito das políticas públicas e a questão das drogas passou a ser apropriada pela reforma psiquiátrica, que estendeu o modelo fundado no paradigma psicossocial e nos princípios do SUS e da luta antimanicomial também aos usuários de drogas (Silva, 2014).

Todavia, o deslocamento da questão do uso de drogas da esfera jurídico-penal para a esfera sanitária não significou – e não significa –, necessariamente, uma ruptura absoluta com o modelo repressivo e

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punitivo. Segundo Silva (2014), a partir da propagação da narrativa da “epidemia do crack” e do consequente pânico social produzido, mesmo no campo da saúde passaram a ser defendidas de forma mais acentuada modalidades de tratamento repressivas, coercitivas e segregativas, revelando um atravessamento e imiscuição entre o campo jurídico-penal e o campo sanitário, que podem alcançar a indiferenciação. Observa-se aqui o retorno do continuum e cumplicidade entre o tratamento médico e a instituição judiciária já denunciados por Foucault em relação à loucura (Silva, 2014). E cabe lembrar que, no Brasil, o discurso médico e sanitário também esteve na base da proibição das drogas e, portanto, de sua configuração como uma questão de segurança pública. Antes de seu deslocamento ao campo sanitário, o uso de drogas só se tornou uma questão pertinente ao campo jurídico-penal porque pôde ser configurado primeiramente como um problema de saúde e contou com o apoio e agenciamentos das corporações médicas e psiquiátricas à política proibicionista e de guerra às drogas (Lancetti, 2015).

A seguir, analiso a configuração paradoxal do campo de atenção e cuidado aos usuários de crack em que, concomitantemente a um processo colocado em marcha pelo Ministério da Saúde de multiplicação dos Caps-AD e de adoção da estratégia de redução de danos como paradigma da política de saúde sobre drogas, também se multiplicaram as chamadas comunidades terapêuticas, bem como as ações moralizantes e repressivas contra os usuários de crack, como as internações involuntárias e as violentas e humilhantes ações policiais nas cenas abertas de uso.

A estratégia de redução de danos, os Caps-AD e o modo psicossocial de atenção e cuidado em saúde mental

A política oficial do Ministério da Saúde voltada para os usuários de drogas orienta que a oferta de cuidados e os tratamentos devem ser feitos em espaços extra-hospitalares de atenção psicossocial especializada, a partir de estratégias fundamentadas na lógica ampliada de redução de danos e de acordo com os princípios da reforma psiquiátrica (Brasil,

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Ministério da Saúde, 2004). De acordo com a estratégia da redução de danos, os tratamentos não devem estabelecer a abstinência como única meta possível e viável para os usuários e orientam-se pelo princípio da baixa exigência. O trabalho de atenção e cuidado deve se realizar a partir do reconhecimento da singularidade de cada caso, do respeito às diferenças e escolhas individuais e da construção de estratégias conjuntas de diminuição dos danos provocados pelo uso de drogas, mas, principalmente, de defesa e “ampliação” da vida, ressocialização e desenvolvimento da cidadania e da autorregulação e autonomia. Trata-se de uma abordagem “clínico-política” que não se reduz apenas a técnicas de “mudanças comportamentais”, mas que deve, como estratégia, promover a multiplicação das possibilidades de cuidado e tratamento para o uso problemático de drogas, viabilizar o acesso e acolhimento, construir redes e agir no território de modo a aumentar a “superfície de contato” e os pontos de referência e suporte social para os usuários e seus familiares (Brasil, Ministério da Saúde, 2004).

A política sanitária de atenção e cuidado aos usuários de drogas promoveu uma expansão e multiplicação dos Caps-AD, que são descritos como os equipamentos públicos mais especializados para esse acompanhamento e constituem o principal ponto estratégico e articulador da rede de atenção ao usuário de drogas. Os Caps são caracterizados por um modo específico de fazer clínico e de atenção em saúde mental: o modo psicossocial, que surge como oposição ao modo asilar (Costa-Rosa, 2000).

De acordo com Costa-Rosa (2000), o modo psicossocial caracteriza-se pela consideração dos fatores políticos e biopsicosocioculturais como determinantes centrais. É atribuída uma importância decisiva ao sujeito, investe-se fundamentalmente na sua mobilização como fator principal do tratamento e é priorizada a consideração do seu pertencimento a um grupo familiar e social. A desospitalização, a desmedicalização e a implicação subjetiva constituem metas radicais do modo psicossocial de atenção em saúde mental. O ambiente sociocultural é considerado determinante e a instituição deve funcionar como ponto de fala e escuta.

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Ao contrário da supressão dos sintomas como meta final e principal, busca-se promover um reposicionamento do sujeito, uma implicação subjetiva e sociocultural. Opera-se, portanto, uma ampliação do conceito de tratamento e do conjunto de meios a ele dedicados, no sentido de um “verdadeiro exercício estético” em que se visa à experimentação de novas possibilidades de ser. Há, assim, um “deslocamento do polo técnico-cientifico para o polo ético-estético” (Lancetti, citado por Costa Rosa, 2000, p. 145), capaz de promover novas formas de existência e sociabilidade.

As Comunidades TerapêuticasA questão das comunidades terapêuticas (CT) destinadas à

“recuperação” de usuários de drogas no Brasil é bastante complexa e nuançada e toca delicadas e relevantes questões políticas que, no entanto, extrapolam os objetivos deste texto. É impossível generalizar a multiplicidade e heterogeneidade das comunidades terapêuticas existentes atualmente, mas apresento algumas linhas e características gerais que grande parte delas parece compartilhar. Fundamentadas principalmente em pressupostos morais e religiosos, a maioria das comunidades terapêuticas brasileiras são chácaras ou fazendas, situadas em áreas rurais (Ipea, 2016) relativamente afastadas das cidades e lideradas por grupos religiosos (Miranda, 2015).

De modo geral, elas funcionam em regime de vida comunitária e têm como paradigma de cuidado o isolamento e retirada dos usuários de seu espaço de consumo e de relações sociais (em geral, por um período que pode variar de 6 a 12 meses), a recuperação de uma disciplina supostamente perdida pelo consumo de drogas (Rui, 2014), a espiritualidade e o trabalho. O tratamento foca na acentuação dos sofrimentos e aspectos dolorosos da experiência com as drogas, no reconhecimento da perda do controle sobre o uso e no desenvolvimento de uma identidade de “adicto em recuperação” (Rui, 2014).

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A maior parte das CTs compartilha o postulado de que a abstinência é o único objetivo e saída possível para a dependência química, fundamenta-se em preceitos morais e/ou religiosos e defende a ideia de que o uso de drogas é decorrente de uma fraqueza moral e espiritual do indivíduo, que exige a abstinência como “purificação” (Miranda, 2015), tratamentos corretivos e a submissão a um poder superior. De modo geral, a terapêutica das CTs é ancorada em rotinas comunitárias disciplinadas, no exercício do trabalho (denominado “laborterapia”) e no recurso à espiritualidade (Ipea, 2016).

É patente, portanto, que em torno dos usuários de crack conforma-se um campo de ambiguidades e disputas terapêuticas e políticas (Rui, 2014): de um lado, a multiplicação dos Caps e da rede de atenção psicossocial, fundamentados nos princípios da reforma psiquiátrica, no modelo psicossocial de atenção e cuidado e na política ampliada de redução de danos; de outro lado, o modelo asilar e moral, que tem a abstinência como ideal terapêutico e que ancora sua estratégia no isolamento e na tríade trabalho-disciplina-espiritualidade (Ipea, 2016). O que chama a atenção, como destacado por Rui (2014), é que o governo Federal financia ambas as propostas e modelos de atenção e cuidado, destinando maior recurso e investimento às comunidades terapêuticas, embora sua política sanitária seja fundamentada no modelo psicossocial e em propostas de redução de danos.

Portanto, o alarde e o pânico social e moral em torno do crack influenciaram certa configuração das políticas que aponta para o privilégio do investimento nas internações e nos incentivos às CTs, no lugar de ampliar e investir nos Caps-AD, nos centros de convivência e cooperativas de trabalho, nos projetos culturais, nos consultórios de rua, nas estratégias de saúde da família e de redução de danos (Amarante, 2015). A sensação de urgência e de medo causada pela narrativa epidêmica sobre o crack e pela concepção do usuário como um perigo para si mesmo e para a sociedade incentiva e legitima práticas segregacionistas, poupando o discurso médico ou qualquer argumentação elaborada para justificar a internação como base do tratamento (Costa-Rosa, 2011). O

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isolamento e as internações se apresentam então como estratégias centrais, que respondem, a um só tempo, ao argumento da necessidade de “tratamento” dos indivíduos e à demanda de higienização e de segregação desse “perigo” que ronda as cidades (Silva, 2014). Como destacado por Amarante (2015), o “furor intervencionista-bélico” que se conformou em torno da questão do crack tem ameaçado e desrespeitado as propostas de tratamento psicossocial destinadas aos usuários de crack. Ou, nas palavras de Lancetti (2015): “[a reforma psiquiátrica] com mobilização social, participação de usuários e familiares e fundada na utopia de uma sociedade sem manicômios, hoje se vê acuada e confrontada à utopia de uma sociedade sem drogas” (p. 31-32).

Estratégia, saber e poder no dispositivo do crackCabe agora analisar essa rede de discursos, representações, imagens,

políticas públicas, ações e instituições conformada em torno do crack a partir da definição e elaborações de Foucault acerca da noção de dispositivo. Interessa-me buscar apreender os “jogos” que se estabelecem entre esses elementos, seus efeitos recíprocos de “ressonância” ou de “contradição” e as “sobredeterminações funcionais” engendradas a partir de sua configuração enquanto uma rede (Foucault, 2016).

Foucault (2016) define o dispositivo como um tipo de formação que tem como momento essencial de sua gênese um objetivo estratégico dominante, uma certa manipulação e intervenção racional e organizada em determinadas relações de força. E essa função estratégica relaciona-se com a função maior de responder a uma urgência. Na constituição de um dispositivo, é necessário que haja “um perigo a combater, como o de uma epidemia, de uma falta de higiene etc.” (Foucault, 2016, p. 377). Esse foi o caso, segundo Foucault (2016), da constituição do dispositivo médico-legal, em que para a psiquiatria fundar sua intervenção fazendo-se reconhecer como parte da higiene pública, não bastava o fato de ela ter uma doença (a alienação mental) a tratar, mas era necessário também que ela tivesse o perigo da loucura a combater. E, “como demonstrar que a loucura é um

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perigo, senão mostrando que existem casos extremos em que uma loucura (...) pode bruscamente explodir em um crime monstruoso?" (Foucault, 2016, p. 378).

Ao refletirmos sobre a construção e propagação massiva do discurso da “epidemia do crack” na cena social brasileira, torna-se nitidamente identificável essa dimensão estratégica do dispositivo de fazer face a uma urgência, a um perigo. Como explicitado, tanto os meios de comunicação, quanto as campanhas de conscientização, exploram de forma extrema a ideia de uma epidemia incontrolável do uso de uma substância assustadora, que não apenas destrói aquele que a consome, mas constitui um grande risco e perigo para a sociedade como um todo. O crack pode ser considerado como a droga mais ressaltada como ameaça pública, como perigo à ordem social, configurando, assim, a urgência e o pânico social e moral, o perigo a combater, o inimigo a enfrentar, que fundamentam e condicionam a constituição das estratégias e mecanismos que formam o “dispositivo do crack”. Essa construção impregnou-se de forma significativa nas políticas oficiais relacionadas ao crack, cujos títulos carregam explicitamente o posicionamento de combate e guerra (Amarante, 2015): “Crack: é possível vencer”; “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack”.

Ademais de ser uma rede de elementos heterogêneos, com uma função estratégica e concreta, é possível depreender três dimensões principais distinguidas por Foucault em relação aos dispositivos: o saber, o poder e a subjetivação (Deleuze, 1990). Essas três grandes instâncias não possuem contornos definitivos, rígidos e estanques, mas constituem cadeias de variáveis relacionadas entre si (Deleuze, 1990), que se imbricam e se interpenetram. Neste texto, analiso de forma conjunta as dimensões do saber e do poder5 em relação ao dispositivo do crack, pois são dimensões que se mostram bastante intrincadas.__________5. Ressalto que a dimensão de subjetivação do dispositivo do crack – que não foi examinada neste

texto, mas foi abordada na tese de doutorado que lhe deu origem –, também instaura um campo fértil de reflexão e análise, assim como as dimensões do poder e do saber. Como pretendo desenvolver em trabalhos futuros, a dimensão de subjetivação apresenta importantes ressonâncias e grande potência para o trabalho clínico com usuários de crack, ao possibilitar uma articulação do campo sociopolítico ao campo subjetivo e permitir compreender os efeitos e incidências do dispositivo do crack sobre a subjetividade dos usuários.

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Segundo Foucault (2016), um dispositivo sempre se desenvolve em campos de força e relações de poder e, como tal, resulta do cruzamento entre relações de poder e de saber. Portanto, ele está sempre inscrito numa relação de poder e sempre ligado a configurações de saber que dele nascem, mas que também o condicionam. “É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (Foucault, 2016, p. 367). Esse entrecruzamento e cossustentação entre relações de saber e poder mostra-se de forma evidente e inequívoca no fenômeno do crack na contemporaneidade brasileira, em que determinados saberes e “verdades” construídos sobre o crack são eleitos para regular as concepções e comportamentos em torno dele e justificar os mecanismos, estratégias e aparatos acionados. Os dispositivos são “máquinas de fazer ver e de fazer falar” que determinam curvas de visibilidade e de enunciação (Deleuze, 1990). Enquanto alçam à luz e à visibilidade determinadas forças, características e aspectos, produzem a invisibilidade e o silenciamento de outros, determinando regimes de verdade e de poder.

Tomemos, como exemplo, as ações contundentes e violentas como as que ocorreram na chamada “cracolândia de São Paulo” em janeiro de 2012, em que a polícia, com a intenção de eliminar os usuários de crack daquele território, ocupou militarmente o espaço, prendeu e coagiu centenas de usuários a demandarem internação “voluntária”, impingindo-lhes declaradamente dor e sofrimento e tocando-os como gado para que andassem em “procissão” e sem rumo (Lancetti, 2015; Rocha & Silva, 2016; Rui, 2014; Tiburi & Dias, 2013). Ou, ainda, a enorme, truculenta e espetacularizada operação policial que tomou o mesmo espaço em maio de 2017, demoliu imóveis ainda ocupados e expulsou de forma violenta as pessoas do local, sem proporcionar abrigo alternativo e coagindo-os à errância.6

Para que essas ações sejam justificáveis, bem como outras ações violentas que se dão nos espaços públicos de consumo de crack – tentativas de internações involuntárias e compulsórias ou, ainda, “expedientes antinoia”,__________6. http://coletivodar.org/cracolandia-acabou-5-perguntas-para-entender-questao/

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como os chuveiros desenvolvidos na cracolândia paulistana que, instalados nas marquises dos prédios, molham a calçada para impedir que ali se instalem os “craqueiros” com seus “hábitos imorais” (Rui, 2014) –, faz-se necessária uma determinada “verdade” sobre o crack. E essa narrativa que o configura como droga monstruosa e sequestradora, que transforma seus usuários em zumbis e subtrai-lhes qualquer traço de humanidade serve bem para legitimar esse tipo de ações e estratégias “não-humanas”, relacionadas não com tentativas de tratar ou cuidar dos usuários de crack, mas sim com posturas repressivas, moralistas e higienistas, com formas de controle urbano, com interesses financeiros, políticos e eleitorais.

Além de justificar e fundamentar práticas repressivas e violentas, essa verdade construída sobre o crack e os discursos alarmistas e demonizadores parecem relacionar-se também com outras estratégias e relações de poder: tal como aventado pelo estudo realizado pela Senad (Garcia, 2016), o pânico social criado em torno do crack contribui também para o processo de naturalização da desigualdade social no Brasil, ao deslocar para uma substância química toda a complexidade da questão e escamotear os graves problemas de natureza social, política e cultural intimamente implicados.

Além disso, cabe traçar um paralelo com a pretensa “epidemia” de crack que atingiu os Estados Unidos da América do final da década de 1980 até meados da década de 1990. A construção e difusão de mitos sobre a destrutividade do crack, sua demonização e os consequentes efeitos de pânico social levaram à adoção de medidas legais e punitivas muito mais rigorosas e severas para os usuários de crack do que para usuários de outras drogas ilícitas (Garcia, 2016). Ocorre que o uso de crack nos Estados Unidos foi muito maior entre negros e latinos pobres do que entre brancos, o que levou autores como Bourgois (2013) e Hart (2014) a concluírem que a política adotada nos EUA com relação ao crack, de fundo acentuadamente racista, contribuiu para criminalizar a pobreza e encarcerar milhares de jovens negros e, ainda, como apontado por Garcia (2016), agravou o preconceito contra esse grupo, ao associá-lo com uma droga demonizada pela sociedade. Nesse sentido e diante do contexto de proibicionismo e de uma população carcerária brasileira majoritariamente negra (Brasil, Ministério da Justiça, 2014), cabe interrogar também em que medida a demonização do crack e o

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pânico social e moral em torno dessa droga se relacionam com a criminalização, marginalização e encarceramento da população negra e pobre na sociedade brasileira contemporânea.

O discurso de intolerância, combate e repressão ao crack é usado também como legitimação da intolerância, repressão e gestão policial e judiciária da pobreza e do segmento da população mais precariamente inserido na organização social (moradores de rua, usuários de drogas, “pequenos ladrões”), interpretado como lixo e refugo humano, imprestável para a sociedade (Rodrigues, 2016). E além de se relacionar com a desigualdade social, o dispositivo das drogas, como apontado por Tiburi e Dias (2013), se articula também com outra forma de desigualdade, “aquela que está no íntimo da cultura, a mesma que produz o racismo, o machismo, a homofobia, os bandidos de um modo geral” (p. 106).

É necessário lembrar e ressaltar que o “dispositivo do crack” e seus efeitos não se relacionam apenas com medidas inequivocamente repressivas e violentas, com mecanismos de coação ou estratégias de higienização. Como explicitado anteriormente, a centralidade e hipervisibilidade do crack também impulsionaram e multiplicaram as políticas de saúde pública e as estratégias e serviços de atenção e cuidado para os usuários de drogas e provocaram o surgimento de disputas sobre os modelos de tratamento e intervenção, acirraram os debates sobre as internações involuntária e compulsória e as querelas sobre os investimentos públicos em comunidades terapêuticas (Rui, 2014). Nesse sentido, há de se reconhecer, como sugerido por Rui (2014), que a ampla exposição em torno do crack teve certa positividade, pois produziu política. O que chama a atenção, portanto, é que a questão do crack está no cerne de uma disputa sobre a verdade7, atrelada de forma imbricada a uma disputa pelo poder, um conferindo ao outro sustentação e densidade8.__________7. Como também destacado por Tiburi e Dias (2013) em relação às drogas em geral.8. Isso se revela de forma paroxística no controverso terreno da cracolândia de São Paulo, em que

coexistem, intimamente e de forma contenciosa, estratégias de repressão e vigilância e estratégias de cuidado e assistência. Mesmo se olharmos somente para o lado do cuidado e assistência, ele não deixa de ser conflituoso e permeado por confrontos e litígios, que alcançaram inclusive a polarização ideológica entre dois partidos que tomaram o crack como tema importante (Rocha & Silva, 2016). Assim, o programa estadual “Recomeço” (PSDB) disputou com o programa municipal “De Braços Abertos” (PT), ao longo da gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, a verdade sobre os modelos de conceber e intervir sobre a questão do crack, cada qual fundado em determinados paradigmas de atenção e cuidado, que divergiam entre si.

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O panorama mais amplo e contextual aberto pela noção foucaultiana de biopolítica auxilia-nos a compreender esses complexos arranjos relacionados ao “dispositivo do crack” e a frequente imiscuição entre política de saúde e de assistência e ações repressivas, punitivas, higienistas e policiais. A biopolítica pode ser definida como a “crescente implicação da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos do poder” (Agamben, 2010, p. 116). Essa aliança entre vida e política, essa “tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo – uma espécie de estatização do biológico” (Foucault, 2005, p. 286) –, estabelece a continuidade e o aprimoramento da vida, a otimização das condições de saúde e a longevidade dos indivíduos e das populações como valores políticos (Tiburi & Dias, 2013), objetos do saber e alvos dos mecanismos, estratégias e técnicas do poder.

Contudo, o biopoder pode gerar tanto manifestações positivas quanto sujeições abusivas e violentas (Bourgois, 2013). Os procedimentos relativos à vida dos indivíduos, ao seu corpo e à sua saúde também podem se configurar como mecanismos de higienização, repressão e controle social. Como apontado por Bourgois (2013), se é possível construir uma visão dos efeitos positivos do biopoder, que busca produzir cidadãos sãos, vacinados, que se exercitam e mantêm belos corpos livres do colesterol, é necessário enxergar também que, para um determinado segmento da sociedade, impõe-se uma relação eminentemente negativa com o biopoder, que é abusivo, encarcera, criminaliza, exclui e marginaliza populações estruturalmente vulneráveis.

Considerações FinaisPara concluir, considero relevante e profícuo estabelecer uma

aproximação desse cerrado entrecruzamento e cossustentação entre as relações de saber e de poder revelado pela noção de “dispositivo do crack” daquilo que Butler (2016) descreve como “enquadramento”. O enquadramento é entendido por Butler (2016) como “molduras”, categorias perceptuais e normas que atuam para diferenciar as vidas por

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meio da maneira como as apresentam, determinando quais sujeitos são reconhecíveis como sujeitos, quais vidas são reconhecidas como vida legítima e valiosa, digna de luto e lamentação e, portanto, digna de cuidado e proteção.

Destaca-se, assim, que as construções narrativas que compõem o dispositivo do crack, ao representarem os usuários como mortos-vivos, zumbis, refugo humano, monstros que perderam os principais traços de humanidade, criam um enquadramento sobre esses sujeitos como vidas não facilmente reconhecíveis como vidas legítimas e, por conseguinte, como vidas não reconhecíveis como dignas de luto, lamentação, cuidado e proteção, como bem o demonstram inúmeras manifestações e comentários sobre os usuários de crack, carregados de hostilidade, ódio, repugnância, medo e, no limite, desejos de extermínio.

A análise aqui empreendida sobre o dispositivo do crack revela que os enquadramentos por ele produzidos, ao engendrarem um processo de esvaziamento da dimensão humana dos usuários e de deslegitimação de suas vidas, interferem diretamente no campo de intervenções, estratégias, atenção e cuidado, justificando e legitimando intervenções igualmente desumanas, mecanismos repressivos, moralistas, segregacionistas e higienistas. Articulados a isso, os outros efeitos destacados como resultantes desses enquadramentos construídos em torno do crack – a contribuição com a naturalização da desigualdade social no Brasil (Garcia, 2016) e a legitimação da intolerância, da repressão, da criminalização e da gestão policial e judiciária da população negra e pobre no Brasil (Rodrigues, 2016) – revelam, como aponta Butler (2016), que “a percepção e a política são apenas duas modalidades do mesmo processo por meio do qual o estatuto ontológico de uma determinada população vê-se comprometido e suspenso” (p. 51).

Impõe-se, portanto, uma obrigação ética e política de reformulação das condições de visibilidade e dos enquadramentos que são feitos sobre os usuários de crack, que possibilitem restituir sua dimensão humana, seu reconhecimento como sujeitos e como vidas legítimas e valiosas, dignas de cuidado, proteção e das condições sociais e políticas que tornam uma

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“vida vivível” (Butler, 2016). Impõe-se uma reformulação da maneira como os usuários de crack são narrados e apresentados – e, portanto, percebidos e reconhecidos – que permitam repensar o campo sociopolítico no qual se inscrevem e, sobretudo, as políticas públicas, as estratégias e os mecanismos acionados para lidar com a questão.

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C A P Í T U L O 4 . 3

Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com

o tráfico de drogas e sua trajetória no Sistema de Garantia de Direitos

Carla DalboscoSandra Eni Fernandes Nunes Pereira

Olga Maria Pimentel Jacobina

IntroduçãoA incapacidade de controlar a circulação de drogas ilegais e o

contrabando de armas consiste em um relevante problema global na atualidade. Identifica-se a existência de um forte aparato criminal, montado para garantir que essas substâncias circulem em diferentes regiões com impressionante logística e eficiência. Segundo Zaluar (2007), em países como o Brasil, a rede do narcotráfico e seu poder econômico é uma das principais causas relacionadas à emergência da violência que assola os territórios urbanos.

Nessa esteira, a mortalidade de adolescentes e jovens associada à violência do tráfico de drogas constitui um grave problema de saúde pública e representa importante demanda para as políticas protetivas. Nas últimas décadas, pesquisadores e a sociedade em geral têm acompanhado de forma atônita o crescimento exponencial nos índices de mortalidade por causas externas, principalmente, entre homens na faixa dos 15 aos 29 anos. Entre 1980 e 2014, o registro de homicídios por arma de fogo entre jovens cresceu 699,5% no país, pulando de 3.159 em 1980, para 25.255 em 2014. Porém, a escalada da violência começa antes, aos 13 anos de idade, quando as taxas indicam uma espiral crescente, passando de 1,1 (12

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anos) para 4,0 (13 anos) mortes a cada 100 mil jovens. A partir daí, a incidência da letalidade cresce de forma contínua até os 20 anos de idade (67,4/100 mil) (Waiselfisz, 2016).

De acordo com o Mapa da Violência 2016 (Waiselfisz, 2016), neste mesmo período temporal, 94,4% das vítimas de armas de fogo no país eram do sexo masculino e morreram 2,6 vezes mais negros do que brancos. Em 2014, os jovens de 15 a 29 anos representavam, aproximadamente, 26% da população, mas essa faixa etária compôs 60% das vítimas. Assim, quando comparados à população em geral, os dados possibilitam afirmar que a principal vítima da violência homicida no Brasil realmente é a juventude.

Zaluar (2007) refere que há um enigma no entendimento da violência brutal que vitimiza homens jovens no Brasil, pois este fenômeno não tem aumento correspondente entre mulheres em geral e homens de outra faixa etária. Para a autora, entre os fatores associados, destaca-se a questão da exclusão social, além do crime organizado em torno de drogas e armas. Em segundo lugar, o país enfrenta uma inércia institucional ligada a violações dos direitos civis, corrupção institucional e a ineficiência do sistema de justiça, que cria “ilhas de impunidade”. Um terceiro aspecto a ser levado em conta, são os processos microssociais que envolvem a construção subjetiva de uma masculinidade pautada na demonstração de força.

Devido à sua cronicidade, uma condição de violência pode ser incorporada à cultura de tal forma que adquire contornos de invisibilidade para os que vivem naquele contexto específico. Um alto nível de violência constitui um aspecto habitual da vida de muitos grupos sociais, permeando a relação entre seus membros e ditando comportamentos e valores pelos quais se afirmam (Figueiredo, 1998; Michaud, 2001). Isso ajuda a explicar por que na população juvenil, sobretudo ao pensarmos em adolescentes que cumprem medida socioeducativa, tantas vezes parece não haver uma fronteira rígida: os mesmos jovens destacam-se tanto como vítimas, quanto como autores de crimes violentos.

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O cenário de falta de solução para problemas estruturais e básicos, somado à manutenção de condições e modos de vida inadequados, enfatiza a importância de ações intersetoriais para a prevenção e a formulação de políticas (Barreto & Carmo, 2007). Todavia, mais importante que entender por que este fenômeno ocorre, é questionar por que o país tem falhado tanto em políticas públicas que deem conta de estancar o problema. Há uma culpabilização das vítimas que deveriam ser foco das ações de proteção. A violência é naturalizada e é como se esses jovens já tivessem seus destinos traçados. A visibilidade do problema só fica evidente a partir da prática de algum ato infracional, em que o jovem passa de vítima a algoz, reacendendo a discussão sobre a diminuição da maioridade penal como solução para o enfrentamento da violência. Da mesma forma, pouco se tem estudado sobre as ressonâncias geradas nas famílias desses jovens em decorrência da perda, as quais, muitas vezes, são afetadas de modo irreversível.

Este texto tem por objetivo apresentar alguns elementos relacionados a essa discussão. Para tal, partiremos da trajetória dos adolescentes em conflito com a lei no Sistema de Garantia de Direitos (SGD). Após, serão apresentados aspectos do desenvolvimento desses adolescentes e da configuração de suas redes de inserção, com destaque para a rede do narcotráfico, que ocupa o vazio deixado pelo sistema formal de proteção e pela família. Por fim, serão trazidas algumas reflexões sobre o impacto gerado nas famílias pelo ciclo de sofrimento e violência.

Sistema de Garantia de DireitosCom a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA

(1990) temos a regulação de um sistema de garantia do gozo dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, sem prejuízo à proteção integral, por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A esse preceito se dá o nome de Sistema de Garantia de

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Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

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Direitos (SGD) que, conforme sinaliza Garcia (1999), apoia-se em três grandes eixos:

Promoção – delibera e formula a política de atendimento de direitos, priorizando e qualificando como direito o atendimento das necessidades básicas da criança e do adolescente, por meio das demais políticas públicas; Defesa – responsabiliza o Estado, a Sociedade e a família pelo não-atendimento, atendimento irregular ou violação dos direitos individuais ou coletivos das crianças e adolescentes. Assegura a exigibilidade dos direitos;Controle Social – se reporta à vigilância do cumprimento dos preceitos legais e constitucionais e infra-constitucionais, ao controle externo não-institucional da ação do Poder Público (Estado-governo e Sociedade civil organizada).

Garcia (1999) indica que o SGD se caracteriza por uma interação de espaços, instrumentos e atores no interior de cada um dos eixos, e por uma interação complementar e retroalimentadora entre eles, de modo a garantir a Proteção Integral à criança e ao adolescente. Dessa forma, a partir da Convenção da ONU sobre Direitos da Criança, em 1989, formou-se um quadro jurídico ideal que norteia o atendimento à criança e ao adolescente (Neto, 1999).

No entanto, os resultados de uma pesquisa sobre a trajetória no SGD de adolescentes que cometeram atos infracionais (Jacobina, 2011) mostram uma sistemática desarticulação desse Sistema de Proteção. Os registros apontam que os atendimentos realizados não trazem resultados práticos para a superação da situação de vulnerabilidade apresentada, antes que o adolescente cometesse algum ato infracional. Via de regra, a família tem que dar conta do adolescente sozinha. A comunicação entre diferentes instituições pelas quais os adolescentes e familiares passam é unilateral e morosa, comprometendo o acompanhamento e podendo agravar a situação de vulnerabilidade da família. Quando comparadas às

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medidas socioeducativas (artigo 112), as medidas de proteção previstas no ECA (artigo 101) recebem uma fiscalização episódica e isolada, levando o adolescente à maior vulnerabilidade; e as medidas socioeducativas têm um caráter mais regulatório do que propriamente socioeducativo.

Percebe-se que quando há ação e/ou intervenção no sentido de executar as medidas, seja de proteção ou socioeducativa, estas são fragmentadas, descoordenadas. Nesse sentido, Pakman (1999) afirma que a prática profissional baseada nesse paradigma que fragmenta é assistêmica, desencarnada e não-reflexiva, criando um mundo estéril, disfarçado de pragmático. A resposta dada pelo Estado parece não ter relação com os pedidos de ajuda realizados pelas famílias com adolescentes em situação de vulnerabilidade e que cometeram algum ato infracional. Isso nos leva a pensar que a resposta do Estado está longe de ser a que as famílias precisam para se tornarem sujeitos de sua própria história.

Dessa forma, compreendemos que, enquanto a demanda desse adolescente e dessa família não é compreendida e apreendida de fato pelo Sistema de Garantia de Direitos, as famílias ficam em um completo desamparo, tendo que frequentemente ser devassadas para receber alguma ajuda que, por via de regra, não tem desdobramento prático de superação da situação apresentada inicialmente. E, ainda mais grave, é a situação dos adolescentes que, quando não absorvidos pelo sistema socioeducativo, ficam ainda mais vulneráveis ao grau extremo de exclusão, ou seja, ao extermínio (Santos, 2010).

Waiselfisz (2015) complementa essa posição ao dizer que, diariamente, temos acesso a notícias relacionadas a graves violações praticadas por pessoas ou instituições que deveriam ter por missão zelar pela vida e pela integridade de crianças e adolescentes. Isso mostra que de nada adianta a existência de um aparato de estatutos, leis e resoluções visando à garantia de direitos e a proteção desse público, se os mesmos não forem implementados de forma adequada. Atualmente, o Brasil está no rol de países que mais matam a sua juventude, ocupando um nada honroso terceiro lugar.

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Recorte específico sobre a mortalidade de adolescentes de 16 a 17 anos por causas violentas mostra que são eles que lideram as estatísticas, representando quase metade das causas de mortalidade na faixa etária (43,1% e 48,2% respectivamente). Só em 2013, foram cerca de 10,3 adolescentes assassinados a cada dia. O perfil desse grupo mostra que 93% do total de vítimas naquele ano eram do sexo masculino e a taxa de adolescentes negros assassinados foi de 66,3 contra 24,2 de brancos (a cada 100 mil habitantes). Isso significa que, proporcionalmente, morreram quase três vezes mais negros que brancos. Em relação à escolaridade, 83,7% tinha até sete anos de estudo, o que mostra um desempenho significativamente menor que o conjunto da população nessa mesma faixa etária (Waiselfisz, 2015).

Do ponto de vista de saúde, esses dados acendem um alerta em vários níveis. A situação de pobreza e carências em que se encontra boa parte da população brasileira, a falta de recursos considerados imprescindíveis ao bom desenvolvimento físico e mental, juntamente com a urbanização acelerada sem adequada infraestrutura (saneamento, habitação, educação), entre outros, implica em maiores custos para o sistema de saúde. Sobretudo, é preciso atuar especificamente em prol da saúde da população negra, que apresenta níveis de saúde abaixo dos observados na população em geral (Barreto & Carmo, 2007).

Para agravar ainda mais o quadro, observa-se por parte da sociedade um sentimento crescente de insegurança e medo diante da ocorrência de crimes. Esse cenário conduz ao desejo pelo aumento de punições mais rigorosas para a chamada delinquência juvenil. Adorno (1998) questiona por que se deve considerar que reações punitivas seriam mais adequadas do que respostas não punitivas para os problemas sociais:

Nas acres crônicas da insegurança e do medo do crime, nos fatos e acontecimentos que sugerem a fragilidade do Estado em velar pela segurança dos cidadãos e proteger-lhes os bens, materiais e simbólicos, nos cenários e horizontes reveladores dos confrontos entre defensores e opositores dos direitos humanos, mesmo para aqueles encarcerados, julgados e condenados pela justiça criminal, tudo

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converge para um único e mesmo propósito: o de punir mais, com maior eficiência e maior exemplaridade (Adorno, 1998, p. 33).

De acordo com Feffermann (2013), as ofertas do Estado para jovens que vivem nas periferias das grandes cidades são o encarceramento e a execução sumária. Fica evidente que, onde as redes de proteção falham, é criado um cenário propício para o aliciamento de jovens pelo narcotráfico.

O tráfico de drogas como rede de inserçãoO tráfico de drogas possui uma grande parcela de responsabilidade

no crescimento da criminalidade e violência no Brasil, à medida que desafia autoridades, corrompe a força policial, mas principalmente, controla a população de muitas comunidades (Carreteiro, 2002; Silva & Urani, 2002).

Segundo Zaluar (2007), o estilo de sociedade baseada no consumo massivo adotado pelo país estimula valores ferozmente individualistas e também favorece a ocorrência de crimes contra a propriedade e contra a vida. Na esteira da miragem de “fazer dinheiro fácil”, o tráfico de drogas entrou como uma tendência que integra o desenvolvimento social e econômico.

Adorno (1998) completa essa visão ao dizer que, na contemporaneidade, o narcotráfico articula um conjunto diversificado de atividades e operações, que vão desde a produção e a circulação, até a distribuição e o consumo. Pelo seu caráter ilícito, essa atividade afeta o tecido social e mobiliza uma “economia subterrânea”, contando com uma ampla rede de colaboradores. Muitos jovens são recrutados na condição de trabalhadores assalariados, rompendo com a tradicional distinção entre trabalho e delinquência, pois o crime é visto como um negócio. Porém, longe de criar uma rede de solidariedade, essa carreira é movida pela competitividade, desconfiança e individualismo exacerbado. A ocorrência de guerra entre quadrilhas faz com que esses jovens, desde cedo, sejam socializados para lidar com a morte.

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Nesse sentido, seria, de um lado, importante compreender que há uma relação entre a situação de pobreza, a condição de exclusão social, a formação de identidade e a vulnerabilidade às condutas de risco (como o envolvimento com drogas – seja pelo consumo como pela inserção no tráfico – e outras práticas infracionais). Por outro lado, e ao mesmo tempo, faz-se também importante examinar a função dessas condutas de risco em tal contexto (Sudbrack, 1998).

Vivemos hoje em uma sociedade em que os instrumentos tradicionais de socialização e os porta-vozes privilegiados de transmissão dos valores a serem seguidos (principalmente a família e a escola) mudaram ou tiveram sua força e sua eficácia diminuída. E as dificuldades inerentes ao processo de busca pela autonomia dos adolescentes são maiores quando a função de autoridade não está sendo exercida de forma plena e não existem adultos que possam proporcionar essa assistência.

Se os adolescentes não encontram nas redes tradicionais de socialização (família e escola) as referências que necessitam, passam a buscá-las em outros contextos. E essa busca de figuras alternativas de referência sólida de autoridade pode representar fator de risco para o envolvimento com drogas e a sua inserção no tráfico. Nesse contexto, a transgressão pode surgir como um pedido de ajuda do jovem diante da fragilidade dos seus vínculos. Ela remete o adolescente à busca da Lei, à busca de uma autoridade “sólida”, firme, consistente, num movimento denominado “da falta do pai à busca de lei” (Sudbrack, 1987).

Nesse momento de vulnerabilidade, o adolescente pode passar a transitar por outros contextos grupais, como as gangues, onde ele acredita conseguir enfrentar o mal-estar gerado pelas situações adversas. Mas esses grupos não são grupos sólidos de pertença, mas “pseudo-grupos”, pois não se firmam, representam apenas uma transição; surgem e acabam com uma rapidez voraz, com relações bastante instáveis. Esses grupos propiciam a internalização do ódio e do confronto como forma de lidar com sua condição de desqualificação, marginalidade ou exclusão, exercendo forte influência sobre sua construção identitária (Pereira, 2009).

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O adolescente luta para sobreviver aos impasses que o impossibilitam de pertencer aos contextos formais de socialização. Tanto na família, como na escola e entre pares, à medida que seus esforços em pertencer lhe são negados, aumentam os sentimentos de frustração, ódio e revolta, impulsionando-o à internalização de uma cultura de violência, destruição do outro e de si mesmo na busca pela sobrevivência.

Diante da autoridade inconsistente e fragilizada na vida do adolescente, e de uma afiliação social interrompida nos grupos construtivos entre pares, podemos pensar que a inserção deste no tráfico de drogas representa a sua luta para sobreviver ao sofrimento causado pelas dificuldades relacionais, sociais, econômicas e políticas que experimenta no dia a dia, além de ser a única saída encontrada por ele para sua construção identitária – possibilitando-lhe pertencer – buscando novas formas de filiação e afiliação social (Pereira, 2009).

No entanto, a vinculação com outros adolescentes e jovens envolvidos com o tráfico ou com os chefes do tráfico implica uma trama relacional paradoxal que, ao mesmo tempo em que pode vir a satisfazer as necessidades identitárias e de pertença, é o fator de maior risco e de exclusão, agindo perversamente contra o adolescente.

Quando se pergunta aos adolescentes por que entram para o tráfico de drogas, é comum apontarem a questão da condição socioeconômica; o status social e poder de sedução (mulheres, fama e ibope) que o tráfico lhes confere; o fato de conviverem com pessoas nele já inseridas, que influenciam outros a entrarem; a falta de segurança que sentem; a inevitável humilhação que sofrem por parte daqueles que deveriam exercer a função de autoridade, segurança e proteção na comunidade (família, escola, Estado, Segurança Pública), o que os deixa frustrados e desiludidos; e a própria questão do consumo das drogas: vendê-las para consumi-las. Além disso, também é comum encontrarmos nos relatos dos adolescentes que, quando encontram emprego no mercado de trabalho formal, sentem-se explorados, tratados de forma indigna, trabalhando mais de 12 horas por dia e ganhando muito pouco. Na verdade, eles relatam uma sobreposição de situações de vulnerabilidade e fragilidade de

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vinculação afetiva que vivenciam, das quais o tráfico tira proveito (Pereira, 2009).

Em outras palavras, associar-se ao tráfico traz uma segurança adicional. No imaginário desse grupo, as armas de fogo oferecem proteção, e o cometimento de crimes para obter mais dinheiro e mais armas gera um status dentro do grupo, impondo respeito e admiração. Há um culto à virilidade e à exibição violenta de poder, o que certamente atrai o envolvimento de muitos adolescentes, que veem sua atuação como “soldado” da facção como uma atividade sedutora. Não se pode esquecer que esses jovens também são vulneráveis devido a outros fatores que dificultam sua inserção na sociedade, tais como: o contexto de pobreza e urbanização deficitária, sistema educacional ineficiente, falta de formação profissional e diminuição de oportunidades de emprego, o que revela o fenômeno da violência como um fenômeno multidimensional (Zaluar, 2007, 2004).

É importante ressaltar, ainda, nesse processo de inserção do adolescente no tráfico, o desvio da função de regulação e controle social, isto é, de autoridade de outra instituição importante no processo de construção identitária do adolescente em contexto de vulnerabilidade social: a polícia. Aumenta, a cada dia, a insegurança dos adolescentes na comunidade, diante da falta do exercício de proteção e de autoridade da polícia. Os adolescentes se tornam invisíveis aos olhos dela e percebem que as funções de proteção e controle social, não advindas das instituições responsáveis, como a família, a escola, o Sistema de Garantia de Direitos (já abordadas anteriormente), e a Segurança Pública ficam a cargo deles mesmos, pois precisam garantir sua sobrevivência. A sociedade também reforça a invisibilidade do adolescente quando exige a violência policial como mecanismo legítimo de intermediação das relações sociais (Pereira, 2009).

A polícia deixa de exercer sua função de segurança e proteção para com o adolescente, para desempenhar o controle, o poder e a ameaça. Desenvolve um olhar estigmatizante sobre o adolescente, reproduzindo a

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ideia de que a pobreza está diretamente relacionada à sua criminalidade, inferioridade e periculosidade.

O adolescente, abandonado à própria sorte, desenvolve, por um lado, a cultura do medo, tendo que conviver diariamente com a presença e a força do tráfico na periferia das cidades, sem ter como se defender senão por si mesmo. Por outro lado, soma-se à cultura do medo, a cultura do ódio, regida pelo sentimento de injustiça. Se não encontra funções de proteção e autoridade na família, na escola ou na Segurança Pública, busca fazer “justiça com as próprias mãos”. Esse sentimento de ódio é sustentado pelo tráfico, que se torna, então, o vingador da comunidade (Pereira, 2009).

Luto SolitárioNa esteira dessas falhas em diversos níveis do sistema de proteção, a

sensação de “falta de justiça” vivida pelas famílias que perdem filhos por situação de violência é real e está atrelada ao grau de impunidade existente no Brasil. É sabido que uma porcentagem alta dos homicídios que ocorrem nas periferias não está sujeita à investigação policial e seus autores nunca são identificados (Zaluar, 2007). A violência e as mortes da periferia são invisíveis, silenciosas, passam despercebidas em nossa sociedade e, em sua maioria, não chegam a ganhar um espaço que dimensione seu grau de complexidade. Soares, Bill e Athayde (2005) são duros ao falar que “cadáveres de rapazes empilhados são o lixo a varrer para baixo do tapete da consciência nacional: alguns traficantes a menos; vida que segue; eugenia avança.” (p. 93).

Por outro lado, é sabido que as mudanças que incidem na dinâmica familiar afetam o desenvolvimento de crianças e adolescentes, mas há carência de maior produção sobre as ressonâncias geradas nas famílias desses jovens em decorrência da perda violenta. É na família que nascem e se desenvolvem os afetos, mas é nela também podem aparecer conflitos, sofrimento, injustiça e mesmo violência, deixando os sujeitos mais vulneráveis. A ocorrência da violência se dá primordialmente no

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entrelaçamento entre os contextos familiar e social (Bucher-Maluschke, 2004).

A experiência da perda é conceituada como uma reação emocional, comportamental e fisiológica individual de quem perdeu alguém. Já o enlutamento é a expressão ativa dessa experiência, sendo pautado pelas convenções sociais e costumes relacionados à morte. Até o século XIX, o luto era vivido por meio de rituais coletivos, nos quais era valorizada a expressão pública da vivência da perda. Na contemporaneidade, houve o que podemos chamar de uma “privatização do sofrimento” e o luto passou a ser visto como algo do âmbito do indivíduo e da família, com pouca ou nenhuma inclusão das suas redes de relações sociais, que pouco participam da elaboração deste sofrimento (Luna, 2013). A impossibilidade de expressão pública faz com que o processo de enlutamento seja vivido na solidão, o que pode aumentar o sentimento individual de exclusão social; sobretudo se pensarmos em mortes que ocorreram na esteira da realização de alguma atividade ilícita. Nesses casos, é possível inferir que haja um constrangimento maior, inibindo as demonstrações por parte da família.

A perspectiva sistêmico-familiar procura abordar o processo de luto a partir das relações constituídas na família, pois a perda de um membro influencia a sua dinâmica e provoca alterações no sistema, demandando reorganização. A coesão dos membros, aliada à existência de espaço para a comunicação e expressão de sentimentos, pode contribuir para o processo de ajuste adaptativo (Delalibera, Presa, Coelho, Barbosa, & Pereira Franco, 2015; Minuchin, 1990). Na perspectiva do ciclo de vida, é esperado que as famílias vivenciem um roteiro até certo ponto previsível, que vai da constituição do núcleo familiar, nascimento dos filhos, até a meia-idade, velhice e morte. Quando essa lógica temporal é desafiada pela morte prematura de um filho, o impacto tende a ser maior, pois as expectativas geracionais são revertidas. Todo o sistema é afetado de forma devastadora e traumática e as ressonâncias passam a ser sentidas por todos: “quando seus pais morrem, você perde seu passado; quando seus filhos morrem, você perde seu futuro” (Walsh & McGoldrick, 1998, p. 63).

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É importante que a família elabore novas respostas frente ao sofrimento enfrentado, mas essa construção só será possível por meio do fortalecimento dos laços comunitários.

Uma revisão sistemática sobre a dinâmica familiar no processo de luto evidenciou que famílias disfuncionais apresentam maior sintomatologia psicopatológica (ansiedade, depressão), pior funcionamento social, dificuldade de acesso a recursos comunitários e apoio social, além de menor capacidade funcional no trabalho. No caso de famílias que enfrentam mortes súbitas, as mães tendem a apresentar pontuações significativamente maiores no índice geral de sintomas quando comparadas à população em geral. Já os irmãos sobreviventes, podem sentir-se mais próximos dos seus pais após a morte; porém, se esta família tiver um nível alto de conflito, apresentará mais dificuldade na elaboração do luto, com maior distanciamento entre os pais e os filhos sobreviventes (Delalibera et al., 2015).

Estudo realizado junto a famílias que enfrentaram a morte violenta de adolescentes, e que possuíam outros filhos em cumprimento de medida socioeducativa, aponta a sua inserção em um contexto de banalização da violência, no qual não há espaço adequado para elaborar o luto. As mães desenvolvem sintomas como depressão e vulnerabilidade a doenças; os pais são ausentes e/ou violentos; os irmãos sobreviventes ficam expostos a situações de risco, seja pelo uso de drogas ilícitas ou pelo envolvimento direto em situações de criminalidade. A lógica perversa do tráfico de drogas é permeada pelo código de valorização do lucro rápido e do poder. A repetição de comportamentos violentos aparece associada a desejos de vingança, na busca de justiça para os irmãos. Esses dados reforçam a necessidade de investimentos em pesquisas sobre o tema, ações preventivas e intervenções comunitárias dirigidas a esta população juvenil vulnerável e suas famílias (Dalbosco, 2006).

Outro ponto a ser discutido é que há regras sociais estabelecidas para estruturar o discurso das pessoas em relação à morte. Assim, define-se o que se pode conversar socialmente sobre a perda e o tempo que se leva para elaborar um sofrimento. Mesmo as iniciativas para ajuda psicológica

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aos enlutados, seja por meio de grupos de apoio ou terapias específicas, indicam que há uma construção sobre o que é considerado “normal” ou “anormal” diante da perda. Nesse sentido, tendo em vista que a perda é concebida como um fenômeno interno e privado, isso implica no seu policiamento e disciplinarização. Para o enfrentamento, é necessário desenvolver estratégias para lidar com as emoções, as memórias e estabelecer novas formas de adaptação à vida (Luna, 2013). Segundo Morin (1976), “(...) o luto exprime socialmente a inadaptação individual à morte, mas, ao mesmo tempo, é o processo social de adaptação que tende a fazer cicatrizar a ferida dos indivíduos que sobrevivem” (p. 75).

As características prévias da família afetam a sua reorganização após a perda. Fatores como comunicação disfuncional, a posição que era ocupada pela pessoa que morreu, os segredos familiares, irão afetar todo o sistema. Da mesma forma, as circunstâncias em que se deu essa morte, o momento do ciclo familiar, a falta de recursos familiares – sociais e econômicos – e o contexto social e étnico, podem estimular o estigma. A experiência da perda envolve uma reconstrução que implica em dar sentido à perda, encontrar benefícios na experiência e mudança na identidade (Luna, 2013).

Essas famílias podem se sentir fragilizadas, sem assistência e com carência de acesso a equipamentos públicos (Dias, Arpini, & Simon, 2011). Por isso, cada vez mais, identifica-se a importância de investir em projetos de apoio à família e ao jovem para a construção de redes mais protetivas. Alguns estudos mostram que a criação de modelos de intervenção no luto focado na família permite a oferta de tratamento e suporte adequado, e alguns tipos de família podem beneficiar-se bastante desse tipo de programa. Além disso, o uso de instrumentos de triagem pode ser uma estratégia interessante para avaliar a dinâmica familiar, identificando famílias com pior funcionamento e que podem ter maior risco de desenvolver complicações no luto, demandando a necessidade de suporte (Delalibera et al., 2015).

Diante de tantas vulnerabilidades, talvez seja interessante resgatar o conceito de resiliência, pois ele também dialoga com a experiência da

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perda. Segundo Luna (2013), em alguns casos, a vivência de uma perda pode levar ao crescimento interpessoal, facilitando um enfoque voltado à saúde e não à patologia. Essa pode ser a aposta necessária que irá contribuir para um possível rompimento do ciclo violento.

ConclusãoPara finalizar, resgatamos a visão de Bauman (2003), que considera a

impossibilidade de haver comunidade quando a solidariedade é dissolvida, a confiança mútua destruída, só restando desintegração social. É preciso encontrar formas de passar de paralisia, impotência e isolamento social para a mobilização dos recursos comunitários e confiança na rede. Assim, parte-se do pressuposto de que os vínculos sociais, os laços afetivos e as relações de solidariedade ainda são as melhores armas contra a disseminação da violência. Nesse sentido, as reflexões aqui apresentadas nos levam a pressupor que essas famílias falham na proteção de seus adolescentes porque o Sistema de Garantia de Direitos também é falho em diferentes níveis, abrindo espaço para a apropriação dos jovens pelo tráfico de drogas.

O enfrentamento das questões contextuais que levam ao envolvimento com a criminalidade e a perpetração da violência não é tarefa fácil e precisa ser repensada no âmbito de diferentes políticas públicas. Mesmo quando os jovens e suas famílias estão mergulhados em um contexto de violência, esse fenômeno nunca poderá ser naturalizado. Banalizado talvez, mas sempre trará dores intensas. No universo dessas famílias é difícil atribuir explicações lineares do tipo causa-efeito e separar categoricamente o “bem e o mal”, quem é a vítima e quem é o algoz. As fronteiras são tênues. Esses jovens, em sua maioria, não tiveram outras escolhas longe do tráfico e da marginalidade, a despeito de possíveis esforços das famílias.

Acreditamos que haja uma lacuna entre as perspectivas que abordam a relação do jovem com a criminalidade a partir da responsabilização social (vítimas do contexto) ou responsabilização individual (escolhas

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pessoais). É preciso também olhar para essas famílias como contexto onde ressona a violência, reconstruindo sua trajetória, história e resgatando sonhos e projetos comuns. Cada vez mais, é importante compreender o significado da perda, incorporando outras dimensões além do olhar individual sobre o sofrimento de cada família atingida.

As instituições precisam ser fortalecidas e resgatadas em sua função, juntamente com a implementação de mais políticas públicas voltadas para a juventude: proteção à infância, melhoria da qualidade de vida, educação, prevenção, reconhecimento dos direitos enquanto cidadãos. Além dessas, é preciso pensar também em políticas de acolhimento para as famílias vítimas de crimes fatais, promovendo um espaço de expressão para o sofrimento e para a luta pela justiça e cidadania. Muitas vezes, a morte violenta de um dos filhos ou irmãos representa mais uma peça que compõe um quadro de sofrimentos e vulnerabilidades mais amplo. Ou seja, é preciso investir em uma concepção ampliada, que sustente a pluralidade das narrativas construídas em torno da temática, buscando recursos da comunidade que revertam o quadro, além de metodologias específicas que possam auxiliar em um desfecho diferente, tanto no território, quanto no âmbito dos equipamentos de saúde e assistência social.

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Sofrimento de famílias pela morte violenta de adolescentes envolvidos com o tráfico

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C A P Í T U L O 4 . 4

Trajetórias familiares e sociais, crack e situação de rua:

busca por pertencimento

Rubens MotaMaria Aparecida Penso

Maria Eveline Cascardo Ramos

IntroduçãoSerão estudados neste capítulo trajetórias familiares e sociais de

jovens usuários de crack, que vivem em situação de rua e violência, a partir da construção de suas histórias de vida. Investigar a história de vida desses jovens justifica-se, devido ao esquema perverso instalado em nossa sociedade, em que o jovem credenciado como sendo o “futuro” do país perde a vida no presente. A trama é tecida da seguinte maneira: o jovem é levado para o mundo das drogas, depois tem que ser morto, porque se tornou um problema social.

Este estudo tem como bases teóricas a Teoria Sistêmica e a Psicossociologia Francesa. O pensamento sistêmico tem como foco de estudo as relações entre os membros da família e também destes com o contexto social, considerando a família como um sistema aberto em interação constante com o meio que a cerca. (Aun, 2005; Vasconcellos, 2002). Também considera o sistema familiar como muito importante para a construção da identidade do sujeito (Minuchin, Wai-Yung, & Simon, 1996/2008).

A Psicossociologia Francesa, por sua vez, considera o indivíduo como um sujeito social (Barus-Michel, Enriquez, & Lévy, 2006). Assim, é preciso

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compreendê-lo para além da sua biografia, com atenção a sua história individual e social, respeitando a sua singularidade e capacidade de evolução e de aprendizagem. É uma perspectiva que favorece a autonomia das pessoas e sua participação efetiva na vida de suas organizações, da sociedade, bem como nos problemas que lhes dizem respeito (Barus-Michel et al., 2006; Lévy, 1997/2001). Perceber a história de vida, tendo a Psicossociologia como leitura social, é mais do que ter dados. É ter a concepção de mudança centrada sobre o processo, mais do que sobre os resultados, contribuindo em uma compreensão crítica do contexto social, no qual está inserido o jovem.

A trama entre violência e uso de drogas vem sendo acompanhada pelo aumento do consumo de crack. A estimativa nas capitais dos estados e do Distrito Federal, para a população desses municípios que consomem crack e/ou similares de forma regular é na proporção de, aproximadamente, 0,81% (Intervalo de Confiança de 95% (IC95%): 0,76-0,86), o que representaria cerca de 370 mil usuários. Nesses mesmos municípios, temos que a estimativa para o número de usuários de drogas ilícitas em geral (com exceção da maconha) é de 2,28% (IC95% 2,17-2,38), ou seja, aproximadamente um milhão de usuários. Sendo assim, usuários de crack e/ou similares correspondem a 35% dos consumidores de drogas ilícitas nas capitais do país, de acordo com a Secretaria Nacional de Políticas sobre as Drogas (Senad, 2012).

As estimativas de proporção de usuários de crack e/ou similares não são mais elevadas na região Sudeste, onde, entretanto, o consumo em locais públicos é bastante mais visível devido à magnitude das suas metrópoles e ao tamanho expressivo das grandes cenas de uso conhecidas como “cracolândias”. Existe uma superposição dos intervalos de confiança das estimativas referentes às regiões Sudeste e Norte, por exemplo. Isso indica que, estatisticamente, essas proporções são similares entre as capitais dessas duas macrorregiões (Senad, 2012).

Esses dados estatísticos tratam do aumento do uso de drogas no geral, com agravante para a população em situação de rua. Mas é preciso ir além dos números, buscando compreender os fatos e situações que esse

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quadro revela. Conhecer a história de vida dessa população pode ser uma forma de compreender melhor as complexas relações entre uso de drogas, situação de rua e violência.

Os dados apresentados revelam um quadro preocupante que tem levado o governo a tomar medidas como o lançamento em nível nacional do Plano “Crack: É possível Vencer”, do Governo Federal (Decreto no. 7.426, 2010). Esse plano de enfrentamento reúne as políticas de enfrentamento que associa saúde, assistência social, segurança pública, bem como outras iniciativas de diversos grupos civis, como ONG’s, formações acadêmicas e entidades religiosas, na busca de alternativas para a problemática do uso de crack e outras drogas no Brasil. No entanto, existe ainda uma carência de alternativas eficazes de recuperação e ressocialização dessa população.

O uso de drogas normalmente está associado à violência, principalmente em contextos de pobreza e exclusão social. Carreteiro (2003) explica que existem vários tipos de violência: física e simbólica, implícita e explícita, que fazem parte do cotidiano de todas as populações. Contudo, mesmo fazendo parte do cotidiano da sociedade, de modo geral, a violência explícita está ligada à vulnerabilidade social, sendo mais notada em populações que moram em localidades consideradas perigosas e de baixa renda.

Uso do crack e exclusão social: uma trajetória socialO surgimento do crack é datado entre os anos 1984 e 1985, nos

bairros pobres e marginalizados de Los Angeles e Miami (EUA), sendo sua obtenção através de processos caseiros. Os cristais de crack eram fumados em cachimbos por grupos, especialmente jovens, de forma precária, nas casas. Ainda hoje, os Estados Unidos são o maior mercado consumidor de cocaína e seus derivados no mundo (Ribeiro & Laranjeira, 2010).

Sobre quando e como o crack chegou ao Brasil encontramos relatos distintos. Enquanto Ribeiro e Laranjeira (2010) afirmam, a partir de dados epidemiológicos obtidos com a população em situação de rua, que

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não é apontado uso do crack até o ano de 1989 e que as notificações sobre as primeiras apreensões dessa droga, efetuadas pela Polícia Federal, ocorreram somente a partir de 1990, Domanico (2006) relata que em 1988 já havia produção barata e rápida do crack em São Paulo, Para essa autora, nessa época, em diferentes regiões do país já existiam outras formas de preparar esse produto, sendo que esses preparados de cocaína ou pasta-base, conhecidos como crack, passaram também a adquirir outros nomes, como bazuko, merla, mela ou oxi.

Mesmo com o desencontro das datas sobre o surgimento e uso do crack no Brasil, os estudos confluem na identificação do público que a utilizou. Seu uso inicial foi feito por pessoas marginalizadas que fumavam o crack para diminuir a fome, em função da privação de alimentação (Oliveira & Nappo, 2008; Pereira & Sudbrack, 2008). Ribeiro e Laranjeira (2010) relatam sobre uma das primeiras pesquisas feitas no Brasil, na cidade de São Paulo, com um grupo de 25 usuários, composto de homens desempregados, com menos de 30 anos de idade, ou seja, jovens, de baixa escolaridade e sem poder aquisitivo. Portanto, desde o seu surgimento, o crack já era consumido em ambientes de exclusão social, ou seja, por um público que se encontrava às margens do sistema econômico e social, em situação de rua. A trajetória do crack aponta para fatores de exclusão sociais, capazes de produzir um esquema propício para o aumento do uso de drogas e da violência (Oliveira & Nappo, 2008).

As motivações iniciais para o uso do crack estavam ligadas ao seu baixo custo, sendo utilizada por uma população marginalizada, sem recursos para aquisição de drogas mais caras. No entanto, de acordo com Ribeiro e Laranjeira (2010), os motivos para uso do crack se alteraram ao longo do tempo. Para estes autores em 1990, os usuários justificavam a busca da sensação de prazer na droga. No final da mesma década, as alegações para o consumo eram compulsão, dependência ou uma forma de lidar com problemas familiares e carências diversas (sono, comida e afeto).

A situação de exclusão é uma das consequências de cunho social, sofridas pelo usuário, mas não é a única. Como já colocado

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anteriormente, Ribeiro e Laranjeira (2010) partem dos aspectos fisiológicos para relatar os danos sofridos com a destruição de neurônios que provocam a degeneração dos músculos do corpo, causando aquela aparência característica: ossos da face salientes, braços e pernas finos e costelas aparentes. Relatam ainda que o crack inibe a fome e tira o sono. Os usuários só se alimentam e dormem quando não estão sob seu efeito narcótico, o que pode deixar o dependente facilmente doente. Sobre as consequências fisiológicas, Domanico (2006) observa que é comum aparecerem rachaduras nos lábios causadas pela falta de ingestão de água e de salivação, cortes nos dedos das mãos causados pelo ato de quebrar as “pedras” para uso, além de queimaduras nos dedos e no nariz causadas pela chama usada para fumar o crack. A respeito de consequências de ordem psíquica, a autora menciona a “paranoia” como um dos efeitos provocados pelo uso de crack e que também aparece na maioria dos usuários dos produtos da cocaína. Este se traduz por um sentimento de perseguição em que os usuários desconfiam de tudo e de todos, ouvem vozes e sons que lhes provocam medo e pavor. Muitas vezes, criam situações onde ficam acuados e escondidos ou em conflitos grupais, podendo levá-los à violência (Domanico, 2006).

A exclusão e violência ocorrem seguindo uma lógica social que contém mecanismos que empurram os jovens para fora do sistema social, expulsando-os para as ruas, através de mecanismos que os puxam para os espaços de marginalização, atraindo-os para as ruas. O que empurra está ligado à trajetória de vida do jovem, em suas experiências na rua e ao frágil sistema familiar; e o que atrai está relacionado ao que é encontrado nas ruas, que é a lógica social perversa (Sawaia, 2008; Takeuti, 2002). Moreira, Neil e Silveira (2009) refletem sobre esse processo que leva jovens às ruas, afirmando que é próprio do adolescente e do jovem o desejo de descobrir prazeres variados por curiosidade, influência de grupos de pares e traficantes, fazendo com que se tornem presas fáceis para o uso de drogas. Contudo, existe uma iniciação legitimada socialmente, pois o álcool e o tabaco são as drogas mais utilizadas por essa parcela da população, podendo culminar no uso do crack.

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Diante dessas reflexões é possível constatar que a configuração social citada, além da marginalização já detectada, pode levar os jovens que se encontram nessa situação de exclusão a uma condição pior, que atinge a autoestima, fazendo com que se sintam desvalorizados e diminuídos, devido aos efeitos da vergonha e da humilhação social (Carreteiro, 2003; Gaulejac, 2003/2006).

Uma vez marginalizado, esse jovem sofre tanto com a desvalorização quanto com as agressões sociais, sinalizadas como reação por medo ou defesa, num contexto de pânico e fobia, criados no ambiente social (Domanico, 2006). Essa é uma dinâmica complicada, complexa, pois a sociedade passa a padecer dos próprios efeitos negativos, ou seja, produz marginalização e sofre suas consequências. Esses efeitos sociais são descritos pela autora, através das perdas dos vínculos familiares, cuja ausência prejudica a apropriação da sua história de vida por parte desses jovens. No entanto, é importante lembrar que o pânico moral que vem de fatias da sociedade, contribui para esse prejuízo.

A exclusão e a marginalização são nitidamente manifestas na situação do usuário, indo desde o uso de roupas sujas e de ausência do cuidado com o que come, até sua realidade cotidiana nas ruas, que é dormir ao ermo, ficar exposto ao frio, chuva e violência. Aqui há uma postura quanto ao comportamento social e à caracterização da figura do usuário de crack, levando em consideração somente os aspectos pejorativos, criando uma imagem estereotipada, apoiada em interpretações que os coloca no papel de desviante, levando-o à assimilação de regras que são desfavoráveis à sua autonomia, enquanto sujeito de direito, que tem uma história de vida e um valor enquanto pessoa.

MétodoEsta é uma pesquisa qualitativa que, para a compreensão da trajetória

pessoal, social e familiar dos jovens, utilizou o método da história de vida que se preocupa com o vínculo entre o pesquisador e os jovens participantes da pesquisa, valorizando os traços históricos de cada jovem

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dentro da narrativa e da convivência entre pesquisador e sujeito (Lévy, 2001). Pode-se garantir ainda a investigação da história de vida, oferecendo elementos que vão além da biografia, no caso desta pesquisa, sendo capaz de proporcionar a compreensão do percurso entre o sistema pessoal, familiar e social, até da situação de rua em que se encontram, e o uso de drogas (Carreteiro, 2003).

Os participantes da pesquisaForam participantes desta pesquisa três jovens adultos do sexo

masculino, com idades entre 20 e 25 anos que estavam numa casa de passagem. Na casa, este público que vivia em situação de rua encontrava abrigo, alimentação e alguns profissionais que tentavam acompanhar a sua estadia na mesma. O critério de inclusão foi que tivessem passado por situação de rua e que fossem usuários ou já tivessem feito uso de crack. Cada jovem teve a oportunidade de escolher um nome fictício de seu gosto pessoal, assim ficando: Keny, Felipe e Leôncio.

Instrumentos utilizadosFoi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada, sendo que as

entrevistas conduzidas, numa relação de respeito ao outro, baseada numa escuta clinica proporcionando uma conversação geradora de confiabilidade, ajudando a conhecer a trajetória de vida dos jovens entrevistados.

Foram utilizados, ainda, desenhos com diferentes propósitos. No caso de um dos jovens que teve dificuldade para relatar sua história de vida, o desenho expressou o que foi dito verbalmente, confirmando, com o desenho básico, o pouco desejo de relato. No caso de outro jovem que manifestou talento artístico, o desenho ampliou o contexto familiar por ele explicitado.

O diário de campo ajudou a captar a forma e os momentos da pesquisa, que aconteciam nas relações entre os funcionários da instituição

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e a equipe da pesquisa, bem como dos funcionários para com os jovens e o clima institucional como um todo. Segundo González Rey (2005), grandes acontecimentos são definidos no interior do campo, pois é o processo feito no campo que rompe com um possível controle do esquema estabelecido a priori. Nessa perspectiva, as decisões são constantemente revistas, enriquecendo o modelo teórico em desenvolvimento, como aconteceu nesta pesquisa, que precisou adaptar a sua aproximação do campo à realidade encontrada.

Procedimento de coleta das informaçõesOs jovens participantes foram indicados pela direção e educadores da

instituição que frequentavam ou convidados pelos pesquisadores. Uma vez aceita a proposta por parte dos jovens, foi realizada uma conversa informal com cada um, explicando como seriam as entrevistas e mostrando o roteiro, nos certificando se os mesmos concordavam em falar sobre aqueles assuntos. Aqueles que concordaram assinaram o Termo de Compromisso Livre e Esclarecido e também foi garantido que haveria uma devolução para cada um da história contada. Em razão da não autorização de gravação pela instituição, cada entrevista contou com dois observadores que anotavam as repostas. Cada entrevista teve, em média, duração de uma hora e meia a duas horas.

O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Católica de Brasília, com o número197/2011

O primeiro entrevistado foi Keny, que já havia feito parte de um grupo terapêutico realizado pelos pesquisadores. Foram realizadas três entrevistas com este sujeito. Na segunda entrevista foi confeccionado o genograma, visando a obter mais informações sobre sua família. Após as três entrevistas, o relato da história de vida foi digitado e entregue a Keny como devolutiva, sendo apreciada e sofrendo as alterações que o mesmo quis pontuar.

O segundo foi Laércio, com quem foram feitas duas entrevistas. Nesse caso não foi confeccionado o genograma, devido à indisposição que o

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jovem mostrou em falar sobre sua família de origem. Sua devolutiva foi somente verbal, ao final da segunda entrevista, pois Laércio transferido subitamente de instituição, antes da digitação dos relatos.

O terceiro entrevistado foi Felipe, com quem foram realizadas três entrevistas, sendo que na segunda foi construído o genograma. Com ele, foi feita devolutiva escrita; porém, devido à dificuldade de leitura pessoal, foi lida sua história de vida e pedida sua apreciação. Houve agradecimento por parte do jovem, pelo fiel relato e incentivo da equipe de pesquisa para que ele deixasse o uso do crack e por investir em seu projeto de vida.

Com todos os sujeitos foi solicitada, ao final de cada entrevista, a elaboração de desenhos como uma forma alternativa para que expressassem os sentimentos e avaliações do processo e suas conclusões sobre a proposta apresentada pelos pesquisadores. Esse material ajudou na composição e criatividade, e eles foram capazes de expressar situações pessoais, traços da história de vida difíceis de serem verbalizados. O atendimento sistêmico ajudou a estabelecer uma relação de ajuda, entendida a partir das “relações igualitárias, fraternas e amistosas” (Prette & Prette, 2004, p. 27), em que se evitam a indução e o direcionamento na entrevista. Também, ao final de cada entrevista, eram realizadas pelo pesquisador anotações no seu diário de campo sobre a sua percepção do que tinha acontecido. É preciso salientar que, mesmo estando concluídas as entrevistas, o contato com a instituição permaneceu aberto, implicando em um compromisso nosso com cada jovem entrevistado.

Procedimentos de análise das informaçõesFoi utilizada a epistemologia construtiva-interpretativa que pressupõe

o levantamento de indicadores e a construção de zonas de sentido, buscando atribuir significados para a realidade, numa leitura interpretativa capaz de sintetizar a junção dos aspectos teóricos àqueles encontrados junto à realidade pesquisada (González Rey, 1999, 2005). Para o autor, os indicadores são os conteúdos revelados nas entrevistas e

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convivência, capazes de possibilitar a ressonância com a teoria estudada, oferecendo pistas para a compreensão da realidade encontrada com a sistematização acadêmica.

A postura de aproximação junto aos jovens, legitimando e valorizando suas narrativas, possibilitou o levantamento de indicadores a partir da leitura das entrevistas e do diário de campo, enriquecidos pelos genogramas e desenhos.

O levantamento de indicadores favoreceu a construção das zonas de sentido, para compreender e interpretar as histórias de vida dos jovens, favorecendo uma compreensão que tivesse coerência com a trajetória desses jovens e, ao mesmo tempo, com as abordagens teóricas escolhidas para esta pesquisa (González Rey, 2005). Foram construídas duas zonas de sentido, que retratam os dois sistemas em que esses jovens buscaram suporte para sua construção identitária: Das famílias às ruas: fragilidades que geram buscas e Das ruas às drogas: a busca por contextos de pertencimento.

Resultados/discussãoDas famílias às ruas: fragilidades que geram buscasNesta primeira zona de sentido serão discutidas as relações familiares,

compreendidas como primeiro espaço de construção identitária e o percurso feito pelos jovens desde suas vivências na família até a situação de rua.

Sobre a influência das vivências familiares, foi possível constatar situações de violência como parte integrante do cotidiano desses jovens, desde sua infância. Laércio, quando criança, ficava sob a responsabilidade de uma adolescente que o agredia: “Quando tinha quatro anos lembro que minha prima me batia muito com chinela havaiana”. Keny apanhava da tia com quem morava: “minha tia me batia muito”, “o marido da minha mãe (padrasto), só sabia beber e bater na gente” (Felipe). A violência vivenciada por esses jovens ao longo do ciclo de vida familiar tornaram o ambiente familiar desfavorável, dificultando os movimentos de crescimento e separação necessários para a constituição da autonomia e

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independência. Ao contrário, a família apresentava-se como um ambiente hostil e negativo, com papéis parentais fragilizados, ausência paterna, acarretando prejuízos para sua construção identitária e para a permanência dessas crianças junto à família (Penso & Sudbrack, 2009).

Observa-se que a figura paterna é ausente ou violenta, gerando raiva em relação ao mesmo: “Meu pai não sei não, acho que ele tava no Piauí bebendo. Fio da égua” relata Laércio. “Não gosto dele (pai)! Já puxou cadeia, já matou gente. Não gosto de me encontrar com ele” (Felipe). Para Keny, o pai é uma figura que o retirou da mãe e o abandonou: “meu pai é traficante e por isso me entregou pra irmã dele, minha tia”.

Além da fragilidade dos papéis parentais, ausência dos pais ou presença violenta destes, existem as condições sociais que levam essas famílias a disporem de seus filhos, como relata Felipe: “Minha mãe deu dois filhos dela ainda pequenos, porque não tinha muita condição”. “Aos sete anos minha mãe me levou para morar com a minha avó (materna)”. A atitude de dar os filhos ou enviá-los para morar com parentes pode ser atribuída às muitas ausências vividas por essas famílias de: recursos financeiros, condição social, respaldo do Estado e redes sociais de apoio (Campos, 2005; Minuchin, Colapinto, & Minuchin, 1998/1999). Nessa situação, crianças e adolescentes, que ainda necessitam de cuidados, são expostos a fatores de risco que podem levá-los ao uso de drogas e à vivência de rua. A situação dessas famílias, como de muitas outras famílias brasileiras, totalmente vulneráveis, vivendo na rua e em condições de pobreza, favorece a fragmentação familiar. Dar os filhos, nesse contexto, não é um desejo, mas sim uma imposição contextual, em razão de uma lógica social que conduz à falta de condições financeiras, reproduzindo nos filhos, a exclusão sofrida pelos pais (Demo, 2008; Sawaia, 2008; Takeuti, 2002).

As consequências das dificuldades e conflitos ocorridos no núcleo familiar empurra os filhos para a rua, como relata Laércio: “Com oito anos comecei a sair de casa. Inicialmente fugia de casa e minha mãe sempre me buscava de volta, mas chegou um momento em que ela não me buscava mais”. Laércio justifica sua ida para as ruas em razão da

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violência e da pobreza: “Apanhava demais, da mãe e da prima, e queria ter minhas coisas”, expressando que a exclusão e a violência sofridas o levaram para contextos de risco, como as ruas (Neiva-Silva & Koller, 2002; Penso, Ramos & Gusmão, 2005).

A fragilidade e a violência verificadas no sistema familiar não podem ser uma sentença condenatória dos pais, mas um apontamento sobre as relações estabelecidas no contexto familiar que se mostra frágil e com dificuldades de criar vínculos (Andolfi, 2002; Minuchin, 1980/1982). Também é preciso considerar a perversidade de um contexto social incapaz de ajudar as famílias em seu processo de cuidado dos filhos.

Mas o fato é que todas essas vivências afastaram os jovens de suas famílias. Com relação à mãe, Laércio afirma: “Já tem seis meses que não vejo a mãe”; Felipe narra: “Tenho mais de quatro anos que não vou à casa da minha família. Depois que minha avó morreu não fui mais lá”, e Keny também relata: “Aos três anos meu pai me deixou na casa de minha tia e nunca mais vi minha mãe”. Suas famílias também não acreditam que eles possam mudar, como podemos constatar no desabafo de Keny: “Eles (família) estão pensando numa coisa, que eu não sou capaz de mudar, só que eu quero surpreender bem mais”. Assim, temos um contexto de marginalização onde se constitui a identidade a partir de um duplo movimento: as fragilidades dos vínculos familiares revelam uma ausência de investimento nos jovens, empurrando-os para as ruas, associado a um contexto social de pobreza e exclusão, onde existem atrativos que podem puxar esse jovem para o uso das drogas (Carreteiro, 2003; Domanico, 2006).

As experiências desses jovens que em suas repetidas visitas às ruas, somadas à situação caótica da família e às atitudes de desistência dos pais, possibilitam a legitimação de uma nova realidade, tornando a situação de rua um acontecimento possível e, com ele, suas consequências na vida desses sujeitos.

No entanto, é preciso pontuar que, mesmo com os rompimentos em relação às famílias, em um processo de transmissão geracional, os jovens

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repetem comportamentos de seus pais, seja com relação ao uso de drogas, seja com relação a comportamentos violentos, apontando para a dificuldade de rompimento com a história familiar (McGoldrick & Gerson, 1995; Penso et al., 2008). Mesmo tendo o desejo de transformar a herança familiar, envolvem-se com drogas e são agressivos com aqueles a quem amam, mostrando que seus projetos são frágeis diante da realidade, como exemplificado na fala de Laércio: “Amo minha mulher e meu filho”, mas ao usar drogas ou beber, reage de forma violenta com eles: “quando bebo, perco a cabeça e bato na mulher e filho”.

Em resumo, nesta primeira zona de sentido, discutimos como o sistema familiar influencia a saúde dos seus membros, pois eles não vivem isoladamente, mas convivem, transmitindo, via relações, saúde ou doença (Vasconcellos, 2002). Contudo, é importante destacar que a distância dos pais e a fragilidade dos cuidados por parte das mães não caracterizam a família como má ou responsável isoladamente pela situação dos jovens Keny, Laércio e Felipe, pois estas famílias são somente um subsistema que está inserido em um sistema amplo e complexo, em uma cultura e em um meio social que influencia no desenvolvimento da família (McGoldrick, 2003; Minuchin, 1980/1982).

Das ruas às drogas: a busca por contextos de pertencimentoNesta segunda zona de sentido discutiremos o encontro dos jovens

com as drogas, especialmente o crack, bem como a presença de outros elementos que influenciaram este novo espaço de buscas, a rua. Mesmo tendo a presença forte do uso de drogas nesta segunda zona de sentido, explicitamos que seu uso não é exclusividade do espaço das ruas, visto em que alguns relatos das entrevistas com Keny, Laércio e Felipe já notamos casos de iniciação ao uso de drogas, ainda no seio familiar.

Apesar das semelhanças, percebemos que cada história tem suas peculiaridades. A história de vida de Felipe é constituída já no contexto das ruas, pois quando nasceu, sua mãe já vivia em situação de rua. Isso fez que ele não percebesse claramente o momento exato da ruptura com o

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sistema familiar e sua ida para as ruas, pois já se sentia parte do contexto da rua: “Minha história de vida, eu acho que é a mais diferente aqui, porque minha mãe era moradora de rua”. O momento que marca a ruptura de Laércio com a família e sua ida para as ruas se dá precocemente: “Com oito anos sai de casa e comecei a ficar na rodoviária onde fumava, cheirava cola”. Keny, por sua vez, é retirado bruscamente do seio familiar, após a separação conjugal dos pais: “Meu pai me retirou de minha mãe com três anos de idade”.

Dois elementos estão fortemente relacionados à saída precoce desses jovens da família para as ruas: um é a violência muito presente no ambiente familiar, e outro é o uso de drogas expresso nos desenhos confeccionados, bem como nos relatos das entrevistas. Essa relação aponta a fragilidade dos dois sistemas, o familiar e o social, pois o primeiro deveria cuidar de seus membros e o segundo dar apoio ao primeiro para exercer seu papel. A falha de um ocasiona uma consequente ausência de respaldo para o jovem, deixando-o à mercê da sorte, e facilitando sua trajetória para a margem (Selosse, 1996). No caso de Keny é nítido o uso de drogas precocemente e com uma progressão rápida para diferentes drogas: “Aos nove anos comecei a fumar cigarros; aos 11 iniciei com a maconha e com 12 anos veio tudo. Ele (o pai) me dava dinheiro e comecei a usar tudo: crack, pó, maconha e merla”. Situação semelhante é descrita por Laércio: “Com oito anos comecei a sair de casa. Depois disso saí da escola de vez, comecei a me drogar e a morar na rua”; “minha mãe me buscava na rua para ajudar no bar” (Laércio). Nesses relatos observamos que a vivência de situação de rua e o uso de drogas estão relacionados com a sua realidade sociofamiliar, na qual, uma das atrações das ruas é a droga, atrelada à falta de condições financeiras para sustentar o vício, somada ao contato com bebidas e seus usuários, no bar da mãe. Tais situações são apontadas também nos estudos de Oliveira e Nappo (2008) e Neiva-Silva e Koller (2002).

O grupo de pares também atrai os jovens, facilitando seu deslocamento para as ruas e, consequentemente, para o uso de drogas: “Eu comecei a me enturmar com os meninos de rua e mudou tudo.

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Comecei a cheirar thinner, cola, fumar maconha e depois veio o crack” (Felipe). Em resumo, a busca por suporte identitário, contextos de pertencimento, somados à fuga das adversidades encontradas no sistema familiar são algumas das motivações para o uso de drogas (Carreteiro, 2002; Penso & Sudbrack, 2009). Esses jovens empobrecidos e em situação de rua necessitam de um grupo que lhes dê apoio para lidar com as incertezas e medos impostos pela sua condição de “fregueses” da droga e das ruas, situações às quais estão mais expostos (Minayo & Deslandes, 1998; Penso & Sudbrack, 2009).

Nas histórias dos jovens aqui entrevistados, há um itinerário que leva às ruas e ao uso de drogas, bem como existe uma progressão quanto ao tipo de droga utilizada na trajetória que percorrem. Nas narrativas que ouvimos, foi comum o cigarro e a cola como porta de entrada para o uso e a idade muito precoce para o início, como é o caso de Keny: “Aos nove anos comecei a fumar cigarros”. Para Laércio, o álcool foi não somente a porta de entrada, mas continua sendo o seu maior problema: “A pinga é meu maior mal. Sempre que bebia e me metia em brigas. A cachaça veio para destruir tudo”. Esses relatos confirmam estudos de Oliveira e Nappo (2008), em pesquisa sobre a caracterização do crack na cidade de São Paulo, em que a maioria de seus entrevistados iniciou o uso com drogas lícitas como álcool e tabaco.

A rua os leva ao envolvimento com drogas. O contexto gerado pelo uso de drogas nas ruas deixa os jovens acuados e em situação de conflito, podendo levá-los ao envolvimento em situações de violência. Porém, os discursos sociais, incentivados pelas elaborações midiáticas, muitas vezes, não apontam para a origem dessa problemática que está relacionada à ausência de suportes sociais, desencadeando processos de violência de fato. Ao contrário, fica centrado nas suas consequências, normatizando uma lógica que não desperta o interesse para a compreensão da história de vida e do contexto social daqueles que são usuários de drogas. Tal atitude leva a uma postura de eliminação do jovem, que passa a ser visto como problema social, confundindo o jovem com a droga, em que o crack e seus usuários são a mesma coisa (Domanico, 2006).

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As ruas são, neste contexto de busca por culpados, o lugar que resta para este público excluído de oportunidades e cuidados sociais. Os próprios jovens que vivem nesse contexto de vulnerabilidade introjetam estes discursos, colocando as drogas como a origem de todos os problemas. Esta passa a ser reconhecida como a principal origem da violência que sofrem ou que comentem pelo seu envolvimento com roubos e furtos. Este esquema perverso é exemplificado nos relatos a seguir: “Eu já vi amigo meu morrer por causa do crack. A droga gera violência, e violência gera morte” (Felipe). “É só beber cachaça que me envolvo em brigas, apanho e bato” (Laércio).

Além de culpabilizar as drogas pela ocorrência da violência, socialmente, toda a responsabilidade pelo seu uso é atribuída aos jovens, ignorando os processos sociais e econômicos que colocam parte da população à margem da sociedade, provocando rupturas do sujeito com a norma social em razão dos processos de marginalização (Carreteiro, 2003; Gomes & Pereira, 2005; Minayo & Deslandes, 1998; Selosse, 1996). São estratégias para o controle social com o objetivo de conter o que incomoda, mantendo a “ordem social”.

Esse esquema, que faz parte do processo de exclusão, é capaz de provocar uma desinserção desses jovens, dificultando a construção e realização de um projeto de vida diferente dessa realidade cruel (Gaulejac, 2003/2006; Selosse, 1996).

Diante da complexidade que constitui a trajetória destes jovens, vistos como objetos descartáveis pela lógica da exclusão/inclusão, ao estudar como ocorre a relação entre vivência de rua e uso de drogas, é importante conhecer sua história de vida, além da biografia. Esse conhecimento que nos foi ofertado via relatos, desenhos e demais instrumentos utilizados na pesquisa, pode ajudar na compreensão do percurso entre os sistemas pessoal, familiar e social, na tentativa de ajudar esses jovens a compreenderem e conectarem a sua trajetória e não desistirem de suas buscas (Carreteiro, 2003; Sawaia, 2008).

Nesta segunda zona de sentido buscamos discutir como as ausências (familiares e sociais), relatadas nas histórias de vida de Keny, Laércio e

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Felipe, os levaram à situação de rua como possibilidade de preenchimento desses “buracos”. Junto com o contexto das ruas e as posturas sociais perversas veio o uso do crack e suas consequências. No entanto, nos relatos destes jovens vimos que não houve o preenchimento da busca primeira, ao contrário, foram geradas novas inquietações e novas experiências desafiadoras. Porém, também foi possível constatar que apesar de todas as adversidades, elas não desistiram dos sonhos de uma vida diferente.

Considerações finaisAo chegar ao final deste artigo, é possível perceber que não há uma

conclusão e tampouco resultados finais que atendam de forma fechada ao objetivo proposto. Há sim, duas dimensões que fizeram parte da trajetória destes jovens, envolvendo equívocos e pistas: a primeira diz respeito aos equívocos na compreensão da problemática que envolve o tema sobre as drogas, por parte dos governos, tornando ineficazes os programas implantados; a outra revela uma beleza percebida no caminho percorrido com indicação de pistas concretas desta pesquisa. Tentar compreender como foi o itinerário dos jovens Keny, Felipe e Laércio, na busca por suportes identitários, no sistema familiar e social, em contexto das ruas e uso de crack, foi um aprendizado espetacular, para nós, enquanto pesquisadores.

Constatamos que as histórias de vidas destes três jovens revelam vivências particulares de sua condição pessoal e familiar. São três situações que têm pontos comuns, como a situação de rua e o uso do crack, mas trazem traços próprios que dizem respeito à história de cada sujeito, mostrando que há um tipo de juventude específica que sofre as consequências por estar nas ruas, como exclusão, marginalização, mas são juventudes com histórias distintas e itinerários próprios que os conduziram até essa condição (Mota, 2011; Souza, 2010).

O estudo da história de vida dos jovens Keny, Felipe e Laércio permitiu observar como o funcionamento familiar e social pode levar às ruas, porém não determinar o futuro desses jovens. Essa compreensão foi

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possível devido à articulação com a psicossociologia, constatando influências dos contextos social e familiar que levaram à fragmentação da história individual, mas não retirou os sonhos. Essa fragmentação se deu desde a infância, quando foram retirados de suas famílias de formas diversas, envolvendo situação social e econômica semelhantes. Mesmo com uma história de fragmentações, os jovens conservaram o desejo por um futuro diferente. Perguntamo-nos se essa postura de inteireza diante de tantas adversidades foi possível devido aos vínculos criados nesses espaços de vivências. Tal postura foi considerada na construção das zonas de sentido que possibilitaram observar a existência de um fio condutor, em sua história, a saber, as buscas dos jovens, capazes de se sustentar, superando a falta de investimento e de oportunidades sofridas.

Diante desse quadro pode-se perguntar que contexto social é esse, onde o jovem é empurrado para o mundo das drogas, da marginalidade e, na sequência, é preso, mata ou morre. Esse quadro faz questionar o papel da sociedade e do poder público, no que diz respeito à proteção e criação de oportunidades para a formação de seus jovens, dando-lhes direito de ter um projeto de vida.

É fato que as consequências do uso do crack são extremamente prejudiciais, como constatamos nos estudos sobre os efeitos dessa droga, mas colocar o crack como única bandeira não parece ser interessante. O foco não pode ser o crack como está posto na maioria das campanhas, seja do governo ou da mídia em geral. Colocar o crack na vitrine pode ser um esquema perigoso, seja pelo pânico social que se cria, seja pelo desvio do tema causador que leva ao uso das drogas. Dos três jovens que participaram desta pesquisa, por já terem fumado crack, dois deixaram o uso dessa droga, mas tinham dificuldade de deixar o álcool e a maconha. Somente um continuou com forte desejo de fumar o crack, porém o uso constante era do thinner. Essas trajetórias mostraram que o crack é somente a bola da vez, e essa droga não é onipotente o bastante para detonar a sociedade, como se prega; ao contrário, ela somente denuncia um sistema social que mantêm relações desajustadas, bem como não consegue dar oportunidade a todas as pessoas. O que percebemos é que as drogas como

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um todo mostram um espaço cativo diante de uma sociedade incapaz de articular suas forças políticas e econômicas em vista das pessoas excluídas de oportunidades de forma eficaz.

Chegamos ao final das reflexões que a pesquisa nos possibilitou compreendendo que, nesta busca por suporte identitário, ao longo de sua curta vida, pois a maioria morre antes dos 25 anos, o jovem é confrontado com as experiências vividas, carregadas de sofrimento e privações. Nesse contexto de buscas, a rua e o uso de drogas, especialmente o crack, além de não preencherem os vazios provocados pelas deficiências do sistema familiar e social, inauguram novos buracos insaciáveis.

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C A P Í T U L O 4 . 5

Crack e maternidade à “deriva”:sem ser filha, como ser mãe?

Luisa SoaresMaria Aparecida Penso

Maria Eveline Cascardo Ramos

O tema deste capítulo é a construção do papel materno de gestantes usuárias de crack e outras drogas, que vivem em contextos de exclusão. Tem como referenciais teóricos a Teoria Familiar Sistêmica e a Psicossociologia Francesa. A Teoria Familiar Sistêmica compreende a família como um sistema aberto, uma unidade funcional, composto de diferentes subsistemas que se relacionam entre si e com o meio externo de forma recíproca e complementar, sendo que para entender o funcionamento de qualquer pessoa pertencente a esta unidade, é necessário visualizar o contexto e o funcionamento das outras pessoas que fazem parte do seu grupo familiar (Almeida, Magalhães, & Feres-Carneiro, 2014; Minuchin, Lee, & Simon, 2008/1996; Penso, Costa, & Ribeiro, 2008; Sanchez, 2012). A Psicossociologia Francesa estuda a relação entre história e historicidade e os diversos fatores que contribuem para a constituição do indivíduo, compreendendo que este é constituído de uma subjetividade que é diretamente atravessada pelo contexto social, econômico e político, e também pela intersubjetividade produzida no e pelo social, que por sua vez também é produzida/influenciada pelo indivíduo (Gaulejac, 2014a, 2004b; Penso, Conceição, Costa & Carreteiro, 2012). Estes dois campos teóricos dialogam na busca da compreensão de como redes relacionais produzem sentidos, e onde e como se engendram o

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sujeito e o social. Também são acrescidos autores que estudam a questão da maternidade (Badinter, 1985/1980; Hooper, Doehler, Jankowski, & Tomek, 2012; Oliveira, Bittencourt, & Carmo, 2008; 2005; Olsen, Banwell, & Madden, 2014; Silva, Pires, Guerreiro, & Cardoso, 2013).

O Brasil é um dos principais mercados de crack do mundo, representando 20% do consumo mundial desta substância, o que significa que aproximadamente dois milhões de brasileiros já utilizaram crack/merla ou oxi (formas da cocaína fumada) pelo menos uma vez na vida (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas [Inpad], 2012). O Decreto nº 7.179, de 2010 instituiu o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, que prevê, entre outras ações, aquelas de prevenção, preparação da rede de saúde para atendimento desta demanda, preparo dos agentes envolvidos no processo e promoção e participação comunitária no combate e prevenção ao consumo de crack. No entanto, esse plano não especifica ações particulares para as mulheres gestantes usuárias de crack, um segmento que necessita ser estudado e ganhar visibilidade nas políticas públicas, uma vez que um terço da população diagnosticada como dependente química no mundo, em 2008, eram mulheres em idade reprodutiva (World Health Organization [WHO], 2008). O Ministério da Saúde lançou em 2012 o manual técnico de gestação de alto risco, vinculado às ações da Rede Cegonha, no qual prevê orientações para o acolhimento de gestantes usuárias de álcool e outras drogas nos serviços de saúde (Ministério da Saúde [Brasil], 2012). No Brasil não existe uma estimativa acurada sobre quantas gestantes fazem uso ou são dependentes do crack e outras drogas.

A gestação é um momento único na vida de uma mulher, mas repleto de insegurança e ambiguidade (Badinter, 1985/1980; Carter & McGoldrick, 2001). Não é um acontecimento apenas biológico e somático, mas também psicológico e social, que influencia diretamente a dinâmica psíquica e relacional da mulher (Hooper et al., 2012; Olsen et al., 2014; Piccinini, Lopes, Gomes, & De Nardi, 2008; Silva et al., 2013).

Os discursos partilhados socialmente vinculam a imagem da mulher ao da mãe, em seu papel de cuidadora, transmitido de mãe para filha,

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através das gerações e ao longo da história do mundo (Badinter, 1985/1980; Olsen et al., 2014; Silva et al., 2013). Entretanto, o papel materno é atravessado por questões contemporâneas como o uso de drogas, que acaba por colocar em discussão a possibilidade de que esta mulher seja capaz de cumprir sua função de mãe-cuidadora, conforme previsto no discurso social (Olsen et al., 2014).

Levando-se em consideração a complexidade da gestação e do uso de drogas, tanto para a gestante quanto para toda a rede sociofamiliar e profissional que a assiste, é importante estudar suas trajetórias familiar e social, a história do uso de drogas e a constituição do papel materno. Desta forma, o objetivo deste texto é compreender como a trajetória familiar e social e a transmissão geracional influenciam no processo de construção do papel materno de gestantes usuárias de crack e outras drogas.

Trajetória familiar e social, transmissão geracional do papel materno e uso de drogas

A família brasileira vem sofrendo, ao longo da história, grandes modificações no que tange aos papéis dentro do sistema familiar. Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, esta assume cada vez mais o papel de provedora financeira, além de manter seu papel materno que inclui a transmissão de valores e crenças associadas principalmente ao cuidado e a afetividade, que serão base estruturante para a forma como os filhos lidarão consigo próprios e com o contexto social (Almeida et al., 2014; Penso et al., 2008).

O papel parental é transmitido ao longo do Ciclo de Vida Familiar e da história transgeracional em que os diversos movimentos de uma família: casamentos, nascimento de filhos, filhos crescendo, filhos saindo de casa e formando novas famílias, são influenciados por uma rede de emoções que estão ligados aos relacionamentos anteriores e gerações passadas (Carter & McGoldrick, 2001; Eliacheff & Heinich, 2004; Oliveira et al., 2008). Esse movimento psíquico, relacional, emocional que

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conecta uma geração a outra nos mais diversos níveis, interfere na construção dos papéis filial e parental, sendo que a vivência enquanto filhos nas famílias de origem irão influenciar a forma como se tornarão pais em um processo de transmissão geracional, de diferenciação e identificação (Almeida et al., 2014; Bowen, 1976; Dias & Lopes, 2003; Eliacheff & Heinich, 2004; Hooper et al., 2012; Penso et al., 2008; Roldan & Galera, 2005; Zornig, 2010).

A relação entre desempenho do papel materno e uso de drogas necessita ser melhor estudada. Radcliffe (2011) observa que a maternidade é uma carreira, uma profissão que dá sentido, nem sempre positivo, à vida de mulheres que têm envolvimento com o uso de drogas. No entanto, este uso não é necessariamente preditivo de uma má maternidade ou de abuso/negligência infantil. Um estudo com mulheres dependentes químicas na Austrália constatou que muitas optaram por assumir a maternidade, fazendo escolhas conscientes em relação ao desejo de tornarem-se mães bem sucedidas, sendo que aquelas que possuíam a guarda de suas crianças buscavam ativamente por estratégias para evitar danos aos seus filhos, modificando, diminuindo ou até mesmo cessando o uso de drogas em resposta a fatores contextuais como pessoas e instituições de apoio, apontando para a necessidade de validação da capacidade de parentalidade dessas mulheres, negligenciada pelas pesquisas e pelo contexto social.

A gravidez pode ser vista como um momento de mudança e representar uma razão para parar de consumir drogas e começar os tratamentos de recuperação, mesmo que ocorram recaídas durante a gravidez ou após o nascimento da criança (Silva et al., 2013). Para esses autores, a gravidez e a maternidade de mulheres usuárias de drogas em Portugal é marcada por uma forte ambivalência entre o “vício” e a parentalidade, podendo surgir sentimentos e pensamentos contraditórios, como desespero, angústia e ansiedade, por um lado, e esperança por outro lado, significando uma chance para que essas mães, em razão do filho, iniciem algum tratamento, seja por iniciativa própria, seja por sugestão dos médicos que as acompanham.

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Numa perspectiva sistêmica, a dinâmica interna das famílias é compreendida como influenciando o desenvolvimento da dependência química em alguns de seus membros, que rompem com o núcleo familiar, sem de fato se individuar, o que os mantêm no mesmo padrão relacional da família de origem (Hooper et al., 2012; Roldan & Galera, 2005). No entanto, o uso de drogas deve ser compreendido como tendo origens não só na família, mas também no contexto social que exclui e penaliza uma grande parte da população. A exclusão é um processo complexo, sócio-histórico, que é vivido por meio dos sentimentos e ações; sendo um fenômeno dialético, no qual a sociedade exclui para incluir, e aquele que se encontra excluído acaba por perder seu direito à cidadania, principalmente no que tange à efetividade de direitos políticos, civis e sociais, incluindo a equidade de gênero (Gaulejac, 2014b; Sawaia, 2010).

Em contextos de exclusão, o uso de drogas surge como uma resposta ao olhar social que posiciona o sujeito à margem, uma via de fuga da realidade quando o indivíduo não consegue lidar com a situação, ou com a percepção desse lugar de exclusão, e opta pelo esquecimento do sofrimento, recaindo no uso de substâncias químicas como forma de fuga. Tal comportamento faz, muitas vezes, com que o sujeito entre cada vez mais fundo na condição de isolamento e exclusão social (Gaulejac, 2012, 2014b). No caso das mães-usuárias, a exclusão é tripla, pois além de dependentes químicas, muitas são pobres e vistas como mães que abandonam seus filhos em função da droga (Castilla & Lorenzo, 2012).

É nesse processo de exclusão que se desenvolve a identidade de muitas mulheres usuárias de drogas, em processo compreendido a partir do sujeito e do social (Gaulejac, 2014a); sem negar a importância da família como a matriz de identidade, onde o sujeito desenvolve papéis e funções específicas (Minuchin et al., 2008/1996). A vivência da exclusão pela mulher gestante usuária de droga passa a ser geradora de uma subjetividade singular, associando a exclusão social, cultural e política, à inclusão no contexto das drogas e às relações de poder que se estabelecem (muitas vezes em um contexto de rua) a partir do gênero, tudo isso

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encapsulado na invisibilidade social e no alijamento dos seus diferentes direitos (Castilla & Lorenzo, 2012; Silva et al., 2013;).

Em resumo, a maternidade é um processo complexo, que se encontra alicerçado na vivência individual da mulher em relação a sua trajetória social e familiar, na sua experiência no papel de filha, e no contexto sócio-histórico, econômico e cultural em que esta se insere.

MétodoTrata-se de uma pesquisa qualitativa que privilegiou a realidade

acima do método e busca conhecer ao máximo, e de forma a mais realista possível, a vida das participantes, sem perder de vista que todo conhecimento é sempre parcial e incompleto, e que a história contada é apenas um pálido reflexo daquela vivida (Demo, 2001).

Participantes da pesquisaTrês mulheres adultas gestantes e usuárias de crack e outras drogas

indicadas pela equipe de saúde da unidade onde eram acompanhadas, e que concordaram em participar voluntariamente da pesquisa. A idade variou entre 30 e 39 anos, com nível socioeconômico baixo, oriundas de outros estados, mas residentes do Distrito Federal desde a infância, desempregadas no momento da pesquisa, com escolaridade entre ensino fundamental e nível superior incompleto, tempo de gestação entre 27 a 38 semanas de gestação.

Aspectos ÉticosPesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade

Católica de Brasília, número 338.541 e Comitê de Ética em pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal – SES/Fepecs, número 598.542-0

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InstrumentosDiário de campo para registro descritivo das atividades relativas à

pesquisa, sendo um suporte documental pessoal da pesquisadora. Roteiro para entrevista em profundidade com foco nos seguintes temas da história de vida das gestantes usuárias de crack e outras drogas: história de uso de drogas pela gestante e outros membros da família, dos seus relacionamentos amorosos e gestações; relacionamento familiar; relacionamento mãe-filha; e genograma, diagrama esquemático da família, no qual se inserem dados concretos dos membros e de sua história (idade, grau de parentesco, sexo, geração), buscando visualizar aspectos sobre o tipo de relacionamento, conflitos, alianças, triangulações e padrões de repetição transgeracionais, auxiliando na compreensão da organização e dinâmica familiar nos seus diferentes níveis (Carter & McGoldrick, 2001; Penso et al., 2008). Nesta pesquisa, o genograma permitiu mapear a estrutura relacional e a dinâmica familiar das participantes.

Procedimento de coleta dos dadosForam realizados seis encontros individuais com cada participante da

pesquisa. O primeiro encontro ocorreu na ronda nos leitos do hospital, para apresentação da pesquisa e vinculação com as participantes, buscando acolher suas demandas iniciais; depois de consentida a participação. No segundo encontro foi assinado o termo de consentimento livre esclarecido (TCLE). No terceiro encontro foi construído o genograma, em papel pardo com lápis e canetas coloridas, enquanto as mulheres contavam sua história da família. No quarto encontro foi realizada a entrevista em profundidade, gravada em áudio. Para duas participantes, este momento ocorreu no hospital onde elas estavam internadas, sendo que por motivo de alta hospitalar a entrevista com uma participante foi realizada na casa de sua mãe, onde estava morando durante o pós-parto. O quinto encontro teve por objetivo verificar como as participantes estavam se sentindo após contarem suas histórias e, no sexto, foi realizada a devolutiva a cada participante, ressaltando as

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percepções positivas sobre as suas histórias e atitudes diante do processo que vivenciaram e estavam vivenciando. Também foi formalizada, junto a elas, a disponibilidade das pesquisadoras caso necessitassem de apoio psicológico ou algum tipo de acompanhamento. Desde o início dos contatos de aproximação do contexto e após cada encontro, as impressões foram anotadas no diário de campo, o que permitiu a análise da sua implicação e a ampliação da análise crítica.

Ao total foram realizados 18 encontros, sendo 15 no hospital e três em formato de visita domiciliar na casa onde as participantes se encontravam após alta hospitalar.

Procedimentos de análise de dadosAs entrevistas transcritas, juntamente com o diário de campo e o

genograma, foram analisados a partir da “Grounded Theory” (Teoria Fundamentada nos dados), proposta por Strauss e Corbin (2008), a qual permite organizar, comparar, sistematizar e categorizar os dados provenientes de diferentes instrumentos. Para auxiliar no tratamento e análise dos dados, foi utilizado o software Atlas/ti 7.1.8, programa de análise de dados qualitativos, ferramenta que contribui para organização dos materiais coletados (dados), auxiliando na construção das categorias de análise e criando relações entre os dados codificados pelo pesquisador. Nesta pesquisa, foram codificadas as entrevistas e as anotações do diário de campo. O genograma foi utilizado para compreender as histórias, a estrutura e a organização familiar, auxiliando a interpretação das demais informações codificadas. A partir do processo de codificação, foram identificados os analisadores que posteriormente foram agrupados em subcategorias, que formaram as categorias de análise conceitual da pesquisa, visando a contemplar a grande complexidade da vivência da maternidade por mulheres usuárias de crack e outras drogas.

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Resultados: trajetórias das participantesSerão apresentadas, brevemente, as trajetórias social e familiar das

participantes, buscando retratar sua vivência no papel de filhas, a história das gestações e relacionamentos com pares, a história de suas famílias de origem, visando a compreender a trajetória na construção do papel materno de cada uma das participantes. Para cada uma das histórias foi desenvolvida uma metáfora que representou a essência da trajetória contada pelas participantes. Para garantir o anonimato das participantes, foram empregados nomes fictícios.

“O Amor e o Tráfico” – Claudia é filha única de uma família radicada em Brasília há mais de 30 anos, que veio para a cidade em busca de oportunidades de trabalho. Devido à distância física em relação à família de origem, o vínculo com a família tornou-se enfraquecido, e as relações distantes. O excesso de trabalho dos pais fez com que a comunicação na família se configurasse como distante. Claudia relatou a presença de conflitos entre sua mãe e sua avó materna, e entre ela e sua mãe, denotando uma repetição deste padrão. Para Claudia, o conflito entre ela e sua mãe existiu desde a sua infância, sendo que a única ligação afetiva forte era com seu pai, que fazia uso abusivo do álcool, gerando conflitos na família, principalmente entre o casal, o que afastava Claudia de casa. Aos 12 anos, após muitas acusações da mãe em relação a um possível envolvimento com drogas, Claudia decidiu fazer uso de maconha e cocaína como forma de afrontá-la. Após o contato com a droga, envolveu-se com um traficante, de cerca de 40 anos, com quem namorou e viajou para outros países com o objetivo de traficar drogas para o Brasil. Tal situação ocorreu entre os 12 e 18 anos de Claudia, período em que teve muitos atritos com a mãe, com quem não falava nem ao telefone, informando apenas o básico ao seu pai. Após o término desse relacionamento, Claudia retornou à casa dos pais e passou a trabalhar no negócio da família, onde conheceu o seu esposo, que não tinha envolvimento com drogas, e com quem permaneceu casada por 12 anos e com quem teve dois filhos, apesar de ter engravidado três vezes, porém na última gestação o bebê faleceu ainda em seu útero. Ela fez uso de drogas

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durante a gravidez do primeiro filho e, após seu nascimento, levava-o inclusive para “bocas de fumo”, onde permanecia por dias, o que gerou muitos conflitos em seu casamento. Nessa ocasião, passou por um processo intenso de depressão, que culminou na sua primeira internação para tratamento, sendo que nesse período, sua mãe assumiu os cuidados de seu filho ainda pequeno. Após três meses na clínica, seu pai faleceu e Claudia evadiu do tratamento. Entretanto, devido à culpa em relação ao desejo do pai de que ela parasse de usar drogas, resolveu voltar a se tratar e permaneceu abstinente por dez anos, até o início do processo de separação de seu atual marido.

Após a separação, Claudia vivenciou uma batalha judicial pela guarda dos filhos, mudou-se para outra cidade e intensificou o uso de drogas. Em uma das vindas para Brasília para uma audiência, conheceu seu último companheiro, que também era traficante, e passou a usar crack. Engravidou novamente e tentou parar o uso do crack, voltando a consumir cocaína de forma injetável. Sem conseguir parar sozinha, em um momento de “desespero” procurou ajuda em um posto de saúde e foi encaminhada ao hospital, onde ficou do quinto mês da gestação até o parto. Neste momento a mãe de Claudia reaproximou-se dela ajudando-a financeiramente e visitando-a no hospital. Durante sua internação e nos contatos com as pesquisadoras, Claudia demonstrou em diversos momentos ambiguidade entre o desejo de se tratar internada e o de ir embora. Entretanto, conseguiu permanecer com o apoio de uma tia materna, a quem se refere como modelo de afeto. Duas semanas antes no nascimento do bebê, seu companheiro foi assassinado em uma “boca de fumo”, o que fez com que Claudia entrasse em “estado de desespero”. Ao final das entrevistas, após tentar morar com sua mãe e filhos do primeiro casamento, Claudia residia com sua tia materna na casa dos fundos de sua mãe e manifestou o desejo de ir morar com os sogros e seu bebê, a convite dos mesmos, em uma cidade próxima a Brasília.

“Pela Rua” - Cristiane é a última filha do primeiro casamento de sua mãe e a quinta de seus sete filhos. Seu pai faleceu da doença de chagas após seu nascimento e sua mãe teve mais dois filhos com outro

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companheiro, apesar de nunca ter de fato vivido com ele. É proveniente de uma família muito humilde, oriunda de um estado do Nordeste do país e que, desde sua chegada ao Distrito Federal, residiram em áreas de vulnerabilidade e não tiveram contato próximo com a família de origem devido à distância e à falta de recursos financeiros para viajar, o que fez com que a família perdesse o contato com eles. Sua avó também teve muitos filhos e não estabeleceu vínculo forte com a mãe de Cristiane e, com a distância, os contatos deixaram de existir.

Cristiane relatou que teve uma infância muito difícil, permeada por dificuldades financeiras e ausência de sua mãe que trabalhava em vários empregos para sustentar a família. Sempre se sentiu deslocada e o “patinho feio” da família, não conseguindo interagir com seus irmãos. Com 14 anos, por convite de amigas foi pela primeira vez ao centro de Brasília, onde passou a participar de festas e conheceu o mundo das drogas. Essa situação a fez se sentir livre, permanecendo cada vez mais dias fora de casa, até que passou a viver definitivamente na rua onde permaneceu até os 19 anos. Durante este período, teve algumas passagens pela Vara da Infância e Juventude, foi internada em uma unidade socioeducativa para adolescentes e em diversas instituições de acolhimento devido a sua situação de rua, envolvimento com drogas e atos infracionais. A família, em diversos momentos, tentou levá-la de volta para casa, mas Cristine sempre voltava às ruas e ao consumo de drogas. Aos 19 anos conheceu seu primeiro companheiro em um abrigo para acolhimento de adultos em situação de rua e decidiram morar juntos. Nos 13 anos que permaneceram juntos, Cristiane teve três filhos e conseguiu manter-se abstinente das drogas. Porém, seu companheiro não parou de consumir drogas quando estava fora de casa, o que fomentou um cenário de violências, agressões físicas e traições que culminou na depressão de Cristiane e no final do relacionamento em 2011.

Após o término do casamento, Cristiane não aguentou as pressões de criar os filhos, pagar aluguel e voltou a fazer uso de drogas, especialmente do crack, perdendo o emprego e a guarda dos filhos para o Estado, o que fez com que ela retornasse mais uma vez para as ruas e intensificasse o uso

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de drogas. Nesse período, que durou aproximadamente dois anos, Cristiane conheceu seu atual companheiro e pai de seu último filho. Ambos viviam em estacionamentos do centro da cidade, vigiando carros e consumindo crack, até que ela engravidou e ele foi preso. Sem muitas perspectivas, recorreu à sua família para pedir ajuda, e seus familiares lhe propuseram um acordo em que a ajudariam caso ela aceitasse se tratar. Ela aceitou e foi encaminhada ao hospital de referência para mulheres grávidas usuárias de drogas, onde permaneceu por quase dois meses até o nascimento do bebê. Na ocasião da realização da pesquisa, Cristiane morava em um barraco alugado pelos irmãos, próximo à casa de sua mãe, e aguardava ansiosamente parar de amamentar seu bebê para conseguir um emprego, revelando que assim que possível queria recuperar a guarda de seus outros três filhos e organizar sua vida com o apoio de sua mãe.

“Era uma vez” - Camila é filha única de um casal que veio jovem para Brasília, sem o consentimento dos pais, pois estes eram contra o relacionamento entre eles. Isto fez com que rompessem todo e qualquer contato com a família de origem. Seu pai era militar e sua mãe secretária e depois diarista. O pai bebia muito e sua mãe o buscava em bares e na rua. Essa situação durou alguns anos até que um dia seu pai foi encontrado morto com traumatismo craniano aparentando ter sido assassinado, apesar de este fato nunca ter sido concluído em inquérito policial. Com a morte de seu pai, quando Camila tinha sete anos, sua mãe passou a trabalhar dois turnos e a depender de ajuda assistencial do governo para conseguir manter a filha e a casa. Nesse período, Camila ficou sob os cuidados de uma instituição para que a mãe pudesse trabalhar. Aos 16 anos, teve sua primeira gravidez indesejada, e fez um aborto por meio de medicação, sem que a mãe soubesse.

Após anos vivendo de aluguel, sua mãe ganhou um lote e começaram a construir uma casa. Entretanto, um mês após o término da construção, sua mãe faleceu. Camila já tinha 25 anos e, com mais esta perda, tentou sobreviver sozinha; porém, por convite de amigas, preferiu ir a festas e bares ao invés de trabalhar e acabou perdendo o emprego, mas se manteve com a renda do aluguel de um dos quartos de sua casa, o que

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permitiu que de alguma maneira mantivesse o uso de drogas e a frequência a bares. A partir dessa época, Camila variou entre períodos em casa de amigas, bares, festas, rua e conheceu dois homens que mudaram sua vida. Um deles era um homem mais velho, separado, que oscilava entre a figura de pai e amigo, mas que é referido por Camila como namorado. O segundo, mais jovem, casado e com uma condição financeira boa, com quem teve relações sexuais em alguns momentos, o que resultou em uma gravidez.

Camila passou toda sua gestação usando drogas e em bares até o momento que passou mal na rua e foi encaminhada para o hospital de referência para mulheres grávidas usuárias de drogas, acreditando estar com apenas quatro meses de gestação. Porém, ao chegar ao hospital foi imediatamente encaminhada para a realização do parto de um bebê prematuro de 35 semanas. Devido ao quadro grave de saúde do bebê, Camila permaneceu internada no hospital junto ao bebê por mais de dois meses. Nesse período, houve uma movimentação da equipe do hospital na tentativa de auxiliá-la nesta nova fase e de buscar uma rede de proteção para ela e o bebê. Na ocasião da pesquisa, após alta, Camila havia voltado para sua casa, e buscava organizar sua vida com o auxílio dos avós paternos de seu bebê.

DiscussãoA categoria discutida neste artigo denomina-se maternidade à

“deriva” - se minha mãe não foi mãe, como posso ser filha? Sem ser filha, como ser mãe? Nesta categoria é possível perceber o movimento das participantes em recuperar as referências positivas que possuíam em sua história sobre o que é ser mãe e o que significa o cuidado e o afeto pelos filhos. Entretanto, essa busca é frustrada porque os referenciais ficam minados pela inexistência dos vínculos afetivos que se romperam entre elas e suas mães. Na construção dos genogramas das mulheres e suas famílias observa-se uma sequência de rompimentos com a linhagem materna pela impossibilidade de experimentar a proteção e o

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afeto como filha, necessários à construção do papel de mãe. Para as participantes, a aproximação com a mãe ocorre quando elas engravidam. Neste momento, recebem o apoio das suas mães. Entretanto, esse apoio parece ser motivado mais pela criança que vai nascer do que pela saúde da gestante, apontando para uma lealdade à filha, com quem não conseguiu se vincular, mas que pode ser recuperada com a/o neta/o.

Esta categoria é constituída por duas subcategorias, formada por indicadores sobre: Relacionamento com a mãe e referências maternas, em que se buscou compreender o atual relacionamento das participantes com suas mães, como foi no passado e também a sua influência na forma como desempenham o papel materno; e a História da(s) gestação(ões) que teve o objetivo de resgatar a história das gestações com foco na trajetória social e relacional.

Relacionamento com a mãe e referências maternas. Como já descrito na literatura, a relação mãe e filha é fundamental na estruturação do papel de mãe, que surge da identificação da filha e do modelo disponibilizado pela mãe (Dias & Lopes, 2003; Eliacheff & Heinich, 2004; Hooper et al., 2012; Roldan & Galera, 2005; Zornig, 2010). Para as participantes, tal identificação mostrou-se comprometida pela dupla exclusão, primeiro pelo desamparo imposto pela mãe e, em segundo lugar, pela relação com a droga, sendo que as duas situações a colocam em contexto de isolamento familiar e de vulnerabilidade social. Em termos mais específicos, cada participante relatou uma história em que os caminhos percorridos e as trajetórias sociais são diferentes no que diz respeito às relações familiares e à construção do papel maternal. Claudia teve referências familiares, apesar de serem ambivalentes, e quando necessita recorre a esses vínculos; Camila não possui referências de família nuclear viva e nem sabe sobre sua história familiar, o que a leva a buscar contextos de pertencimento junto a pares e à comunidade onde mora desde criança; Cristiane, apesar de ter uma família, não se vinculou à mesma, recorrendo à vivência nas ruas, como um contexto de pertencimento. Ou seja, cada uma dessas mulheres buscou, nos

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relacionamentos disponíveis, um caminho para lidar com as dificuldades nas suas relações familiares e com suas mães.

Todas as participantes buscaram referências positivas em suas histórias sobre o que é ser mãe, seja nas condutas das amigas ou, no caso de uma das gestantes, em uma tia materna. Nessas relações, as participantes procuraram construir um modelo significativo para o cuidado e o afeto pelos filhos, apesar de suas histórias transgeracionais de fragilidade no vínculo filial e a sequência de rompimentos com a família tenham dificultado a identificação com a mãe e a construção do papel materno a partir da vivência do papel de filha (Almeida et al., 2014; Bowen, 1976; Dias & Lopes, 2003; Eliacheff & Heinich, 2004; Zornig, 2010).

Para Eliacheff e Heinich (2004) e Zornig (2010), o processo de separação-individuação do núcleo familiar, quando se trata da relação mãe-filha, fica extremamente conturbado no período da adolescência. Entretanto, para individuar-se, a mulher necessita se identificar com a figura materna e esses processos, tanto de identificação como de individuação, permitem que a mulher possa criar referenciais maternos que a habilitem a assumir a maternidade de forma tranquila e, se possível, consciente. Esse processo diz respeito ao movimento de pertencimento e individuação descrito por Bowen (1976) e estudado por outros autores que discutem a transmissão geracional (Carter & McGoldrick, 2001; Eliacheff & Heinich, 2004; Penso et al., 2008; Sanchez, 2012).

Um dado importante da pesquisa é a reaproximação com a mãe a partir da gestação, momento em que as mães as apoiaram, apesar de as participantes relatarem a existência de um relacionamento sem grande vinculação e diálogo. Mesmo assim, foi a essas mães que as participantes recorreram quando estavam em dificuldades. Também reconhecem que suas mães são referência de mulheres trabalhadoras e esforçadas para manter a família. Entretanto, os relatos das participantes levam à hipótese de que este apoio é motivado mais pela criança que vai nascer do que pela saúde da gestante, mais uma vez desqualificando as filhas em seus papéis de mãe. Pode-se pensar, aqui, nas lealdades invisíveis que

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Boszormenyi-Nagy e Spark (2001) conceitua como conteúdos que atravessam gerações e servem como mantenedores da homeostase da família. As lealdades estabelecem obrigações de dar e receber entre as gerações e o equilíbrio das relações se refere aos débitos e créditos que devem corresponder às expectativas dos familiares, repetidamente, por gerações. No caso, tem-se que as mães que não cuidaram das filhas, passam a cuidar dos netos, recuperando, assim, a falta de afeto e cuidado que deixaram de ter para com suas filhas.

A maternidade é um momento de redefinição de papéis, em que a filha, ao tornar-se mãe, valida seu modelo materno de referência, muitas vezes rechaçado na adolescência, sendo que nesse processo é muito importante a relação afetiva que se estabeleceu entre mãe e filha (Dias & Lopes, 2003; Oliveira et al, 2008; Olsen et al., 2014). Nas histórias das participantes, o modelo materno é enaltecido em seu aspecto concreto, uma vez que as participantes, mesmo relatando as dificuldades afetivas com as mães, reconhecem as mesmas como mulheres trabalhadoras, que travaram uma batalha para sustentarem suas famílias. Ou seja, apesar de as mães representarem um modelo aparentemente positivo, ele é empobrecido de afetividade, fator de extrema importância para a transmissão e construção do papel materno.

Quanto à história da(s) gestação(ões), as participantes relatam que não utilizavam métodos contraceptivos, sendo as gestações não planejadas; e, até em alguns casos, indesejadas. Os filhos foram concebidos em meio a uma trajetória de conflitos dentro dos relacionamentos com os parceiros e essas mulheres parecem ser “aprisionadas pelo destino” que as empurra, mais uma vez, para esse papel tão forte na construção da identidade feminina, que é o papel materno. Todas fizeram uso de drogas durante a gestação de pelo menos um dos filhos e, por isso, convivem com o constante medo de que o filho apresente algum tipo de problema.

O desejo de ter um filho é algo para além da simples vontade de ser mãe ou de perpetuar sua linhagem familiar, havendo uma ligação inconsciente com a elaboração da feminilidade e com o que significa ser mãe (Eliacheff & Heinich, 2004; Zornig, 2010). A gravidez é um

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momento que liga a vivência atual com o passado vivido em seu lugar de filha e como mulher. Com o nascimento do filho, são colocadas em jogo as relações mãe-filha e mãe-bebê para a constituição deste novo papel (Eliacheff & Heinich, 2004; Oliveira et al., 2008).

A gestação para mulheres usuárias de drogas pode ser vista como um momento de mudança em que acabam sendo resgatadas do uso de drogas em função da criança que está por vir. Na pesquisa, as participantes, por meio da concepção, buscaram, de forma subjetiva, reeditar sua história filial e social. Elas adquiriram visibilidade social perante a família, o companheiro e a sociedade. Contudo, essa visibilidade é carregada de um olhar de vigilância e controle para que elas não causem dano ao bebê, sendo que qualquer deslize as faz retornarem para o lugar de exclusão e “monstrificação” (Castilla & Lorenzo, 2012; Sawaia, 2010). Em termos de saúde pública, como a política relacionada à saúde da mulher tem seu foco pautado principalmente na saúde reprodutora da mulher, as participantes são atendidas durante a gravidez, recebendo ajuda profissional inclusive em relação à questão da dependência química. Entretanto, após o nascimento do bebê, elas retornam para seu contexto original, e não há um prosseguimento de acompanhamento nem para a questão das drogas nem para a condição da maternidade. Deste modo, não lhes são garantidos novos contextos de pertencimento que avalizem a construção de novas relações e nem referenciais positivos que possibilitem a mudança efetiva.

Considerações FinaisO conhecimento das trajetórias familiar e social das participantes e de

como isso influenciou na construção do seu papel materno apontou para a presença de fragilidades e conflitos na relação com as mães. No entanto, isso não inviabilizou a apropriação do papel materno, apesar de ter exigido das mulheres a busca por referenciais maternos positivos em outras relações pessoais com os quais pudessem se identificar, tais como tias e amigas. A relação entre as mães e as participantes da pesquisa é

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retomada quando as participantes ficam grávidas e têm seus filhos, suas mães retornam no papel de avós para cuidar do neto e não da filha. A gravidez e o filho devolvem a visibilidade a essas mulheres, antes invisíveis diante da família, das políticas públicas e da sociedade, e os netos passam a ser intermediários afetivos na relação mãe – filha.

Ainda, com relação às possibilidades de identificação com o papel materno, as histórias transgeracionais das três participantes apresentam rompimento com as famílias de origem, ocorrida no momento em que se mudaram de cidade em busca de melhores condições de vida. Tal situação parece ter contribuído para a fragilidade dos laços familiares, contribuindo para a perpetuação de situações de rompimento de relações na família nuclear das participantes. O uso de drogas surge como uma forma de preencher lacunas afetivas e de lidar com relacionamentos conturbados no âmbito familiar, falta de grupos de suporte adequados, contextos sociais saudáveis e instituições de apoio. Isso fez com que as participantes fossem para as ruas e para contextos de pertencimento inadequados onde se depararam com situações de vulnerabilidade inerentes a esse espaço, como a prostituição, as drogas e o tráfico.

No entanto, são mulheres que ao serem encaminhadas para um serviço de saúde, aderiram ao tratamento. Esta pode não ser a realidade da maioria de mulheres na mesma situação. Provavelmente, algo ocorreu em suas trajetórias e fez com que elas fossem capazes de se vincular e ter o desejo de mudar suas vidas, o que, na prática, não ocorre com tanta frequência, visto as inúmeras evasões de hospitais por outras pacientes com perfil de dependência química e situação de rua que frequentavam o serviço de saúde.

Importante ressaltar que o número de evasões do serviço de saúde é muito alto e que não existem critérios bem definidos para alta. Isto aponta para a necessidade de construção de um protocolo específico de atuação nesses casos por parte da equipe de saúde, uma vez que essas mulheres não se adaptam aos protocolos de um pré-natal normal. Além disso, observa-se a necessidade de um acompanhamento individualizado dessas mulheres que possibilite a transformação do ciclo transgeracional

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de rompimentos do vínculo materno e das histórias familiares, bem como políticas públicas que garantam espaços de atenção e inclusão dessas mulheres em outros contextos sociais, políticos e econômicos.

ReferênciasAlmeida, M. E., Magalhães, A. S., & Feres-Carneiro, T. (2014)

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C A P Í T U L O 4 . 6

A polifonia da temática das drogas em um seminário regional

Núcleo Abramd–Sul: espaço para problematização e controle social

Jardel Fischer LoeckLuciane Raupp

IntroduçãoO estado do Rio Grande do Sul já foi reconhecido no país como

campo importante de luta, de práticas e de emergência de atores sociais que se destacaram a partir da década de 1990 no campo da construção de ações, debates e práticas alinhadas a paradigmas que eram então (e para certos segmentos, ainda são) considerados “alternativos” no vasto campo de estudos e práticas sobre usos de substâncias psicoativas. A conquista desse espaço ocorreu devido à presença de movimentos de luta por espaços de discussão e ação que tinham por referência o antiproibicionismo e a redução de danos, constituída então como principal estratégia para a construção de caminhos possíveis que não apenas o encarceramento e a abstinência para usuários problemáticos de drogas, indo na esteira da luta pela garantia de seus direitos (Nardi & Rigonni, 2009).

Apesar dessa história, assiste-se na atualidade à diminuição - e mesmo à extinção em alguns cenários regionais importantes - de programas de redução de danos, aos quais foram gradativamente sendo destinados menores incentivos, recursos e apoio governamental (Amaral, 2013; Nardi e Rigonni, 2009). Esse movimento reduziu o espaço de atuação concreto

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da redução de danos no Estado, ao mesmo tempo em que cresceram e institucionalizaram-se os incentivos ao financiamento público de vagas em comunidades terapêuticas, amplamente presentes no território e à terceirização da gestão de espaços fundamentais como os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD). Ações de repressão a usuários de crack em situação de rua ocorrem amplamente no escopo de práticas de repressão à venda de substâncias psicoativas ilícitas. Os poucos espaços de resistência dependem de ações locais, as quais em muitas cidades são pontuais, ou ligadas a poucos espaços de militância que ainda resistem, apesar da crescente onda conservadora que mostra-se com cada vez mais força no país.

Levando em consideração essa realidade regional, o presente texto visa abordar as tensões presentes no campo das políticas públicas, das ações e das práticas voltadas aos usos problemáticos de substâncias psicoativas, destacando que apesar das diretrizes que regulam as práticas de saúde serem claras em relação aos seus pressupostos ontológicos e diretrizes, no que tange aos seus desdobramentos concretos a realidade reflete uma polifonia de formas de compreensão e, consequentemente, de ação, fruto de distintos campos político-ideológicos. De uma forma sintética tais orientações refletiriam ontologias políticas mais amplas, tendo por efeito a produção de uma dualidade no campo: ou se está ligado ao jogo de forças que aproxima proibicionismo e patologia; ou se opera na lógica que interliga descriminalização (legalização) e práticas que operam na lógica da redução de danos.

Dado o desanimador cenário político-institucional atual, no qual se assiste ao desmonte de políticas arduamente conquistadas por anos de luta e ativismo político no Brasil, consideramos de importância estratégica da criação e expansão nacional de espaços participativos e fóruns que fomentem a garantia de direitos e instiguem à criação de dispositivos sociais que tenham nas práticas de redução de danos e na crítica ao proibicionismo o eixo de união de diferentes atores sociais. Nesse intuito, em dezembro de 2016 foi iniciado um movimento participativo envolvendo profissionais e pesquisadores atuantes na região metropolitana

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de Porto Alegre e em distintos polos do Estado para iniciar o que veio a se consolidar como o núcleo Abramd Sul por meio da realização do I Seminário Abramd Sul - RS. Em um momento de esvaziamento de políticas e espaços de fortalecimento da redução de danos compreendida como uma ética do cuidado, para além de uma estratégia clínica (Santos, 2017), o seminário realizado aproximou pessoas e abriu novos caminhos para a luta política e o fomento ao debate e à produção de conhecimento alinhada a uma perspectiva mais respeitosa aos direitos e às liberdades dos sujeitos que, dentre várias outras práticas em suas vidas, fazem uso de substâncias psicoativas. Esse texto busca problematizar essas questões e divulgar os principais temas debatidos no I Seminário Regional Abramd Sul – RS.

A polifonia das políticas públicasEm termos de legislação sobre drogas, ainda que a legislação atual no

Brasil, a Lei 11.343/2006 (Brasil, 2008), faça a distinção entre “traficantes” e “usuários” de substâncias ilícitas, são notórios e documentados os problemas ainda existentes na mesma. Os trabalhos de Policarpo (2010) e Fiore (2012), dentre outros, apontam algumas dessas tensões. Se nestes quesitos não podemos ainda dizer que avançamos muito nos últimos anos, pensando em legislações menos punitivas, menos estigmatizantes e que não reforcem o racismo e a exclusão social, em relação a questões de saúde relacionadas às práticas de uso de substâncias psicoativas talvez tenhamos avançado um pouco mais. De acordo com Machado e Miranda (2007), a partir da década de 1980 percebe-se em curso a tendência de inclusão dos usuários problemáticos de substâncias psicoativas e dos dependentes químicos na rede de saúde pública, privada e da sociedade civil, ainda em consonância com leis sobre drogas bastante repressivas que ainda vigoravam à época.

De acordo com Alves (2009), foi apenas depois do ano de 2003, com a publicação d’A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (Brasil, 2004) que o Ministério da

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Saúde assumiu o compromisso de enfrentar de maneira integral os problemas associados ao consumo de álcool e outras substâncias psicoativas, colocando o tema na agenda da saúde pública. A partir deste documento a abordagem de saúde deixou de ser um acessório das políticas públicas e foram elaboradas algumas diretrizes para a área:

Em consonância com os princípios e orientações do SUS, da reforma psiquiátrica, e segundo uma lógica ampliada de redução de danos. Propuseram-se como diretrizes: a alocação do uso de álcool e outras drogas entre os problemas da saúde pública; a indicação do paradigma da redução de danos nas ações de prevenção e de tratamento; a desconstrução da concepção do senso comum de que todo usuário de drogas é doente e requer internação ou prisão; e a mobilização da sociedade civil para práticas preventivas, terapêuticas e reabilitadoras (Machado & Miranda, 2007, p. 818).

Foi proposta, ainda segundo os mesmos autores, a criação de uma rede de atenção territorializada dentro do SUS e a construção de uma rede de assistência formada por Centros de Atenção Psicossocial álcool/drogas (Caps-AD), enquanto espaços especializados, e unidades básicas de saúde, programa de saúde familiar e hospitais no atendimento geral. Mas antes do estabelecimento dessas redes de atenção mantidas pelo governo brasileiro, temos há muito mais tempo outras instâncias terapêuticas como os grupos de ajuda mútua e as comunidades terapêuticas religiosas atuando no cuidado aos usuários de substâncias psicoativas.

O que ocorreu é que após a implantação dessas políticas nacionais houve a necessidade, no mínimo em termos regulatórios, da integração das práticas governamentais com as da esfera particular e da sociedade civil, que em alguns casos já existiam há mais tempo – os grupos de Alcoólicos Anônimos surgem no Brasil no final da década de 1940 e os grupos de Narcóticos Anônimos datam da metade da década de 1980 (Loeck, 2009); já as primeiras comunidades terapêuticas no Brasil datam

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do final da década de 1970 (Loeck, 2014, Sabino & Cazenave, 2005). Estas passarem a ser consideradas instituições complementares aos equipamentos da rede pública. Explicitou-se, desde então, a existência de uma rede de instituições e modelos terapêuticos que é maior do que os componentes do Sistema Único de Saúde e Sistema Único de Assistência Social e, apesar de terem de respeitar em alguns casos determinadas diretrizes básicas para o seu funcionamento, as políticas públicas não interferem especificamente nos conceitos e práticas que circulam nessas instituições complementares como as comunidades terapêuticas ou os grupos de Narcóticos Anônimos. Tampouco interfere nas idiossincrasias morais e políticas de profissionais da rede pública de atenção atuando em equipamentos como Caps, hospitais públicos etc.

Assim, além das instituições públicas pertencentes ao Sistema Único de Saúde – pautadas pelos conceitos biomédicos – as políticas públicas de atenção preveem a participação de instituições filantrópicas, religiosas e de ajuda mútua. Fato que por si só torna a ideia de rede de atenção bastante heterogênea. As políticas públicas de atenção aos usuários de substâncias psicoativas no Brasil, ao atrelarem a criação, a manutenção e a atualização da rede de atenção ao discurso, à pesquisa (avaliação) e à prática científica, permitem a reprodução de tensões inerentes ao próprio campo técnico e científico sobre o tema. Por mais que seja possível observar nesses documentos um discurso que privilegia a redução de danos como principal estratégia de saúde, as práticas que buscam a abstinência – e, portanto, assimilam os usos de psicoativos sempre como potencialmente problemáticos – são mais valorizadas, visíveis e preponderantes na atualidade, o que parece acontecer é que existem duas vertentes de abordagem da questão, a da abstinência e da redução de danos, se tocam menos do que poderiam na prática. Parecem ocupar espaços e tocar indivíduos de maneira colateral, não coincidente. Ou se está de um lado, ou de outro. O que pode tornar a rede de atenção menos sistêmica na prática do que no texto das políticas públicas. Se na teoria existe uma espécie de circuito lógico, no qual os indivíduos que ingressam na rede de atenção devem trilhar preferencialmente, ao atentarmos para seus

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deslocamentos concretos é possível perceber que o desenrolar dos fatos nem sempre se dá dentro da perspectiva ideal.

É possível afirmar que, em termos gerais, as políticas públicas brasileiras preveem diferentes modelos terapêuticos e que eles não necessariamente compartilham dos mesmos princípios ontológicos. Há duas ontologias políticas mais amplas e não necessariamente convergentes em ação no Brasil atual – no âmbito legal, a proibicionista de um lado e a descriminalizadora ( legal izadora) do outro; no âmbito da saúde/terapêuticas a patologia/abstinência de um lado, e a redução de danos de outro. Grosso modo, pode-se dizer que estão a proibição e patologia/abstinência de um lado; descriminalização (legalização) e redução de danos de outro.

O mais importante de ser notado aqui é que as abordagens teórico-práticas da ciência e da técnica, tanto de um lado quanto de outro dessa polarização conceitual, expressam enunciados políticos. Algumas vezes explícitos e outras vezes implícitos nas próprias práticas de categorização e intervenção direcionadas aos usuários de psicoativos. A politização do discurso e da prática nesses dois polos fica explicitamente perceptível se pensarmos, por exemplo, em como cada lado aborda o indivíduo usuário de psicoativos – um cidadão pleno, na vertente da redução de danos; um doente sem autocontrole, na vertente voltada para a abstinência. Por este motivo é interessante a aproximação com o conceito de ontological politics desenvolvido por Annemarie Mol:

Ontological politics é um termo composto. Ele fala de ontologia – que na linguagem filosófica padrão define o que pertence ao real, as condições de possibilidade com que vivemos. Se o termo ‘ontologia’ é combinado com o de ‘política’ então isto sugere que as condições de possibilidade não são dadas. Que a realidade não precede as práticas mundanas com as quais interagimos, e sim que é moldada por essas práticas. Então o termo política trabalha para destacar este modo ativo, esse processo de moldagem, e o fato de que seu caráter é tanto aberto quanto contestado. (Mol, 1999, p. 75)

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Com isto é possível afirmar que há diferentes performances dos usos problemáticos de drogas. Como sugere Mol (1999), quando fala de ontological politics, não é o caso de realidades plurais, mas múltiplas. Não há diferentes versões do uso problemático de drogas em ação, mas diferentes usos problemáticos sendo colocados em prática em situações específicas através da associação de atores sociais específicos – pessoas; instituições; profissionais dentro de instituições etc. E não se trata apenas do uso de termos e conceitos diferentes – noção de “adicção” nos grupos de Narcóticos Anônimos; dependência química enquanto doença crônica em alguns contextos biomédicos etc. – e sim de diferentes performatividades tanto da noção de patologia quanto da de terapêutica.

Retomando o argumento anterior, um dos princípios mais importantes apresentados no documento da Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (Brasil, 2004) é de que a abstinência não pode ser o fim único a ser alcançado pela rede de atenção em saúde. Assim estabelece que a redução de danos seja a principal estratégia a nortear as diversas práticas, independentemente de quais sejam elas. Mas o que significa definir a redução de danos (RD) como principal estratégia da rede de atenção em saúde para usuários de álcool e outras drogas? Que as práticas de RD não são as únicas a serem colocadas em ação para o cuidado dessas populações. A RD passa a ser o princípio ideal norteador das políticas públicas como um todo, mas não se sobrepõe, enquanto prática, às ações de tratamento baseadas em internação ou mesmo outras que são baseadas no ideal de abstinência – praticado em comunidades terapêuticas, grupos de ajuda mútua, e também por profissionais da saúde distribuídos em pontos diversos da rede pública e/ou particular.

A redução de danos pode ser interpretada de diferentes maneiras: pode ser vista como um paradigma que constitui outro olhar sobre a questão das drogas e álcool e institui outras tecnologias de intervenção, que respeitem a diversidade das formas de ser e estar no mundo, e promovam saúde e cidadania; como um conjunto de estratégias para promover saúde e cidadania, construídas para e por pessoas que usam

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substâncias psicoativas ilícitas e lícitas, e que buscam minimizar eventuais consequências negativas do uso dessas substâncias sem colocar a abstinência como único objetivo do trabalho em saúde; também pode ser vista como uma política pública centrada no sujeito e constituída com foco na promoção da saúde e cidadania das pessoas.

De qualquer forma, apesar de ter sido instituída como o princípio norteador das políticas públicas de atenção aos usuários de psicoativos, a redução de danos enquanto estratégia e/ou prática não ocupou toda a rede de atenção em saúde para usuários de substâncias psicoativas e parece cada vez mais depender de militância política específica para se fazer presente; ou de profissionais espalhados pela rede que compartilhem desses ideais e os pratiquem em seus cotidianos de trabalho (Amaral, 2013; Nardi & Rigoni, 2009). Algumas pesquisas demonstram que houve, nos últimos anos, uma drástica diminuição dos programas de redução de danos em âmbito nacional (Nardi & Rigoni, 2009; Amaral, 2013), muito ligada à questão do financiamento que outrora vinha das políticas para HIV/Aids.

Isto não quer dizer que não há mais programas de redução de danos , ou que não há profissionais atuando em seus cotidianos sob os princípios da RD, mas como Amaral (2013), e Nardi e Rigonni (2009) demonstram, passa a haver mais dificuldades de financiamento para os programas específicos de RD e, ao invés destes crescerem exponencialmente com a divulgação do texto das políticas públicas apresentado anteriormente (Brasil, 2004), que torna a redução de danos uma estratégia primordial para toda a rede de atenção, o movimento que percebemos recentemente parece ser contrário.

O programa governamental “Crack, é possível vencer” abriu um Edital de Chamamento Público para comunidades terapêuticas no fim de 2012 que previu, na época, financiamento de 10 mil vagas para acolhimento de dependentes químicos dentro desse modelo terapêutico. As entidades aprovadas no Edital passaram a receber mensalmente R$ 1 mil pelo acolhimento de adultos e R$ 1,5 mil para crianças, adolescentes e mães em fase de amamentação. O financiamento de vagas em

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comunidades terapêuticas via Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad/Ministério da Justiça) continua em ação. Especificamente no Rio Grande do Sul, o mais recente convênio estadual foi firmado com a compra, pelo governo do Estado, de mil vagas em comunidades terapêuticas, ao custo de R$ 1 milhão por mês.

Os programas de redução de danos do estado do RS se encontram, nesse mesmo período, com menos recursos e menos apoio governamental (Amaral, 2013; Nardi e Rigonni, 2009). Ao que parece, de acordo com texto recente de autoria de profissionais que coordenavam a Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria Estadual de Saúde do RS, há um movimento de retomada da redução de danos no Estado recentemente (Simoni et al, 2015). A Portaria Nº 503/2014 institui a Política de Redução de Danos para o cuidado em álcool e outras drogas dentro das Políticas Estaduais de Atenção Básica, Saúde Mental e DST/Aids e redefine as Composições de Redução de Danos. De qualquer forma, temos vários indícios de que a redução de danos ainda depende de iniciativas específicas, muitas vezes ligadas à questão de militância política em alguma esfera ligada à RD, em vez de estar disseminada por toda a rede de atenção como está previsto nos textos das políticas públicas.

I Seminário Abramd Sul - RSIdentificando demandas como a de fortalecer a redução de danos no

Estado do Rio Grande do Sul, um grupo de profissionais, pesquisadores e militantes se uniu recentemente para formar uma extensão local da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd). A proposta de criação deste núcleo regional (Abramd Sul/RS) se realiza na constituição de um espaço permanente de educação, diálogo, discussão, construção de estratégias e disseminação das práticas de cuidado pautadas pela redução de danos. Em especial, a Abramd Sul/RS se constituiu aberta a compor com outras iniciativas que se alinham à perspectiva do trabalho pela autonomia dos sujeitos e pela liberdade de

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escolhas, visando o fortalecimento e a resistência em torno dos princípios e práticas antimanicomiais e antiproibicionistas.

Foi realizado nos dias 07 e 08 de julho de 2017 o I Seminário Abramd Sul/RS. O evento ocorreu no auditório do Hospital Sanatório Partenon, na cidade de Porto Alegre (RS), e teve como objetivo criar um espaço de problematização, discussão e fomento do controle social que englobasse o ponto de vista dos próprios usuários de álcool e outras drogas, a perspectiva multidisciplinar na abordagem dos fenômenos relacionados a essas práticas, os direitos humanos dos usuários de substâncias psicoativas e as diretrizes de trabalho da redução de danos.

Durante o Seminário contamos com a intensa participação de profissionais e ativistas do campo das políticas públicas para álcool e outras drogas de várias áreas de trabalho e de diferentes municípios do Estado do Rio Grande do Sul, bem como de outros estados. Nos dois dias de evento circularam pelo auditório em torno de 120 pessoas de diversas áreas de atuação, tais como: Nutrição, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Enfermagem, Psicologia, Antropologia, Serviço Social, Medicina, Artes Plásticas, assim como Residentes e Estagiários de Saúde Coletiva, Serviço Social e Psicologia, e participantes de movimentos sociais. Da mesma forma, o alcance em termos geográficos também foi satisfatório, tendo participado pessoas oriundas dos municípios de Pelotas, Rio Grande, Taquara, Igrejinha, Caxias do Sul, Flores da Cunha, Cachoeirinha, Canoas e Porto Alegre, entre outros.

O Seminário contou com duas Mesas Redondas compostas por convidados (dentre estes, o Presidente da Abramd, Prof. Rubens Adorno) e cinco Sessões Temáticas com apresentações de trabalhos selecionados após submissão de resumo, contemplando relatos de experiência e comunicações sobre pesquisas acadêmicas em nível de graduação e pós-graduação, sobre temas diversos e englobando áreas também diversas. Houve ainda a participação de um grupo de dança de rua; um momento de integração entre pacientes do Hospital Sanatório Partenon – os quais apresentaram trabalhos produzidos por eles durante sua estadia terapêutica no hospital; e ainda uma intervenção cultural que contou com

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poesias e músicas. Deste modo, o evento cumpriu com sua missão de promover e valorizar a diversidade das experiências que, de alguma forma, promovem a saúde, a igualdade e os direitos humanos.

A partir deste Seminário surgiu, ainda, a proposta de expansão do debate das políticas públicas sobre álcool e outras drogas para o interior do Estado, com eventos descentralizados, bem como a ampliação de parcerias com o estado de Santa Catarina. Dentre os temas debatidos e as reflexões construídas durante o I Seminário Abramd Sul/RS, podem-se destacar os seguintes pontos:

Contextualizou-se o que vem ocorrendo no campo da atenção aos usuários de álcool e outras drogas no Estado do RS, no sentido de uma denúncia sobre o desmantelamento das redes do SUS e do Suas, e também dos diferentes modos públicos e gratuitos de cuidado às pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas;

O Seminário possibilitou o fortalecimento dos laços entre profissionais, pesquisadores, ativistas, residentes e estudantes preocupados com as formas atuais de enfrentamento dos problemas em torno do consumo do álcool e outras drogas, e também favoreceu momentos de trocas construtivas entre os participantes. Da mesma forma, favoreceu a ampliação do debate entre profissionais, comunidade e pessoas que consomem drogas, envolvendo todos os setores da sociedade;

Considerou-se a desigualdade social como produtora de modos problemáticos de consumo de álcool e outras drogas, assim como facilitadora do envolvimento com o tráfico de substâncias ilícitas e da criminalização do consumo e da pobreza. Na mesma esteira, chamou-se atenção para o fato de que essa realidade contribui enormemente para a criminalização da juventude negra e pobre;

Questionou-se as internações compulsórias e involuntárias como forma de cuidado preferencial para pessoas em situação de vulnerabilidade social e envolvimento problemático com o uso de substâncias psicoativas. Também se considerou a Redução de Danos

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A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd-Sul

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como importante paradigma de intervenção e diretriz de trabalho a ser amplamente difundida nas práticas de atenção e cuidado aos usuários de álcool e outras drogas;

Buscou-se priorizar o olhar para as pessoas que normalmente são silenciadas sob o rótulo de “usuário de drogas”, na tentativa de tirar o foco das substâncias e poder produzir deslocamentos subjetivos com abordagens que favoreçam “possibilidades de ser no mundo”. No mesmo sentido, foi sugerida a ampliação da participação dos usuários nos movimentos sociais como Movimento Nacional de Pessoas em Situação de Rua, Boca de Rua, entre outros.

Considerações finaisUm dos pontos mais marcantes e consensuais do I Seminário

Abramd Sul relacionou-se à necessidade de fomento a espaços como o do I Seminário Abramd Sul/RS, v isando transfor má-los em ‘trincheira’política, ou seja, dispositivo para marcar uma firme posição para a sociedade e opinião pública, no sentido de não abrir mão de políticas públicas voltadas para usuários de álcool e outras drogas que sejam inclusivas, que respeitem os direitos humanos, que não privilegiem a internação como primeiro recurso de cuidado (que esta seja a exceção, não a regra) e que dialoguem com a redução de danos.

Desta forma, almejamos que tanto no âmbito regional quanto nacionalmente aconteça uma maior mobilização de profissionais, pesquisadores, usuários de álcool e outras drogas e comunidade no debate sobre as políticas públicas neste campo, para que as necessidades dos usuários sejam respeitadas e o consumo de tais substâncias em nossa sociedade contemporânea seja problematizado por todos, coletivamente, através do diálogo travado entre diferentes opiniões, com o objetivo de construir propostas que sejam plurais, éticas e dignas.

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Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

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A polifonia da temática das drogas em um seminário regional: Núcleo Abramd-Sul

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Jardel Fischer Loeck e Luciane Raupp

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C A P Í T U L O 4 . 7

Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no Município de São Paulo: uma contribuição etnográfica

Yone Moura

O desenvolvimento do humano frente às situações de vulnerabilidade vem sendo discutido por vários autores como forma de subsidiar programas de intervenção e políticas públicas para a população em vulnerabilidade, em especial para crianças e adolescentes em situação de rua (Blum, 1997). Uma situação que ocorre em todos os continentes (Auerswald e Eyre, 2002; 2016) e a literatura vem mostrando uma grande preocupação e interesse da comunidade científica sobre um assunto tão complexo envolvendo a geração futura do planeta.

Esses estudos mostram que não existem fatores que, isoladamente, favoreçam a situação de rua. Embora cada país apresente suas especificidades, alguns fatores macrossociais parecem favorecer a situação de rua de forma global, como os problemas econômicos, a rápida industrialização e mais recentemente o êxodo de famílias inteiras fugindo das guerras, terrorismo e catástrofes naturais.

Essas situações reforçam questões sociais de intensa vulnerabilidade como falta de moradia, com a rápida urbanização, principalmente nas periferias, como o desemprego para as famílias, a falta de rede social, a violência de forma generalizada e também a dependência de substâncias. Diante dessa realidade, os mais diversos fatores e circunstâncias podem

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desencadear a saída de crianças e adolescentes para a rua. Outro importante fator é o de natureza política na ausência de políticas públicas específicas para atender a situação de rua cada vez mais presente, atualmente não só nos grandes centros urbanos, mas incluindo também locais mais distantes dos centros urbanos ou mesmo o desrespeito ao mínimo de atendimento a essa população já excluída de tudo.

No Brasil, como em vários outros países, o consumo de drogas está presente no cotidiano de crianças e adolescentes que vivem em situação de rua (Noto et al., 1997; Noto et al., 1998; Noto et al., 2003; Moura et al., 2010; Moura et al., 2012). Foram realizados cinco levantamentos epidemiológicos sobre o uso de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua, nos anos de 1987, 1989, 1993, 1997 e 2003. No último, em 2003, foi realizado o primeiro levantamento nacional entre crianças e adolescentes em situação de rua, envolvendo todas as 27 capitais brasileiras (Noto et al., 2003).

Nesse sentido, quando se trata de criança e adolescente, torna-se ainda mais importante conhecer e aprofundar nessa realidade para compreender qual a complexidade desses fatores que influenciam a saída dessa população para a rua e também o que faz com que essa saída se torne permanente. Compreendendo essa realidade, torna-se possível articular as redes de serviços disponíveis e rearticular as que se encontram ausentes para acolher e trabalhar de forma integrada visando fortalecer a rede desses indivíduos.

No entanto, a experiência tem mostrado que os serviços isolados, ainda que específicos para atendimento de crianças e adolescentes em situação de rua e uso de drogas, têm-se mostrado inadequados (Carvalho, Sudbrack e Silva, 2004; Ipea/Conanda, 2004), se não considerar o local ou locais de preferência que essas crianças e adolescentes escolhem pra viver. Há que valorizar esse movimento de circularidade, migrando de um ponto a outro pelas instituições da cidade, na sua movimentação pelas ruas, circulando pelo espaço urbano e estabelecendo uma rede de relações num determinado pedaço desse espaço urbano, onde é reconhecido pelos seus pares (Magnani, 2002).

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Para compreender um pouco mais essa realidade, foi realizada uma pesquisa no período de outubro/2003 a julho/2005, por vinte e um meses, com estudos observacionais na rua e em instituição de atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua. A observação foi iniciada primeiramente nas ruas, nos diversos locais de circulação dessa jovem população pela cidade de São Paulo. Num segundo momento, foram visitadas instituições que os atendem, para conhecer o ambiente de convivência, suas atividades de rotina e o atendimento recebido nesses serviços.

Os estudos observacionais foram realizados em diversos locais de circulação desses jovens pela cidade de São Paulo e em dez instituições de assistência aos adolescentes em situação de rua. Este período de observação foi fundamental pelo fato de que parte do desenvolvimento dessas crianças e adolescentes em situação de rua acontece no período em que estão nas ruas.

Para conhecer o contexto cultural específico dessas crianças e adolescentes foi utilizado o referencial etnográfico, que permite a familiarização com uma dada cultura (Atkinson et al., 2001). Para isso, o pesquisador permanece durante um período de tempo no ambiente natural a ser estudado, conhecendo a vida e rotina diária dos atores sociais envolvidos, suas crenças, o que guia suas ações, a linguagem e outros sistemas de símbolos que media todo esse contexto e atividades (Eder e Corsaro, 1999). Esse referencial tem permitido compreender as peculiaridades da cultura na rua, uma vez que as pessoas da rua rompem com as regras sociais vigentes, estabelecendo uma série de regras, valores e normas que os organizam. O espaço urbano é, então, ocupado e identificado por uma população que buscará outros recursos de sobrevivência e de adaptação para superar as dificuldades do contexto urbano ao qual está exposta. Ao optar por morar ou permanecer parte do seu dia na rua, a criança e o adolescente em situação de rua buscam novas alternativas de vida, transformando esse lugar antes comum, em espaços específicos que será caracterizado como seu e/ou sua casa.

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Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de SP

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Com a contribuição etnográfica, o pesquisador precisa reconhecer que qualquer que seja seu contexto de estudo, ele faz parte de uma rede mais complexa. É necessário tornar o estranho familiar e o familiar estranho, possibilitando assim perceber os vários sentidos e significados presentes nas práticas dos diversos atores sociais envolvidos (Silva, 1999).

Assim, foi utilizado no estudo observacional a Observação Participante (OP), que norteou os temas observados nesse período para depois realizar as entrevistas para aprofundar no conhecimento da cultura da rua, por meio de um roteiro semiestruturado. Esse período observacional foi importante para perceber que as entrevistas seriam realizadas somente com os adolescentes respeitando o critério de inclusão para participar, de estar na rua há mais de seis meses, fazer ou ter feito uso de substâncias, uma vez que a entrevista qualitativa realizada exigiu nível de compreensão e discurso que, provavelmente, uma criança ainda não teria, além de não fazer uso de substâncias, o que foi observado durante a fase de observação inicial e no estudo piloto.

Todos esses dados observados, tanto nas instituições como nas ruas, foram anotados no diário de campo para avaliação posterior, como os dados de observações pessoais, informações informais e obtidas de entrevistas e descrições dadas por informantes. Optou-se por realizar o registro das informações, após a saída do campo, por se tratar de uma população em uma situação já permeada por inúmeras dificuldades, entre elas o fato de se encontrarem expostas no seu contexto diário e também para minimizar a interferência da presença do investigador na situação.

A OP realizada permitiu uma aproximação mais direta no espaço onde os adolescentes perambulam e realizavam atividades cotidianas e também onde ocorria o uso de drogas, estabelecendo uma rápida proximidade e confiança entre pesquisador e adolescentes, possibilitando assim, vinculação com os mesmos.

Os locais observados nesse estudo, no centro da cidade, foram muito ricos em informação, uma vez que os “pedaços geográficos” estudados contavam com a presença constante de crianças e adolescentes em

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situação de rua, assim como da população de rua em geral. Esse espaço de convivência tinha, para os membros dessa população, a característica de ser mais do que uma região geográfica, mas principalmente um espaço onde as relações se construíam. Isto pareceu favorecer o uso e abuso de substâncias psicotrópicas pelos adolescentes, que tem a característica de agrupamento como uma estratégia de sobrevivência. Neste contexto, as escolhas feitas pelo adolescente estavam sujeitas a inúmeros fatores externos e internos que nortearam sua atitude diante do consumo de drogas. Esse contexto também influenciou na forma de uso de drogas, e levou os adolescentes a desenvolverem novas estratégias para o uso. Com os registros da observação inicial, constatou-se que esses diversos fatores influenciavam a dinâmica diária dos adolescentes na rua. Isso foi observado no uso de solventes, (como a cola e o thinner), que passaram a ser utilizados em garrafas pequenas que os adolescentes colocavam na manga de blusas de frio, como forma de ocultar o porte da droga. Esse comportamento foi observado em todos os diferentes grupos estudados.

Durante o período de observação desse estudo foram identificados os seguintes grupos de adolescentes na rua: o grupo de adolescentes do bairro da Luz ou cracolândia, como chamado pelos próprios adolescentes; o grupo da Praça da Sé; o grupo do Vale do Anhangabaú; o grupo do metrô Santa Cruz e o grupo do farol do Shopping Ibirapuera.

O grupo da Luz e do Vale do Anhangabaú era formado por adolescentes mais velhos, entre 14 e 18 anos. Dormiam em locais que chamavam de “mocós, muquifos”. A substância mais utilizada entre eles era a cola e a maconha. No entanto, nesses locais, havia também uma presença maior de adultos em situação de rua, sendo mais intenso o uso de álcool e crack por esses adultos nessa região. Com isso, muitos adolescentes passam a fazer parte desses grupos de adultos e a fazer uso também de álcool e crack. Esse fato parece aumentar as dificuldades para o adolescente que, além de toda a complexidade inerente à situação de rua, o uso constante dessas substâncias deixa o adolescente por mais tempo exposto à violência das ruas, já que passa muito tempo intoxicado, dormindo, no geral, pelas calçadas dos prédios públicos daquela região.

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O grupo da Praça da Sé, na época do estudo, era mais diversificado, com grande predominância também de adultos em situação de rua, mas também com a presença de famílias. Pôde-se observar muitas crianças, além dos adolescentes, e que tanto as crianças como os adolescentes eram observados pelos adultos, familiares ou não, quando estabeleciam contato com o pesquisador. Nessa região, durante o dia, o uso de cola era mais intenso pelos adolescentes. Foi relatado o uso de maconha por alguns deles, mas só observado o uso durante a noite no período do estudo, quando o movimento era mais intenso nessa região. Durante a noite, tanto o uso, como o tráfico se intensificava, havendo uma movimentação maior com uma migração de adolescentes de outras regiões também.

O grupo do metrô Santa Cruz foi o de maior número de participantes constantes do começo ao fim do estudo. Era um grupo de sete adolescentes do sexo masculino e uma adulta com uma criança de um ano e seis meses que os acompanhava. A idade variava entre treze e dezesseis anos, com uma característica importante: todos tinham contato com suas famílias e esporadicamente voltavam para suas casas, permanecendo por um período máximo de uma semana. Estes adolescentes faziam uso diário de cola e álcool e foi nesse grupo que se observou pela primeira vez a nova estratégia do uso de solventes. Outro comportamento peculiar nesse grupo era a solidariedade entre seus membros, mas também a punição para o não cumprimento das regras estabelecidas. Isso pôde ser observado quando a tia de um dos adolescentes faleceu e decidiram em conjunto que por respeito aos dois irmãos do grupo que perderam a tia, todos ficariam uma semana sem usar nenhum tipo de droga, o que foi cumprido por todos. Como estavam constantemente intoxicados, foi observado durante esse período a ausência do uso de drogas, inclusive do tabaco, sendo relatado pelos adolescentes o motivo de tal comportamento.

O grupo do farol do Shopping Ibirapuera era formado por adolescentes e algumas crianças que trabalham para ajudar no sustento da família. A característica principal é que, com exceção de um adolescente, todos moravam com suas famílias e a maioria estava estudando, indo para

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o farol depois da escola ou voltando para casa em determinado horário todos os dias para ir para a escola. Nesse grupo, o relato do uso de drogas é de uso esporádico, predominando o relato de uso de maconha, pois dizem que a cola é para crianças e que ali não é admitido o uso, pois atrapalha o trabalho. Durante o estudo observacional, não foi observado nem mesmo o uso de maconha durante o dia e, à noite, o uso era feito por grupos de três a quatro adolescentes, fora do local de trabalho e sem a presença das crianças. Nesse grupo, o adolescente que não morava com sua família, dizia ter 17 anos e não dizia seu nome, apenas um apelido pelo qual ele mesmo se identificava e era conhecido pelos demais. Segundo seus colegas, ele se autointitulava daquela forma para evitar ser reconhecido pelo seu nome e para não perder alguns benefícios, como frequentar instituições para crianças e adolescentes, que após dezoito anos não atende mais o adolescente. Esse fato foi confirmado pelo próprio adolescente que se dizia revoltado com essa condição de se tornar adulto e não ter mais um local para receber ajuda. Esta situação entre os adolescentes tem sido percebida como mais uma situação de estresse. As instituições e profissionais da área também não estão preparados para lidar com a situação.

Como foi notado, os estudos observacionais mostraram que adolescentes, em situação de rua, vivem em grupos, perambulam pelas ruas, dormem em locais abandonados, debaixo de viadutos, migram de um local para outro continuamente, inclusive de acordo com o contexto da cidade naquele momento. Esse contexto acaba por influenciar também na forma de uso de drogas, levando-os a desenvolver novas estratégias para o uso. A questão da maioridade parece influenciar no consumo de drogas e na situação de rua, pois que o adolescente intensifica o uso antes de completar 18 anos quando pode então ser preso e não apenas sofrer as medidas socioeducativas, e nas ruas também seu comportamento mostra-se mais agressivo.

Os adolescentes, durante o dia, dividiam-se em parte do dia para o trabalho e uma grande parte para fazer uso de drogas, em especial a cola, mas também de álcool e tabaco e outras drogas. Alguns são usuários de

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vários tipos de drogas: maconha, cola, álcool e tabaco. Há ainda um outro grupo de adolescentes que trabalhava em faróis, convivia diariamente com suas famílias e frequentava escola, permanecendo apenas um período do dia nas ruas para o trabalho que consistia em: malabares, venda de doces e limpeza de para-brisas para ajudar no sustento da família.

Uma segunda fase de observação foi realizada nas instituições, nas dez instituições que na época do estudo atendiam adolescentes em situação de rua. Foi realizada diariamente, durante um período previamente combinado com os profissionais, a observação direta e um maior envolvimento no cotidiano da instituição. Além do contato com os adolescentes frequentadores das mesmas, também o contato direto com os profissionais da equipe foi um período muito relevante para o trabalho. As dificuldades observadas nas instituições são muitas e as mais diversas, embora o histórico de experiências acumuladas no trabalho com essa população. Esse registro reforça a realidade que a maior parte das instituições relata sobre as mudanças ocorridas arbitrariamente, a partir de propostas políticas elaboradas sem que diretamente envolvidos e com experiência na área sejam ouvidos (Noto et al., 2003).

Em geral, foi observado que as instituições apresentaram dificuldade para encaminhar o adolescente, principalmente para tratamento. Em períodos de crise, o adolescente fica mais acessível e chega algumas vezes a pedir ajuda na instituição, como para ser internado, numa tentativa de parar de usar a droga. Nesse momento, os profissionais iniciam o que chamam de “peregrinação” entre os diversos serviços de saúde. Uma outra instituição, com internação para tratamento de adultos e adolescentes com uso de drogas, também foi observada na época do estudo por ter recebido vários adolescentes e até crianças em situação de rua. Esse fato confirma a colaboração entre os serviços, sem, no entanto, a articulação do serviço em rede. O estudo demonstrou um consenso entre os diversos serviços de atendimento à população de rua e a fragilidade dessa rede de assistência como um fator importante que pode contribuir para a manutenção do consumo de drogas na situação de rua (Noto et al., 2003).

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No período das entrevistas, dez adolescentes foram entrevistados em instituição e sete na própria rua. Apenas duas moravam com suas famílias, voltando todos os dias para casa e trabalhando no farol durante parte do dia. A maioria era do sexo masculino, sendo 15 adolescentes do sexo masculino e seis do sexo feminino. Em relação à idade, os meninos estavam entre 12-17 anos e as meninas entre 12-16 anos. Quanto a escolaridade, 17 haviam parado de estudar em razão do uso de drogas, a maioria entre a 4a. e a 5a. série do ensino fundamental e três estavam estudando, sendo que duas eram meninas. Sobre os motivos que desencadearam o início da situação de rua, a maioria dos entrevistados referiu discussões/brigas constantes em casa, maus tratos físicos e a busca de liberdade. Em relação ao tempo na rua, a maioria dos adolescentes relatou estar na rua há mais de dois anos.

Para o adolescente em situação de rua, as situações de vulnerabilidade no ambiente familiar, parecem contribuir para o uso precoce de drogas, além de associar o uso de drogas à violência doméstica. Observou-se idade de início precoce, tendo a maioria iniciado o uso antes da saída para a rua, com uma sequência de drogas variada, com predomínio do uso de solventes, mais especificamente, a cola entre os mesmos.

Os depoimentos de entrevista, enriquecidos com as observações da OP, revelaram associações entre os padrões de consumo de drogas e os estilos de vida dos adolescentes. Também foi possível notar que esses padrões mantiveram um relativo grau de homogeneidade entre os entrevistados, o que permitiu agrupar teoricamente os padrões em três categorias principais. Uma primeira com maior intensidade de consumo de drogas e inserção dos adolescentes na cultura da rua; uma segunda foi caracterizada por menor consumo e situação de maior proximidade dos adolescentes com suas famílias; e na terceira foi observado maior envolvimento dos adolescentes com o tráfico, prostituição e menor proximidade da cultura da rua. Foi ainda observado que os adolescentes, embora relatassem determinados padrões de uso e estilos de vida predominantes, tinham histórico de oscilações entre os padrões de uso e

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entre as situações e/ou contextos de vida. Ou seja, vale ressaltar que a categorização desenvolvida no estudo não teve por objetivo agrupar os entrevistados em categorias estanques, mas sim explorar as diversidades de comportamentos e suas associações.

Diante dos achados nesse estudo, observou-se que a droga e a rua são dois fatores que se misturam e se potencializam para enfrentamento de situações adversas (como por exemplo fome, frio, fuga da realidade). A vida na rua não dá espaço para a fragilidade do adolescente. Outra observação durante a OP foi que, em situação de rua, as redes sociais ganham um papel ainda de maior importância. Os sistemas observados foram compostos por diferentes segmentos sociais que variaram entre a família, escola, serviços de saúde, instituições específicas para pessoas situação de rua, polícia, comércio, tráfico e até mesmo os ambulantes, transeuntes, motoristas (especialmente nos faróis) e os próprios “irmãos” da rua. Esses sistemas apresentaram composições que variavam em função de cada situação de rua em particular. Por exemplo, para os adolescentes que se mantinham mais próximos da família e trabalhavam nos faróis, os parentes, os vizinhos, a escola e trânsito tenderam a ter mais relevância do que as instituições. Por outro lado, para aqueles mais inseridos na rua, as instituições tenderam a ser mais importantes.

Em entrevistas, os adolescentes relataram buscar instituições para alimentação, lazer, higiene e cuidados em geral. Apesar da relevância dessas atividades, observou-se que as instituições eram instáveis, havendo constantes mudanças de propostas de trabalho, rotatividade de educadores, dificultando o estabelecimento de vínculos. Além disso, muitas delas estabeleciam regras percebidas pelos adolescentes como arbitrárias e inadequadas. A superficialidade na relação com as instituições parece ser fator de maior permanência dos adolescentes na rua e nesse contexto o uso de drogas é favorecido.

Nas ruas, foi observada e relatada a presença de policiais, permeada pelo desconforto e agressividade para com os adolescentes, sendo que os próprios adolescentes percebiam esta agressividade como parte da função dos policiais. No entanto, os policiais são também apontados e percebidos

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pelos adolescentes como fator de cuidado e proteção, que têm igualmente a função de protegê-los também.

Em relação aos serviços de saúde, o atendimento é visto como precário, além de se exigir condições incompatíveis com a situação de rua (presença dos responsáveis, higiene e apresentação de documentos). No entanto, a enorme distância entre os serviços de saúde e a situação de rua, não é peculiaridade brasileira, já que tem sido observada também em outros países. Várias barreiras parecem estar em questão, como a própria descrença dos jovens em relação aos profissionais de saúde, o desconhecimento desses serviços, bem como os preconceitos dos profissionais em relação à situação de rua (Geber, 1997). Mas, os profissionais se sentem pouco preparados, com poucos recursos para lidar com a situação, refletindo na percepção do adolescente.

Esse conjunto de resultados sobre os diversos segmentos das diferentes redes sociais, mostra as dificuldades do acesso ao atendimento a essa população, em todas as diversas áreas, demonstrando a fragilidade da rede de atendimento ao adolescente em situação de rua. Essa rede oscila entre o cuidado e ao mesmo tempo, o risco para esses adolescentes. O contexto social no qual esta população se desenvolve, parece propiciar a manutenção de sua permanência na rua através de um serviço desarticulado, percebido pelos próprios adolescentes, os quais muitas vezes, se utilizam desse fato como meio de sobrevivência nos inúmeros serviços específicos para a situação de rua. Esses dados demonstram a relatividade entre risco e proteção. A vulnerabilidade dos diferentes sistemas sociais (família, escola, instituição, serviços de saúde, polícia) parece oscilar entre o cuidado e o risco, mantendo assim, o adolescente na situação de rua.

Assim, na situação de rua, a droga figura como um importante fator de integração para o adolescente, como uma espécie de mediador nesse processo. Pensar nesse fenômeno sem situá-lo no contexto sociocultural onde ocorre sua utilização implica em desconsiderar sua complexidade. Isso possibilita perceber o “outro” nas suas dimensões sociais e culturais, entendendo que não existem critérios universais de verdade, mas uma

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diversidade de saberes em cada grupo ou população (Lescher et al., 1998; Gregori, 2000; Magnani, 2002; Auerswald e Eyre 2002, 2016; Rizzini et al., 2003).

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Yone Moura

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Uso de drogas entre adolescentes em situação de rua no município de SP

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C A P Í T U L O 4 . 8

Ninguém falou sobre mim?O crack, as representações midiáticas, o sujeito e o contexto sociocultural do uso

no Rio de Janeiro e em Nova Iorque

Danielle Valim

Em abril de 2008, o jornal o Globo1 apresentou matéria intitulada “As Cracolândias Cariocas: Consumo de crack se alastra entre moradores de rua (...)”:

O ritual se repete e lembra a cracolândia de São Paulo. O cenário, no entanto, é a Rua Marquês de Pombal, no centro do Rio, e os usuários são dois meninos. Lucas, de 10 anos, e Júnior, de 12 (nomes fictícios), fumam crack todas as noites em frente à antiga sede da Rio Luz, vizinha à Academia de Polícia e a poucos metros do Batalhão de Choque da PM [...]. A realidade dos dois garotos na Rua Marquês de Pombal expõe o alarmante crescimento do consumo de crack entre moradores de rua.

Na mesma reportagem, o jornalista ainda descreve as condições físicas, psicológicas, familiares e sociais dos “meninos” Lucas e Júnior:

Os dois meninos perambulam pelas ruas do Centro e Cidade Nova, sobrevivendo de esmolas e do dinheiro que ganham engraxando

__________1. Jornal O Globo, Caderno Rio. 11/04/2008. “As Cracolândias Cariocas”. p. 14.

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sapatos. Sujo, descalço e muito magro, Lucas tem as pontas dos dedos das mãos queimadas pela lata quente usada como cachimbo de crack. O menino diz ter casa e família, mas prefere viver nas ruas. Trêmulo e ansioso, evita muita conversa. Júnior tem aparência melhor, mas também é de pouco falar [...]. Os efeitos do crack são devastadores.

Ao mencionar a condição física e social de Lucas – uma criança de 10 anos de idade - o jornalista expôs as vulnerabilidades vividas por ele ao caracterizá-lo como “sujo”, “muito magro”, “descalço”, “ansioso”, “trêmulo”, “evita muita conversa”, tem “casa e família, mas prefere viver nas ruas” e “tem as pontas dos dedos das mãos queimadas pela lata quente usada como cachimbo de crack”. Ao final, o jornalista pontuou que os “os efeitos do crack eram devastadores”, colocando a condição física, psicológica, familiar e social de Lucas como resultado dos efeitos devastadores do crack. Lucas e Junior provavelmente se encontravam em situação de rua, principalmente, em consequência de déficits relacionados à miséria, à família, à falta de acesso à educação, dentre outros fatores, e o uso do crack possivelmente surgiu como consequência, mas a a reportagem “culpa” de “todos” os problemas vividos por eles fora atribuída à droga.

Entre 2004 e 2012, outras reportagens cariocas sobre crack foram publicadas: “Tráfico de crack, a nova ameaça”2; “Ocupação policial deixa claro que Rio não tem solução para o crack”3; “Droga fulminante e sem controle”4, “Falhas no combate às drogas”5, “Crack se espalha e já assusta o Nordeste”6, “Secretário: consumo de droga já virou epidemia”7. Dentre ações e políticas públicas, o governo Federal, em 2010, lançou a campanha: “Crack, é

__________2. Jornal O Globo. 19/12/2004.3. Jornal O Dia. 16/10/2012. Capa. Pg. 14. Jornal O Globo. 07/02/2010. Caderno O País. Pg. 35. Jornal O Globo. 20/04/2011. Caderno O País. Pg. 36. Jornal O Globo. 04/12/2008. Caderno O País. Pg. 37. Jornal O Globo. 10/04/2009/ Caderno Rio. Pg. 15.

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possível vencer”, através do “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas”8. Percebe-se que o foco central do problema, exposto nos títulos das matérias jornalísticas e do Programa Federal era o crack enquanto substância, ou seja, a droga e seus efeitos sobre o indivíduo e a sociedade. As reportagens pontuavam: “os efeitos do crack são devastadores”; o “Rio não tem solução para o crack”; “o crack é uma droga sem controle; o crack assusta; o tráfico de crack é uma nova ameaça e o consumo de crack se torna uma epidemia”. A política pública federal centrou-se no “enfrentamento ao Crack” e lançou campanha enfatizando que o crack é uma droga “possível de vencer”.

Há uma demonização da substância como se fosse a responsável por todas as mazelas e problemas que seu consumo poderia ocasionar nos espaços públicos, na população que a consome e na sociedade de forma geral. Com isto, o crack e seus usuários são representados como uma ameaça social, desconsiderando o indivíduo que, ainda que submetido aos efeitos do crack, possui uma multiplicidade de influências socioculturais envolvidas na relação entre sociedade, sujeito, drogas, uso e abuso que interferem diretamente em suas escolhas e modo de vida.

Reinerman e Levine (1997) consideram a produção de crack foi uma maneira encontrada para se expandir a venda da cocaína que, em forma fumada (crack), teve custos menores, podendo ser introduzida nas camadas pobres e guetos de grandes cidades americanas, como Nova Iorque e Los Angeles, assim como exposto por Levine (2014) em entrevista concedida a Vallim (2015):

Free base e crack são muito intensos, rápidos. Inalar cocaína é quase tão rápido quanto injetar! É muito rápido! Já envia a droga até o sistema sanguíneo, e rápido, 5 minutos, 10 minutos e acaba. O que o crack faz é que fica mais fácil vender a cocaína em menores porções, então, o que o crack faz é que alguém pode pegar o pó da cocaína e cozinhá-lo no microondas o que se transforma em pequenas pedras e é vendido

__________8. Decreto nº 7.179 de 20 de maio de 2010, Presidência da República, institui o Plano Integrado.

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por 5 dólares, 10 dólares. A cocaína em pó é cara, mas a cocaína fumada [crack] pode ser vendida em pequenas porções e mais barato. Então, o que o crack foi, primeiramente, uma inovação do marketing. Colocou a cocaína cheirada em pacotes e pôde ser vendido para pessoas pobres em grande escala, em cidades. E pôde ser consumido por pessoas pobres. Este tipo de cocaína (crack) foi uma forma de marketing e venda transformando uma droga relativamente cara e de classe média e alta como a cocaína cheirada, em uma droga de rua que pôde ser consumida pelas pessoas da “vizinhança”... Então, isso abriu a possibilidade de negócio para todos os tipos de pessoas e fez com que a droga se tornasse disponível para todas as pessoas na rua. (Vallim, 2015)

A disseminação do consumo atrelado à oferta e a preços acessíveis possibilitou a chegada e o acesso da droga a guetos e, por ser uma droga de efeitos intensos, tornou-se rapidamente utilizada por populações minoritárias, como os negros e imigrantes latinos (Reinermam & Levine, 1997). Levine (2014) aponta que, desde sua origem, o consumo de crack teve a função de “pain killer”9 para atender a demandas de uma população miserável, marginal e excluída social e economicamente da sociedade norte americana.

Foi basicamente usada de forma pesada pelas mesmas pessoas que usavam heroína de forma pesada, o que significa: pessoas muito pobres e muito infelizes psicologicamente; e teve que ter muita miséria para fazer com que o uso regular de crack se tornasse uma droga atraente. Na época, não todos, mas a maioria da população de usuários de heroína (a população miserável da época que estava usando heroína eram pobres e infelizes psicologicamente e estavam a utilizando como “pain killer”. O crack foi usado pela mesma população como uma outra forma para matar a dor, para fazer a dor diminuir… As pessoas que usam o tempo todo são geralmente infelizes, majoritariamente pobres e a droga os ajuda a esquecer. (Vallim, 2015)

__________9. Define a droga como sendo utilizada para aliviar as dores consequentes de mazelas físicas,

econômicas e sociais. Termo utilizado pelos usuários, acadêmicos e profissionais que atuam com a temática do uso de drogas no Estados Unidos.

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Para Medeiros (2008), em nossa sociedade moderna, a utilização de vários tipos de drogas como o crack, a cocaína em pó, a maconha, o álcool, a heroína, o ecstasy, antidepressivos etc. são utilizados como uma ferramenta para mascarar os déficits nos espaços de relações interpessoais (familiares e afetivas) e ausências incorporadas ao estilo de vida (falhas sociais).

Considerando a importância do cenário sociocultural, Vallim (2015) acredita que uma das questões centrais que deve ser respondida é: o que pode colaborar com o uso compulsivo de crack?

Como resposta, Vallim observou que as motivações pessoais resultantes do histórico de vida e contextos socioculturais anteriores ao uso da droga; somadas ao estado individual do sujeito no momento em que se dá o uso – considerando as características psicológicas e pessoais, incluindo sua estrutura de personalidade, expectativas individuais, condições físicas e psicológicas, o SET10- foram dados como os fatores de motivação para o uso compulsivo de crack (2015).

Exemplos sobre expectativas e motivações individuais gerados em torno do uso são representados pelos termos utilizados pelos participantes sobre os efeitos e sensações que o uso de crack promove, sendo denominados “a onda” no Rio de Janeiro e “o high” em Nova Iorque, assim como nos descrevem os relatos em duas entrevistas:

“A “onda”, porque a onda, ela te deixa assim muito arrastado, muito!... Sem saber, se você não segurar a “onda” ela te enlouquece, te deixa naquela adrenalina máxima querendo mais e mais!” (Vallim, 2015)

“Eu estou procurando pelo “high”, eu gosto do “high”. Eu quero a euforia.” (Vallim, 2015)

__________10. MacRae & Simões, 2000.

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Durante o percurso da investigação no Rio de Janeiro e em Nova Iorque, cidades de diferentes países com diversos aspectos culturais, econômicos e sociais, o uso de crack foi colocado como uma forma de fugir ou melhor lidar com fatores psicológicos, sociais e comportamentais gerados por abalos emocionais desencadeados pelos conflitos e ausências na constituição e organização da vida social (Vallim, 2015).

Os efeitos do crack (a substância) colocaram-se para o sujeito que a consome abusivamente como o produto que atende à busca por formas de satisfação não alcançadas em sua trajetória pessoal de realizações na vida. Neste sentido, o crack se apresenta como uma alternativa de satisfação, de modo a amenizar os “problemas da vida” e o uso abusivo se coloca como uma maneira de preenchimento de angustias e referenciais (Albuquerque, 2010).

Ao serem perguntados sobre o porquê de usar crack, no Rio de Janeiro foi muito recorrente ouvir respostas como: “Eu uso o crack pra esquecer os problemas”. E em Nova Iorque: " I use drugs for do not fell the pain” (Eu uso drogas pra não sentir a dor11).

Abaixo seguem trechos de entrevistas (Vallim, 2015, p. 263) com os participantes em que expõem de forma clara os históricos psicológicos e perspectivas pessoais diante do uso:

Entrevista 3“Não é o crack que é mal. Não é a heroína que e má. Você sabe! Crack! Você acha que crack é mal. Eu acho que várias coisas são más. As pessoas usam drogas por várias razões: porque seus filhos foram tirados, pessoas usam drogas porque tem uma relação abusiva, seus pais morreram. Eles usam drogas se seus filhos morreram. Eles usam drogas por tantas razões, você sabe! Diferentes razões do porquê de usarem drogas.

__________11. O sentimento de “dor” em questão se refere aos fatores psicológicos e comportamentais gerados

por abalos emocionais desencadeados pelos conflitos e ausências na constituição e organização da vida social.

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Entrevista 1Pesquisadora: Você acha que a dependência de crack atrapalha sua relação com sua família?Participante: Muita coisa atrapalha a minha vida.

Entrevista 4Pesquisadora: Você acha que o fato de você usar crack gerou problemas na sua relação com sua família?Participante: Eu uso drogas porque fui abandonada. Eu me automedico com drogas porque minha família tem uma relação abusiva comigo... A razão por eu ter uma má relação com minha família não é porque eu uso drogas. Eu uso drogas por causa da minha relação com minha família. Me ajuda a não ficar tão carregada com meus sentimentos que me consomem. Eu acho que fora das drogas, poderia me matar. Se eu não usasse drogas, eu não estaria viva agora… Se eu não tivesse nada pra aliviar minha dor, eu estaria consumida agora…

Entrevista 5Participante: Eu fui criada pelo sistema. Minha mãe era doente mental e eu fui criada em orfanato.Pesquisadora: Porque você usa drogas?Participante: Fui pras ruas muito cedo. Aprendi a linguagem da rua. Eu fui estuprada. Quero esquecer que fui estuprada…A sociedade é hipócrita. Eu gosto das “dark zones”. Eu me sinto segura porque estas pessoas podem te entender de uma forma que outros, não. Eles fazem o que supostamente querem fazer. Fora da “dark zone” quando alguém te olha de banho tomado e vestida, eles te estupram.

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Entrevista 6Participante - Minha mãe é uma mulher perigosa.Pesquisadora - Você tem filhos? Como é o seu relacionamento?Participante - Sim, uma filha de 17 anos. Ela mora em Porto Rico. Só a vi quando era bebê, depois a mãe não deixou mais eu vê-la. Ela diz pra minha filha “seu pai usa drogas”.Pesquisadora - Porque você não tem família?Participante - A minha mãe usava crack e heroína e me vendeu por $500,00 quando eu era criança.Eu uso todas essas drogas porque eu não quero sentir a dor porque minha mãe e meu pai me abandonaram. Por causa da minha relação com minha filha. Eu preciso de ajuda. Tenho muita dor dentro de mim, mas eles não me ouvem.

Entrevista 8Participante - Meu pai veio a falecer também, eu com dez anos.Pesquisadora: Ele faleceu quando você tinha dez anos?Participante - Dez anos é minha mãe, eu estava com quatro.Pesquisadora - Sua mãe, você estava com quatro anos?Participante - E ela com vinte e três. Eu acho, assim, de lembrar-se dela. Porque eu lembro muito devido a não aceitar a vida que nós tínhamos, e não aceitar a que nós viemos a ter depois de ela vir a falecer, foi muito difícil. Eu acho que começou daí tudo isso.Pesquisadora - E ela, morreu de quê?Participante - Ela foi assassinada.

Entrevista 9Eu não uso drogas porque a droga é o problema, eu uso drogas porque eu tenho problemas.

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Entrevista 10Pesquisadora - Porque você usa crack?Participante – Porque eu fui molestado quando era criança [choro]. Eu fui molestado pelo meu treinador de baseball. Ele me pegava em minha casa para ir aos treinos e me molestou por tantas vezes.(Vallim, 2015, p. 263)

Percebe-se, então, que nos casos aqui analisados, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Nova Iorque o uso abusivo de crack apresenta-se como uma forma alternativa de satisfação diante de fragilidades inseridas na trajetória de vida e relacionadas ao contexto sociocultural dos indivíduos que o consomem. E, embora a droga não seja a protagonista dos problemas na vida destes sujeitos, as representações midiáticas, assim como as políticas públicas inseridas nesta temática, se focam na substância como a causa de todos as mazelas, deixando de lado a subjetividade e contexto sociocultural inseridas na trajetória de vida destes indivíduos. O que se percebe é que os efeitos desta representatividade são extremamente nocivos, ao ponto que criam imagens estereotipadas e estigmatizadas dos sujeitos que fazem uso abusivo de crack e inviabilizam a criação de alternativas pautadas na construção de uma cadeia de conexões socioculturais fortalecidas e bem estruturadas a esta população, que podem se apresentar como medidas de intervenção, apoio e atenção, reduzindo suas vulnerabilidades.

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C A P Í T U L O 4 . 9

Cracolândia, Blocolândia, o outro, a imagem, as emoções e o contexto

Selma Lima da Silva Rubens C. F. Adorno

No carnaval de 2016, fui acompanhar o Blocolândia - bloco de carnaval composto por usuários de crack e dos serviços de saúde, e por trabalhadores que atuam na cena de uso paulistana, conhecida como “Cracolândia” - em companhia de um pesquisador austríaco de nome Michael. E, por ter tido um compromisso antes, tive de ir com uma bolsa, o que geralmente não faço quando vou para lá. Quando o bloco passava pela esquina da rua Dino Bueno, na esquina onde começa o fluxo, um rapaz branco que estava fumando crack reconhece Michael, chama-o e troca algumas palavras. Quando Michael se junta novamente a mim diz: “Ah, estranho, ele falou para eu avisar na ‘casa’ (Missão Belém), que ele está aqui. Mas estou achando estranho porque se eu falar que ele está aqui, ele vai ter que sair da ‘casa’ ”. Resolvemos voltar até a esquina do fluxo e chamar o rapaz para esclarecer se era esse mesmo o recado. Quando o chamamos, estava em meio a uma tragada, fez sinal para que esperássemos, virou o rosto para o lado, soltou a fumaça (norma de etiqueta, na cena de uso, para não soltar a fumaça na cara de quem não fuma), confirmou o recado e perguntou: “Vocês estão com tempo para conversar, vamo conversar? ” Com a nossa afirmativa, ele nos chamou para sentarmos na praça em frente à Estação Júlio Prestes.

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Eu e Michael nos sentamos em um banco e o rapaz, de nome Miguel, se sentou no chão à nossa frente. Como segurávamos um papel com a letra da marchinha do bloco, faz um movimento rápido e puxa o papel das mãos de Michael ao que faz a seguinte observação: “Tem que ficar esperto! ” Relata que saiu da casa do “padre” porque se envolveu em uma discussão que terminou em agressão física, mas que gosta do lugar, gostaria de poder voltar.

Como já conhecia Michael da casa, tenta saber qual é a nossa relação, pedindo licença ao Michael para se dirigir a mim (uma regra dos presídios, adotada na rua, para não se dirigir direto às mulheres que podem ter alguma relação com o homem de quem estão acompanhadas e, assim, desrespeitá-lo). Explicamos que somos colegas e pesquisadores. Enquanto falamos, tenta fazer a mesma brincadeira de tirar o papel da minha mão, mas consigo puxar o papel para junto do meu corpo e ele não consegue tirá-lo de mim, ao que observa: “Tá esperta!”

Começa a falar de sua vida. Nos conta que é de uma cidade pequena do Paraná, que fazia trabalhos como marceneiro e que tinha feito todo o trabalho de revestimento de madeira nas paredes e no teto da casa do pai. Conta que tem um irmão de quem é muito próximo e que este começou a ser extorquido pela polícia pelo envolvimento com drogas. Em uma dessas ocasiões, viu, pela janela de casa, que o irmão estava sendo espancado pela polícia; então, para defender seu irmão, deu um tiro no policial, fato que o fez sair de sua cidade.

Conta que morava junto com sua namorada, mas por problemas com o álcool, o relacionamento terminou. Diz que já usava crack em sua cidade, mas que “O meu problema é com o álcool”, e nos mostra a garrafa de Corote em sua mão. Nos pergunta que idade achamos que tem porque se acha muito acabado, insiste na pergunta. Digo que deve ter 33 anos ao que ele responde ter 28, um pouco decepcionado por, realmente, aparentar mais idade. Fico um pouco desconcertada. Ele continua narrando a sua história pregressa no Paraná e de como a casa em que vivia era boa, como montou a casa com os equipamentos eletrônicos e eletrodomésticos e de seu trabalho com madeira.

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Selma Lima da Silva e Rubens C. F. Adorno

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Diz que tem fotos no seu Facebook, então me pergunta: “Você tem celular? Coloca o meu nome no Facebook para você ver as fotos.” Apesar de pensar que poderia ficar sem meu celular, que eu ainda estava pagando, e saber que na condição de vida dele, eu é que estava facilitando a situação para ser roubada, não consegui responder que não tinha. Muito embora me passasse pela cabeça que o celular, que para mim custou caro, para ele, muito provavelmente, a depender de sua necessidade e capacidade de negociação poderia valer de R$ 300,00 até R$ 50,00, mas qualquer quantia poderia ser muito dinheiro para ele também. Com todos esses pensamentos e me sentindo muito mal por estar me sentindo vulnerável por causa de um objeto, retirei hesitante o celular da bolsa e tentei encontrá-lo no Facebook. Como não consegui encontrar ele me diz para passar o celular para ele. Eu digo que vou tentar novamente, mas não consigo. Nesse momento ele está sentado a meu lado no banco. Passo o celular para ele e penso: “Ok, perdi meu celular.” Ele pega o celular nas mãos, olha para mim e faz um movimento com o corpo, para começar a correr. Eu não esboço nenhuma reação, já que já havia dado o celular por perdido. Ele sorri e começa a digitar o seu nome na busca do Facebook.

Começa me mostrar a sua página, entrar em seus álbuns, me mostra a casa em que vivia com o pai e seu trabalho de marcenaria nas paredes e no teto. Me mostra as suas fotos com a antiga namorada, de quem ainda gosta. Mostra as fotos de seu pai e irmão, as suas próprias fotos, vestido no estilo gangsta-rap, uma foto onde se lê, escrito em letras grandes com balas de revólver, a palavra amor. Ele queria mostrar a sua vida, falar de seus gostos, mostrar e/ou lembrar de quem era, me mostrar que era alguém, além de usar crack. Fiquei com uma sensação muito ruim por ter de me preocupar com objetos. A conversa durou em torno de duas horas, por fim eu disse que precisava ir embora e pedi meu celular de volta. Ele me devolve o celular, levantamos e então ele me abraça demoradamente e fala: “Obrigado, você me permitiu ver pessoas que eu não vejo há muito tempo.”

O relato acima, ocorrido na cena de uso que se tornou icônica no Brasil, desmonta o desfecho esperado, inclusive para a pesquisadora, como

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a única possibilidade para esse lugar, quando se envolve um objeto que é um dos itens mais roubados na cidade de São Paulo. Nesse breve relato é possível também desmontar as crenças mais comuns a respeito do que o uso de crack pode fazer com uma pessoa e, principalmente, com uma que está vivendo em uma cena de uso e de acordo com algumas das estratégias lá utilizadas para conseguir dinheiro e garantir, minimamente, a sobrevivência e o consumo. As crenças de que o uso de crack levará, inevitavelmente, ao “descontrole”, perda da autonomia frente à droga levando a habitar a cena de uso (uma consequência quase natural para quem o fizer), também são constantemente reafirmadas.

Diversas pesquisas da área de saúde, geralmente da área da saúde mental, e acadêmicas (Fiocruz, 2014; Horta et al, 2011; Guimarães et al, 2008) são desenvolvidas a partir do consumo problemático: usuários que estão em tratamento ou internados ou da visibilidade dada ao uso em contexto de rua, como no caso da cena de uso público de São Paulo, sem que se dissocie: uso da substância e viver em situação de rua; situação que, por si, só traz grandes prejuízos à saúde. Buscando traçar um perfil do usuário, homogeneízam-se os usos e os usuários sem levar em consideração os contextos e as trajetórias particulares desenvolvidas em cada contexto de uso.

A constituição do consumo de drogas como um problema de saúde e social, aliás, foi um esforço desenvolvido, no campo da saúde, pela medicina e psiquiatria e que se consolidou em meados do século XX. O uso de drogas ganhou visibilidade fora das esferas psiquiátricas e também jurídicas com o advento da Aids, mas, ainda, dentro de uma esfera bioquímica, isto é, quando se pensa no corpo como um referencial restrito ao seu funcionamento biológico e à droga como agente, desqualificando contextos e agenciamentos dos sujeitos; da área de interesse da saúde pública, para intervir sobre os agravos à saúde da população. Com o uso de droga sendo alçado a um problema de saúde pública se demandará, ainda que de forma instrumental:

A introdução das ciências sociais e, mais recentemente, da etnografia no campo sanitário, que atribui às ciências sociais um papel “técnico”

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ou de ferramenta para trazer os grupos de difícil acesso para os serviços de saúde. Expressões como “populações ocultas”, “populações de difícil acesso” ou “populações vulneráveis” fazem parte do repertório da saúde pública contemporânea, notadamente após a epidemia do VIH-Aids (Adorno, 2011, p. 543).

Contudo, o uso de drogas injetáveis:(...) só se tornou objeto de preocupação das políticas de prevenção e controle da Aids em 1988, quando foram elaboradas as primeiras propostas de intervenção junto a este grupo específico. Além disso, até o surgimento da Aids o desconhecimento desse assunto era quase completo, sendo tratado mais no âmbito jurídico-penal do que como uma questão de saúde pública (Grangeiro, 1994, p. 95).

A pesquisa sobre o uso de drogas passou a ser tema de interesse da Antropologia, a partir dos anos 50 do século passado, quando esse uso passa a se constituir em “problema das drogas”. No Brasil, até a década de 90 desse mesmo século, a pesquisa sobre drogas nas ciências sociais era bastante incipiente e focavam mais na violência e criminalidade associadas ao tema.

Quanto aos estudos etnográficos sobre uso de drogas, no Brasil, até 1994, segundo Macrae (1994), podia-se contar, apenas, com quatro trabalhos pioneiros como os de Velho (1975); Macrae e Simões (1989); Lima (1990) e Fernandez (1993). Epele (2010) sinaliza a mesma dinâmica com relação aos estudos sobre o uso de drogas na Argentina: (...)

Además de un conjunto de antecedentes locales sobre el uso de drogas, específicamente dentro del dominio de salud mental y de la epidemiologia (...) el desarrollo del conocimiento sobre este tema estuvo forzado, principalmente, por la emergencia instalada por la epidemia del VIH-sida (p. 35).

A autora ainda destaca que pesquisar o uso de drogas definiu novos desafios para as ciências sociais e para a antropologia e que a noção de populações invisíveis e de difícil acesso, na área da saúde, criaram uma

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demanda para estudos etnográficos como possibilidade de acessar essas populações com desafios metodológicos que também se colocavam para pesquisas sobre o uso de drogas (Epele, 2010).

Trabajar con poblaciones de usuarios/as de drogas impone la inclusión y la resolución de las distancias y obstáculos: el estigma, la discriminación, la ilegalidad, las sanciones sociales y los estados subjetivos asociados al consumo de sustancias psicoactivas. La observación participante hace posible confrontar y neutralizar los sesgos que implica el desarrollo de entrevistas em estas poblaciones y contextualizar em lógicas locales las características y consecuencias de determinadas prácticas de consumo de drogas (p. 29-30).

A antropóloga Maria Epele (2010) ainda destaca que o desenvolvimento de estudos antropológicos, que abordaram criticamente o uso de drogas e populações marginalizadas, ocorreram em um momento de revisão teórica e metodológica da etnografia como método, a partir da entrada dos antropólogos em territórios cercados pela violência cotidiana, onde intensos conflitos, enfrentamentos armados e guerras têm lugar, e sofrimentos intensos e demandas de saúde impõem suas agendas e essas tensões passam a fazer parte da pesquisa etnográfica.

Poder compreender os consumos de drogas pela perspectiva do sujeito e de seu contexto de uso, e conhecer o seu entendimento acerca do próprio uso, é um objetivo que a etnografia pode desenvolver. Esta pesquisa teve como objetivo conhecer outros usos possíveis de crack e buscou, também, compreender os significados atribuídos ao uso durante as trajetórias de uso dos sujeitos, no contexto em que estão inseridos, suas práticas de utilização e estratégias para o controle do uso e para o uso, e verificar como essas práticas e estratégias, além de serem construídas na sua experiência e em seus percursos de uso, estão mediadas reflexivamente pelo imaginário do consumo problemático. Para isso, além de se valer de etnografia realizada em São Paulo e em Lisboa, ouviu, nessas duas cidades, usuários e ex-usuários de crack de uso não visível que não estavam em centros de tratamento.

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As pesquisas desenvolvidas com usuários de drogas, em geral; e com o crack, em particular, os acessam via centros de tratamento para consumos problemáticos ou com essa mesma perspectiva enquadram aqueles que se encontram em cenas de uso público. Isso acaba por enviesar as pesquisas, pois, o fato de a pessoa estar em tratamento, já deixa claro a existência do “uso problemático” e reforça, principalmente no caso do crack, a noção determinista de que todo uso terá o mesmo fim. Nessa pesquisa, a pretensão foi exatamente o contrário. Procurei criar um vínculo para que as pessoas pudessem discorrer livremente sobre suas histórias de vida e os usos que faziam tanto de drogas lícitas como ilícitas, tendo como pressuposto de que haviam e/ou seguiam usando o crack entre as preferências que tinham por esta ou aquela droga.

O meu pressuposto ou hipóteses, se se pode dizer assim, partia das experiências anteriores com as etnografias que realizei com mulheres que faziam programa e também usavam crack durante essa atividade e de outros momentos em sua vida. Nessa pesquisa, verifiquei que mesmo aquelas pessoas sobre as quais pesava o rótulo de “prostitutas”, “noinhas”, “drogadas”, ou seja, vistas como “vulneráveis” – primeiro, pelo simples fato de serem mulheres e de serem mulheres de comportamentos reprováveis – tinham em seu cotidiano preocupações com seus usos, introduzindo aquilo que poderíamos chamar de práticas de controle em uma função de preocupações com seu corpo.

O uso de uma droga se vincula à produção de emoção, prazer e sensações que têm como espaço de realização o seu corpo que, nesse momento, se torna um campo de exploração sensorial. Desta forma, como pude perceber nas densas narrativas que recolhi, o próprio uso está intimamente relacionado com o uso do corpo, como denominei de campo de experiências que as pessoas visam amplificar. Portanto, aquilo que chamamos de cuidados e de controles passa a ser as ações para dar continuidade ao fluxo de vida que, nesse caso, é intensamente celebrada pela possibilidade de poder conter nesse espaço físico que é o corpo que explora, até o limite, as possibilidades sensoriais e emocionais (Ingold, 2011). O que referi acima pode ser lido e interpretado pelas noções que

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Becker (1966) e Zinberg (1984), por exemplo, elaboraram sobre as “carreiras de usuário” e os contextos de vida das pessoas que usam drogas e que deram origem a noções como controle de uso, usos regulados, aprendizado de uso etc.

Voltando ao relato; o que depreendemos dele é que (a despeito da imagem do usuário de crack, na cena de uso, ser tido como incapaz de tomar decisões por estar tomado pela droga e pelo desejo irresistível de continuar o uso) ele é capaz não somente de decidir qual conduta adotar frente a uma possibilidade fácil de conseguir algum dinheiro ou manter uma conversa que lhe trará ganhos emocionais, como também seguir normas de conduta que regem o espaço da cena de uso: não jogar a fumaça do crack no rosto do interlocutor que não fuma, não se dirigir diretamente a mulher/família do interlocutor masculino, sair do fluxo para conversar. Também evidencia como o usuário, tido como descontrolado, é capaz de refletir sobre sua condição geral, sobre os seus usos e identificar, entre esses, segundo sua perspectiva, qual lhe causa problemas.

ReferênciasAdorno, R. C. F. (2011). Atenção à saúde, direitos e o diagnóstico como

ameaça: políticas públicas e as populações em situação de rua. In: Etnográfica, 15 (3) | 2011, 543-567. Lisboa.

Becker, H. S. (1966). Outsiders: studies in the sociology of desviance. New York: The Free Press.

Epele, M. (2010). Sujetar por la herida: Uma etnografia sobre drogas, pobreza y salud. Buenos Aires: Editora Paidós.

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Fernandez, O. R. L. (1993). A epidemia Clandestina: Aids e o uso de drogas endovenosas em São Paulo. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Fiocruz (2014). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? (F. I. Bastos, & N. Beroni, organizadores). Rio de Janeiro: Editora ICICT/ Fiocruz.

Guimaraes, C. F. et al. (2008). Perfil do usuário de crack e fatores relacionados à criminalidade em unidade de internação para desintoxicação no Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre (RS). Rev. psiquiatr. R. G. [online]. 2008, vol.30, n.2, pp.101-108.

Grangeiro, A. (1994). O perfil socioeconômico dos casos de Aids na cidade de São Paulo. In Aids no Brasil. (Cap. 4, pp. 91-125). Rio de Janeiro: Editora. Relume-Dumará: Abia: IMS, Uerj.

Horta, R. L. et. al. (2011). Perfil dos usuários de crack que buscam atendimento em Centros de Atenção Psicossocial. Cad. Saúde Pública [online]. Vol. 27, n.11, pp. 2263-2270.

Ingold, T. (2011). Being alive: essays on movement, knowledge and description. New York: Routledge.

Lima, J. R. C. (1990). Passageiros da Fantasia. Fundação Joaquim Nabuco. Recife: Editora Massangana.

Macrae, E. A., & Simões, J. A. (2000). Rodas de fumo, o uso da maconha entre camadas médias urbanas. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia.

Macrae, E. A. (1994). Abordagem etnográfica do uso de drogas. In F. Mesquita, & F. Bastos (Orgs) Drogas e Aids: estratégias de redução de danos. (Cap. 6, pp. 99-114) São Paulo: Editora Hucitec.

Perlongher, N. (1987). O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense.

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Velho, G. (1975). Nobres e Anjos. Um Estudo de Tóxicos e Hierarquias. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,, Brasil.

Zinberg, N. E. (1984). Drug, Set and Setting. New Haven, Connecticut: Yale University Press.

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Escavações recentes realizadas no Equador mostram que existe uma relação entre a espécie humana e o arbusto de coca há pelos menos cinco mil anos (Escohotado, 2008 p. 115). Aparentemente a origem da palavra ‘coca’ deriva da língua ‘Aymara’, significa ‘planta’ ou ‘árvore’. Depois do tabaco, a folha de coca é a substância mais importante descoberta na América, se levarmos em conta a quantidade de pessoas que declaram fazer seu uso (Escohotado, 2008 p. 350). Há indícios do uso da folha de coca por outros povos anteriores aos Incas, mas neste Império a prática de mascar as folhas ganhou destaque e era privilégio para poucos da nobreza (Escohotado, 2008 p. 118).

Entre muitos povos indígenas existe a crença de que a planta de coca é um presente de Pacha Mama (mãe terra), “pois sem a planta seria impossível suportar as dificuldades do trabalho e a desnutrição” (Escohotado, 2008 p. 1262). Farmacologicamente, mascar a folha de coca tem como base um efeito estimulante, capaz de diminuir a fome e promover o vigor físico. Hoje em dia é utilizada tradicionalmente por povos indígenas e populações campesinas que moram em altitudes elevadas principalmente no Peru, Bolívia, Colômbia e Equador.

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Em 1859, o professor alemão A. Niemann isolou o princípio ativo da cocaína. Logo, o médico francês Ch. Fauvel foi um dos primeiros a utilizar a substância para diversas finalidades, principalmente analgésicas em problemas de garganta de cantores, pois ele a considerava um eficiente tensor das cordas vocais (Escohotado, 2008 p. 449). Em seguida, passou a ser prescrita por muitos médicos como tratamento para usos problemáticos de ópio, morfina e álcool e a publicidade divulgava o uso de cocaína como ‘um alimento para os nervos’ e ‘uma forma inofensiva de curar a tristeza’ (Escohotado, 2004, p. 87).

Rapidamente o emprego da cocaína ultrapassou as fronteiras da esfera médica e farmacêutica e, em 1890, já haviam muitas bebidas que continham extratos condensados de cocaína, como o vinho Mariani e a Coca-Cola. No início do século XX houve divergências sobre as reais consequências do uso da substância e gradativamente as ações restritivas e punitivas baniram qualquer tipo de uso (Harrison Narcotics Act, 1914; Boggs Act, 1951; Narcotics Control Act, 1956). Imediatamente surgem os laboratórios clandestinos para manter a produção e circulação da substância pelo fluxo do mercado ilícito. Neste processo temos uma redução significativa da qualidade e aumento do preço da substância, mantendo o uso principalmente entre populações marginalizadas (Morgan, Zimmer, 1997, p. 132).

Devido ao alto preço da cocaína em pó, esta forma de uso prevaleceu entre as classes mais altas, e na década de 1970 surgiu uma alternativa para o uso de cocaína fumada, conhecida como freebase (Morgan, Zimmer in Reinarman e Levine, 1997).

A principal diferença entre o crack e o freebase é que o freebase era geralmente preparado pelas próprias pessoas que o consumiam a partir da compra de cocaína em pó, já o crack passou a ser cozinhado pelos traficantes e vendido já pronto para o consumo.

Farmacologicamente o uso de cocaína fumada apresenta um melhor custo-benefício, principalmente para a população de menor poder aquisitivo. Segundo Denis Petuco, “a pedra (crack) tornou o consumo de

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cocaína acessível às classes menos favorecidas, já que diminuiu os custos de fabricação e transporte” (Petuco, 2011 p. 24). Uma dose pequena de cocaína em pó que seria insuficiente para proporcionar efeito quando inalada se torna uma dose efetiva quando convertida em crack e fumada (Morgan, Zimmer, 1997, p. 134).

Este acesso do consumo de cocaína em forma de crack pelas populações pobres ganha sentido, pois o “efeito intenso e barato era melhor ajustado às finanças e interesses imediatos da população pobre do centro da cidade do que o efeito sutil e cheio de status da cocaína em pó. (Reinarman, Levine, 1997, p. 02).

Desde a Convenção Única de Entorpecentes, em 1961, a base da política de drogas internacional é de caráter proibicionista com o objetivo de erradicar qualquer cadeia produtiva de substâncias ilícitas (Petuco, 2011, p. 23). Esta orientação proporcionou um conjunto de práticas que atuam na

emergência das drogas como ‘problema social’ a partir de uma visão catastrofista, descolada da realidade epidemiológica, que articula práticas de estigmatização e criminalização de populações já vulneráveis a uma retórica sanitária, em um cenário mundial em que políticas assistenciais cedem espaço à repressão…. (Petuco, 2011, p. 24)

Petuco acrescenta que o crack surgiu como alternativa à política proibicionista do controle de produtos químicos necessários para o refino da cocaína e do freebase (éter ou acetona) pelo Departamento de repressão às drogas do governo dos Estados Unidos (DEA) (Petuco, 2011 p. 24). Sendo assim, fica evidente que o surgimento do crack não aconteceu por acaso, mas dentro de um contexto complexo de forças políticas.

Nos anos 1990 percebeu-se uma significativa transição da via de administração de cocaína injetável para a fumada. Não se tem dados consistentes sobre este fenômeno, mas geralmente é associado à baixa oferta de cocaína em pó no mercado, à crescente perda de qualidade da

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cocaína em pó, à grande disponibilidade de crack e às angústias relacionadas aos riscos e mortes relacionadas à via de administração injetável (overdoses e transmissão do HIV e Hepatites virais).

O crack surgiu no fim de 1984 e 1985 entre descendentes de africanos e latinos em bairros pobres das regiões centrais de Nova York, Los Angeles e Miami (Reinarman, Levine, 1997, p. 02), sendo uma versão da cocaína possível de ser fumada. A via de administração da cocaína fumada tem características próprias que proporcionaram mudanças nas dinâmicas em torno do seu uso.

Na cidade de São Paulo, a primeira apreensão de crack ocorreu em 1990 no bairro de São Mateus e Cidade Tiradentes, na Zona Leste, mas logo chegou ao centro na região da Luz. Atualmente, na cracolândia a pedra de crack é chamada de ‘bloco’. Basta uma aproximação do ‘fluxo’ (hoje o local de uso e comércio intenso de crack) que logo será oferecido um ‘bloco’. Em uma das conversas em campo, um interlocutor local diz que “é o partido que alimenta o crack aqui. Um quilo de crack está custando 14 mil reais. Com um quilo é possível fazer cerca de 10.000 pedras”. A venda de uma pedra inteira pelo valor padrão de 10 reais gera um retorno de 100 mil reais, com lucro de 86 mil reais. Podemos imaginar quantos quilos circulam por ali em um único dia...

Apesar da recente pesquisa “Perfil dos Usuários de Crack e/ou Similares no Brasil” realizada pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) ter apresentado dados contrários à percepção do senso comum, a ideia de ‘epidemia do crack’ permanece no imaginário social. O estudo estima que 370 mil pessoas usam crack e similares (pasta base e merla) no Brasil, sendo menos de 1% da população total do país. Este dado é significativamente baixo para aferir o conceito de epidemia, além de ser inferior ao uso de outras drogas como álcool, tabaco e solventes, ou das ilícitas maconha e cocaína (Fiocruz, 2013). Uma informação importante é o fato de que 80% destas pessoas utilizam a droga em espaços públicos, ou seja, à vista de todos e todas (Fiocruz, 2013).

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Na década de 1990 o crack – mistura de pasta base de cocaína, água, bicarbonato de sódio e outras substâncias difíceis de definir – chegou ao centro. O uso e comércio desta substância foi se territorializando no bairro da Luz, Campos Elíseos e Santa Cecília, provavelmente associado à degradação do bairro após a saída da Rodoviária em 1982 e também devido ao fluxo crescente de pessoas de regiões periféricas para o centro. Com a saída da Rodoviária, ocorreu como consequência uma inacessibilidade indesejável para o bairro, que ficou escondido em um canto da cidade entre as grandes avenidas, Rio Branco e Duque de Caxias, e as linhas de trem das estações Luz e Júlio Prestes. A contínua pressão habitacional resultou no surgimento de cortiços, prostituição, mercado informal e ilegal, como o comércio de drogas. Como apontaram Junior e Righi (2001), “ao declínio da ferrovia no Brasil associou-se diretamente a decadência do bairro da Luz”. Porém, a proximidade com duas estações ferroviárias e a rodoviária (que permaneceu ali até 1982) proporcionou o trânsito constante de muitas pessoas, migrantes e imigrantes, que impulsionadas pela fervorosa economia marginal, informal, e por vezes ilegal, começaram a redesenhar a identidade do bairro.

O termo cracolândia se aproxima cada vez mais ao nome do bairro. Atores sociais como a mídia, poder público e sociedade, incluindo as pessoas que fazem uso de crack, assim nomeiam atualmente a região. Ruas e praças como Protestantes, Triunfo, Gusmões, General Osório, Duque de Caxias, Julio Prestes, Princesa Isabel, Andradas, Barão de Piracicaba, Helvétia, Glette, Nothmann e Dino Bueno caracterizam e relacionam-se em diferentes momentos da história com o termo cracolândia, que acompanha o bairro desde a chegada do crack no centro da cidade.

Esta denominação social da região da Luz trouxe um forte estigma relacionado ao bairro e às pessoas que o habitam. O entendimento de que a região apresenta nítida degradação urbana e social devido à proliferação do uso de drogas e um descaso do poder público pode ser questionado. O poder público está presente. Em sua tese de doutorado a antropóloga Taniele Rui apontou que “Ele (o poder público) está. Não há como refutar

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isso. Considero mais relevante saber como ele está lá? ” (Rui, 2012, p. 199). Paradoxalmente a gestão pública apresenta diferentes formas de lidar com este espaço e seus habitantes. Por um lado, temos um espaço sujeito à precarização, abandono e falta de estrutura básica associada a posturas altamente repressivas por parte da segurança pública. Por outro, ações de atenção e cuidado oferecidas pela assistência social e saúde do Estado além de Instituições do terceiro setor e outras de caráter religioso que também atuam no local. Adorno e Raupp (2011) apontam um cenário de “campo de forças”, onde diversos personagens e interesses se interlaçam em jogos de poder políticos, institucionais, corporativos e pessoais.

Discurso, imaginário e produção do espaçoNa ‘Cracolândia’, além do uso da substância em si, existem outros

fatores históricos, sociais, ambientais e subjetivos fundamentais na produção deste ambiente construído, espaço urbano e lugar social. Sendo assim, quais os interesses, problemas e conflitos íntimos à produção deste espaço?

Segundo os antropólogos Heitor Frugoli e Enrico Spaggiari (2010), “o termo cracolândia enfatizaria certa dimensão territorial, com uma tendência a ser fixado espacialmente do ponto de vista da representação, como ocorreu efetivamente no bairro da Luz, que praticamente passou a ser sinônimo de cracolândia…” (Frugoli e Spaggiari, 2010, p.16). Diferentes entendimentos e sentidos podem ser atrelados ao termo, afirmando que de fato a cracolândia existe. Sua espacialidade é reconhecida socialmente e diferentes representações são percebidas e reproduzidas no imaginário social sobre este espaço. Sendo assim, a cracolândia é um lugar real e também um lugar imaginado. Por meio do discurso dos meios de comunicação e da percepção da sociedade sobre o lugar, temos a hipótese de que a reprodução destas representações, muitas vezes imaginadas, são elementos importantes no processo de

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espacialização do uso da droga neste território e sua especialização na produção do imaginário social.

Sendo assim, explicitaremos a forma que a linguagem midiática em relação ao tema das drogas e especificamente sobre o uso de crack no bairro da Luz, cria as representações sociais deste espaço. Por meio deste discurso, no imaginário social o termo ‘Cracolândia’ passa a ser signo de perigo, doença, perda, violência e etc. Amorim destaca a construção coletiva destas representações, e como esta construção é reflexo da sociedade em sua época:

A significação é criação do coletivo, que opera na sociedade de forma anônima e constante, construindo um universo de valores e crenças, responsáveis pela sustentação da sociedade como tal. Somos fragmentos ambulantes desses valores, que mudam naturalmente com a sociedade e com a história. (Amorim in Vichietti, 2012, p. 95)

Podemos entender então a construção das subjetividades como produto da sociedade. A pós-industrialização, o desenvolvimento científico e tecnológico e o exagero da importância econômica no funcionamento das sociedades são características de nossa época. A psicóloga Sueli Damergian coloca que estes fatores proporcionam um atraso afetivo, ético e espiritual. Um modo de viver individualista que ocasionou em um esvaziamento da subjetividade, da capacidade de autorreflexão e troca para a busca do conhecimento coletivo. Um “mundo oco, vazio de objetos, diálogos, relações, afetos e significados. Nele, o sujeito dialoga com seu espelho mágico, sua “auto-imagem grandiosa” (Damergian in Vichietti, 2012, p.117). Uma sociedade em que “o outro existe apenas como objeto de desejo, manipulação, poder, satisfação, violência, sem direitos, sem reconhecimento, sem desejo, um não sujeito. ” (Darmegian in Vichietti, 2012, p. 118).

A reprodução pelos meios de comunicação desta subjetividade ‘esvaziada’ retrata fielmente nosso momento atual, onde “a sociedade-espetáculo contemporânea, marcadamente midiática, convida

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incessantemente ao acting-out, à exterioridade, ao esvaziamento continuo da subjetividade.” “E assim os homens passam a vida toda ignorando a si mesmos” (Darmegian in Vichietti, 2012, p. 123).

A antropóloga Taniele Rui, em seu artigo intitulado “Depois da ‘Operação Sufoco’ : sobre espetáculo policial, cobertura midiática e direitos na cracolândia paulistana”, analisa o depoimento da jornalista Laura Capriglione, do jornal Folha de São Paulo, em um evento sobre drogas, mídia e HIV promovido na época pelo Centro de Convivência É de Lei. Neste depoimento Laura diz que como a sede do jornal Folha de São Paulo é próxima à cracolândia, os jornalistas saíram do escritório e puderam acompanhar a ação da rua, próximo às pessoas que fazem uso de crack, e foram testemunhas oculares da violência polícia e violação de direitos humanos. Laura disse que esta prática incomum no atual jornalismo brasileiro, a aproximação de uma realidade que ignoravam solenemente, possibilitou entrar em contato com a realidade das pessoas envolvidas neste contexto. Laura destacou que a percepção dos dramas pessoais, a quebra de estereótipos, e a necessidade e importância de se olhar a questão por diferentes ângulos fez a diferença para o amadurecimento do discurso midiático nas semanas seguintes ao ocorrido, que passou a denunciar a violência policial em prol da garantia dos direitos humanos.

Nesse sentido, Taniele Rui aponta como esta significativa mudança no olhar vislumbra uma mediação mais coerente entre as pessoas que usam crack, a segurança pública e a sociedade:

Uma eventual via para quebrar a retroalimentação entre violência, publicização e espetáculo. Salta aos olhos, nesse sentido, a potência política desse tipo de narrativa (Polletta, 2006) e, a partir dela, a probabilidade de emergência de novas configurações de produção dos discursos mediadores das relações entre usuários de crack e imprensa, entre imprensa e polícia, entre usuários de crack e “mundo público. (Rui, 2013, p. 303)

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Um fato isolado que evidencia abordagens rasas e a prática inconsequentes do discurso de determinados meios de comunicação que reproduzem e representações sociais também rasas sobre o local, e principalmente sobre os sujeitos que fazem uso de crack. A jornalista Laura, no artigo de Taniele, diz estar “muito ciente” de que a imprensa pode tanto dar visibilidade ao fenômeno, quanto também reforçar preconceitos (Rui, 2013).

Estudiosos da Escola Sociológica de Chicago apontam que determinada área urbana possui função dominante em alguma atividade ou na distribuição da população que a ocupa. Robert Ezra Park, da Escola da Chicago, que define estes espaços como “meios morais” ou “regiões morais”. Park considera que a sociedade do início do século XX possuía caráter individualista, um mundo onde “uma pessoa é simplesmente um indivíduo que tem, em alguma parte, em alguma sociedade, um status social, mas o status vem a ser, finalmente, uma questão de distância – distância social” (Park, 1925, apud Agier, 2011 p. 66).

Este status atribuído à região da Luz produz uma identidade local atrelada às representações morais deste lugar. Uma identidade própria dos atores urbanos que ali vivem. Neste contexto, podemos relacionar a atribuição do termo cracolândia que faz referência à ‘terra do crack’, à reflexão de Agier que localiza a produção destas identidades urbanas como identidades “externas”, “no sentido de que elas emanam primeiro de um olhar dos atores exteriores ao espaço considerado, mesmo que elas sejam em seguida retomadas a partir de dentro…” (Agier, 2011, p. 67) Desta forma, o processo de estigmatização é incorporado pela população estigmatizada, como em um ciclo reproduzido socialmente.

Podemos destacar a estigmatização da área no imaginário social a partir de um relatório de campo da pesquisa intitulada “Usuários de crack e espaços de uso: agenciamentos e relações de trocas em territórios urbanos” – coordenada pelo professor Rubens Ferreira Camargo Adorno na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – onde a pesquisadora Selma Lima ilustra a estigmatização local quando utiliza o transporte público para se deslocar para o trabalho de campo:

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Pergunto ao cobrador se tem um ponto próximo à Sala São Paulo. Ele diz que não. Pergunto novamente se não tem um ponto próximo à Estação Júlio Prestes. Ele me diz: não tem não, só tem o ponto da cracolândia (rua Helvetia, esquina com a Alameda Cleveland). Parece que ele não acha que ali seja um lugar onde eu, ou qualquer outra pessoa queira ir, portanto, não é um lugar. (Adorno et al, 2013)

Na construção deste espaço, a presença das pessoas que usam drogas e que estão em situação de rua possuem um papel importante. Um segmento da população que faz do consumo de crack, uma mercadoria efêmera de grande circulação entre parte da população pobre do país. Em estudos sobre Cultura e Consumo, Grant McCracken aponta como na história do consumo ocidental, inicialmente os bens de consumos eram relacionados ao status ‘comprado’ pela burguesia e nobreza da época, a mudança da mentalidade foi a ressignificação do ato de consumir e dos bens de consumo. Segundo o autor:

É também, como se os bens estivessem se tornando os portadores de outros tipos de significado além do de status. É possível que a formação de informadores de papéis sociais que os bens assumem nos dias de hoje (Solomon, 1983) tenha começado a emergir neste período. ... do anonimato na sociedade ocidental encorajou o uso dos bens como uma expressão da e uma guia para a identidade social. ... o significado cultural dos bens era cada vez mais um modo através do qual uma sociedade de anônimos podia manter-se centrada (McCracken, 2003 p. 40).

As pessoas em situação de rua e que usam crack são constantemente anuladas como sujeitos sociais. Suas trajetórias e valores singulares são diluídas no balaio do estigma e do preconceito, e a sociedade generaliza todos como um grande grupo de ‘vagabundos’. Neste cenário, o consumo de crack, e por vezes até o rótulo de ‘nóia’, podem proporcionar um lugar

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social para quem já rompeu com os demais lugares possíveis neste momento.

A miséria brasileira vai se tornando íntima ao crack. Segundo reflexão ainda atual de Milton Santos sobre o modo de produção e consumo brasileiro, temos

uma produção de massas contente de si mesma e necessitada apenas de um mercado voluntariamente restringido. Isso garante o não-esgotamento da revolução das esperanças – isto é, das grandes esperanças de consumir –, e ajuda a colocar como meta, não propriamente o indivíduo tornado cidadão, mas o indivíduo tornado consumidor. (Santos, 1993 p. 15)

Consumidor e objeto de interesses políticos e econômicos. Ainda segundo Santos, mais especificamente entre as pessoas que fazem uso de drogas na região da Luz, o consumo deste espaço coloca que na produção da sociedade brasileira, “em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário (Santos, 1993, p. 13).

Esta reflexão sobre o consumo deste espaço urbano evidencia a necessidade de transformações nos modos em que o consumo se aplica a este território, que tem como característica a concentração de dinâmicas informais com a presença de uma grande concentração de pessoas que fazem uso de drogas. Esta é uma realidade de uma questão social bastante significativa para uma sociedade. É preciso se aproximar e olhar para este fenômeno, o consumo de uma mercadoria efêmera e ilegal em larga escala no espaço público. Segundo McCracken,

o que está faltando, principalmente, é que se dê conta de modo pleno dos aspectos culturais dos bens e do comportamento de consumo. É aqui que a contribuição do consumo para a transformação do ocidente está à mão de modo mais imediato para ser descoberta (McCracken, 2003 p. 29).

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ReferênciasAdorno, R. C. F., Rui, T., Silva, S. L., Malvasi, P., Vasconcellos, M. P.,

Gomes, B. R., & Godoi, T. C. (2013) Etnografia da cracolândia: notas sobre uma pesquisa em território urbano. Revista Saúde & Transformação Social, Florianópolis, 4(2), 4-13.

Agier, M. (2011). Antropologia da cidade, São Paulo: Terceiro Nome.Amorim, M. M. (2012). O papel da imaginação Radical na Construção da

Realidade Social Histórica. In S. M. P. Vichietti (Org). Psicologia Social e Imaginário: leituras Introdutórias (pp. 95 – 102). São Paulo: Zagodoni.

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capitais do país. Rio de Janeiro: Fiocruz.Darmegian, S. (2012). Do imaginário ao Real, da Fantasia à Realidade:

um convite à transcendência. In S. M. P. Vichietti, (Org). Psicologia Social e Imaginário: leituras Introdutórias (pp. 117 – 124). São Paulo: Zagodoni.

Frúgoli Jr, H.; Spaggiari, E. (2010). Da cracolândia aos nóias: percursos etnográficos no Bairro da Luz. Pontourbe, 6.

McCraken, G. (2003). Cultura e consumo: Novas abordagens ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo. (Coleção cultura e consumo). Rio de Janeiro: Mauad.

Morgan, J. P.; Zimmer, L. (1997). The social pharmacology of smokeable cocaine: not all it’s cracked up to be. In C. Reinarman & H. G. Levine, Crack in America: demon drugs and social justice. (pp. 131 – 170). Berkeley, CA:University of California Press.

Petuco, D. R. S. (2011). Entre imagens e palavras: o discurso de uma campanha de prevenção ao crack. Dissertação de Mestrado, não publicada. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil.

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Righi, R. (2001). Um Século de Luz. São Paulo: Scipione.Rui, T. (2012). Corpos Abjetos: Etnografia em cenários de uso e comercio de crack.

Tese de Doutorado, não publicada. Campinas, São Paulo, Brasil.Rui, T. (2013). Depois da “Operação Sufoco”: sobre espetáculo policial,

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Santos, M. (1993). O espaço do cidadão. 2ª ed. São Paulo: Nobel.

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PARTE 5:

TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL

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C A P Í T U L O 5 .1

Formação continuada de educadores de escolas públicas:

construções metodológicas na experiência do Prodequi/UnB

Maria Fátima Olivier Sudbrack

ResumoO texto apresenta a proposta pedagógica construída pela equipe do

Prodequi, que fundamenta as ações de formação de educadores de escolas públicas realizadas no Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas e que se denomina A ESCOLA EM REDE. Foi resultado de uma construção coletiva entre a academia e a própria comunidade de educadores cursistas, com a participação dos consultores representantes dos órgão de governo que acompanharam e legitimaram a proposta, vigente no período de uma década (2004-2014), e que marcou a política de prevenção no âmbito da educação nacional brasileira pela sua abrangência e territorialidade, assim como a política nacional sobre drogas, por ser o projeto de prevenção de maior investimento da Senad/MJ para a prevenção do uso de drogas no contexto da escola. A equipe do Prodequi- Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas/PCL/IP/UnB, coordenada pela autora, foi responsável técnica pela elaboração da proposta pedagógica do curso e de sua execução, desde a sua concepção (2004) até sua consolidação na política de formação continuada de educadores como matriz do Programa Saúde na Escola (PSE). Trata-se de uma parceria interministerial exitosa, entre Saúde e Educação, sob mediação da Universidade de Brasília. Esta parceria representou uma das ações prioritárias na política de prevenção do uso de drogas no país, consolidando-se em seis edições do curso, numa história de dez anos.

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IntroduçãoA precocidade da experimentação de drogas aumenta

consideravelmente os riscos do uso abusivo, com os consequentes danos à saúde de crianças e adolescentes, problemas de relacionamento e de violência, queda no rendimento escolar e evasão escolar, entre outros.

Em consonância com a política nacional e também com as diretrizes internacionais, entendemos que a escola é contexto privilegiado e responsável para ações de prevenção e promoção da saúde, entre outros, tais como a família e a comunidade.

O presente texto se refere ao Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas, desenvolvido e executado sob a nossa responsabilidade técnica, coordenando uma equipe de profissionais junto ao Prodequi/PCL/IP/UnB, apresentando a proposta A ESCOLA EM REDE enquanto uma metodologia original, construída entre segmentos do governo e a academia (UnB), com a participação genuína dos educadores cursistas, na medida em que interagiram criticamente com a proposta, em diferentes momentos da formação.

Com o objetivo de capacitar profissionais de escolas públicas para trabalharem coletivamente na prevenção do uso abusivo de drogas, por meio do fortalecimento da escola na promoção da saúde e da educação integral, foi iniciada, em 2004, uma parceria entre os órgãos responsáveis pela prevenção do uso de drogas do Governo Federal (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas-Senad/MJ e Secretaria de Educação Básica – SEB/MEC) e a Universidade de Brasília (Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas/Prodequi/PCL/IP/UnB e Centro de Educação a Distância/Cead/UnB), para oferta de uma capacitação de extensão universitária na modalidade de educação a distância. A equipe do Prodequi foi indicada pela Senad/MJ para a elaboração da proposta pedagógica do curso, bem como pela sua execução.

A parceria interministerial com a Universidade de Brasília manteve continuidade nas seis edições do curso, no período de dez anos, consolidando-se como uma das ações prioritárias na política de prevenção

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do uso de drogas no país, contribuindo para o fortalecimento da comunidade escolar, por meio da formação continuada e da implementação dos projetos de prevenção construídos coletivamente e coordenados pelos educadores-cursistas nas suas instituições de origem. Na edição de 2010/2011, a proposta pedagógica foi ampliada, integrando-se um módulo sobre a implementação de ações preventivas na escola, resultando em um curso de aperfeiçoamento (180 horas). O curso também constituiu um espaço para a realização de pesquisas que retroalimentaram a prática preventiva, num processo dialético de construção do conhecimento no contexto de formação-intervenção. Diferentes pesquisas e produções científicas, entre elas, dissertações de mestrado e teses de doutorado, foram realizadas durante a oferta do curso. (veja quadro ao lado)

A partir da sua quinta edição (2012/2013), o curso passou a atender os objetivos estabelecidos no eixo PREVENÇÃO do Programa do governo federal “Crack, é possível vencer”. No âmbito do Ministério da Educação, atendeu metas de implementação das políticas intersetoriais de educação para a saúde do Programa Saúde na Escola/PSE, articulando-se com outros programas da SEB, como o Mais Educação e o Escola Aberta, com meta de oferta de mais de 210 mil vagas. Na sexta e última edição (2014/2015), a execução do curso foi descentralizada para uma rede de universidades públicas brasileiras, acompanhadas pelo Ministério da Educação.

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Foram as seguintes as pesquisas realizadas das quais resultaram materiais pedagógicos inseridos no curso:

• Na segunda e terceira edições (2006 e 2009)(1) Termômetro de risco e proteção Fonte do instrumento, dissertação de Mestrado: Borges, J. S. (2006). Redes Sociais e Fatores de

Risco e Proteção para o envolvimento com drogas na adolescência.  Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

(2)  Mapa da Rede da escolaFonte do instrumento, dissertação de Mestrado: Vasconcelos, M. L. (2008). Avaliação das redes

sociais da escola: uma estratégia de prevenção do uso. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

(3)  Entrevista de acolhimento de adolescentes em situação de riscoFonte do instrumento, tese de Doutorado: Pereira, S. E. F. N. (2009). Redes sociais de

adolescentes em contextos de vulnerabilidade social e sua relação com o envolvimento com o tráfico de drogas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

•Na quarta edição (2011), foi construído um Banco de dados sobre situações-problema, visando um diagnóstico da realidade vivida pelos educadores cursistas, práticas de enfrentamento das situações-problemas e também suas demandas de formação para atuarem na prevenção. Este banco de dados possui depoimento de mais de dois mil educadores, resultando em três dissertações de mestrado e uma tese de doutorado:Marques, R. H.B. (2011). Situações-problema relacionadas ao uso de álcool e outras drogas, no

contexto escolar: narrativas de educadores do ensino público da região Centro-Oeste. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

Dalbosco, C. (2011). Representações sociais de educadores de escolas públicas sobre situações-problema relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

Silva, S. F. L. da. (2011). Violência e drogas na escola e imediações: ótica dos educadores sociais de segurança pública. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura, Universidade de Brasília, Brasília.

Rodrigues Sobrinho, W. (2014). O papel do policial como parceiro da escola, na prevenção do uso de drogas: análise de intervenções junto a adolescentes envolvidos com drogas. Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

•Na quinta e sexta edições ( 2012 e 2014)Souza Pinheiro, M. L. (2016). Situações de Risco e de proteção ao uso de drogas em relação

ao clima escolar. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

Macedo, E. O. S. (2018). A relação entre família e escola na adolescência: vínculos e afetos como dispositivos de cuidado e proteção. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília.

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1 - A formação continuada de educadores de escolas públicas: uma parceria exitosa entre o Governo Federal e a Universidade na política sobre drogas

Em 2004, a partir de demanda institucional da Senad-Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas/MJ, desenvolvemos o Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas que resultou da produção de conhecimentos junto ao Prodequi – Programa de Estudos e Atenção às Dependências Químicas – laboratório do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, coordenado pela autora do presente texto desde sua criação (1991), e que desenvolve atividades integradas de pesquisas, ensino e extensão na temática da drogadição, incluindo diversos professores pesquisadores e alunos da graduação e da pós-graduação em psicologia. Por sua vez, a oferta do curso representou espaço de pesquisas que retroalimentaram a prática preventiva, num processo dialético de construção do conhecimento e de formação-intervenção.

Dentre os diversos projetos de pesquisa que resultaram em dissertações de mestrado e teses de doutorado, destaca-se o Banco de Dados sobre Situações-Problema, com depoimentos de mais de dois mil educadores sobre suas vivências relativas ao envolvimento de alunos com drogas no cotidiano escolar, suas formas de enfrentamento e demandas de capacitação na área. A cada edição foram produzidos relatórios pedagógicos propositivos, visando o aperfeiçoamento do processo no contexto da própria ação formadora. Em 2014, foi realizada pesquisa de avaliação de impacto da quinta edição do curso, mobilizando-se polos estaduais de pesquisa em dez universidades federais.

Esta experiência merece destaque, a nosso ver, pela abrangência e consolidação da formação de educadores como ação da política nacional de prevenção do uso de drogas no território nacional.

Resultado de ação tripartite (Prodequi-UnB/SEB-MEC e Senad-MJ), no Plano "Crack: é possível vencer" (2012), o Curso de Prevenção do Uso de Drogas para Educadores de Escolas Públicas constituiu o principal

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projeto no Eixo Prevenção, respondendo à execução da meta do governo federal de oferta de 210 mil vagas no triênio 2012 a 2014. No Ministério da Educação, consolidou-se como ação de formação continuada na matriz do PSE (Promoção de Saúde na Escola), integrada à Diretoria de Educação Integral e Currículos/Deic da Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC). Cabe aqui, destacar que a ampliação da oferta não reduziu a qualidade pedagógica do curso, com certificação em nível de aperfeiçoamento (180 h) e com atividades interativas dos educadores com tutores qualificados, resultando em uma construção coletiva de Projeto de Prevenção da Escola. A gestão pedagógica e tutorial, composta por mais de 600 tutores e supervisores, foi realizada pelo Sisap- Sistema de Apoio Pedagógico, com supervisão presencial obrigatória de todos os tutores para o acompanhamento das demandas emergentes pelos educadores, em um processo dinâmico e muito rico de trocas e de aprendizados.

A gestão pedagógica fundamentava-se em relatórios sistemáticos da coordenação de avaliação que permitiam visualizar territorialmente, o andamento das atividades dos alunos, através de implementação da tecnologia Webgis. As atividades interativas nos Fóruns de Discussão revelaram sua efetividade enquanto espaços de aprendizado de conteúdos e surpreenderam enquanto recurso pedagógico para a promoção da mudança do paradigma da “Guerra às Drogas”, ainda muito presente nas escolas. A proposta pedagógica do curso está centrada no desenvolvimento da autonomia responsável dos alunos, destacando-se a escola enquanto contexto de socialização complementar à família na formação de valores morais das crianças, adolescentes e jovens educandos.

Nesse sentido, a prevenção não é trabalho de um educador isoladamente. A prevenção deve fazer parte do projeto político-pedagógico da escola, sendo integrada no currículo das diferentes séries, contemplando o desenvolvimento da cidadania responsável, integrando o projeto de educação para a saúde e envolvendo a rede social da qual a escola é parte integrante.

Entendemos que a territorialização da promoção de saúde na escola – meta fantástica do PSE, onde se inserem as ações preventivas do

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abuso de drogas – prima por ações políticas de mobilização nas instituições locais na esfera da gestão estadual, municipal e direção das escolas contempladas pelo curso, para que assumam o apoio à implementação do projeto de prevenção da escola. A aposta nos próprios educadores como atores da prevenção do uso de drogas revelou-se profícua e viável como estratégia de garantia de ações preventivas nas escolas públicas brasileiras. A principal condição desta efetividade situa-se na continuidade desta formação, com o devido apoio político para a consolidação do Projeto de Prevenção no Projeto Político-Pedagógico da Escola. O grande desafio é, sem dúvida, o da territorialização das ações preventivas, num processo de parcerias da escola com a comunidade e com a cidade, em busca do fortalecimento de uma política mais ampla e assertiva de promoção de saúde e de cidadania.

2 - Apostando na escola como contexto protetivoA inclusão da temática da drogadição na formação continuada de

educadores justifica-se pelo crescimento do consumo de drogas entre crianças e adolescentes. As pesquisas revelam uma precocidade na idade da primeira experimentação, o que aumenta consideravelmente os riscos do uso abusivo com os consequentes danos à saúde de crianças e adolescentes, problemas de relacionamento e de violência, queda no rendimento escolar e evasão escolar, entre outros. Os estudos epidemiológicos sobre a realidade do uso de drogas pela população brasileira apontam pois, para a necessidade de ações de prevenção e promoção da saúde no âmbito da comunidade escolar.

A realização de ações para minimizar os fatores de risco, centrada no desenvolvimento da autonomia responsável dos alunos, é tarefa a ser desempenhada por diferentes instâncias da sociedade, destacando-se nesse contexto o papel da escola, como anteriormente referido. A complexidade das ações de prevenção do uso de drogas é contemplada no paradigma sistêmico da prática de redes e do trabalho comunitário que sustentam a proposta da Escola em Rede. Esta metodologia direciona uma política

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intersetorial com ações integradas e territorializadas de promoção de saúde, de defesa dos direitos humanos e da cidadania. Com essas referências, a formação de educadores implica em uma responsabilidade social e compartilhada entre a Universidade e a política sobre drogas pela disseminação de conhecimentos científicos atualizados e isentos de preconceitos, bem como pela construção coletiva de formas de abordagem e de estratégias de trabalho pedagógico, para subsidiar os educadores no cotidiano da prática educativa.

3 - Desconstruções e construções para um novo paradigma na prevenção

Muito além de teorias e metodologias, a formação continuada dos educadores inclui mudanças de representações sociais e a desconstrução de posturas, num novo paradigma da prevenção do uso de drogas que substitua o paradigma da guerra às drogas pelo da promoção de saúde.

No processo de desenvolvimento do curso são abordadas conteúdos teóricos, seguidos de exercícios de fixação, são ofertados espaços interativos, e disponibilizados instrumentos práticos para construção e a implementação de projeto de intervenção pelo grupo de cursistas/ educadores de cada escola.

Os projetos de prevenção podem ser estruturados em referência a cinco eixos metodológicos principais, a saber: (1) participação juvenil e a formação de multiplicadores; (2) integração no projeto político-pedagógico de ações pautadas na prevenção; (3) resgate da autoridade na família e na escola; (4) fortalecimento da escola na comunidade e como comunidade; (5) acolhimento de adolescentes em situação de risco.

Para que esses eixos sejam contemplados, busca-se uma mudança de paradigma no que diz respeito a espaços que, por sua natureza de inserção na sociedade, são potencialmente estratégicos na incorporação da promoção da saúde. O empoderamento da escola para ações preventivas de promoção de saúde acontece na medida em que ela é concebida e valorizada como um espaço que vai além da transmissão de

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conhecimento. Ela é, em toda sua plenitude, formadora de opinião, de valores, de atitudes e capaz de instigar a noção de pertencimento a um território dado. Para o alcance dessas metas, é necessário ressignificar o papel do educador, incluindo em seu cotidiano novos conhecimentos que, resultando em novas práticas providas de sentido na missão desenhada pela escola, sejam incorporadas ao seu projeto político-pedagógico.

4 - Parcerias e intersetorialidade na metodologia da Escola em Rede

A materialização de ações de promoção de saúde firma-se nos princípios da intersetorialidade, em especial, entre segmentos da educação e da saúde, mas também, na articulação da rede de apoio interna e externa à escola e na compreensão das relações de complementaridade, à luz da teoria sistêmica e do pensamento complexo. Nesta direção, a drogadição é concebida como um sintoma sociorrelacional com olhar amiúde nos fatores de risco e proteção que permeiam as instituições e as pessoas envolvidas, as vulnerabilidades sociais e pessoais, peculiares a estas mesmas instituições e pessoas.

Há de se considerar que as ações preventivas propostas para minimizar os comportamentos de risco ao envolvimento com drogas estão fundamentadas no desenvolver da autonomia responsável dos educandos, crianças e adolescentes, sendo esta uma tarefa a ser assumida e desempenhada por diferentes instâncias da sociedade, entre as quais, a escola, que neste contexto, ocupa lugar privilegiado.

É necessário levar em conta, também, que este não é um trabalho isolado. A promoção à saúde e a prevenção do uso de drogas são temáticas transversais que devem ser integradas ao currículo no conjunto de disciplinas, como também devem estar presentes nas diferentes séries da carreira escolar, contemplando o desenvolvimento da cidadania responsável, integrando o projeto de educação para a saúde e envolvendo a rede social da qual ela é parte integrante. Para que se obtenha o alcance almejado, duas ações devem caminhar pari passu: enquanto o currículo

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Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

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integra os conteúdos, a escola dá movimento a estes conteúdos, integrando as pessoas.

Nesses dez anos de realização do curso, durante todo o processo de aprendizagem, o educador-cursista foi instigado a realizar “atividades colaborativas de aprendizagem”, como estratégia para facilitar a elaboração do projeto de intervenção. Esta ação teve como objetivo a construção do projeto a ser desenvolvido na escola. Sendo assim, a proposta político-pedagógica desenvolvida colocou-se rumo ao que, na perspectiva da psicossociologia, denomina-se processo de formação-intervenção. As atividades pedagógicas integrantes do curso foram tanto de natureza individual, como coletiva, destacando-se a realização de fóruns de conteúdo sobre situações-problema e as atividades avaliativas colaborativas que resultaram na elaboração processual do projeto de prevenção do uso de drogas da escola, num contínuo processo dialético de integração entre teoria e prática.

O primeiro passo deste percurso metodológico, notadamente, instiga o educador-cursista a evidenciar o cenário onde acontece seu cotidiano e que vai ser palco do projeto de intervenção. É orientado a efetuar uma espécie de diagnóstico da situação e, a partir deste desenho, dar os primeiros passos na proposição de uma intervenção preventiva executável e calcada nas demandas da escola e, em especial, dos estudantes. O cenário da intervenção é a Escola em Rede que implica nos estabelecimento de parcerias com segmentos das demais políticas públicas (saúde, cultura, e lazer assistência, segurança …) e também com a comunidade através das organizações da sociedade civil de apoio institucional disponíveis no território educativo. Parceria ímpar e genuína se configura, neste cenário: a integração familia-escola que tem se mostrado eixo metodológico de maior demanda nos projetos dos educadores cursistas.

5 - A escola como contexto protetivo e de promoção de saúdeNo processo para solidificação dessas concepções, apostamos na

escola como contexto de promoção de saúde, com potencialidades que

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precisam ser fortalecidas. Como possibilidade concreta que leve ao alcance desta meta, a integração de temas sociais que promovam o desenvolvimento do aluno no planejamento das atividades escolares, a inserção das ações de prevenção do uso de drogas no projeto político-pedagógico da escola e o trabalho em rede são essenciais na condução de um processo cujo ápice é a conquista de outro lugar para a escola. Neste processo reflexivo são apontadas possibilidades concretas para a mudança do paradigma vigente, com a utilização de instrumentais conceituais e metodológicos que permitam o mapeamento das redes sociais do aluno e também da escola.

O processo teórico-reflexivo tem seu marco na busca do reconhecimento do educando como sujeito em desenvolvimento, com pertencimento na família e na escola e protegido por políticas públicas. Para que esta concepção possa ser consolidada, é fundamental ressignificar a escola para o educador-cursista, intermediar processos para que se possam reconhecer as potencialidades da escola e seus atores, identificá-la como contexto de promoção da saúde e integrar temas sociais que favoreçam o desenvolvimento do aluno no planejamento das atividades escolares.

Ressignificada a escola, busca-se avivar uma proximidade das representações do educador-cursista com o adolescente como sujeito transformador, protagonista e cidadão no contexto sociofamiliar e os papéis da escola e família enquanto formadores de valores. Nesta linha de pensamento, é inexorável trazer à tona as concepções de risco e proteção, em especial em situação de risco pelo envolvimento com drogas, e no que diz respeito ao papel da escola como corresponsável nas ações protetivas e as políticas e ações de proteção como o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e de educação para a saúde. Este processo deve ocorrer em constante parceria com a comunidade e com a cidade, em busca do fortalecimento de uma política de promoção de saúde e de cidadania.

A identificação dos fatores de risco e dos fatores protetivos nas redes sociais dos educandos é viabilizada pelo oferecimento de instrumentos específicos que são disponibilizados aos cursistas, tais como o termômetro

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Formação de educadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas

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de risco e proteção, o mapa das funções da rede, a entrevista de acolhimento de adolescentes em situação de risco.

6 - Destaque metodológico do curso: atividades colaborativas - cursistas formando uma comunidade colaborativa virtual

O curso é um importante espaço de socialização de experiências para educadores, que refletem a formação para e na atuação profissional; todos são convidados para uma relação compartilhada e democrática quanto ao que fazer diante de situações de natureza inacabada e, por isso, angustiantes; percorrem um diálogo reflexivo e dinâmico acerca das competências do ambiente escolar, de forma geral, e das competências profissionais, de forma singular; são mobilizados por seus próprios pares – educadores tutores que, com sensibilidade, atenção e cuidado, incitam o acolhimento do diferente, do que não tem solução definitiva – sempre a partir de sua própria trajetória profissional e da realidade territorial e comunitária de sua escola; debatem a (re)construção de saberes na intersubjetividade das comunicações e com a comunidade maior (mais ampla); repensam a formação de Redes nas relações, e seu papel nessa construção.

Neste processo crítico e reflexivo, são apontadas possibilidades concretas para a mudança do paradigma vigente na própria formação dos educadores, com a utilização de instrumentais conceituais e metodológicos transformadores do cotidiano docente: do trabalho individual e solitário, ao trabalho participativo e colaborativo; da aplicação de uma “receita” à construção de uma proposta pelos atores envolvidos; da espera por uma “solução” pronta para resolver o problema, à problematização do processo de onde as situações-problema emergem e das vias de abordagem das mesmas.

Durante todo o processo de aprendizagem, o educador-cursista é instigado a realizar “atividades colaborativas de aprendizagem”, como estratégia para facilitar a elaboração do projeto de intervenção. Esta ação

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tem como objetivo a construção coletiva do projeto a ser desenvolvido na escola.

O primeiro passo deste percurso metodológico instiga o educador-cursista a evidenciar o cenário onde acontece seu cotidiano e que vai ser palco do projeto de intervenção. É orientado a efetuar uma espécie de diagnóstico da situação e, a partir deste desenho, dar os primeiros passos na proposição de uma intervenção preventiva executável e calcada nas demandas da escola.

Neste dez anos de convivência com educadores de escolas públicas, pudemos constatar uma grande solidão no árduo cotidiano de trabalho. Por esta razão, percebemos a proposta do curso como transformadora rumo ao paradigma do trabalho colaborativo e da promoção de laços sociais e de solidariedade na comunidade escolar, a começar pelos educadores. Neste sentido os fóruns de debate e o espaço virtual “nossa escola” foram ferramentas de grande potencial transformador.

7 – Dez anos do curso (2004 a 2014): abrangência, territorialidade e capilaridade da formação continuada de educadores

Desde a primeira edição, o curso obteve grande receptividade entre os educadores, tornando-se necessária a organização de processo seletivo. A demanda do curso pelos educadores manteve-se acima da oferta em todo o período, mesmo com a ampliação significativa do número de vagas nas últimas edições.

A primeira edição (2004) tece um caráter de "piloto" para a testagem do material e da metodologia, realizada para apenas cinco mil educadores.

A segunda edição (2006/2007) teve oferta de 20 mil vagas. Nesta edição, 13.426 educadores obtiveram aprovação final, o que representou 67% do total de inscritos em todo o Brasil. O curso obteve o índice de 76% de escolas participantes.

A terceira edição (2009) acolheu 24.583 educadores. O número de aprovados foi de 14.601 cursistas. O índice de certificação da terceira

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edição foi de 69% se considerado apenas os educadores – cursistas que acessaram o ambiente virtual de aprendizagem. Foram 6.091 escolas regulares inscritas, mais 83 instituições especiais, totalizando 6.174 escolas. Além dos educadores foram contemplados como cursistas profissionais inseridos em Projetos Especiais, dedicados a populações específicas, tais como alunos do Projovem (Secretaria da Juventude), escolas de unidades de internação (Sistema socioeducativo/Sinase), escolas vinculadas ao Programa Nacional de Segurança e Cidadania (Pronasci), escolas de populações indígenas e escolas de Moçambique, lançado assim o programa para outros países de língua portuguesa no continente africano. Nesta edição, o projeto abrigou, ainda, em caráter piloto, uma turma especial composta por cursistas gestores de segmentos do governo federal [MEC, Ministério da Saúde (MS, Fiocruz, UNODC)], promovendo diferentes áreas de interface entre educação, saúde, justiça e segurança pública.

A quarta edição (2010/2011) foi ofertada para 23.294 educadores selecionados – entre 74.667 inscritos –, de 3.357 escolas. O quantitativo de aprovados na 4ª edição foi de 10.170 educadores, distribuídos em todos os estados brasileiros. O índice de certificação da quarta edição foi de 52% se considerados apenas os cursistas que acessaram o ambiente virtual de aprendizagem. Nessa edição parte das vagas, por definição da Senad, foi destinada à participação de policiais do Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd), entre outros profissionais de segurança pública, envolvidos em ações de prevenção junto às escolas e comunidades. Devido à grande procura para realização do curso, na quarta edição o Prodequi criou um cadastro reserva organizado por estado e município visando subsidiar novas edições. Este banco contempla 9.462 escolas e 51.370 educadores e foi entregue em meio eletrônico ao MEC e à Senad, como parte dos relatórios finais da edição 2010 do curso.

Na quinta edição (2012/2013) foram selecionados e participaram do curso 71.744 educadores de 9.202 escolas, dentre os 112.925 inscritos. O quantitativo de aprovados na 5ª edição foi de 31.448 cursistas, distribuídos em todos os estados brasileiros. A média de certificação da quinta edição

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foi de 44%, se considerado o total de inscritos, e de 49% se considerados apenas aqueles que acessaram o ambiente virtual de aprendizagem (AVA). Cabe ressaltar que, embora sem elevação dos percentuais de certificação, a quinta edição obteve o maior número absoluto de concluintes ou aprovados. Destaque-se que, mesmo atendendo à meta de governo (de 70 mil vagas), a proposta pedagógica do curso prosseguiu com importantes avanços qualitativos: ofereceu o maior tempo de formação (de quatro para sete meses), com certificação de extensão universitária ampliada de 120 horas para 180 horas, garantindo para todos os 71.774 selecionados e efetivado para os 31.438 educadores-cursistas concluintes.

Na sexta edição (2013/2014) foram selecionados 51.183 educadores, de uma meta mais ampla de 140 mil vagas, com execução compartilhada em parceria com outras universidades. Assim sendo, nesta última edição a oferta executada pelo Prodequi ficou restrita a 12 unidades federativas, contemplando todos os estados da Região Norte, um estado da região Centro-Oeste (Tocantins) e o Distrito Federal, dois estados da Região Nordeste (Bahia e Sergipe) e dois estados da Região Sudeste (São Paulo e Espítito Santo). Dentre os selecionados pelo Prodequi/UnB, foram certificados 18.368 educadores, representando 45% dentre aqueles que acessaram a plataforma de aprendizado virtual. Totalizaram 10.032 escolas contempladas.

8 - Conquistas e desafios na consolidação de um novo paradigma de prevenção do uso de drogas no território educativo

Um curso de tamanha magnitude, tendo conseguido se manter em continuidade por meio de profícuas trocas entre a academia e os principais órgãos de implementação de políticas públicas do governo federal, já deixa suas marcas no que, sem dúvida, podemos chamar de implementação de uma política de prevenção do uso de drogas, através da formação de educadores de escolas públicas.

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Dentre as principais conquistas destacamos a própria continuidade e os avanços na proposta político-pedagógica. A crescente demanda pelo curso testemunha uma conquista na mobilização dos educadores como atores conscientes de seu protagonismo na implementação da política de prevenção do uso de drogas na escola. A qualidade da participação dos educadores-cursistas concluintes, que investem e se comprometem com o curso, apesar das tantas dificuldades de toda a ordem que permeiam o sistema escolar, é o maior estímulo para a continuidade em novas edições.

A cada conquista, um novo desafio em um processo que, assim como todo o processo educativo, exige tempo e adquire profundidade na sua continuidade. O desafio atual é a construção de dispositivos de comunicação que potencializem o território educativo aproveitando e resgatando o que já foi semeado e construído no território educativo nesses dez anos desta formação continuada.

A política educacional deve se apropriar dos resultados obtidos, da abrangência e capilaridade atingida pelo curso nas seis edições em todo o território nacional para adentrar na realidade das escolas atendendo suas demandas em relação às difíceis situações vivenciadas no cotidiano. Por sua vez, o tema da prevenção reúne todos os atores da comunidade-escola em torno de um mesmo desafio – o da proteção dos educandos – promovendo-se, assim, o que chamamos da rede protetiva que faz face ao isolamento e à exclusão.

O sistema WebGis permite o mapeamento destes potenciais nos territórios e também das fragilidades a serem enfrentadas como políticas públicas e não apenas como ações individualizadas de “educadores heróis” e nem de “guerra às drogas”, mas de projetos coletivos e institucionais de promoção de saúde e de educação para autonomia.

Dentre as principais conquistas, destacamos a própria continuidade e os avanços na proposta político-pedagógica. A crescente demanda pelo curso testemunha uma conquista na mobilização dos educadores como atores conscientes de seu protagonismo na implementação da política de prevenção do uso de drogas na escola.

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O grande desafio que temos pela frente e que estamos propondo a prosseguir desbravando juntos (UnB, MEC e Senad) é, sem dúvida, o da sustentabilidade de uma política de prevenção nas escolas a partir do que já foi implantado, na medida em que ela já atingiu considerável territorialização e uma fantástica capilaridade, tanto da formação dos educadores, através de universidades parceiras em diferentes estados do Brasil, como do processo de ampliação das atividades preventivas de promoção de saúde para a escola, no seu sentido mais amplo de território educativo aberto.

Foi organizado um banco com todos os projetos de prevenção elaborados, que foram sistematizados através de relatórios avaliativos dos tutores e de posterior enquete com os educadores da sexta edição, avaliando a implementação de práticas preventivas na escola, no decorrer do curso, constatando-se que a formação recebida resulta em ações preventivas mesmo durante o curso.

Na perspectiva de construção de conhecimentos sobre a eficácia do curso, ele foi submetido à avaliação externa em todas as edições, com a participação dos diversos atores envolvidos, e que avaliaram positivamente tanto a proposta pedagógica como as condições da oferta na plataforma Moodle.

Na sexta edição, houve especial investimento na avaliação da edição anterior, quinta edição, pela sua grande abrangência. Foi desenvolvido projeto de pesquisa-ação sobre o "Impacto do Curso de Prevenção do Uso de Drogas para educadores de Escolas Públicas e Mobilização da Rede de Escolas para a Prevenção nos Territórios", resultado de parceria com pesquisadores colaboradores de dez estados, das diferentes regiões que desenvolveram e coordenaram os Polos Estaduais de Pesquisa: (1) Polo São Paulo: Profa. Ana Regina Noto/Unifesp; (2) Polo Espírito Santo: Prof. Dr. Elizeu Borloti/Ufes; (3) Polo Minas Gerias: Prof. Dr. Francesco Napoli /UFMG; (4) Polo Paraná: Profa. Dra. Aracy As ine l l i/UFPR; (5 ) Polo Sul : Profa . Dra . Al ine Winter Sudbrack/UFCSPA; (6) Polo Bahia : Psic. Miriam Gracie

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Plena/Cetad/UFBA; (7) Polo Paraíba: Profa. Dra. Vânia Medeiros/IFPB; (8) Polo Goiás: Profa. Dra. Célia M. F.Teixeira e Profa. Dra. Sandra Rocha/UFG; (9) Polo Norte: Profa. Vera Vianna/UnB (Pará) e Profa. Sandra Viana/UnB (Tocantins); (10) Polo Distrito Federal: Profa. Maria Lizabete S. Póvoa/UnB.

Considerações finaisA experiência de uma década de formação continuada para

educadores de escolas públicas, através da oferta de seis edições do Curso para a Prevenção do Uso de Drogas, representou importante experiência para uma política intersetorial, a partir da proposta metodológica "A Escola em Rede", que propõe o desenvolvimento de ações preventivas em parceria e articulação das diferentes políticas públicas, envolvendo os diferentes atores da comunidade escolar articulados, por sua vez, com a comunidade externa.

As estratégias de prevenção ao uso de drogas na escola devem ser diversificadas, numa perspectiva de fortalecimento da autonomia e da criticidade do educando, em consonância com os princípios da educação nacional.

A formação dos educadores se amplia, pois, para muito além da prevenção do uso de drogas, constituindo instrumentalização significativa para as transformações necessárias no sentido de que a escola assuma sua função educacional mais ampla, em especial como contexto de promoção de saúde.

Esta experiência, em detalhe, está registrada em publicação recente de um livro impresso: A Escola em Rede para a Prevenção do Uso de Drogas no Território Educativo – experiência e pesquisa do Prodequi/PCL/IP/UnB nos dez anos de formação dee ducadores de escolas públicas para a prevenção do uso de drogas, 2004-2014 (Sudbrack, M.F.O. et al, Campinas, SP, Armazém do IP, 2015.

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ReferênciasBrasil, Ministério da Educação (2013). A escola na rede de cuidados para a

prevenção do uso de drogas. Salto para o Futuro, [S.l.], Ano 33, Boletim 23, nov. 2013.

Brasil, Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (2001). Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas. Brasília: Senad. 2006 (1ª. edição), 2009 (2ª, edição), 2012 (3ª. edição).

Santos, J. B.; Sudbrack, M. F. O.; Almeida, M. M. (2006). Situações de Risco e Situações de Proteção nas Redes Sociais de Adolescentes. In Brasil. Secretaria Nacional de Politicas sobre drogas. Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas. Brasília.

Sudbrack, M. F. O. (2006). Drogas, caos e complexidade. In Brasil. Secretaria Nacional de Politicas sobre Drogas. Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas. Brasília: Senad.

Sudbrack, M. F. O.; Conceição, M. I. G.; Ramos, E. C. (2012a) Escola em rede: políticas públicas integradas na prevenção do uso de drogas para crianças e adolescentes. In Senad, Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas. Brasília: Senad.

Sudbrack, M. F. O.; Pereira, S. E. N. F. (2012b). Protagonismo dos grupos potenciais de adolescente. In Brasil, Secretaria Nacional de Politicas sobre Drogas. Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas. Brasília: Senad.

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C A P Í T U L O 5 . 2

Formação a distância em saúde:potenciais e limites do curso Supera

Maria Lucia Oliveira de Souza FormigoniAna Paula Leal CarneiroEliane Assunção Castro

Helton Alves de LimaRaphaela da Cunha Bacellar Veiga Garcia

Um dos grandes desafios no enfrentamento de problemas complexos como os associados ao uso de substâncias psicoativas é a formação adequada dos profissionais envolvidos. Embora a necessidade de abordagens interdisciplinares nessa área já seja um consenso na comunidade acadêmica, ainda não foi totalmente assimilada na prática assistencial. Isso ocorre devido a múltiplas razões, destacando-se questões ideológicas e a falta de formação adequada. A estigmatização dos usuários de substâncias psicoativas, erroneamente vistos como pessoas com problemas de natureza moral, tem sido uma importante barreira que dificulta a discussão de abordagens baseadas em evidências científicas, abrindo espaço para propostas com baixa ou nenhuma efetividade que, mesmo quando bem intencionadas, atrasam o avanço na implantação de intervenções e tratamentos efetivos nessa área.

É essencial em abordagens interdisciplinares que os diversos profissionais envolvidos conheçam em profundidade a sua própria área, mas também que tenham conhecimentos básicos sobre as demais áreas envolvidas a fim de permitir sua atuação em rede, de forma coordenada e integrada. Para tal, torna-se necessário o oferecimento de formações complementares dado que, no Brasil, a maioria dos cursos de graduação

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não inclui essa temática em sua grade curricular, ou quando o faz é de maneira limitada ou superficial. Assim sendo, um profissional de saúde precisa estar muito bem preparado para cuidar da saúde física e mental das pessoas com problemas associados ao uso de substâncias psicoativas, mas é essencial que conheça as redes de assistência social e do direito para que possa desenvolver ações integradas, não limitadas a simples encaminhamentos. Igualmente necessário é o conhecimento dos recursos e ferramentas necessários à gestão do sistema, para que seja possível a articulação de ações entre os Sistemas Únicos de Saúde (SUS) e de Assistência Social (Suas) com outras áreas, adotando-se a concepção de clínica ampliada na área de cuidado a pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas (Batista, Batista, Goldenberg, Seiffert, & Onzogno, 2005; Brasil, 2013). Desta forma, fortalece-se a sociabilização do conhecimento ou saber, frente às práticas de assistência integral ao cuidado e as abordagens de redução de danos com ações multidisciplinares e intersetoriais (Gallassi, Souza, & Silva, 2016; Silva, Souza, & Gallassi, 2016).

Além de conhecimentos teórico-práticos sobre sua área específica de atuação e sobre as redes de assistência, é de fundamental importância que os profissionais conheçam os princípios estabelecidos nas políticas nacionais sobre álcool e drogas (Brasil, 2011a) para que possam planejar e desenvolver ações a elas alinhadas, especialmente se atuarem em serviços públicos. As intensas e rápidas mudanças socioeconômicas e culturais que ocorreram nas últimas décadas têm exigido dos profissionais um investimento maciço em processos de educação continuada, que possibilitem sua constante qualificação para o trabalho (Abbad, Zerbini, & Souza, 2010). A oferta de cursos para capacitação profissional e qualificação do trabalho é um dispositivo essencial para desenvolver as habilidades e competências profissionais necessárias à assistência integral para pessoas com problemas associados ao uso de substâncias psicoativas. Para cumprir este objetivo, diversos projetos educacionais têm sido ofertados, incluindo cursos de formação, capacitação, qualificação e aperfeiçoamento profissional dirigidos a profissionais de variados níveis de

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Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni et al

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escolaridade, desde a educação básica até o nível superior. A fim de atender estas demandas, foram desenvolvidos cursos livres, de extensão, especialização e divulgação científica, assim como criadas as universidades abertas (Abbad et al., 2010; Brasil, 2004b).

Durante muito tempo, os processos educativos visando à capacitação profissional eram realizados de maneira presencial. Diante da necessidade de superar barreiras geográficas e temporais surgiu a modalidade de Educação à Distância (EAD), que pode ser definida como: “uma modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos” (Brasil, 2005).

As primeiras iniciativas nessa área foram os cursos por correspondência que deram base para o desenvolvimento de cursos por Educação a Distância utilizando novos recursos tecnológicos (Batista et al., 2005; Martins, 2003). O avanço da tecnologia e a disseminação ao acesso à Internet têm sido um forte aliado para suplantar barreiras, pois permitem que recursos antes disponíveis apenas nos principais centros econômicos e culturais do país sejam disponibilizados a profissionais de áreas rurais, geograficamente isoladas ou com limitados recursos econômicos.

A EAD tornou-se, assim, uma ferramenta de ensino que tem permitido avanços significativos na oferta de formação, incluindo programas formais e informais de capacitação profissional e qualificação para o trabalho (Brasil, 2005). A oferta de cursos nessa modalidade possibilita a capacitação profissional de profissionais de diversas áreas do conhecimento, tais como saúde, educação, assistência social, segurança pública, justiça, conselheiros, lideranças comunitárias e religiosas, etc. Como recurso de otimização do processo de ensino-aprendizagem a EAD é mediada pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s) que permitem ações educacionais focalizadas e democratizadas, ampliando o método didático-pedagógico ofertado pelos cursos (Abbad et al., 2010).

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Formação a distância em saúde: potenciais e limites do curso Supera

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A utilização de novas mídias de contato, incluindo fóruns de discussão, mensagens online, comunidades de trocas online, dentre outras, é uma inovação trazida pela EAD que cria novos desafios para as instituições de ensino ao exigir não só investimentos em tecnologias avançadas, mas também a capacitação de educadores que as dominem. Consequentemente, tornam-se necessárias mudanças no padrão tradicional de ensino baseado no modelo pedagógico presencial no qual o professor transmitia conhecimentos e o estudante os absorvia. O processo de EAD estimula a participação ativa e responsável dos alunos, contempla suas diferenças culturais, socioeconômicas e respeita seu ritmo singular de aprendizagem. Os alunos são orientados por tutores/professores online para melhor aproveitamento do conhecimento compartilhado por meio das TIC’s (Mugnol, 2009). Desta forma, a EAD permite o desenvolvimento de maior autonomia dos alunos no percurso da aprendizagem.

A EAD tornou-se um recurso de incalculável importância, que se soma à educação presencial. Entre suas vantagens destaca-se a possibilidade de atender simultaneamente um grande número de profissionais, reduzindo assim as barreiras de acesso e geográficas, permitindo a diversificação e ampliação do conhecimento. Ela também cria oportunidades de capacitação com flexibilidade de tempo, permitindo conciliação entre estudo e trabalho. Do ponto de vista econômico, a educação à distância pode reduzir custos em relação à modalidade presencial. Além disso, incentiva a participação ativa dos profissionais, amplia a comunicação e a informação bidirecional. Desta forma, ela viabiliza a formação de profissionais de forma dinâmica e inovadora.

Entretanto, existem alguns desafios a serem superados quanto à oferta de cursos na modalidade a distância, pois ainda há a necessidade de desmistificar preconceitos como: que ela impediria trocas efetivas entre professores/tutores e alunos, assim como destes entre si, proporcionados pelo modelo de ensino presencial (Aquino, 2007). A globalização e o crescente desenvolvimento das TIC’s na EAD têm reduzido as limitações em relação ao ensino presencial (Aquino, 2007).

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No Brasil, na década de 2001 a 2010, ocorreram significativas mudanças na política do governo federal sobre álcool e outras drogas. Em 2004, o Ministério da Saúde redefiniu e ampliou sua política em relação à Atenção Integral a usuários de Álcool e Outras Drogas, por meio da Portaria nº 2.197, estabelecendo a oferta de ações terapêuticas, educativas, de prevenção e reabilitação de pessoas com problemas relacionados uso de álcool e outras drogas (Brasil, 2004).

Em 2005, a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad), na época diretamente vinculada ao gabinete da Presidência da República e atualmente vinculada ao Ministério da Justiça, estabeleceu a Política Nacional sobre Drogas e posteriormente, em 2007, a Política Nacional sobre Álcool (Brasil, 2011c).

Nessas políticas destaca-se o incentivo à:a) pesquisa: “Pesquisar, experimentar e implementar novos

programas, projetos e ações, de forma pragmática e sem preconceitos, visando à prevenção, tratamento, reinserção psicossocial, redução da demanda, oferta e danos com fundamento em resultados científicos comprovados”;

b) capacitação: “Educar, informar, capacitar e formar pessoas em todos os segmentos sociais para a ação efetiva e eficaz de redução da demanda, da oferta e de danos, fundamentada em conhecimentos científicos validados e experiências bem-sucedidas, adequadas à nossa realidade”.

c) articulação entre os sistemas:Promover e garantir a articulação e integração em rede nacional das

intervenções para tratamento, recuperação, redução de danos, reinserção social e ocupacional (unidades básicas de saúde, ambulatórios, centros de atenção psicossocial, centros de atenção psicossocial álcool e drogas, comunidades terapêuticas, grupos de autoajuda e ajuda mútua, hospitais gerais e psiquiátricos, hospital-dia, serviços de emergências, corpo de bombeiros, clínicas especializadas, casas de apoio e convivência e moradias assistidas) com o Sistema Único de Saúde e Sistema Único de

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Assistência Social para o usuário e seus familiares, por meio de distribuição descentralizada e fiscalizada de recursos técnicos e financeiros.

Para viabilizar a implementação dessas e de outras ações previstas nessas políticas, a Senad convidou docentes de universidades públicas com reconhecida atuação nessa área para desenvolver cursos de capacitação utilizando tecnologias de Educação a Distância (Brasil, 2011a). A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) desenvolveu três cursos: "Prevenção ao uso indevido de drogas: Capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias" (Brasil, 2014); “Curso para prevenção ao uso de álcool e outras drogas no ambiente de trabalho – Conhecer para Ajudar” e “Curso para Integração de competências no desempenho da atividade jurídica com usuários e dependentes de drogas” (USFC, 2016). A Universidade de Brasília (UnB) desenvolveu um curso dirigido a educadores: “Curso de prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas” (UnB, 2014). A Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP, campus Botucatu) desenvolveu o “Curso de capacitação em conceitos básicos, tratamento e reinserção social para líderes, terapeutas e gestores de comunidades terapêuticas (CTs)” (UNESP, 2017).

Ao final de 2005, a Senad estabeleceu uma parceria com a equipe da Unidade de Dependência de Drogas (Uded) do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para o desenvolvimento de um curso de capacitação de profissionais de saúde na modalidade de Educação a Distância (EAD), que foi denominado Supera (Sistema para detecção do Uso abusivo e dependência de substâncias Psicoativas: Encaminhamento, intervenção breve, Reinserção social e Acompanhamento) (Duarte & Formigoni, 2007).

Esse curso foi ofertado pela primeira vez em novembro de 2006 e constantemente atualizado com conteúdos ampliados visando também à capacitação de profissionais da área de assistência social (Carneiro & Souza-Formigoni, 2017). Embora destinado a esse público-alvo também profissionais de outras áreas, incluindo educação, justiça, segurança

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pública, conselheiros e lideranças comunitárias ou religiosas, participaram das 12 edições do curso oferecidas entre 2006 e 2017. Com base na demanda de lideranças comunitárias e religiosas, em 2008-2009, a mesma equipe da Unifesp desenvolveu o curso “Prevenção do Uso de Drogas em Instituições Religiosas e Movimentos Afins – Fé na Prevenção” (Duarte & Formigoni, 2009).

Em dezembro de 2011, esses cursos passaram a integrar as ações do “Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas” que tinha a finalidade de

coordenar as ações federais de prevenção, tratamento, reinserção social de pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas, em parceria com estados, municípios e sociedade civil. O Plano também previa o fortalecimento da rede comunitária por meio de ações de capacitação voltadas para diferentes segmentos profissionais. (Formigoni, 2017).

O curso Supera, patrocinado pela Senad e executado pela Unifesp, tem sido ofertado gratuitamente, no formato de curso de extensão universitária, com o objetivo de oferecer aos profissionais de saúde e assistência social subsídios teórico-práticos para possibilitar, aos profissionais de diversas áreas do conhecimento, abordagens terapêuticas efetivas no cuidado humanizado aos usuários com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Nele são abordados temas abrangentes incluindo aspectos culturais e políticos, efeitos das drogas no organismo, os d iver sos modelos de prevenção, intervenção, t ratamento, encaminhamento e ações de cuidado conforme a demanda especifica dos equipamentos da rede e seus territórios. Seu conteúdo programático foi desenvolvido em consonância com as diretrizes da Política Nacional sobre Drogas (Pnad) e da Política Nacional sobre o Álcool (PNA) (Carneiro & Souza-Formigoni, 2017).

O curso por EAD Supera foi lançado em novembro de 2006, com carga horária sugerida de 120 horas e ampliada a partir da 5ª edição para

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150 horas. A coordenação geral do desenvolvimento de seu material didático foi realizada por Paulina C. A. V. Duarte, da Senad, e por Maria Lucia O. S. Formigon,i da Unifesp. Docentes e pesquisadores especialistas na área vinculados às universidades federais de São Paulo (Unifesp), Juiz de Fora (UFJF), Paraná (UFPR), Rio de Janeiro (UFRJ), Rio Grande do Sul (UFRGS) e Bahia (UFBA) coordenaram os módulos temáticos, que contaram ao longo de seu desenvolvimento com a participação de diversos especialistas, dentre os quais pesquisadores de diversas universidades brasileiras e membros das equipes técnicas da Senad, dos ministérios da Saúde (MS), Justiça e Cidadania (MJ), Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDSC), Educação (MEC) e Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Foi desenvolvido um material perfazendo 923 páginas (na 11a edição), composto por sete volumes, cada um correspondendo a um módulo temático:

1: O uso de substâncias psicoativas no Brasil: Epidemiologia, Legislação, Políticas Públicas e Fatores Culturais;

2: Efeitos de substâncias psicoativas no organismo;3: Detecção do uso abusivo e diagnóstico de dependência de

substâncias psicoativas;4: Intervenção Breve para casos de uso de risco de substâncias

psicoativas;5: Encaminhamento de pessoas dependentes de substâncias

psicoativas;6: As redes comunitárias e de saúde no atendimento aos usuários e

dependentes de substâncias psicoativas;7: A detecção e o atendimento a pessoas usuárias de drogas na rede

da Atenção Primária à Saúde.

O Guia do Estudante constitui o oitavo volume do material disponibilizado aos participantes, contendo informações gerais sobre o

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curso e seus autores, noções básicas sobre EAD; orientações e sugestões sobre como utilizar os materiais e como se organizar para participar das atividades interativas, gabarito de respostas para as atividades de avaliação propostas em cada módulo e os principais links de universidades nacionais e internacionais que possuem materiais relacionados à temática do curso.

Nas primeiras cinco edições, além de ser disponibilizado online, o conteúdo foi oferecido na forma impressa, enviado gratuitamente a todos os participantes, pelos Correios. O kit de materiais que compunha a versão impressa incluía, além dos oito volumes, um CD-Rom com o conteúdo dos sete módulos e do Guia do Estudante, e um CD-Rom ou DVD com quatro vídeos ilustrativos de cerca 15 minutos cada, para exemplificar a utilização dos procedimentos de triagem, visando à detecção precoce de pessoas com problemas associados ao uso de álcool e outras drogas, seguida por intervenção breve (IB). Para os participantes das versões completamente online do curso (6ª a 12ª), o acesso ao material teórico dos sete módulos, assim como aos vídeos ilustrativos e materiais complementares, como artigos científicos, foi disponibilizado por meio da plataforma Moddle. Todos os materiais didáticos não interativos da edição mais recentemente finalizada encontram-se disponíveis, de forma aberta, em http://www.supera.senad.gov.br/material. Assim sendo, qualquer pessoa pode ter acesso aos conteúdos da edição anterior mais recente, incluindo os vídeos e instrumentos de triagem (Assist – Questionário para triagem do uso de álcool, tabaco e outras substâncias e Audit – Teste para Identificação de Problemas Relacionados ao Uso de Álcool).

Além destes materiais didáticos estáticos, os participantes matriculados no curso têm acesso a um conteúdo dinâmico, interativo, disponibilizado por um período de três a quatro meses, também no mesmo ambiente virtual de aprendizagem desenvolvido em plataforma Moodle. Ao longo do curso, os alunos participantes são acompanhados por uma equipe pedagógica formada por coordenadores e tutores responsáveis por monitorar os acessos ao site, analisar as avaliações e estimular os profissionais a participar dos fóruns de discussão temáticos. A comunicação entre tutores e alunos era realizada por meio de mensagens,

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e-mail ou pela central de atendimento com discagem gratuita (linha 0800), estruturada e disponibilizada exclusivamente para o curso.

A aprovação do participante é vinculada à realização das sete avaliações de conteúdo, disponibilizadas ao final de cada módulo, sendo necessário atingir ao menos 70% de respostas certas em cada módulo para aprovação, sendo permitido aos participantes refazer as avaliações. Nas primeiras oito edições, além dessas avaliações, foi aplicado um teste de conhecimento sobre noções básicas sobre os efeitos do álcool e de outras drogas e suas consequências biológicas, psicológicas e sociais antes e após o curso. Em relação a esse teste, havia uma única oportunidade de preenchimento, mas seu resultado não afetava a nota. Essas avaliações eram reformuladas em cada edição do curso. Até a 5a edição do curso, os profissionais aprovados receberam, pelo correio, um “kit de formatura” contendo o certificado de conclusão do curso emitido e registrado pela Pró-Reitoria de Extensão da Unifesp, sendo, portanto reconhecido pelo MEC, além de um conjunto com 50 cópias dos instrumentos de triagem (Assist e Audit). Em algumas edições, foi também anexado um convite para participar de projetos de pesquisa. A partir da 6ª edição, os participantes passaram a obter os instrumentos de triagem e o certificado no formato pdf, diretamente na plataforma do curso ou por e-mail, aumentando a agilidade na disponibilização desses arquivos e reduzindo significativamente os custos do curso. Foi a economia com serviços de impressão e distribuição dos materiais que possibilitou a oferta de novas edições.

Durante o período de 2006 a 2017 foram realizadas 12 edições do curso Supera, totalizando 135.000 mil vagas ofertadas. Foram computadas neste período inscrições provenientes de cerca de 500.000 profissionais, indicando uma grande demanda por este tipo de capacitação. A adesão ao curso variou ao longo dos anos, havendo edições com cerca de 60% de aprovados e outras com cerca de 80%, porcentagens bastante significativas considerando-se tratar de um curso a distância e gratuito. Alguns fatores podem influenciar a adesão ao curso, dentre os quais o número de participantes e os critérios de seleção adotados pela Senad. As turmas

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iniciais foram compostas por 5.000 profissionais (1a à 4a) e entre a 5a e a 12a edições, o número de participantes variou, com 10.000 (7a, 9a e 10a), 12.500 (11a e 12a), 15.000 (5a e 8a) ou 30.000 (6a) participantes. Mesmo ampliando o número de tutores e coordenadores surgiram dificuldades para gerenciar turmas com mais de 15.000 participantes, dentre as quais a limitação no número de tutores capacitados na área. Embora tenham sido oferecidos cursos de treinamento para os tutores, era pré-requisito que tivessem formação na área e que fossem aprovados com pelo menos 70% de acertos em uma prova abrangendo todo o conteúdo do curso.

Além de orientar os participantes, os tutores participavam de coletas de dados para diversos projetos de pesquisa relacionados ao curso ou a seus participantes, abrangendo diversos aspectos, dentre os quais: o perfil dos participantes, os fatores de adesão ao curso, o uso das ferramentas virtuais e participação nos fóruns de discussão disponibilizados no site, a utilização dos instrumentos de triagem, a aplicação de intervenções breves e sua efetividade, assim como a relação custo-benefício da implantação do curso.

Um desses estudos foi realizado por Maino (2011), a partir de uma amostra de voluntários, profissionais que completaram o curso Supera 1ª ou 2ª edição. O estudo indicou que, após o curso, em sua maioria, os participantes se sentiam capacitados a aplicar instrumentos de triagem e a realizar intervenções breves. A grande maioria dos participantes avaliou positivamente a atuação dos tutores durante o curso e 75,5% da amostra relatou que, após o curso, mudaram seus conceitos em relação à dependência de substâncias psicoativas, além de terem aumentado a confiança para a aplicação das técnicas e o tempo investido no estudo do tema (79,5%). A grande maioria dos participantes (71,5%) relatou já atuar na área quando ingressaram no curso Supera (Maino, 2011).

Outro estudo realizado com uma amostra de voluntários, participantes da 1ª à 4ª edição do curso, indicou que após o curso mais de 50% dos profissionais se sentiam muito ou completamente capacitados para avaliar o uso de substância, e que mais de 60% estavam motivados para utilizar as técnicas de triagem e intervenção breve nos seus locais de

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atuação profissional (Carneiro, 2014, 2017). No mesmo estudo, muitos profissionais (82%) indicaram que haviam atuado como multiplicadores dos conhecimentos adquiridos no curso. Dentre os fatores facilitadores de sua atuação destacou-se receber apoio da chefia, que dobrou a chance (OR=2,3 / IC=2,8-1,9 / p=0,001) de o participante atuar como multiplicador dos conhecimentos (Carneiro, 2014, 2017).

A partir desse cenário, considerando o grande número de profissionais que indicaram interesse em aplicar as técnicas de triagem e intervenção breve após o término do curso, foi desenvolvido um projeto de apoio denominado “Pós-curso Supera”, com o intuito de apoiar os profissionais já capacitados pelo Supera a implantarem em seus locais de trabalho as técnicas de triagem e intervenções breves, por meio de contato direto e personalizado com tutores dedicados a esse projeto. O Pós-curso foi implantado em 2015 com o intuito de oferecer apoio dentro das principais temáticas associadas ao conteúdo do curso, com reflexo nas atividades de rotina dos profissionais. Destacam-se entre essas temáticas:

a. como lidar com usuários de substâncias; como aplicar os instrumentos de triagem;

b. como realizar uma Intervenção Breve – considerando-a um meio de acolhimento e primeiro cuidado para usuários de risco;

c. como promover a articulação com os demais braços da rede de atendimento em saúde, assistência social, direito e segurança;

d. como promover a divulgação dos conhecimentos adquiridos para outros colegas no local de atuação;

e. como desenvolver projetos de pesquisa ou de avaliação dos resultados obtidos; como facilitar a articulação com as chefias dos serviços e coordenações.

O Pós-Curso é uma proposta formativa de construção de conhecimento embasado teórica e metodologicamente nos referenciais da educação permanente em saúde e do trabalho multiprofissional e

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multidisciplinar. Ele visa a ampliar a reflexão sobre as práticas e intervenções desenvolvidas na realidade de cada serviço e fomentar estratégias de atuação prática nesses cenários. Desta forma, possibilita a ampliação da atuação do profissional que, ao se sentir seguro de seus conhecimentos e capacidades, torna-se apto a propor e desenvolver projetos de implementação dos conteúdos abordados no curso Supera. O trabalho do pós-curso também foi realizado utilizando as tecnologias de Educação a Distância e desenvolvido por uma equipe de tutores qualificados, com formação em diversas áreas do conhecimento, que atuaram em equipe multidisciplinar. Eles faziam contatos personalizados com os profissionais, oferecendo suporte, apoio, orientação, e acolhimento, discutindo com eles as demandas de trabalho complexas e singulares de cada território de atuação. Todo o contato com os profissionais era realizado por e-mail ou por telefonia gratuita (linha 0800 dedicada ao atendimento).

A equipe de tutores se organizava para assessorar e estimular a discussão de casos nos espaços virtuais de aprendizagem (Moodle), além de propiciar o desenvolvimento de propostas de implementação, com acompanhamento e supervisão especializada, focadas no desenvolvimento de medidas factíveis a serem implementadas pelos profissionais capacitados. Foi desenvolvido um espaço aberto de divulgação para abordar conteúdos ligados à área de álcool e outras drogas, eventos e formações gratuitas, além de propiciar trocas e aumentar aproximação com a equipe de tutoria Pós-curso. Foi criada uma “FanPage” utilizando a plataforma Facebook (www.facebook.com/superead que em meados de 2017 já tinha atingido mais de 8.000 pessoas que “curtiram” e acompanharam os conteúdos postados.

Com base na demanda trazida pelos participantes do Pós-Curso Supera, foi desenvolvido pelos tutores um trabalho pedagógico de suporte ancorado em conteúdos teórico-técnicos que auxiliassem na problematização e/ou na construção de ações mais efetivas e resolutivas na área de álcool e outras drogas. Isso levou os profissionais a refletir sobre suas demandas e os estimulou a construir, em parceria com os tutores,

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planos de ação para implementar medidas e estratégias visando a lidar com as fragilidades e aproveitar as potencialidades da rede de atenção integral ao cuidado nos territórios. Os profissionais mencionaram ser muito importante receber um suporte qualificado após a conclusão das atividades obrigatórias do curso, pois além de manterem vínculo com a equipe do curso, estavam usufruindo de modo indireto da infraestrutura da universidade, recebendo orientações qualificadas e materiais adicionais/complementares aos conteúdos abordados durante o curso. Além desses aspectos, eles perceberam a viabilidade de aproximação da teoria com a prática, entendendo como poderiam realizar ações concretas no local de trabalho e muitos referiram não ter esse tipo de apoio institucional para a reflexão ou desenvolvimento de ações nesses locais.

O curso Supera é um exemplo de como é possível articular docentes, pesquisadores e técnicos de diversas áreas para participar da construção de um material didático abrangente, cientificamente embasado, alinhado às Políticas Nacionais sobre Álcool e Drogas e disponibilizado gratuitamente para milhares de profissionais carentes por capacitação e educação permanente, utilizando ferramentas de EAD. Mais do que um curso isolado, sua estratégia de implementação deu início à criação de uma rede de profissionais com alto potencial para interação, de abrangência nacional, o que é essencial para o desenvolvimento de ações integradas. Este é um dos grandes diferenciais e potenciais do curso Supera.

Existem diversos outros cursos utilizando as tecnologias de EAD voltados à capacitação de profissionais para atuarem junto a pessoas com problemas associados ao uso de substâncias psicoativas. Castro (2017) realizou um estudo intitulado “O mapeamento de cursos por educação a distância para formação de profissionais na área de álcool e outras drogas” que teve por objetivo compilar as ofertas de cursos que tivessem como temática principal “álcool e outras drogas” e que visassem qualificação, capacitação ou formação de profissionais das áreas da saúde, assistência social, educação, sistema judiciário, segurança pública, lideranças comunitárias, religiosas ou outras áreas do conhecimento. Neste estudo

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quantitativo, de caráter descritivo, foram localizados 107 cursos de formação ou capacitação profissional na área de álcool e outras drogas, oferecidos por instituições públicas ou privadas, dirigidos a profissionais de diversas áreas de atuação. A maioria dos cursos era ofertada na modalidade de ensino a distância (48%) ou semipresencial (11%), sendo apenas 36% completamente presenciais, pagos (55%) e com reconhecimento pelo MEC (71%). Foram mais frequentes as ofertas de cursos de especialização ou aperfeiçoamento profissional.

Os conteúdos programáticos dos cursos encontrados foram comparados com os conteúdos de ensino abordados nos sete módulos do curso Supera e observou-se que a maioria dos cursos abordava apenas temáticas relativas às modalidades de tratamento, encaminhamento e efeitos das substâncias psicoativas. Pouco mais da metade abordava aspectos epidemiológicos, fatores culturais, políticos e socioeconômicos relacionados ao uso de álcool e outras drogas. Os demais temas foram abordados em menos de um terço dos cursos como, por exemplo, a técnica de intervenção breve, estratégias de redução de danos e as redes comunitárias. Na maioria dos cursos não eram mencionados os princípios e diretrizes da Política Nacional sobre Drogas (Pnad) e da Política Nacional sobre o Álcool (PNA). Muitos dos cursos ofertados eram pautados em um modelo de cuidado centrado na lógica hospitalocêntrica, com abordagens conservadoras e fragmentadas, não considerando o conceito de clínica ampliada nos processos de trabalho. Poucos cursos enfatizavam a importância das ações multidisciplinares e intersetoriais como abordagens imprescindíveis na assistência integral aos usuários de álcool e outras drogas.

A experiência adquirida em uma década de desenvolvimento do curso Supera reforça a importância de uma constante renovação e atualização dos profissionais que se propõem a lidar com pessoas com problemas associados ao uso de substâncias psicoativas, considerando não só suas características pessoais como também o contexto cultural, social e político em que vivem. O desafio da formação profissional nessa área consiste em estimular o desenvolvimento de boas práticas embasadas em

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sólida fundamentação teórica e metodológica, alinhadas às políticas de saúde pública, de saúde mental e álcool e outras drogas em vigência no país.

Nesta perspectiva, o curso Supera teve como objetivo não só facilitar a atualização de conhecimento, mas principalmente estimular os profissionais a refletirem em profundidade sobre esta temática tão complexa, considerando não só os aspectos médicos, mas também os psicossociais. Nos textos apresentados, mas principalmente nos fóruns de discussão, são propostas ações concretas, cientificamente embasadas, utilizando técnicas objetivas, com direta aplicação na prática profissional. Para facilitar este processo, as discussões são alinhadas em módulos temáticos e as práticas ilustradas com o apoio de vídeo-aulas, dando concretude às discussões.

Segundo Stroschein e Zocche (2011), a educação permanente deve envo l ve r me todo log i a p rob l emat i zadora , en fa t i zando a s situações-problema encontradas na prática cotidiana. Isto possibilitando a emergência de reflexões críticas e soluções estratégicas coletivamente elaboradas e articuladas. A ação e a reflexão sobre a ação, permeadas pela escuta pedagógica, permitem o compartilhamento dos conhecimentos teóricos e práticos na área de saúde mental envolvendo questões associadas ao uso de álcool e outras drogas. Adotada como estratégia para a implementação do Sistema Único de Saúde, a educação permanente fundamenta-se na busca pela garantia da atenção integral, permitindo a qualificação da assistência e a democratização das relações entre gestão, cuidado, ensino e controle social na proposição e no planejamento do sistema, fortalecendo a participação dos profissionais e a cogestão do sistema (Brasil, 2009).

Cursos de boa qual idade por EAD podem contribuir significativamente para ampliar a capacitação profissional, com nítidas vantagens quanto à comodidade e flexibilidade de horários para estudo e promoção da autonomia. Os profissionais têm, assim, a oportunidade de gerenciar melhor seu tempo e interagir com outros de forma virtual. A possibilidade de oferecer treinamentos virtuais é essencial para superar

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barreiras geográficas, permitindo que mesmo profissionais que se encontram em locais isolados tenham a oportunidade de dialogar com especialistas que se encontram muitas vezes nos grandes centros. A troca de experiências com outros profissionais permitida por redes virtuais enriquece o aprendizado.

O uso de ferramentas de educação a distância utilizando sólido embasamento teórico, associado a técnicas com boa evidência de efetividade, alinhado com a política adotada pelos sistemas de saúde, justiça e assistência social pode ser um agente de transformação das práticas de cuidados. À medida que o profissional entende a complexidade das questões de saúde, educação, assistência social, segurança, direito e cidadania associados ao uso de substâncias psicoativas ele poderá atuar de modo mais consciente e efetivo na sua prática diária.

O curso Supera representa um passo importante na formação de uma rede nacional de profissionais com interesse na área, essencial para o avanço no enfrentamento dos problemas complexos, de natureza interdisciplinar, associados ao uso de substâncias psicoativas. A perspectiva de integração virtual de profissionais de diferentes áreas é um dos potenciais de cursos por Educação a Distância que poderá se refletir em ações integradas em seus ambientes de atuação. A EAD contribui para reduzir distâncias, democratizar o conhecimento e aproximar pessoas. Conhecendo melhor o sistema e estabelecendo conexões efetivas com profissionais de diversas especialidades, abrem-se perspectivas mais abrangentes de transformação e ações integradas dos diversos sistemas de cuidado para os profissionais que atuam nesta área.

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C A P Í T U L O 5 . 3

Mestrado profissional: uma experiência construída a partir da Política Nacional

sobre Drogas do Brasil

Carla DalboscoSilvia Chwartzmann Halpern

Lisia von DiemenFlavio Pechansky

IntroduçãoA consolidação dos mestrados profissionais no Brasil ocorre no

momento em que diferentes países avaliam os rumos que a educação deve seguir neste novo milênio. Porém, essa modalidade de curso stricto sensu ainda gera certa desconfiança em alguns segmentos acadêmicos, o que torna necessário contextualizar a sua importância. O mestrado profissional (MP) surgiu com o escopo específico de responder a exigências da realidade contemporânea pois, cada vez mais, o cenário de formação acadêmica tem demandado abordagens focadas na atuação prática. Esses processos levam em conta necessidades locais e estabelecem mudanças no modo de produzir ciência, implicando em transformações individuais, institucionais e na própria prática profissional.

Observa-se nas últimas décadas um esforço das agências de fomento e de avaliação para a redefinição da missão dos programas de pós-graduação, visando principalmente à expansão do conhecimento, o caráter técnico da formação de mão de obra e o surgimento de tecnologias inovadoras em áreas estratégicas. Há um estímulo para que as instituições de ensino superior invistam no atendimento de demandas dos setores produtivos e de serviços, com projetos de formação de caráter mais

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flexível. Assim, é valorizada a integração do conhecimento gerado na universidade com as demandas provenientes do campo social e profissional (Maciel & Nogueira, 2012; Oliveira, 2015). Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC), o mestrado profissional visa à capacitação de profissionais para atender de forma qualificada demandas técnico-científicas específicas do mercado de trabalho e temas de interesse público. Os programas têm como principal foco a gestão, a produção de pesquisa aplicada e a proposição de inovações e aperfeiçoamentos tecnológicos em diferentes áreas. Entre seus objetivos, destacam-se a qualificação de profissionais para a prática avançada e transformadora, a transferência de conhecimento para a sociedade, além de desenvolvimento local, regional e/ou nacional (Brasil, 2009).

A partir desse contexto, torna-se importante definir o possível papel a ser desempenhado por um MP específico para abordagem de questões relacionadas ao tema álcool e outras drogas. Principalmente ao se levar em conta a realidade da população brasileira, na qual a prevalência do consumo de substâncias psicoativas, sobretudo entre os mais jovens, aponta para a necessidade de construir medidas preventivas e/ou que venham a contrapor condutas de risco que prejudiquem o indivíduo e a coletividade (Duarte, Stempliuk, & Barroso, 2009).

Em anos recentes, é perceptível a carência na formação para atuação na rede de cuidado a usuários de álcool e outras drogas, não apenas entre profissionais da saúde mas, também, de áreas afins. Assim, a proposta de oferta de um MP na área surgiu para atender a uma demanda reprimida, na medida em que pode vir a fomentar a produção e a aplicação de conhecimento em serviços que compõem as redes de saúde (SUS), assistência social (Suas) e a área de política sobre drogas. Este quadro também sinaliza a importância de construir uma política de formação ampla e abrangente, pois, segundo Lima Junior, Silva, Noto, Bonadio e Locateli (2015), há déficit no número de profissionais e necessidade de investimento na compreensão dos pressupostos paradigmáticos que norteiam o tema atualmente. Assim, é imprescindível adotar medidas

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pragmáticas, que integrem de modo transdisciplinar e intersetorial os avanços científicos, visando à educação permanente das equipes e a melhoria do acesso aos serviços.

Este texto tem por objetivo apresentar a experiência de execução do primeiro mestrado profissional em prevenção e assistência a usuários de álcool e outras drogas do país, desenvolvido pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA/UFRGS em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas - Senad/MJ. Para tal, partiremos da caracterização dos MPs e da contextualização histórica do curso no âmbito da Política Nacional sobre Drogas vigente. Após, serão apresentadas as estratégias de formação adotadas e possíveis impactos decorrentes nos serviços a partir dos resultados obtidos.

Caracterização dos mestrados profissionaisA legislação brasileira previa a possibilidade de criação de mestrados

profissionais desde os anos 1960. Porém, até o final dos anos 1990, a Pós-Graduação contou apenas com mestrados e doutorados acadêmicos. Foi a partir de 1998 que foram instituídos, por meio da Portaria Capes/MEC nº 080 (Brasil, 1998), os primeiros cursos e somente na última década foi estabelecida uma política de fomento à criação desse tipo de formação stricto sensu. Nessa direção, desde 2009 a Capes passou a publicar editais de chamamento público, incentivando a criação de programas de mestrado nesta modalidade (Oliveira, 2015).

O objetivo passou a ser o investimento em perfis que atendam o mercado de trabalho extra-acadêmico de acordo com as necessidades do país, ou seja, a formação do que podemos chamar de “técnicos de alto padrão”. Para Maciel e Nogueira (2012), a ênfase está em problemas externos à academia e os MPs constituem uma via de mão dupla que estabelece uma ponte de acesso no caminho entre a academia e a sociedade.

Segundo dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE, 2016), as taxas gerais de crescimento dos programas de mestrado no Brasil

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são significativas nas duas últimas décadas. Enquanto em 1996 existiam 1.187 programas, no ano de 2014 esse número aumentou para 3.620. A partir de 1999, os dados passaram a incluir também os MPs e a política de incentivo da Capes é refletida nos resultados apresentados, pois os programas chegaram a 525 em 2014. Essa taxa corresponde a 14,5% do número total de programas de mestrado existentes naquele ano, implicando na titulação de 5.723 mestres profissionais entre os 50.206 mestres titulados no país.

A expansão da criação de cursos de MP está diretamente relacionada ao processo de consolidação dos programas de doutorado, cujo nível de formação tem sido exigido para exercer carreira universitária e de pesquisador. Esse contexto reduziu a importância relativa do mestrado acadêmico como uma formação suficiente para o exercício docente. Aliado a esse fato, muitos mestres passaram a atuar em instituições não vocacionadas para o ensino e a pesquisa como atividade principal, refletindo uma crescente demanda de empresas e instituições públicas por profissionais com nível de mestrado. Historicamente, o mestrado acadêmico acabava atendendo de forma equivocada a essa necessidade, já que não havia cursos voltados para a aplicação de conhecimento na práxis dos serviços. Muitos profissionais que tinham como foco o plano de carreira acabavam buscando a formação em mestrados acadêmicos por absoluta falta de opção (CGEE, 2012; Neponuceno & Costa, 2012).

Esse cenário abriu espaço para as demandas de um novo perfil profissional que não irá atuar na vida acadêmica, mas está voltado ao mercado de trabalho. O nicho é a valorização da ciência aplicada e a transformação crítica de práticas e rotinas instituídas. Porém, ainda existem muitos questionamentos sobre o verdadeiro papel da pós-graduação stricto sensu, já que o MP apresenta uma situação peculiar: concede os mesmos direitos e prerrogativas garantidos aos oriundos do mestrado acadêmico, porém, por definição, apresenta diferenças marcantes em relação ao perfil dos seus participantes. Pesquisa realizada por Nepomuceno e Costa (2012) avaliou a percepção quanto ao impacto do MP no desempenho profissional de seus egressos. Os resultados

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mostraram que é percebido um maior impacto em relação à “autoestima” e “senso crítico” do pós-graduado. Ou seja, a formação deve ir além do mero treinamento para o mercado de trabalho e envolver também a formação para o pensamento crítico, intelectual e ético. Neste sentido, um estudo junto a um mestrado na área de enfermagem também mostrou que as experiências de aprendizagem foram integradas às atividades desenvolvidas no ambiente profissional após a conclusão do curso, contribuindo para a melhora na qualidade do trabalho ofertado (Aoyama & Tatsumi, 2017).

Do ponto de vista da organização dos serviços de saúde e assistência social, muitas pessoas com transtornos por uso de substâncias buscam atendimento em equipamentos dessas redes, o que tem exigido uma melhor formação de profissionais que, muitas vezes, não se sentem bem preparados para atendê-los. O crescimento desse fenômeno exige a construção de outros saberes e práticas para suplantar a lógica tradicional que associa essa temática unicamente à justiça, ou ainda, apenas como um grave problema de saúde pública. Cada vez mais, devido ao fato de envolver vários campos, a análise do fenômeno deve incluir aspectos legais, sociais, antropológicos, psicológicos, educativos, entre outros.

Especificamente em relação à área da saúde, é necessário repensar os critérios que definem o desenvolvimento de competências no setor, a partir dos diferentes cenários de trabalho e diretrizes de formação. Ressalta-se que o campo de formação em saúde é amplo, pois incide também em trabalhadores oriundos de outras áreas, mas que atuam de forma complementar, incorporando em sua prática uma gama de conhecimentos também originário da área (Ceccim, 2012). Neste sentido, ao se pensar na demanda específica de formação na área de álcool e outras drogas, é preciso incorporar, necessariamente, um olhar interdisciplinar e intersetorial. Essa perspectiva está preconizada na Política Nacional sobre Drogas (Brasil, 2011) que prevê ações de capacitação continuadas e permanentes, fundamentadas em conhecimentos científicos validados, numa perspectiva que engloba diferentes atores sociais com potencial para atuar como multiplicadores de conhecimento.

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Outro ponto a ser destacado é que uma das principais dificuldades enfrentadas pelos MPs no contexto brasileiro é a falta de fontes de financiamento, tanto via agências de fomento governamentais, tais como Capes e CNPq, ou iniciativa privada. No caso específico do curso aqui apresentado, a parceria com a Senad/MJ foi possível por coadunar-se com a missão da própria Secretaria, que tem por atribuição fomentar a formação de recursos humanos qualificados na área, via atividades de capacitação e treinamento dos agentes do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (Brasil, 2016).

Histórico do curso e contextualização institucional A fim de contextualizar a oferta do curso, é importante tecer uma

breve apresentação do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), instituição executora, a partir da qual foi possível a implementação do programa. O HCPA é um hospital público, geral e universitário, pertencente à rede de hospitais universitários do MEC, que presta assistência a uma clientela formada, em sua quase totalidade, por pacientes do SUS. É vinculado academicamente à Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e, em sua missão institucional, assume o compromisso com a formação de profissionais das áreas da saúde, voltados principalmente para a atenção ao SUS, sob orientação e preceptoria dos professores da universidade e do corpo funcional do próprio hospital. O HCPA oferta seus espaços para cerca de 10 cursos de graduação da UFRGS, especialmente da Faculdade de Medicina e Enfermagem. Além disso, conta com programas de residência médica, residência integrada multiprofissional em saúde e um programa institucional de cursos de capacitação e aperfeiçoamento para diferentes perfis profissionais.

O histórico do projeto de MP tem como referência o Decreto nº 7.179 (Brasil, 2010a), que instituiu o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas e previu a criação e o fortalecimento de Centros Colaboradores no âmbito de hospitais universitários do país. O objetivo desses Centros é o ensino, pesquisa e desenvolvimento de metodologias de

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tratamento e reinserção social de dependentes de álcool e outras drogas, com especial ênfase no crack. Assim, a partir de uma parceria firmada entre a Senad e o HCPA, foi estruturado a partir de 2012 o primeiro Centro Colaborador em Álcool e Outras Drogas do Brasil, fundamentado em um modelo integrativo de atendimento a pacientes em nível ambulatorial e internação hospitalar, associado a serviços de reinserção social de alto grau de complexidade, totalmente incorporados a uma estrutura funcional de formação acadêmica e pesquisa. Essa proposta permitiu adicionar simultaneamente à estruturação física desse centro operacional, projetos continuados de assistência, ensino e pesquisa, visando a sua disseminação para outras regiões do país.

Redes colaborativas como essa contribuem para o desenvolvimento de intervenções e tecnologias baseadas em modelos de boas práticas e em evidências científicas. Além disto, permitem congregar competências e produzir dados sobre fatores que afetam a ocorrência de diferentes problemas relacionados ao uso de drogas, incluindo fatores psicológicos, sociais, educacionais, ambientais, genéticos e neuroquímicos. Essa iniciativa entra em consonância com esforços da Organização Mundial de Saúde, tais como o Mental Health Gap Action Programme - mhGAP (World Health Organization, 2016) que busca garantir o cuidado adequado a portadores de diferentes transtornos, incluído aí o abuso de drogas psicoativas, ajudando esses sujeitos a alcançarem vidas mais saudáveis.

Considerando a implantação do Centro Colaborador e a experiência prévia desenvolvida pelo Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (Cpad), por meio de cursos de extensão e um curso de especialização, este último já em parceria com a Senad, foi natural dentro do hospital a continuidade de projetos de qualificação de gestores e profissionais. Do ponto de vista institucional, a oferta do MP integra-se com a missão do HCPA, tendo em vista tratar-se de um hospital universitário identificado com a tríade pesquisa, ensino e assistência.

Assim, a partir da experiência de criação do programa de MP, o HCPA reafirmou sua posição como um polo disseminador de conhecimento, cumprindo o papel social de auxiliar no enfrentamento dos

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problemas relacionados ao uso de substâncias. Assegurou também um espaço de formação de profissionais, complementar a outras políticas públicas setoriais já existentes no âmbito de alguns ministérios, contribuindo para o melhor acesso ao conhecimento em nível nacional, tendo em vista as inúmeras lacunas ainda identificadas.

Estratégia de formação adotadaA implantação do programa, a partir de março de 2014, pode ser

considerada um projeto pioneiro, pois se consistiu no primeiro curso específico sobre o tema drogas de natureza profissional stricto sensu no Brasil. Do ponto de vista da instituição executora, também foi uma experiência inédita, pois foi o primeiro mestrado promovido exclusivamente pelo hospital, sem o protagonismo direto da universidade.

A formatação da proposta nasceu atrelada ao reconhecimento de que, investir na formação profissional especializada, destaca-se como uma importante estratégia para o fortalecimento da rede. Com esse foco desde o início, o público-alvo pretendido foi de gestores de políticas públicas e profissionais oriundos de diferentes áreas, tais como medicina, psicologia, enfermagem, serviço social, terapia ocupacional, entre outros. Ou seja, independente da formação acadêmica de origem, priorizou-se o investimento em profissionais que atuam em equipamentos da rede pública, estratégicos para contribuir com a melhora do sistema integral de cuidado aos usuários, tanto na perspectiva da gestão, quanto da reabilitação psicossocial.

A oferta do MP justificou-se a partir da estrutura desse Centro Colaborador HCPA/Senad, uma vez que se identifica essa carência na formação de recursos humanos especializados no país. Diversos autores (Costa, Colugnati, & Ronzani, 2015; Moraes, 2008;) recomendam a construção desse espaço de treinamento como prioritária para a valorização das equipes, pois focar apenas na ampliação da rede de serviços não é suficiente. É preciso investir em uma formação que incentive os profissionais a sintonizar com os princípios da atenção

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psicossocial, dispondo-os a romper com as lógicas excludentes e estigmatizadoras dos sujeitos que fazem uso de substâncias psicoativas, tão enraizadas em diversos segmentos de nossa sociedade.

Assume-se que uma formação qualificada poderá influenciar diretamente a qualidade dos serviços ofertados aos usuários. Da mesma forma, os profissionais formados, independente do local em que atuam, poderão contribuir com reflexões teórico-práticas e disseminar novas técnicas adquiridas, contribuindo com o trabalho intersetorial e interdisciplinar. Todavia, Costa, Colugnati, & Ronzani (2015) alertam que programas de capacitação só trarão mudanças reais se forem articulados com outras ações sistemáticas e constantes, que impactem na mudança de práticas no cotidiano dos serviços.

O curso foi aprovado pela Capes/MEC dentro da área de Medicina II, mas o conteúdo abordado guarda interface com diferentes áreas de conhecimento, sendo esta uma das principais características da proposta. Procurou-se contemplar diferentes aspectos que deem conta da complexidade do fenômeno, incluindo suas dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais, psicológicas, biológicas, educativas, preventivas, interventivas, dentre outras. Ao mesmo tempo, como pano de fundo, a estrutura está alicerçada em práticas clínicas baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis.

A composição do corpo docente reúne um perfil plural e diferentes expertises. Alguns professores são referência na produção acadêmica sobre o tema do uso de substâncias, tendo vasta experiência de pesquisa na área, e outros são profissionais de referência em abordagens de psicologia do desenvolvimento, no atendimento direto a usuários, gestão de políticas públicas e organização de serviços. Neste intuito, o quadro de docentes conta com médicos psiquiatras e clínicos, psicólogos, biomédicos, assistentes sociais, enfermeiros, entre outros.

A estruturação do curso define uma área de concentração em prevenção e assistência a usuários de álcool e outras drogas, que engloba o conjunto de implicações clínicas, epidemiológicas, sociais e culturais do processo

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saúde-doença, bem como os processos de promoção, prevenção, diagnóstico, intervenção e reabilitação psicossocial de usuários ou dependentes de substâncias psicoativas. A partir dela, foram desenhadas duas linhas de pesquisa: 1) Modelos de gestão e tratamento de usuários de álcool e outras drogas aplicados à rede pública de assistência; 2) Abordagem, avaliação e trajetória da dependência de álcool e outras drogas na rede pública de assistência.

Como estratégia de cooperação e intercâmbio, é priorizada a participação de profissionais com alguma ligação com os Centros Regionais de Referência em Formação Permanente - CRRs, mantidos estrategicamente pela Senad nas cinco regiões do país. Esses Centros, estruturados a partir do programa do Governo Federal Crack é Possível Vencer, visam à transferência de tecnologias e a capacitação de profissionais das redes de saúde e de assistência social.

Seguindo a lógica de estimular a formação fora do eixo sul-sudeste, a prioridade do MP é a oferta de vagas para profissionais oriundos dos estados no Norte, Nordeste e Centro-oeste do país. Em três edições já realizadas, o HCPA investiu na capacitação de uma rede interdisciplinar nacional, com foco em gestores e técnicos que atuam na prevenção e assistência de usuários de drogas nas redes públicas de saúde e assistência social, estaduais e municipais, de diferentes regiões.

Esse contexto demandou uma organização logística diferenciada, tendo em vista que esses profissionais já desenvolvem atividades em seus locais de origem e a permanência ininterrupta em Porto Alegre poderia ser um fator dificultador para a participação no curso. Assim, o curso foi organizado em nove módulos presenciais intensivos de uma semana cada, nos quais os alunos permanecem em Porto Alegre para realizar as disciplinas teóricas e acompanhar as atividades práticas previstas. O principal diferencial da formação é o intercâmbio para treinamento em serviço, em caráter de imersão, nas atividades do Centro Colaborador, com atividades desenvolvidas no ambulatório e na unidade de internação masculina, que conta com 20 leitos.

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Para concluir o curso, além de integralizar 24 créditos em disciplinas, é necessário produzir um trabalho de conclusão desenvolvido a partir da especificidade de atuação de cada profissional, ou seja, um projeto que gere algum tipo de impacto em seu cotidiano de trabalho. Esse formato está de acordo com a Portaria Normativa nº 17/2009 (Brasil, 2009), a qual estabelece que o produto de conclusão do MP possa ser apresentado em diferentes formatos, tais como: dissertação, revisão sistemática, artigo, projeto técnico, desenvolvimento de material didático ou instrucional, estudo de caso, manual, protocolo, entre outros.

Alguns aspectos trazidos pela Portaria nº17 têm gerado questionamentos com respeito à qualidade dos cursos de MP ofertados. Entre as preocupações, destacam-se a flexibilização das exigências relativas ao tempo para finalização, ao tipo de trabalho de conclusão e a possibilidade de inclusão de professores não doutores no quadro de docentes. Autores como Oliveira (2015), questionam:

“Como assegurar que toda essa flexibilização não venha a resultar em reducionismos curriculares e abordagens superficiais nos processos de formação? Como assegurar que essa expansão flexível não resultará em uma formação aligeirada e, por isso, incapaz de produzir os efeitos esperados no mundo do trabalho?” (p. 349).

Definir parâmetros e critérios claros em relação à qualidade dos cursos é essencial, não apenas em relação aos MPs, mas também aos programas acadêmicos. Entende-se que a avaliação quadrienal realizada pela Capes é o instrumento que irá balizar e assegurar essa qualidade, mas não há como simplesmente transpor os mesmos critérios/indicadores acadêmicos para a avaliação de programas profissionais, pois os objetivos e perfil do egresso são diferentes. Há ainda um longo caminho a ser trilhado.

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Relevância e impacto da formaçãoUm dos aspectos que se destaca como relevante é que, nas três

edições do MP realizadas, buscou-se promover a descentralização do eixo sul-sudeste. Historicamente, o Brasil tem concentrado o maior número de grupos de pesquisa da área de drogas em algumas capitais dessas regiões. Esse cenário está de acordo com a constatação de que a pós-graduação vem crescendo fortemente no Brasil desde os anos 1970, mas a maior parte dos cursos/programas ainda está sediada em universidades do sul e sudeste. É nessas regiões também que se concentram os cursos mais bem avaliados pela Capes (Oliveira, 2015).

O curso possui a vocação para o intercâmbio nacional, já que o Centro Colaborador atua como um polo de formação. Com vistas a diminuir possíveis assimetrias regionais, desde a primeira edição é fomentada a participação de profissionais de regiões do país com menos acesso a programas com foco em álcool e outras drogas. Essa estratégia, de investir no preparo de profissionais para gerir as políticas locais, pode ser definida como um dos indicadores de integração com a sociedade e o mercado de trabalho.

Ceccim (2012) reforça que, no caso do trabalho em saúde, é preciso reconhecer que há insuficiência de treinamentos formais e teóricos. O desenvolvimento de competências envolve, entre outros fatores, a aquisição do saber em cenários de prática, a aprendizagem em situações reais de trabalho e a capacidade de ser afetado pelas necessidades do cotidiano. Nesta esteira, desde a primeira edição do curso, a expectativa em relação ao profissional formado era de uma melhor compreensão sobre a prática baseada em evidências e o desenvolvimento de capacidades para intervenções em seu serviço de origem. Além disso, um dos resultados esperados é um maior protagonismo desse profissional, em condições de atuar em posições de gestão e na organização dos serviços.

A perspectiva de retorno/reciprocidade ao mercado de trabalho está de acordo com o papel a ser desempenhado pela pós-graduação em saúde humana nesta década, uma vez que urge reconhecer o crescente papel que

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as demandas e os atores extra-acadêmicos desempenham na agenda de formação de recursos humanos. A pós-graduação deve atuar em sinergia com o sistema de inovação em saúde, focando na formação tanto para o desenvolvimento tecnológico quanto para articulação com necessidades prioritárias do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2010b).

O programa privilegia vagas fora do eixo sul-sudeste, mas para as três primeiras turmas houve uma procura ainda pouco expressiva dos estados prioritários. Por isto, além da questão regional, passou-se a priorizar a inclusão de alunos que atuam em municípios do interior (Tabela 1). Há carência na formação de recursos humanos para além dos grandes centros urbanos, onde se identifica menos acesso a formações especializadas, independente do estado.

Tabela 1 – Distribuição dos alunos por estado

Os egressos do curso são oriundos de diferentes áreas de formação: Psicologia, Enfermagem, Serviço Social, Terapia Ocupacional, Medicina, Biologia, entre outros. Indicadores qualitativos mostram que, além da formação diversificada, esses profissionais atuam em variados dispositivos de atenção psicossocial, sejam eles serviços ligados ao SUS, Suas ou mesmo a gestão de políticas sobre drogas: ambulatórios, Caps, Caps-AD, Conselho Municipal sobre Drogas, Diretoria de Política de Assistência Social, Coordenação de Saúde Mental, Coordenação de Atenção à Saúde, Centro Regional de Referência para Formação Permanente (CRR), Estratégia Saúde da Família, Núcleo de Apoio a Saúde da Família (Nasf),

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Turma Ingresso Nº alunos Estados

1ª 2014 8Amazonas, Tocantins, Pernambuco, Paraíba, Piauí, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Rio

Grande do Sul

2ª 2015 10Bahia, Goiás, Piauí, Paraíba, Minas Gerais,

Santa Catarina e Rio Grande do Sul

3ª 2016 12Distrito Federal, Minas Gerais, Mato Grosso, Bahia, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande

do Sul

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Unidade de Adição Hospitalar, Unidade de Acolhimento, Gestão de Políticas sobre Drogas, entre outros.

A despeito de tratar-se de um curso novo, pode-se vislumbrar um impacto regional em estados e municípios, o que demonstra que o programa está alinhado com os objetivos traçados. Todos os trabalhos de conclusão defendidos por esses alunos possuem interface direta com a sua área de atuação profissional, e a Coordenação do MP já começou a monitorar a trajetória profissional dos egressos. Muitos iniciaram atividades de docência, seja em CRRs ou em cursos de graduação e pós-graduação lato sensu de universidades; outros, ganharam posição de destaque em cargos de gestão pública em nível municipal, estadual e mesmo federal. Pelo menos dois ex-alunos já ingressaram em programas de doutorado acadêmico, demonstrando que a consolidação do programa pode vir a contribuir futuramente com a nucleação de novos programas na área. Esses resultados apontam que, mesmo com um número reduzido de vagas ofertadas, o conhecimento adquirido abre possibilidades de ampliação da carreira.

Estudo realizado por Maciel e Nogueira (2012), junto a alunos de um programa de MP, mostrou que entre as motivações para a busca do curso destacam-se a necessidade de desenvolvimento profissional, a busca por conhecimento aplicado e a permanência no mercado de trabalho. Participar de um MP é uma experiência que contribui para o desenvolvimento de habilidades e mudança da identidade social, fortalecendo a autoestima e os ganhos pessoais e científicos.

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ConclusãoO Sistema de Avaliação da Pós-graduação segue buscando garantir o

padrão de qualidade dos cursos ofertados no Brasil, mas a política pública “mestrado profissional” ainda está em construção e deve ser aprimorada. Entende-se que a valorização desse formato de curso aumentará na medida em que for percebido que seus egressos têm conhecimento a oferecer para a sociedade.

Na área de drogas, o fato de existirem inúmeras demandas nacionais e regionais para formação de recursos humanos reforça a importância da continuidade de investimentos em programas voltados ao campo. Porém, coloca-se como um desafio permanente a sua sustentabilidade financeira, especialmente em um cenário econômico adverso como é o atual. A experiência do HCPA é exitosa, com resultados que incidem diretamente sobre as políticas públicas, mas não é suficiente para garantir sozinha a consolidação da rede de cuidado.

Destacam-se como pontos fortes do programa a realização de atividades teórico-práticas no âmbito do Centro Colaborador e a oportunidade de intercâmbio cultural. O formato do curso, que reúne alunos de diferentes regiões do país, propicia a troca de experiências, evidenciando a complexidade de execução de políticas públicas em um país de dimensões continentais e tão diverso como o Brasil.

É importante induzir a criação e consolidação de programas profissionais em outras regiões estratégicas, a partir da identificação de demandas locais e regionais. Assim, haverá mais possibilidade de atender verdadeiramente os pressupostos da Política Nacional sobre Drogas vigente, que prevê a descentralização das ações nos estados e municípios.

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C A P Í T U L O 5 . 4

A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão:

a narrativa de uma experiência

Fernanda Penkala Miriam Senghi Soares

Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque

ResumoEste texto apresenta uma narrativa sobre a experiência das autoras

enquanto facilitadoras no curso de formação de Supervisores em Saúde Mental da Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do estado do Maranhão. Para tal, optou-se por abordar inicialmente a conceituação geral do que seja a supervisão clínico-institucional em Saúde Mental no Brasil, bem como a sua inserção nos dispositivos de saúde mental, álcool e outras drogas, e mais recentemente nas Redes de Atenção Psicossocial (Raps). Faz o recorte para a experiência da Escola de Supervisores do Maranhão, compreendendo este dispositivo como importante disparador do processo de educação permanente em saúde e critica a atual indisponibilidade de implementação do mesmo. No percurso da experiência no processo formativo foram sendo percebidos, pelas facilitadoras, os nós críticos com os quais se confrontam os trabalhadores no cotidiano da assistência à saúde mental no contexto local – bastante semelhantes nos serviços das diferentes regiões do pais –, especialmente para os que participaram da referida formação de supervisores. Foram escolhidos entre os temas emergentes, como pontos fortes para aprofundamento, as temáticas da redução de danos e dos Processos

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Grupais, por entendermos como pontos críticos a serem problematizados nos processos de trabalho das equipes de saúde mental, álcool e outras drogas, e na própria formação de futuros supervisores de Raps. Também descrevemos, em linhas gerais, um dos momentos de dispersão, parte integrante das atividades práticas desta formação.Palavras-chave: escola de supervisores; supervisão clínico-institucional; saúde mental; álcool e outras drogas; redução de danos; processos grupais

A supervisão clínico-institucionalInstituída como ferramenta de gestão do Sistema Único de Saúde

(SUS) pela Portaria GM 1174/2005, considera-se que a supervisão clínico-institucional é:

[...] um tempo na organização do serviço dedicado à discussão e estudos sobre os projetos terapêuticos individuais e dos serviços, da dinâmica de equipe, das articulações com o território, dos processos de trabalho, da gestão e da clínica na perspectiva institucional e intersetorial. O supervisor, necessariamente externo à instituição, desencadeia e articula as reflexões da equipe para redirecionar as suas ações. (São Paulo, 2012)

A proposta de supervisão clínico-institucional, em implantação na Raps desde então, tem o objetivo de fortalecer a formação de novos quadros profissionais para atuação direta junto aos serviços de saúde mental, álcool e outras drogas especializados e/ou da atenção básica (Brasil, 2005).

Em que pese ser um mecanismo relativamente novo, importantes autores da reforma psiquiátrica brasileira (Delgado, 2013; Leal, 2006; Oliveira & Passos, 2012; Severo, Labbate, & Onocko-Campos, 2015; Silva, Beck, Figueiredo, & Pretes, 2012; Vasconcelos, 2014) têm discutido o escopo teórico-prático da supervisão clínico-institucional como ferramenta para a gestão de coletivos e transformação das práticas em

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saúde mental, no que tange à democratização das instituições, à qualificação dos processos de trabalho e ao aumento da eficácia terapêutica dos serviços de saúde. Para estes autores:

O trabalho, sob esta perspectiva, proporciona aos profissionais procedimentos mais afinados de intervenção e de abordagens terapêuticas, facilitando uma escuta que permita uma melhor compreensão dos problemas. Compartilhar democraticamente os níveis de conhecimento teórico e de manejo técnico faz com que se desenvolva uma maior capacidade de tolerar a desigualdade e pode evitar que se estabeleçam aristocracias de saberes que podem fragmentar o grupo. (Serrano-Guerra, 2003, p. 2172).

A complexidade atual da Política Nacional de Saúde Mental tem nos apontado transformações cada vez mais desafiadoras em nossos cotidianos e práticas em saúde, especialmente as que se têm vivenciado na clínica psicossocial, e por óbvio, também na supervisão clínico-institucional na Rede de Atenção Psicossociais (Raps), como adequadamente nos apontam Leal e Onocko-Campos (2004) quando dizem que esta ferramenta – a supervisão clínico-institucional –, articula conceitos tradicionalmente dicotômicos: singular x coletivo, pessoa x grupo, indivíduo x sociedade, clínico x social. As autoras vão além, nos convidando a refletir sobre a complexidade do campo de intervenções, que não mais se restringem à interação usuário-técnico mas a inclui; a relação de imanência clínica x instituição, em que as características institucionais e os processos de trabalho das equipes definem, tanto a clínica quanto os modos de operar o cuidado e vice-versa; além da própria dimensão pública do adoecimento, sendo este decorrente das relações entre indivíduos e seus modos de estar no mundo. Com essas reflexões presentes é que se fundamenta o trabalho da supervisão clínico-institucional, tendo que se considerar articuladamente os serviços, a rede, a política pública e a gestão para que a tarefa seja efetivamente transformadora e qualificadora do cuidado em Saúde Mental nas Raps.

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A Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do MaranhãoSegundo dados publicados pelo Ministério da Saúde no documento

“Saúde Mental em Dados – 11, a Raps encontra-se em franca expansão, especialmente nos pequenos municípios do interior do Norte e do Nordeste (Figura 1).

Figura 1 – Expansão da Raps no Brasil de 2002 – 2012Fonte: Saúde Mental em Dados - 11 (Brasil, 2012).

Considerando que os serviços que estão sendo implantados precisam ter acesso aos mecanismos de qualificação do SUS, entre 2005 e 2011 foram publicados editais por meio dos quais houve transferência de recursos para o financiamento de 851 projetos (Tabela 1) visando a fomentar ações de supervisão, qualificação e avaliação dos serviços e das redes de atenção, que foram executados por profissionais de formação teórica e prática diversas.

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No entanto, há uma carência de profissionais habilitados e disponíveis para esse trabalho e neste sentido é que surge a proposta de implantação das Escolas de Supervisores Clínico-Institucionais. Esta teve por objetivo formar novos profissionais, qualificar a prática daqueles que já atuam como supervisores nas Raps e estimular o compartilhamento de experiências entre as diferentes regiões do país. Assim, o projeto Escola de Supervisores Clínico Institucionais foi uma estratégia da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde para ofertar a circulação de saberes articulados com os princípios e diretrizes do SUS, no sentido de fortalecer as práticas de cuidado e concretizar a Política de Atenção à Saúde Mental, a partir dos eixos norteadores da Reforma Psiquiátrica e dos princípios organizacionais do próprio SUS (Silva et al., 2012).

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Tabela 1 – Total de projetos financiados pelo Ministério da Saúde

Sistematizado pelas autoras. Fonte: Saúde Mental em Dados – 11 (Brasil, 2012).

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Estado Projetos aprovadosEscola de

supervisoresEscola de redutores

de danos

AL 18 1 2

AM 6 0 1

AP 2 0 0

BA 25 0 2

CE 64 1 1

DF 7 0 2

ES 12 0 1

GO 13 1 5

MA 9 1 0

MG 95 2 5

MS 13 1 3

MT 13 0 1

PA 20 0 2

PB 45 0 1

PE 37 1 5

PI 9 1 0

PR 0 1

RJ 83 2 4

RN 24 1 0

RR 0 0 0

RO 0 0 0

RS 83 1 5

SC 54 1 0

SE 18 1 3

SP 144 0 11

TO 8 1 1

Total 851 16 58

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As Escolas de Supervisores Clínico-Institucionais vinham sendo financiadas por meio de Editais do Ministério da Saúde. Na Tabela 1 vemos a distribuição das Escolas de Supervisores Clinico-Institucionais por Estados da Federação, sendo que o do Estado do Maranhão foi um dos projetos aprovados no referido edital, entre os 16 selecionados.

O processo de aprendizagem proposto pelo projeto da Escola de Supervisores do Maranhão contou com encontros presenciais e com atividades de dispersão, desenvolvidas em territórios pré-estabelecidos pela coordenação da Escola. Os encontros presenciais foram agrupados por módulos temáticos com 20 horas de duração e conduzidos por facilitadores com experiência em supervisão clinico-institucional e no campo da Reforma Psiquiátrica, assim distribuídos: Supervisão Clínico-Institucional: conceituações e desafios, cotidiano do Caps - O Caps e o cuidado no território; política integral para pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e drogas; intersetorialidade; instituição: instituído e instituinte; redução de danos e processos grupais; política e gestão de saúde mental; intervenção na crise; urgência/ emergência; saúde mental na infância e adolescência; matriciamento em saúde mental; a psicanálise e a supervisão.

Consideramos que a atividade de dispersão na Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do Maranhão foi de suma importância, uma vez que é neste momento que os educandos são instigados a aprofundar os conhecimentos teóricos debatidos nos momentos presenciais. Destacamos que a Roda de Conversa Virtual, desenvolvida como ferramenta nessa formação, se mostrou um dispositivo importante para o acompanhamento e orientação das atividades de dispersão, bem como para estimular e aprofundar o debate acerca do papel e missão do supervisor clínico institucional na Raps, em consonância com a política de saúde mental, álcool e outras drogas. A tarefa proposta foi elaborar uma estratégia de intervenção a partir de alguns dos dispositivos da caixa de ferramentas que os facilitadores compartilharam com os trabalhadores em formação, baseados em sua experiência como supervisores clínico-institucionais na

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Raps. Assim sendo, o plano de ação foi elaborado com base nos dados coletados nos seguintes instrumentos:

1 - Pesquisa em Saúde Mental – caracterização do território e mapeamento das redes de atenção existentes;2 - Questionário – para conhecer o perfil dos trabalhadores e identificar os temas de seu interesse;3 - Roteiro de indicadores – questionário respondido coletivamente numa roda de conversa com toda equipe do serviço (Soares, 2016). As respostas são inseridas no aplicativo Avaliar-Ação que calcula um score por eixo indicador com base nos valores de uma escala Likert e gera uma representação gráfica para identificar as necessidades de reorganização do processo de trabalho;4 - Apreciação de abordagem em Redução de danos em cena de uso de drogas – observação participante-prática in lócus com agente redutor de danos do município de São Luís.

Os questionários, que foram respondidos pelas equipes técnicas atuantes nos territórios alcançados pelo projeto, indicaram o manejo de situações de crise e a redução de danos como temas prioritários no que diz respeito à necessidade permanente de formação em serviço e de preparação teórica para a operacionalização das políticas de saúde mental, álcool e outras drogas, por esta razão elegemos o Módulo 5 – Redução de danos e os processos g rupais na supervisão clínico-institucional para maior detalhamento.

Cabe-nos aqui salientar que consideramos o tema atenção à crise altamente necessário a ser problematizado e aprofundado em qualquer espaço de formação em saúde mental, álcool e outras drogas, porém, mesmo o tema tendo sido abordado com a adequada atenção ao longo do curso de formação de supervisores clínico-institucionais em diferentes momentos – sempre um debate emergente e ainda não hegemônico entre os trabalhadores em saúde mental nos dispositivos territoriais –, optamos por não incluí-lo como foco neste texto por entendermos que seja um

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tema de complexidade que justificaria uma abordagem específica mais abrangente, o que não nos permitem as limitações deste trabalho. Sem desmerecer outros temas, o objeto de aprofundamento na discussão deste texto é um recorte dos temas/conteúdos compreendidos como indispensáveis para a atuação profissional de qualquer categoria que trabalhe em serviços de saúde mental e de atenção aos usuários de álcool e outras drogas.

A Redução de Danos e os Processos Grupais na Supervisão Clínico Institucional

As reflexões que emergem de nosso contato com as dificuldades e conflitos do cotidiano de trabalhadores e gestores dos serviços devido à nossa atuação como supervisores da Raps, nos levam a reconhecer o valor da supervisão clínico-institucional. No entanto, percebe-se o privilégio da chamada “dimensão clínica”, extremamente voltada para as discussões das questões psicopatológicas ou psicoterápicas, muitas vezes centradas em práticas “prescritivas” e “medicalizantes”, em detrimento da compreensão de uma “clínica ampliada” – a qual pressupõe sempre a participação do usuário, da construção e articulação de redes que podem, a priori, garantir um cuidado mais integral aos usuários. Ao focarmos nas diferentes realidades de cada território o que se tem observado, com preocupante frequência, é a pouca importância do cuidado e da atenção nos diferentes pontos dessas redes, sejam estas as relações intrasetoriais, intersetoriais ou mesmo comunitárias.

É recorrente que nos espaços de supervisão clínico-institucional os estudos de caso ou a escolha dos temas ainda se deem a partir de questões “ambulatoriais”, ou dos problemas que a equipe considera difíceis de resolver. No entanto, percebe-se que essa escolha acaba por reduzir e “driblar” o enfrentamento das dificuldades que as equipes têm em lidar com suas fragilidades e conflitos, incluindo os jogos de poder internos e externos, como também as constantes mudanças de gestão, que sempre trazem a ameaça da descontinuidade das políticas públicas. Também o

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fato de que a supervisão clínico-institucional vira um “muro de lamentações” no qual as equipes passam a interrogar o modelo de assistência preconizado, sem se perceberem partícipes do processo de mudança ou mesmo refletindo sobre seu compromisso e responsabilidades sanitárias. Neste ponto, caberia também à supervisão clínico-institucional trazer aos profissionais a oportunidade de repensarem sua atuação como trabalhadores da saúde mental, do SUS, bem como, seus desejos e interesses, e ajudá-los a visualizarem a necessidade de uma gestão mais compartilhada e participativa, convidando-os a se envolverem em projetos mais comprometidos, passando obrigatoriamente tanto pela gestão dos processos de trabalho em que atuam esses profissionais, como pela problematização de seu cotidiano para além da clínica.

A questão é que nem todos os trabalhadores sentem que essa dimensão política faz parte de seu trabalho, muito menos percebem que a supervisão clinico-institucional é uma ferramenta que transita pelas duas dimensões obrigatoriamente, não sendo possível separarmos clínica e política para que a tarefa de supervisão clínico-institucional seja realmente uma ferramenta de transformação e qualificação das práticas de cuidado em Saúde Mental. Daí o desafio de processos de educação permanente e humanização, que incluem a supervisão clínico-institucional como uma estratégia clínico-política que, dentre os diversos temas emergentes, também considera o processo coletivo de empoderamento dos trabalhadores, o que implica, além de tudo, repensarem suas práticas e sua participação na construção e articulação de redes como espaços de cuidados, de circulação, de cidadania e de vida. São as redes os espaços que potencializam, no itinerário seguido pelo usuário, ou mesmo efetivam o princípio da integralidade, tanto para as demandas dos sujeitos, como para o olhar dos trabalhadores sobre o cuidado oferecido.

Vários conceitos considerados “novos” na Saúde Mental, que estão sendo definidos no decorrer da prática, refletem a necessidade premente da supervisão clínico-institucional como espaço de formação. Dentre eles: a atenção psicossocial, saúde mental na atenção básica, internação no hosp i ta l ge ra l , v i s i t a domic i l i a r, equ ipe s de re f e rênc ia ,

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matriciamento/apoio matricial, redução de danos, clínica ampliada, projeto terapêutico singular, consultório na rua, processos grupais (trabalho em equipe, natureza e manejo de grupos, técnicas de dinâmica de grupos, educação popular em saúde, rodas de conversa), entre outros.

O espaço da supervisão clínico-institucional é indiscutivelmente necessário e valioso como instrumento de educação permanente. No entanto, sabemos que não é o único espaço. Mas, diante das diversas dificuldades que os gestores locais e equipes têm em realizar a política de Educação Permanente em Saúde (EPS), este acaba sendo um foro privilegiado para tal.

Deste modo, a partir do levantamento realizado para eleger as prioridades de formação, foi recorrente a fala das equipes de que não conhecem e não sabem atuar a partir dos princípios da redução de danos, bem como de que possuem muita dificuldade no manejo dos grupos terapêuticos, dos grupos reflexivos, ou até mesmo do acolhimento em grupo, visto a pouca ou nenhuma formação nesta área em suas graduações.

No decorrer da supervisão cl ínico-inst i tucional, sendo instrumentalizada como EPS, percebemos que muitos técnicos e profissionais ainda não acreditam na perspectiva da redução de danos e divergem não apenas teoricamente, mas atuam baseados em antigos paradigmas que excluem mais do que acolhem, que prescrevem a internação como medida primeira a ser tomada, ou ainda que assumem a ideia de que todo usuário de drogas está fadado ao fracasso, a marginalidade e a dependência definitiva, levando-os à morte. Cresce também, de maneira avassaladora, a ideia de que as Comunidades Terapêuticas devam fazer parte da Raps não mais como um espaço complementar ou de exceção, mas como “porta de entrada” para o cuidado ou ainda como se essas pudessem substituir as Unidades de Acolhimento que pouco foram implantadas no Brasil.

Deste modo, a redução de danos foi trabalhada para ser compreendida como o referencial norteador da Política Nacional de

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Atenção aos Usuários de Drogas que rompe com o paradigma excludente, muitas vezes centrado no preconceito e em dogmas morais, de atenção aos usuários de drogas ofertando um outro modo de discutir e cuidar da questão. Entre seus princípios está o do direito à liberdade de escolha “à medida que os estudos e a experiência dos serviços demonstram que muitos usuários, por vezes, não conseguem ou não querem deixar de usar drogas e, mesmo esses, precisam ter o risco de infecção pelo HIV e hepatites minimizados” (Brasil, 2001, p. 11)

Tal reflexão nos remeteu aos:[...] questionamentos quanto às afirmações de que no processo de dependência não há a liberdade de escolha, visto a compulsão doentia instalada e a falta de capacidade de se estabelecer o limite do uso nos remete a questões mais profundas sobre o que pode significar liberdade de escolha e autonomia, numa sociedade capitalista voltada ao consumo, no qual os sujeitos estão “capturados” vivendo uma “pseudo” capacidade de gerir suas próprias vidas. No entanto, essa discussão requer maior arcabouço teórico que incluiria a discussão, por exemplo, do seja promoção de saúde para usuários de drogas. (Rameh-de-Albuquerque, 2008, p. 44).

Deste modo vimos ainda que a redução de danos constitui um conjunto de medidas que estão voltadas à minimização das consequências adversas do uso de drogas, pois:

[...] quando se trata de cuidar de vidas humanas, temos que necessariamente, lidar com as singularidades, com as diferentes possibilidades e escolhas que são feitas. As práticas de saúde, em qualquer nível de ocorrência, devem levar em conta esta diversidade. Devem acolher, sem julgamento, o que é necessário, o que está sendo demandado, o que pode ser ofertado, o que deve ser feito [...] (Brasil, 2003, p. 10).

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Deve ainda sustentar a importância dos cuidados (tecnologias de baixa densidade) nos diferentes espaços de uma rede de atenção e as múltiplas possibilidades e recursos que essas devem oferecer. Somente articulando os diferentes níveis de cuidado e construindo uma adequada compreensão das redes, pode a supervisão clínico-institucional realizar plenamente sua contribuição junto aos profissionais de saúde e, em consequência disto, aos usuários e serviços de saúde em si. Diante do exposto fica claro a dificuldade dos profissionais em atuarem na perspectiva da redução de danos, pois esta irá colocar em tensão a formação recebida por esses trabalhadores, suas crenças e seus valores.

No entanto, é justamente no deslocamento de suas certezas e verdades que:

Neste momento, há muitos saberes, quereres, dizeres em jogo. Embora cada protagonista vá para o encontro com alguns saberes prévios (por exemplo, sobre o seu sofrimento, sua doença, sobre o modo de diagnosticar, de tratar), é somente no ato do encontro que saberemos qual será a potência do mesmo, sua capacidade de criação e de produção de um cuidado, que pode estar centrado em uma ética de afirmação da vida ou ter uma baixa capacidade nesta direção, com um olhar só para a doença, reduzindo o próprio viver (Eps em movimento, 2014, p. 10).

O grupo foi capaz de refletir que no paradigma antigo, por exemplo, diante de uma crise a resposta era: segura, amarra, medica e interna (não necessariamente nessa ordem). No novo paradigma essa resposta não faz mais sentido! Viu-se o quanto precisamos criar uma outra resposta ancorada no “novo” paradigma, o que dá muito trabalho, pois sempre somos cobrados a utilizar o paradigma antigo, já que ele é entendido como resolutivo, pelo menos num primeiro momento.

Trabalhar com esta oferta teórico-prática junto aos educandos da Escola de Supervisores Clínico Institucionais do Maranhão foi um

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processo rico de trocas entre o que propúnhamos de teoria e o que eles conseguiam visualizar em termos práticos no seu cotidiano de trabalho.

Muitos trouxeram suas inquietações sobre a sua dificuldade compreendida como concreta em assumirem este “novo” paradigma diante da cobrança social, e até mesmo de outros colegas em que se trabalhe apenas na perspectiva da abstinência. Por outro lado, acabamos vendo como de grande valia a descoberta do grupo de que a redução de danos não é uma política pensada por “operadores de gabinete”, mas sim algo construído e vivenciado pelos próprios usuários, trazendo assim a sua verdadeira potência no cuidado às pessoas que usam drogas. Além disso, também nos foi possível pensar que a redução de danos tem muito a nos ensinar, trabalhadores e gestores em saúde mental, mas não só, também aos supervisores clínico-institucionais em formação, e como ainda não é uma hegemonia nos serviços de saúde – nem mesmo nos de saúde mental, álcool e outras drogas ou para todos os supervisores clínico-institucionais das Raps. Com essa potente “escola” pudemos refletir e problematizar o cuidado em saúde que oferecemos, a integralidade, a equidade, o cuidado no território, acessibilidade, vínculo, entre outros conceitos com os quais operamos no campo da saúde do SUS.

Em relação aos processos grupais e toda gama de conhecimento que este tema traz, fez-se mister discutir como lidar com os conflitos relacionais intra-equipes. Tal necessidade sugere a construção mínima de um referencial teórico acerca de grupos e grupalidade. Dentre estes, de modo geral as equipes de saúde mental relataram sua necessidade de conhecerem sobre os tipos de grupos existentes, conceito de grupos e grupalidade, o trabalho em equipe, a natureza e manejo de grupos, as técnicas de dinâmica de grupos, e ainda outras abordagens que partem da noção e conceito de grupos, como a educação popular em saúde, as rodas de conversa e/ou ainda a terapia comunitária. É evidente o despreparo das equipes em operacionalizar a condução destes, visto que em suas formações básicas geralmente as atividades eram focadas no indivíduo, o que acaba por reproduzir essa prática nos serviços, e também, de certa forma, conduzir a própria organização e os processos de trabalho das

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equipes, especialmente no que se refere à “seleção” de usuários e diversidade de ofertas terapêuticas.

Este quadro não foi muito diferente do que encontramos na Escola de Supervisores Clínicos-Institucionais do Maranhão. Como não fizemos um pré-teste para levantarmos quem ou quais alunos dominavam este ou aquele conteúdo, partimos da premissa da necessidade de um “nivelamento básico conceitual” sobre grupos.

Lançando mão exatamente da premissa de que o trabalho em grupos promove atividades que ampliam as oportunidades de debate, troca e aprendizado mútuo, aumentam o autoconhecimento, o desenvolvimento pessoal e interpessoal de professores, pais, alunos e funcionários, e incentivam a aplicação e vivência dos valores universais e atitudes de paz no cotidiano, pudemos desenvolver os temas de maneira lúdica, participativa e reflexiva.

Discutimos que as dinâmicas de grupo são instrumentos, ferramentas que estão dentro de um processo de formação e organização, que possibilitam a criação e recriação do conhecimento e que servem para responder a interrogações de diversas naturezas: o que pensam as pessoas, o que sentem, o que vivem e sofrem. As dinâmicas de grupo servem também para “desenvolver um caminho de teorização sobre esta prática como processo sistemático, ordenado e progressivo” (Militão & Miltão, 2009, p. 22), de modo que podermos retornar à prática, transformá-la, redimensioná-la. Através da dinâmica de grupo podemos incluir novos elementos que permitem explicar e entender os processos vividos.

Trabalhamos a diferenciação conceitual entre “Técnicas de Dinâmica de Grupo” e o que comumente chamamos de dinâmica de grupo, sendo a primeira os instrumentos, ferramentas e atividades que desenvolvemos para ajudar a ampliar, modificar ou influenciar na “dinâmica do grupo”, ou seja, em seu movimento grupal.

Deste modo, escolhemos trabalhar na Escola de Supervisores Clínico Institucionais do Maranhão as técnicas participativas que geram um

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processo de aprendizagem libertador, porque segundo Militão & Miltão (2009) estas permitem:

1. Desenvolver um processo coletivo de discussão e reflexão.2. Ampliar o conhecimento individual, coletivo, enriquecendo seu potencial e conhecimento.3. Possibilita criação, formação, transformação e conhecimento, onde os participantes são sujeitos de sua elaboração e execução.

Outro ponto trabalhado como importante ferramenta para atuação direta com grupos foi o embasamento através da educação popular de Paulo Freire (Freire, 2010, 2014; Freire & Schor, 2008). Para o autor, o pensar só tem sentido na ação sobre o mundo de modo que refletimos que nossa prática com grupos deve vir encharcada da noção clínica-política que já nos referimos no início deste artigo.

Com a noção da educação popular em saúde pudemos vivenciar o que chamamos de “Rodas de Conversa” como potente espaço de desenvolvimento de práticas terapêuticas em nossos serviços de saúde mental (Afonso & Abade, 2008; Carvalho, 2014; Sales, 2014).

Outros autores que refletem sobre grupos e processos grupais também foram discutidos durante o processo formativo em questão de modo a ampliar o repertório teórico/prático de seus participantes. Dentre os autores que muito contribuíram para o desenvolvimento da nossa compreensão sobre os processos grupais destacamos: Kurt Lewin (1989), Jacob Levy Moreno (1999), William Schutz (1989), Frederick Pearls (1997), Rogers (1978), Pichon-Rivière (2009), Georges Lapassade (1983).

A guisa de algumas possíveis conclusões...É urgente que pensemos formas de garantir a supervisão

clínico-institucional junto aos serviços de saúde mental, álcool e outras drogas, como parte da formação em serviço tanto no que diz respeito à

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especificidade da clínica da Atenção Psicossocial quanto da dimensão política da reforma psiquiátrica brasileira (Costa-Rosa, 2013).

Faz-se necessário garantir a governabilidade e sustentabilidade desse ofício, visto a descontinuidade sofrida diversas vezes pelos profissionais da ponta. Outra questão é o “uso” do supervisor como "terapeuta" de equipe, passando longe de ser um apoiador ou um facilitador dos processos do grupo e do trabalho em saúde. No caso, a supervisão clínico-institucional é um dos dispositivos do Programa de Qualificação da Rede de Atenção Psicossocial que deveria ter sido implantada nos municípios que receberam incentivo financeiro do Ministério da Saúde por intermédio dos editais. Na prática o que observamos é que programas de qualificação não foram efetivamente implantados e foram descontinuados após o término do incentivo financeiro. Ou seja, não havendo mais verba "de fora", como daremos continuidade à essa necessidade? Como garantiremos "o interesse" e manutenção de todos os envolvidos neste processo? Não podemos aceitar a indisponibilidade atual da Coordenação Nacional de Saúde Mental e dos gestores locais em conduzir esse processo. Tanto as Escolas de Supervisores Clínico Institucionais estão paradas quanto as experiências de intercâmbio entre os serviços. Tal questão impõe um retrocesso na operacionalização concreta da Reforma Psiquiátrica no que tange à reversão do modelo de atenção e ainda abre espaço para o aumento das fragilidades encontradas nos seios das equipes.

Observamos também a premente necessidade de construirmos coletivos que possam "desenhar" o que seja uma supervisão clínico-institucional, bem como do perfil dos atores que executarão esse ofício, visto que é necessário que este considere radicalmente os pressupostos do SUS e da Reforma Psiquiátrica. Compreendemos a supervisão clínico-institucional como um espaço de Educação Permanente em Saúde que deve ocorrer de modo contínuo e sistemático, devido à complexidade que são os nossos serviços de saúde mental, álcool e outras drogas.

Apesar dos já citados e importantes autores que discorrem sobre a supervisão clínico-institucional, em nível nacional, nosso debate ainda é

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escasso, haja vista que existem os mais diferentes conceitos sobre a mesma, tanto quanto existem diferentes entendimentos de sua importância para a qualificação em serviço dos nossos dispositivos de cuidado. Aparentemente essa diversidade pode ser compreendida como positiva, mas na prática a urgência que temos em responder às demandas de saúde mental em nosso país acaba por nos defrontar com muitos dos problemas que por vezes não são entendidos como problemas por alguns atores. Por exemplo: a ambulatorização, a clínica desvitalizada, o despreparo e cronificação da equipe, o sucateamento dos serviços e a falta de investimento da gestão, dentre outros, que podem estar diretamente relacionadas com a precarizacão e clientelismo de muitos desses serviços através de suas prefeituras e políticas locais.

Como também já refletido, muitos são os temas possíveis de serem trabalhados em um processo de supervisão clínico-institucional em que se compreenda este dispositivo como uma das potências da EPS. A escolha de tratarmos, neste artigo, da redução de danos e dos processos grupais fala de uma lacuna profunda no desenvolvimento de um bom processo de trabalho num modelo de atenção que se deseja substitutivo ao modelo manicomial. Ou seja, sem esses pilares (e outros também importantes), a operacionalização num novo paradigma se mostra falho e ineficiente. Urge que ao trabalhar com grupos, os técnicos e profissionais saibam operar com ferramentas que facilitem os processos de trabalho. Assim também com a redução de danos que carece de ser assumida como uma postura que reflete uma nova visão de sujeito e de mundo, e não apenas uma estratégia utilitária.

Para finalizar, gostaríamos de apresentar alguns aspectos que sentimos necessários como em constante debate a partir da vivência da e na Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do Maranhão. São questões que foram trabalhadas pontualmente por um ou outro facilitador que se envolveu com a Escola, mas que certamente precisam ser sempre revisitadas no sentido de que a nossa "rede" de dispositivos não se esqueça de pensar no diálogo com outras alternativas e possibilidades temáticas, estimulando elementos que as pessoas que cuidamos consideram

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importante para suas vidas e que faz sentido para elas. Algumas dessas questões:

Quais são os objetivos do serviço? Tem funcionado para efetivamente substituir as internações em instituições totais?

O serviço tem diretrizes e/ou princípios definidos (específicos do serviço) – como, por exemplo, um Projeto Terapêutico Institucional revisto com frequência?

Como o serviço compõe a Raps local, a rede de saúde e as políticas do município, intra e intersetoriais, se articula e se integra ao território?

Como está organizado o processo de trabalho do serviço (acolhimento, atenção e manejo de crise, fluxo do usuário e participação dos mesmos nos processos do serviço, recursos terapêuticos – individuais, grupais, comunitários)?

A organização dos processos de trabalho se apoia nos pressupostos da EPS e da Política Nacional de Humanização (PNH)?

Como as propostas terapêuticas se integram para beneficiar os processos dos usuários?

Quais as responsabilidades dos profissionais e trabalhadores definidas pela equipe?

Quais são as principais dificuldades e obstáculos encontrados pela equipe de trabalho para atingir os objetivos do serviço?

O que é necessário modificar no processo de trabalho para que as dificuldades e obstáculos sejam minimizados?

As equipes são sabedoras de todos os processos e embates vividos da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial, da Reforma Sanitária, e da redução de danos?

Como estes processos influenciam o andamento das atividades terapêuticas desenvolvidas no serviço?

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Certamente outros questionamentos podem e devem ser feitos. Ofertamos estes como um debate que não se acaba. Apostamos tanto na supervisão clínico-institucional como dispositivo rico e disparador de processos importantes na construção e consolidação da Raps, como compreendemos que a Escola de Supervisores Clínico-Institucionais do Maranhão foi capaz de dar a sua contribuição nesse processo, servindo de experiência exitosa para todo o Brasil.

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P O S FÁ C I O

Drogas: porque se impõe a Transição de Paradigmas

Marcelo Santos Cruz

O modo de compreender a função do uso de drogas, para nós humanos, e as propostas da abordagem dos problemas relacionados a esse uso divergem de forma extrema há mais de um século no mundo todo. Muitas podem ser as razões para essa discordância, mas uma das mais importantes motivações para a polaridade dos modelos reside, sem dúvida, nas diferenças de experiência de quem reflete sobre essas questões. A lembrança da lenda indiana dos sábios cegos descrevendo um elefante é inevitável. Não há como o sábio que toca a orelha concordar com o que descreve a tromba, nem este com o que investiga a dorso do animal. Este livro aborda diferentes aspectos das experiências de uso de drogas, suas consequências e formas de abordá-las. Os autores ligados à Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas, a Abramd, contribuem assim para ampliar o conhecimento, permitindo que novas práticas abram caminhos mais satisfatórios. Mais do que isso, os textos refletem práticas e experiências inovadoras que sustentam a mudança paradigmática indispensável neste campo.

Por definição, paradigma é “qualquer campo de investigação e de experiência que está na origem da evolução científica” (Michaelis). Como diz Saul Fuks (2018), “las problemáticas ligadas al consumo de sustancias, como la mayoría de las problemáticas complejas de salud pública, implica atravesar decisiones

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epistemológicas, éticas, políticas, estratégicas tanto como técnicas, respecto al tipo de enfoque que se adoptará”. Neste sentido, falar de uma proposta de transição de paradigmas é uma forma precisa de sintetizar o que propõe esta publicação. De forma mais ampla, esta é a proposta da Abramd.

A Abramd surgiu em 2005 a partir da inquietação de pesquisadores e profissionais do campo da atenção a pessoas com problemas com drogas que se preocupavam em ampliar a forma de compreender e de abordar os problemas com as substâncias psicoativas. Desde antes de sua fundação, profissionais como Professor Elisaldo Carlini, Dartiu Xavier da Silveira, Antônio Nery, Tarcísio Andrade, Fátima Sudbrack, Fernando Grossi, Oscar Cirino e muitos outros espalhados por serviços universitários e outros serviços públicos manifestavam sua preocupação em não permitir que uma compreensão reducionista apoiada em pressupostos biologicistas fosse apresentada como a única maneira de abordar as questões relacionadas ao uso de drogas. Mais do que isso, era indispensável manter aberto o leque de fontes de interlocução com os gestores e formuladores da política sobre drogas no Brasil em consonância com as múltiplas maneiras de compreender e de abordar os usos de drogas.

Desde o início de sua criação, ficou claro o papel da Abramd em buscar o desenvolvimento de interlocução entre os atores deste campo, incluindo os usuários de drogas, os estudiosos, os profissionais da atenção, aí incluída a atenção à saúde, assistência social, educação e justiça, os gestores e formuladores de política. Este diálogo se dá por meio dos fóruns de discussão dos temas relevantes, incluindo os congressos, os encontros regionais, os espaços de discussão pela internet e as publicações. Em todos estes espaços, o incentivo à pesquisa em suas variadas vertentes e a interlocução com os gestores da política sempre foram fundamentais. Durante anos, a Abramd participou da formulação da política na discussão com o Ministério da Saúde e a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (Senad) em inúmeros espaços de debate e teve papel decisivo de apoio à abordagem multidisciplinar pautada pelas estratégias de redução de danos.

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Marcelo Santos Cruz

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Os caminhos tomados pela política para as drogas nas últimas décadas no Brasil mostram uma oscilação em direção a abordagens menos e mais repressivas. Para quem está neste campo há mais de 30 anos, fica claro que houve avanços. Entre os aspectos positivos, pode-se perceber a construção de uma rede extra-hospitalar de atenção à saúde de pessoas que usam drogas, o fato de que o uso de drogas deixou de ser, por lei, passível de prisão, que há milhares de profissionais capacitados e que se discute a descriminalização por toda parte. No entanto, a oscilação em direção a uma abordagem repressiva é fácil de ser notada nos últimos anos ao sabor das pressões de setores conservadores da sociedade.

Por estes motivos, essa publicação é extremamente oportuna. Autores de peso discutem assuntos essenciais, como os novos desafios que nas últimas décadas vieram se somar aos já existentes. Estes incluem o crescimento do consumo do crack, da violência e do encarceramento por problemas relacionados às drogas. Enormes dificuldades sociais, ausência de perspectivas de trabalho, educação, saúde e lazer aumentam as condições desfavoráveis de parcelas mais vulneráveis de nossa população. A política para as drogas ainda apoiada no proibicionismo, que propõe a repressão como solução dos problemas relacionados ao uso, contribui para aumentar a violência. Esta se concretiza nos confrontos entre a polícia e os traficantes e nas disputas pelos pontos de drogas. Jovens e mulheres são especialmente afetados por estas condições. A necessidade do desenvolvimento de modelos e práticas que constituam estratégias de prevenção para jovens do uso abusivo de substâncias psicoativas continua premente. O que já está claro é que as práticas de prevenção não devem ser baseadas em uma abordagem amedrontadora. Também fica evidente a necessidade da atenção às famílias envolvidas e que a educação popular visando à promoção da saúde tem um potencial transformador.

Para colocar em marcha novas práticas para a atenção a pessoas que têm problemas com drogas é indispensável um grande esforço para a capacitação dos profissionais que vão desenvolver estas ações. Profissionais das mais variadas áreas do saber e em diferentes níveis de formação foram, ao longo do tempo, capacitados de forma insuficiente para lidar

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Posfácio – Drogas: porque se impõe a Transição de Paradigma

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com os desafios desta prática. É necessário que os cursos de graduação e pós-graduação presenciais e a distância, como aqui descritos, ampliem, aprofundem e aperfeiçoem uma formação que tenha por base a articulação entre a prática e a teoria atualizada.

Entre as boas notícias neste cenário, encontra-se a entrada cada vez maior neste campo de antropólogos com sua bagagem de conhecimento e questionamentos. Esta presença mostrou-se marcante durante o VI Congresso Internacional da Abramd com a participação em várias das atividades do evento. A presença do saber antropológico também se faz notar na composição da diretoria atual da associação. Para um médico acostumado aos trajes brancos e aos ambientes hospitalares dominados por uma visão anátomo-clínica do homem, nada melhor que conhecer os relatos de quem convive com as pessoas em situação de rua, os rituais religiosos da Amazônia e das populações indígenas do México. O saber trazido na bagagem dos antropólogos causa surpresa e curiosidade ao mostrar, de um outro ponto de vista, a experiência de pessoas que usam drogas. Mas, mais que tudo, causa inquietação pelos questionamentos das verdades cristalizadas. Neste sentido, esta entrada em campo torna concreta a proposta da Abramd de uma interlocução multidisciplinar.

A experiência daqueles que conhecem as pessoas que usam drogas nos lugares em que vivem e usam, seja na rua, nos bares, nas festas ou nos rituais da floresta, pode ser radicalmente diferente da experiência daqueles que atendem pessoas nos serviços de saúde. O contraste entre o significado das drogas nos diversos cenários é impressionante. O uso de drogas pode significar confraternização, convivência social, prazer, transcendência, mas também pode ser fonte de extremo sofrimento, desespero e ruína. Como, possivelmente, concluiriam os sábios da lenda indiana, talvez esta seja uma das razões das diferentes formas de compreender e abordar o uso de drogas. E pode ser muito interessante que os profissionais e estudiosos que conhecem apenas um lado destas experiências conheçam os “outros lados da moeda”. De fato, a existência das diversas propostas para a abordagem do uso de drogas pode ser uma consequência da multiplicidade de pontos de partida dos que refletem sobre essas questões, suas diferentes

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Marcelo Santos Cruz

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experiências, formações profissionais, inclinações teóricas, etc. Mas, mais provavelmente, a persistência de diferentes modelos e práticas é uma consequência não das características dos que teorizam, mas da diversidade das pessoas que usam drogas e das suas experiências. Assim, o caminho proposto não se trata da mera substituição de um modelo pelo outro, mas do compartilhamento de saberes e experiências para a criação de novas abordagens. Desta forma, o intercâmbio proposto pela Abramd e que este livro bem traduz, incluindo profissionais e estudiosos, pode ir além de infrutíferas polarizações e produzir novos modelos mais abrangentes e pragmáticos.

ReferênciasFuks, S. I. (2018). Un “modelo” sistémico de comprensión-acción de

dinámicas sociales: três dimensiones de las prácticas sociales transformadoras. In M. F. O. Sudbrack, M. I. G. Conceição & R. Adorno (Orgs.), Drogas e transição de paradigmas: construindo saberes e compartilhando fazeres. Brasília: Technopolitik. 555 p.

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Posfácio – Drogas: porque se impõe a Transição de Paradigma