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5/28/2018 Abreu-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/abreu-562532cec8f59 1/13  Martha Abreu Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisado- ra do CNPq. Autora, entre outros livros, de O império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. [email protected]    H    i   s    t    ó   r    i    a   s   m    u   s    i   c    a    i   s    d    a    P   r    i   m    e    i   r    a    R    e   p    ú    b    l    i   c    a    I   n   s    t   r   u   m   e   n    t   o   s   m   u   s    i   c   a    i   s  .    F   o    t   o   g   r   a    f   a    (    d   e    t   a    l    h   e    )    1    9    8    8  .

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  • Martha AbreuDoutora em Histria pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisado-ra do CNPq. Autora, entre outros livros, de O imprio do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. [email protected]

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    Nos ltimos tempos foi visvel, em publicaes, teses e dissertaes, o crescimento e a renovao dos estudos sobre a histria da msica no Bra-sil.1 Entretanto, muitas vises sobre a msica brasileira e a msica popular do final do sculo XIX e incio do XX ainda so tributrias de concepes produzidas no calor das discusses sobre a nao e a brasilidade, nos anos 1920 e 1930. Nesse texto quero chamar a ateno para essas vises e formas de avaliao sobre o passado musical que contriburam para reforar determinados julgamentos sobre a experincia cultural e poltica

    resumo

    Este artigo procura questionar verses e avaliaes sobre a histria cultural da Primeira repblica, especialmente sobre o que se entendeu como msica brasileira e msica popular brasileira no perodo. Busca demonstrar a insufi-cincia dos marcos das dcadas de 1920 e 1930 classicamente eleitas como perodos de definio do chamado nacionalismo musical e os limites das interpretaes que resumem a experincia cultural da Primeira re-pblica aos modelos importados da Belle poque e ao gosto pelo extico. Este artigo sugere, a partir de recentes pesquisas sobre a produo de msicos populares, de intelectuais da msica e de agentes da indstria cultural, outras possibilidades de investigao e compreenso da histria da msica popular no Brasil e, por extenso, da jovem Primeira repblica.palavras-chave: histria da msica brasileira; msica popular; Primeira repblica.

    abstract

    This article intends to challenge some views on the cultural history of Brazils

    First Republic, with special attention

    devoted to the popular music scene. I aim at demonstrating how inadequate the

    1920 and 1930 chronological marks are,

    despite the fact that both are classically seen as defining moments of Brazils so-

    called musical nationalist movement. I also intend to unveil the limitations of those interpretations that reduce the cultural experiences of the First Republic to the models imported from the Belle poque as well as to the experience of the exotic. Base

    on recent researches about the production of popular musicians, music intellectuals

    and agents of the culture industry, this

    article indicates other possible ways of

    investigating and coming to terms with

    the history of popular music in Brazil and,

    as a consequence, in the newly installed

    First Republic.keywords: history of Brazilian music; popular music; First Republic.

    Histrias musicais da Primeira Repblica*Martha Abreu

    * Este texto fruto de minha participao em dois semi-nrios ocorridos em 2010: a inveno de um Brasil mu-sical, 1857-1900, no Centro cultural do Banco do Brasil, e a experincia da Primeira Repblica: Brasil e Portugal, organizado pelo centro de Pesquisa e Documentao de histria contempornea do Brasil (cPDoc), da fundao getlio Vargas (fgV/rio de Ja-neiro) e pelo centro de Estudos interdisciplinares do Sculo XX (ceis 20) da Universidade de coimbra/Portugal, no rio de Janeiro. tambm faz parte de meu ps-doutoramento realizado entre 2010 e 2011 no cPDoc. Embora ele seja de mi-nha completa responsabilida-de, foram fundamentais para o argumento central as pesquisas de avelino romero Pereira, an-tonio augusto, carolina Vianna Dantas, Monica leme, tiago de Melo Dantas e luiza Mara Martins, citadas ao longo deste trabalho. agradeo ainda ao dilogo sempre presente com ngela de castro gomes, Mar-tha Ulha, Maria clementina Pereira Cunha e Hebe Mattos. thais amaral Silva, bolsista de iniciao cientfica, ajudou mui-to na localizao de referncias bibliogrficas musicais.

    1 Para alguns exemplos, ver o dossi histria & Msica Po-pular, organizado pela revista ArtCultura, v. 8, n. 13, Uberln-dia, Edufu, 2006, e o livro de Ulha, Martha, loPES, her-culano, VElloSo, Mnica P. e aBrEU, Martha (orgs.). Msica e histria no longo sculo XIX: de caldas Barbosa a Baiano. rio de Janeiro: casa de rui Barbosa (no prelo), com base em um seminrio sobre o mesmo tema, realizado em 2008.2 Ver goMES, ngela castro e aBrEU, Martha. apresentao (dossi A nova velha Rep-blica). Tempo, v. 13, n. 26, Ni-teri, Uff, 2009. Deste volume constam trabalhos que apresen-tam novas interpretaes sobre a Primeira repblica.

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    asda Primeira Repblica no Brasil, algumas vezes ainda identificada como

    Velha Repblica.2 Muitos olhares e interpretaes sobre a histria cultural da Primeira

    repblica esto comprometidos com a sentena de que s a partir de 1920 e 1930 a genuna cultura brasileira comearia a ser reconhecida Mais ainda, que s a partir destes marcos teriam surgido intelectuais verdadeiramente comprometidos com a descoberta do Brasil e um governo empenhado em elevar a cultura brasileira atravs da valorizao da msica popular e do samba em especial como gnero nacional por excelncia. tudo o que teria acontecido antes dos anos 20 e 30 seria desqualificado pelos parmetros e enfoques sacralizados a partir da.

    Espremida entre dois perodos histricos pretensamente mais bem sucedidos, a Monarquia e o Estado Novo, a Primeira republica costuma ser avaliada de uma forma negativa, pelo que no foi. Seus dirigentes po-lticos e intelectuais no teriam conseguido incorporar politicamente e cul-turalmente os setores populares, nem valorizar as coisas genuinamente nacionais, de acordo com os referenciais do Estado Novo. Evidentemente, meu objetivo no inverter os sinais de avaliao da Primeira repblica, at porque essa tarefa seria impossvel. Mas mostrar que essas vises e julgamentos sobre a jovem repblica contribuem para colocar no esqueci-mento determinados atores sociais e para estreitar a anlise de experincias e projetos no campo musical e poltico.

    Se intelectuais e governantes na Primeira repblica de fato defen-deram e incrementaram polticas excludentes, autoritrias e dentro de um gosto tido como europeu, as avaliaes sobre o perodo no podem se restringir a isso. Msicos instituto Nacional de Msica, antes da Semana de arte Moderna de 1922, investiram na construo de uma msica que iden-tificavam como brasileira.3 No incio do sculo XX intelectuais republicanos j tinham conferido ao que definiam como msica popular, o folclore ou o samba urbano, os atributos da mestiagem e da brasilidade.4 Por outro lado, msicas populares5, como lundus, maxixes e choros, afirmaram-se como gneros e negcios lucrativos, no mercado editorial e de diverses, exatamente entre o final do sculo XIX e inicio do XX.6 No precisaram das dcadas de 1920 e 1930 para serem identificadas como coisas nacionais.7

    Pretendo nesse texto, por um lado, apontar alguns aspectos e pro-blemas dessas avaliaes sobre a experincia cultural, especialmente a musical, da Primeira repblica; por outro, contribuir para reforar a tese de que este perodo musical da histria do Brasil ainda precisa ser mais estudado em seus prprios termos.8 Evidentemente, no tenho nenhuma pretenso de esgotar a discusso historiogrfica, apenas chamar a ateno para algumas questes e referenciais interpretativos sobre o perodo.

    Em torno da Belle poque

    O significado atribudo Belle poque, perodo entre o final do sculo XiX e a Primeira guerra Mundial, e ao seu intelectual tpico pode ser visto como um ponto chave para a compreenso das avaliaes sobre a Primei-ra repblica. Em produes acadmicas e didticas foi constantemente divulgada a idia de que nos primeiros tempos republicanos a busca pela modernidade europia representada pela expresso Belle poque norteou a ao e o pensamento das elites intelectualizadas e dirigentes do perodo.

    3 Sobre esses msicos, mas especialmente alberto Nepo-muceno, ver a pesquisa refe-rncia de PErEira, avelino romero. Msica, sociedade e poltica: alberto Nepomuceno e a repblica Musical. rio de Janeiro: Editora da UfrJ, 2007.4 Ver DaNtaS, carolina Vian-na. O Brasil caf com leite: mes-tiagem e identidade nacional. rio de Janeiro: casa de rui Barbosa, 2010. alis, a discus-so dos critrios de definio do nacional muito anterior aos anos 1920 e 1930. Desde a independncia, e ao longo dos sculos XiX e XX, variaram os enfoques e as temticas, inclu-sive musicais, definidoras da nao. Sobre a construo da msica brasileira no sculo XiX, ver MagalDi, christina. Music in imperial Rio de Janeiro: European culture in a tropical milieu. 2004. lanham, MD: the Scarecrow Press, e Ulha, Martha t. inventando moda: a construo da msica brasilei-ra, Ictus, Salvador, PPgMUS/UfBa, v. 8, 2007. 5 Em geral, coloquei entre aspas as expresses msica popu-lar e msica brasileira para evidenciar que so expresses e conceitos definidos e redefini-dos ao longo do tempo. 6 Ver lEME, Monica. E saram luz as novas polcas, modinhas, lundus etc.: msica popular e im-presso musical no Rio de Janeiro (1820 - 1920). tese (Doutorado em histria) PPgh/Uff, Niteri, 2006.7 Sobre a relao entre msicos modernistas, msica popular e identidade nacional nos anos de 1920 e 1930, ver traVaS-SoS, Elizabeth. Os mandarins milagrosos: arte e etnografia em Mrio de andrade. rio de Janeiro: Jorge Zahar/funarte, 1997, NaVES, Santuza. O violo azul. rio de Janeiro: Editora fundao getlio Vargas, 1998, Braga, luiz otvio rendeiro corra. A inveno da msica po-pular brasileira: de 1930 ao final do Estado Novo. tese (Doutorado em histria) PPgh/UfrJ, rio de Janeiro, 2002, e MartiNS, luiza Mara Braga. Os Oito Ba-tutas: uma orquestra melhor que a encomenda. tese (Doutorado) PPgh/Uff, Niteri, 2009. 8 registro aqui importantes ini-ciativas nesse sentido como os trabalhos de ngela de castro

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    vidas pela modernidade e pelo progresso, essas elites teriam se voltado para os valores externos e investido na europeizao dos costumes, das cidades e dos estilos artsticos, assim como teriam buscado caminhos de branqueamento da populao e das prticas culturais. a avenida central no rio de Janeiro foi considerada o smbolo mximo da Belle poque.

    Em constante litgio com as expresses populares e negras, essas elites teriam alimentado as aes repressoras das autoridades, policiais e jurdicas, e condenado o futuro do pas, caso elas tivessem vida longa. Desejavam enterrar o Brasil antigo e africano e buscar um ideal nacional imitativo das naes mais civilizadas. Seus representantes, ao defenderem cnones literrios, artsticos e musicais elitistas, ligados musica europia, no teriam conseguido associar as manifestaes populares, suas pecu-liaridades e potencialidades, identidade da nao e da arte brasileiras. Seguindo essa linha de argumentao, as manifestaes populares em geral, e musicais em particular, teriam sido amplamente desvalorizadas no perodo pelo meio intelectual.9 No mximo, as iniciativas intelectuais de valorizao de expresses populares, quando citadas e reconhecidas foram vistas como exotismos ou modismos de ocasio.

    a despeito das perseguies e projetos intelectuais modernizantes, muitos historiadores apontaram a persistncia de batuques, sambas, ma-xixes e candombls. Mas esses gneros populares acabaram ocupando o espao, historiogrfico e poltico, da resistncia.10 o binmio represso e resistncia tornou-se tambm uma possibilidade de interpretao da vida cultural e musical da Primeira repblica.11

    outro ponto chave das interpretaes sobre a Primeira repblica foi a definio dos marcos dos novos tempos. Parece existir grande con-cordncia na bibliografia em geral sobre o momento da mudana de ares em relao valorizao das expresses musicais tidas como populares e nacionais: entre a Primeira Guerra, baliza do final da Belle poque, e o ano de 1922. Pelo que pude apurar, Mario de andrade foi um dos primeiros a esboar essa cronologia, ainda no final dos anos 20. Nas palavras do autor, at na primeira dcada do sculo XX, a msica artstica brasileira mostrou um esprito subserviente de colnia.

    Perseveramos musicalmente coloniais at que a convulso de 1914, firmando o estado de esprito novo, ao mesmo tempo que dava pra todos os pases uma per-cepo por assim dizer objetiva da totalidade do universo e despertava no homem uma conscincia mais intima de Universalismo, de anacionalismo poltico: tambm evidenciava as diferenas existentes entre as raas e legitimava em todos os agru-pamentos humanos a conscincia racial. 12

    Nicolau Sevcenko, na dcada de 1980, sofisticou as dimenses des-ses marcos. articulou para o perodo aps a Primeira guerra no s a emergncia do nacionalismo, como o inicio da crise poltica da Primeira repblica, expressa pela sucesso de Venceslau Brs (1918), pela falncia do cosmopolitismo liberal, pelos conflitos sociais de 1917/1918 por parti-cipao poltica, pela Revolta do Forte de Copacabana, e, finalmente, pela Semana de arte de 1922.13

    arnaldo contier, referncia fundamental para os interessados no pensamento musical dos intelectuais modernistas, especialmente Mario de andrade, reforou mais recentemente, em texto de 2004, os marcos dos

    gomes, amrico freire e Mar-celo S. Magalhes dentro do campo da histria poltica, e de Eliana de freitas Dutra, Maria clementina Pereira cunha e Leonardo Affonso de Miranda Pereira, no campo da histria cultural. No campo da histria social, destaco as preocupaes de Hebe Mattos e Ana Lugo Rios com a reflexo sobre as es-pecificidades do Ps-Abolio.

    9 como exemplos consagrados dessa perspectiva na historia cultural, ver SEVcENKo, Ni-colau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cul-tural na Primeira repblica. So Paulo: Brasiliense, 1983, NEEDELL, Jeffrey. Belle poque tropical. So Paulo: companhia das letras, 1993 [1 edio, 1987], especialmente p. 67-73, VElloSo, Mnica Pimenta. Tradies populares na primeira dcada do sculo 20. rio de Janei-ro: funarte, 1988. Em trabalho que realizei na dcada de 1980, tambm defendi essa perspec-tiva; ver EStEVES, Martha de abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no rio de Janeiro da Belle poque, rio de Janeiro: Paz e terra, 1989. 10 Ver SoihEt, rachel. A sub-verso pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle poque ao tempo de Vargas. rio de Janeiro: Editora fundao getulio Vargas, 1998.11 Para uma crtica dessa pers-pectiva, ver cUNha, Maria clementina Pereira. Carnaval e outras f(r)estas: ensaios de hist-ria social da cultura. campinas: Editora da Unicamp, 2002.12 aNDraDE, Mrio. Compn-dio de historia da msica. So Paulo: o. g. Eugnio cupolo, 1929, p. 151. No Ensaio sobre a msica brasileira, de 1928, essa perspectiva tambm est presente.13 SEVcENKo, Nicolau. as faces ocultas da i repblica: modos de representao do ne-gro na literatura. Revista TB, rio de Janeiro, 95, 1988, p.133 e 134.

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    asnovos tempos de valorizao das coisas nacionais e populares. Para

    o autor, depois de influenciados por artistas estrangeiros, como Darius Milhaud e Arthur Rubinstein, que estiveram no Brasil entre o final da Pri-meira guerra e 1922, os msicos brasileiros do porte de heitor Villa-lobos, alberto Nepomuceno e luciano gallet descobririam um novo Brasil fortemente ligado ao chamado primitivismo musical, tendncia agora bastante valorizada na moderna Paris e oposta aos chamados gostos da Belle poque. Paralelamente, segundo contier, durante os anos de 1910 e 1920,

    com o surgimento dos cinemas, dos dancings, cafs, cabars, os chores (em geral, negros e despossudos sociais) passaram a se exibir em conjuntos musicais nesses os novos espaos considerados civilizados pelas elites dominantes... E os sons emitidos pelos instrumentos tocados pelos chores passaram a emocionar os artistas eruditos da poca: Heitor Villa-Lobos, Alberto Nepomuceno, Luciano Gallet, Darius Milhaud, Arthur Rubinstein, que descobriram um novo Brasil fortemente ligado ao chamado primitivismo musical . 14

    Essa (re)descoberta do Brasil, como j sabemos, seria o motor de ao e propaganda dos intelectuais do chamado movimento modernista de 1922, crticos ferrenhos de um suposto projeto cultural da Belle poque, ca-rioca e paulistana, e vidos construtores de uma cultura musical entendida como nacional. A crtica dos modernistas Velha Republica musical, em torno do carter excludente e no nacional do gosto e da produo musical das elites, teve vida longa e muitos desdobramentos nas interpretaes de historiadores sobre o primeiro perodo republicano. Entre esses desdobra-mentos, vrios msicos e gneros musicais foram esquecidos, preteridos ou no analisados em seus prprios termos.15

    apesar de ter reforado a periodizao iniciada por Mrio de andra-de, Arnaldo Contier identificou criticamente a impressionante autoridade de suas definies e marcos sobre o passado musical brasileiro. Certamen-te, pesou a atuao de Mrio como professor de histria (da Msica) do conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo e como crtico musical afiado entre 1919 e 1945. As avaliaes de Mrio de Andrade, comprome-tidas com os critrios de nacionalizao da msica (artstica e popular) brasileira, mesmo que muitas vezes subjetivos, autoritrios e oscilantes, influenciaram a viso de geraes de compositores, professores e intr-pretes, at quase os dias de hoje.16. Em feliz expresso, Contier afirma que o Ensaio sobre a msica brasileira, de 1928, teria sido uma verdadeira Bblia dos compositores nacionalistas brasileiros ao longo do sculo XX.17

    como sabemos, a partir dos anos de 1930 a crtica dos modernistas ganhou novas e poderosas dimenses. criou razes e respaldou a poltica cultural dos idelogos do Estado Novo, que conseguiram trazer para si os mritos da criao de um pas de todos.18 Um pas unificado politicamen-te e culturalmente, atravs dos investimentos na construo de um povo mestio e de uma msica tida como verdadeiramente brasileira, onde o folclore e a msica popular ocupariam importante papel.

    Em torno do nacional

    a viso de ruptura com o passado cultural da Primeira repblica bem ntida nas obras de intelectuais que procuram analisar o universo

    14 coNtiEr, arnaldo Daraya. o nacional na msica erudita brasileira: Mrio de andrade e a questo da identidade cultu-ral. ArtCultura, n. 9, Uberln-dia, Edufu, 2004, p. 70.15 Para o papel dos modernistas de 1922 nas avaliaes liter-rias, ver PErEira, leonardo a. de M. literatura em movimen-to: coelho Neto e o pblico das ruas. In: chalhoUB, Sidney, NEVES, Margarida e PErEira, leonardo. a. M. (orgs.). Hist-rias em cousas midas. campi-nas: Editora da Unicamp, 2005, e VElloSo, Mnica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. rio de Janeiro: Editora funda-o getulio Vargas, 1996.16 coNtiEr, arnaldo D. o en-saio sobre a msica brasileira: estudo dos matizes ideolgicos do vocabulrio social e tcnico-esttico (Mrio de andrade, 1928). Revista Msica, v. 6, n. 1/2. So Paulo, USP, maio-nov. 1996, p. 77, 78 e 108.17 Idem,ibidem, p. 86.18 Ver goMES, ngela de cas-tro. cultura poltica e cultura histrica no Estado Novo. In: aBrEU Martha, goNtiJo, rebeca e SoihEt, rachel. Cul-tura poltica e leituras do passado: historiografia e ensino de hist-ria. rio de Janeiro: civilizao Brasileira, 2007. Ver tambm NogUEira, antonio gilberto ramos. Por um inventrio dos sentidos: Mrio de andrade e a concepo de patrimnio e inventrio. So Paulo: hucitec/ fapesp, 2005.

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    musical intelectual a partir das dcadas de 1920 e 1930, como renato al-meida e Mrio de andrade.19 Esses autores, lideranas do modernismo de 1922, procuraram construir historias da msica brasileira e marcaram a fase em que viviam como despertar de uma msica brasileira, no caso de renato almeida20, e perodo nacionalista, no caso de Mrio.21 o marco do nacionalismo musical, diretamente associado tomada de conscincia do compositor em relao ao que entendiam como o correto aproveita-mento das fontes folclricas do povo brasileiro, se tornaria o elemento de avaliao e balana de todas as msicas e msicos do passado e do presente. Evidentemente, os msicos intelectuais da Primeira repblica foram enquadrados no perfil das produes da Belle poque.

    Mrio de andrade, em Msica no Brasil, de 1941, reconheceu que Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno, entre o final do sculo XIX e incio do XX, tentaram a nacionalizao musical por meio da temtica popular. Mas de forma deficiente. Foram mesmo profetas do que viria depois, for-mando, nas palavras de Mrio, o tronco tradicional da rvore genealgica da nacionalidade musical brasileira.22

    renato almeida, por sua vez, em Histria da msica brasileira, pu-blicada em 1942, chegou a reconhecer que no final do sculo XIX, desde Carlos Gomes, apareceram msicos influentes que demonstraram alguma inclinao por tendncias nacionalistas, buscando em elementos brasileiros a sua inspirao e procurando ouvir as vozes da terra, atravs de temas populares. Outros se mantiveram dentro do clima europeu, embora tenham chegado mais tarde a procurar nacionalizar a sua msica, sentindo nesta orientao o verdadeiro destino de sua prpria funo artstica. Mas foi taxativo ao afirmar que o nacionalismo da musica s se manifestou de modo claro, com os compositores modernos.23 a orientao segura e marcada para a musica brasileira s trouxeram os modernos, os artistas vindos depois de 1922, de quando data o esforo resoluto criador de uma msica brasileira.24

    como j alertou avelino romero Pereira, Mrio de andrade e renato almeida expressaram uma operao memorial, seletiva e poltica, ao elege-rem alguns poucos msicos e criticarem a maioria deles, condenando-os, pelo peso de suas avaliaes, ao esquecimento posterior.25 Para o caso da msica erudita, alexandre levy e alberto Nepomuceno teriam mostra-do poucos traos nacionalistas. No mximo, teriam aberto a aurora da msica brasileira.26 leopoldo Miguez e henrique oswald, por sua vez, tidos como de menor expresso, como salientou Arnaldo Contier, foram reconhecidos por apresentarem em suas obras alguns ndices exticos (ritmos sincopados e melodias indgenas).27 o msico itiber da cunha foi o que teve mais sorte, embora tambm tenha sido visto como um marco embrionrio do nacionalismo musical.

    alguns msicos do imprio, ligados ao conservatrio de Msica e envolvidos com o mundo comercial do teatro e com a msica popular, entre a segunda metade do sculo XiX e o incio do sculo XX, como henrique alves Mesquita e cavalier Darbelly, chegaram a ser citados por renato almeida e Mario de andrade. Mas foram lembrados apenas pela sua ha-bilidade tcnica musical.28 Nenhum destaque lhes foi atribudo pelas suas articulaes e preocupaes com as temticas populares e nacionais de sua prpria poca. alves Mesquita e cavalier Darbelly, como vrios msicos artsticos do final do sculo XIX e incio do XX, so at hoje pouco

    19 No vou abordar neste artigo as relaes de Mario de an-drade e renato almeida com o Estado Novo. localizei apenas um trecho nos textos de Mrio onde aproxima a valorizao do nacionalismo nas artes com a poltica nacionalista do Estado Novo: como os movi-mentos do esprito precedem as manifestaes das outras formas da sociedade, fcil de perceber a mesma tendncia de liberdade e conquista de expresso prpria tanto na imposio do verso-livre antes de 30, como na marcha para o Oeste, posterior a 30; tanto na Bagaceira, no Estrangeiro, na Negra Ful, anteriores a 30, como no caso de itabira e a nacionalizao das indstrias pesadas, posteriores a 30. AN-DraDE, Mrio. o movimento modernista (1942). In: Temas Brasileiros. rio de Janeiro: casa do Estudante do Brasil, 1968, p. 64. Em outro trecho, entretanto, de 1941, considerou falso dar os mritos da nova fase da nossa msica ao momento poltico ps 30. aNDraDE, Mario. Msica do Brasil. curitiba/So Paulo/rio de Janeiro: guair, 1941, p. 30. Sobre renato al-meida, no localizei avaliaes explcitas sobre a relao da valorizao da msica bra-sileira com o Estado Novo. renato almeida, contudo, trabalhou no Ministrio das relaes Exteriores de 1927 a 1961, em importantes funes polticas e culturais.20 as duas verses da Histria da msica brasileira de renato almeida, de 1926 e de 1942, esta ltima bem ampliada, estabe-lecem como marco de ruptura o esprito moderno na msica e o despertar de uma msica brasileira depois da guerra de 1914/1918. Uma anlise desses autores pode ser encontrada em Braga, luiz otavio r. c, op. cit., cap. 3. 21 Mario de andrade escreveu muitos trabalhos sobre a m-sica no Brasil e sua histria. trabalhei mais sistematica-mente com Ensaio sobre a msica brasileira, de 1928, Compndio de historia da musica, de 1929, e Msica do Brasil, de 1941. as expresses nacionalismo mu-sical e perodo nacionalista podem ser encontradas em tex-tos das dcadas de 1920 e 1940.22 aNDraDE, Mario, Msica do Brasil, op. cit., 1941, p. 30.

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    asconhecidos. Em sua poca, entretanto, como analisou antonio augusto,

    alcanaram reconhecimento de pblico e ensejaram muitas polmicas por suas criaes de lundus e de um amplo repertrio para o teatro musicado, em dilogo estreito com a msica popular das ruas, com expresses ligadas populao negra e com o que ento se divulgava como nacional. 29

    A desqualificao dos msicos anteriores como pretensamente no preocupados com as coisas da terra acompanhou de perto avaliaes e disputas sobre os significados dos perodos histricos passados e sobre os projetos futuros musicais para o pas, especialmente no caso de Mario de andrade. Em Compndio de historia da musica, de 1929, Mrio avaliou que o Segundo imprio foi talvez o perodo de maior brilho exterior da vida musical brasileira. A decadncia teria vindo com a Repblica, quando apenas foram registradas tentativas espordicas e individuais de alguns msicos. Dentre outros motivos para a decadncia da msica artstica, destacou os defasados repertrios opersticos e de musicas para concertos, ao lado da presena de uma elite que era abalisadamente e cuidadosamente inculta e boceja diante da Arte.30

    renato almeida, um pouco antes, em 1926, havia feito menos crticas repblica Musical que Mario de andrade. chegou mesmo a reconhecer a importncia do instituto Nacional de Msica, que substitui o conservatrio imperial logo depois da Proclamao da repblica, e os investimentos de seu primeiro diretor, leopoldo Miguez. Mas deixou evidente que a fun-o cultural do Instituto poderia ter sido mais eficiente e decisiva.31.Para o autor, s a partir da dcada de 1920 a msica no Brasil se libertava, buscando harmonizar as vozes da terra... para criao de uma arte autnoma, que traduza todas as nsias do esprito moderno brasileiro.32

    algum tempo depois, em 1942, renato no havia mudado sua inter-pretao sobre a vida musical do inicio da repblica e, embora descrevesse com muito mais detalhes e empolgao a vida musical do imprio, reco-nheceu o desenvolvimento da cultura musical no final do sculo XIX e incio do XX. Seu objetivo, entretanto, era reforar o sentido preparatrio do perodo inicial da repblica. o maior valor do interesse pela msica na Primeira repblica estava menos no impacto que causava nas geraes futuras, e mais na certeza da existncia prvia do temperamento artstico de um pas, etapa fundamental para a criao da msica brasileira ao gosto dos modernistas.33

    Para demonstrar com tintas mais fortes as disputas memoriais pelos marcos temporais de valorizao da pretensa msica brasileira, o livro de guilherme de Mello, a msica no Brasil: desde os tempos coloniais at o primeiro decnio da Repblica, exemplar. As idias do autor sobre a situao da msica no Brasil nos permitem estabelecer contrastes importan-tes com as histrias produzidas por renato almeida e Mrio de andrade posteriormente.

    Bibliotecrio do instituto Nacional de Msica, e auto denominando-se professor de msica, guilherme de Mello, em 1908, reconheceu, em termos entusiasmados e at ufanistas, que realizou o livro... com o desejo ardente de mostrar-vos com provas exuberantes, de que no somos um povo sem arte e sem literatura, como geralmente dizem, e que pelo menos a msica no Brasil tem feio caracterstica e inteiramente nacional.34

    Para guilherme de Mello o perodo de decadncia da msica no Brasil no era a Repblica. A degradao da msica brasileira teria

    23 alMEiDa, renato. Historia da msica brasileira. rio de Ja-neiro: f. Briguiet, 1942, p. 392. 24 Idem, ibidem, p. 423.25 Sobre esse enquadramento, avelino romero em trabalho fundamental sobre a repblica Musical demonstra como al-berto Nepomuceno foi apenas lembrado pelo vis de precur-sor do nacionalismo e como os modernistas trouxeram para si a impresso de uma ruptura musical herica. Para o autor, desmistificando essa ruptura, os modernistas no deixaram de beber nas fontes abertas pelas geraes anteriores. roMEro, Msica, sociedade e poltica. rio de Janeiro: Editora da UfrJ, 2007, p. 22.26 alMEiDa, renato. Histria da Msica, op. cit., 1942 p. 423.27 coNtiEr, arnaldo D. Msica e ideologia no Brasil. So Paulo: Novas Metas, 1978, p. 42.28 Ver alMEiDa, renato. His-toria da Musica, op. cit., 1942, p. 409, e aNDraDE, Mrio. Compndio de histria da msica, op. cit., p. 176.29 Sobre as relaes entre esses msicos e a msica popular, ver o importante trabalho de aUgUSto, antonio. A questo Cavalier: msica e sociedade no Imprio e na Repblica 1816-1914. rio de Janeiro: folha Seca, 2011. antonio augusto recons-tri a histria de um gnero de teatro musicado ligeiro, conhe-cido como mgicas, que fazia enorme sucesso de pblico na segunda metade do sculo XiX e inicio do XX. Sobre os poucos conhecidos espetculos de m-gica, ver frEirE, Vanda B. O mundo maravilhoso das mgicas. rio de Janeiro: contra capa/faperj, 2011. Para a presena de gneros afro-brasileiros nos palcos musicados, como os jon-gos e caterets, ver MagalDi, cristina, op. cit., cap. 4, e SoU-Za, Silvia cristina Martins. Que venham negros cena com maracas e tambores: jongo, po-ltica e teatro musicado no rio de Janeiro das ltimas dcadas do sculo XiX. Afro-sia, v. 40, Salvador, 2010. 30 Apud coNtiEr, arnaldo, o ensaio sobre a msica brasilei-ra, op. cit., p. 93. 31 alMEiDa, renato. Histria da msica brasileira, op. cit., 1926, p. 216.

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    acontecido no perodo aps a guerra do Paraguai, quando as modinhas nacionais teriam sido substitudas pelas mpias e indecentes canonetas italianas nas revistas teatrais e cafs danantes. O prprio conservatrio, criado por francisco Manoel da Silva, no obstante ter produzido artis-tas como carlos gomes, henrique alves de Mesquita, cavalier Darbelly e outros (exatamente os quase esquecidos de Mario de andrade e renato almeida), decai de sua gloria, depois de rebaixado a uma simples seo da Academia de Belas Artes.

    Para o autor, com a repblica que a arte nacional reivindica todo o seu passado de gloria e inicia uma nova poca que bem poderamos denominar perodo de nativismo. Na monarquia, que s tinha valor o que era estrangeiro. hoje a repblica aboliu todos os ttulos de nobreza... substituindo-os pelos de igualdade e fraternidade: o sentimento das cousas ptrias j se vai acentuando e tendo valor tudo quanto nacional. 35

    guilherme de Mello demonstra e refora a possibilidade de existncia de outros marcos e de outras interpretaes sobre a histria da Msica no Brasil, entre o final do sculo XIX e inicio do XX. Para o autor, era com patriotismo que se ouviam na jovem repblica, em portugus, as peras de leopoldo Miguez, Nepomuceno e outros; o nacionalismo despontava no assunto musical e literrio.36

    Em torno do exotismo a construo da nao atravs de uma msica que expressasse os

    sons do povo brasileiro e as vozes da terra, na dcada de 1920, envolveu no s uma oposio ao que se definia como gosto europeu, mas tambm aos limites e distores de uma msica qualificada como regional ou extica. A qualificao de exotismo musical (ou msica extica) tornou-se, desde ento, outro atributo de hierarquizao de msicas e msicos que no alcanaram o esprito do nacionalismo defendido pelos crticos modernos de 1922.

    De acordo com arnaldo contier, o chamado exotismo era criticado pelos modernistas nacionalistas, pois poderia implodir a singularidade da sonhada nao brasileira.37 a utilizao de elementos da cultura negra, por exemplo, numa obra musical, poderia representar a frica, e, consequente-mente, outra nao. Poderia tornar-se um corpo estranho brasilidade ou algo estereotipado, como a presena indgena em certas msicas parecia indicar. inclusive o exotismo chegou a ser visto como algo perigoso, pelas ameaas integridade da nao.

    Pouco consistente teoricamente, o exotismo assim como o regio-nalismo foi usado de uma forma subjetiva e poltica, pelos chamados modernistas de 1922, como uma espcie de acusao de falso nacionalismo para expresses musicais do passado. No fundo, considerar extica uma determinada obra musical ou um msico parece mais uma desqualificao para o que se entendia nos primeiros tempos republicanos como coisas nacionais e populares.

    Assim, preciso desconfiar do atributo de exotismo como defini-o de uma obra musical e passar a analisar o campo musical, erudito ou popular, em qualquer poca, como local dos conflitos culturais e polticos. Em meio a muitas disputas musicais, estavam no centro do debate da Pri-meira Republica diferentes concepes do que se procurava definir como

    32 Idem, ibidem, p. 22033 Idem, ibidem, 1942, p. 420. 34 MEllo, guilherme theodo-ro Pereira. A msica no Brasil. Bahia: Tipografia S. Joaquim, 1908, nota ao leitor, 1. p.35 Idem, ibidem, p. 297. 36 Ver PErEira, avelino r. op. cit., p. 24. 37 Ver coNtiEr, arnaldo D. o nacional na msica erudita brasileira, op. cit. Sobre as po-lmicas do exotismo no per-odo imperial, ver MagalDi, christina, op. cit.38 Ver PErEira, avelino r. op. cit., cUNha, Maria clementina P. Ecos da folia: uma histria social do carnaval carioca. So Paulo, companhia das letras, 2001.39 coNtiEr, arnaldo D. Msica e ideologia, op. cit., p. 42. 40 Para uma anlise de Mrio de andrade sobre os msicos modernistas, especialmente francisco Mignone, ver coN-tiEr, arnaldo Daraya. chico Boror Mignone. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 42, 1997. Neste artigo con-tier demonstra como histria da msica nacional erudita no Brasil, aps 1920, construda a partir da memria de Mario de andrade, foi apropriada sem crtica pelos historiadores da msica brasileira posteriores, como luiz heitor correa da azevedo, Vasco Mariz e Bruno Kiefer. Essa operao significa contribuir para o esquecimento total da obra de francisco Mig-none (p. 29).

    41 Essa perspectiva pode ser encontrada em trabalhos como o de tiNhorao, Jos ra-mos. Pequena histria da msica, Petrpolis: Vozes, 1978, SE-VcENKo, Nicolau. Literatura como misso, op. cit., ViaNNa, hermano O mistrio do samba. rio de Janeiro: Jorge Zahar, Editora UfrJ, 1995, e NaVES, Santuza cambraia, op. cit. 42 Uma importante anlise da indstria fonografia na Primei-ra repblica encontra-se em ViEira, caroline. Ningum escapa do feitio: msica popu-lar carioca, afro-religiosidades e mundo da fonografia. Dissertao (Mestrado) UErJ/ faculdade de formao de Professores, So gonalo, 2010. 43 Ver MartiNS, luiza Mara Braga, op. cit. Os Oito Batu-

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    asmsica popular e msica brasileira; diversas expresses musicais e

    festivas selecionveis, ou no, para smbolos de civilidade, nacionalidade e/ou regionalidade, como j mostraram Maria clementina P. cunha e avelino Pereira.38

    Para os crticos musicais modernistas, leopoldo Miguez e henrique Oswald, msicos da Primeira Repblica, tiveram suas obras qualificadas como portadoras de alguns ndices exticos.39 at mesmo alguns contem-porneos de Mario de andrade, considerados as melhores esperanas da msica brasileira, dentre eles francisco Mignone, luciano gallet e heitor Villa lobos, no escaparam de apreciaes que indicavam a presena do exotismo em algumas de suas obras. Nem todos os msicos modernistas pareciam pensar ou compor da mesma forma; tambm no parecia fcil atender a todas as exigncias nacionalistas dos anos de 1920 e 1930.40

    Parte das disputas entre intelectuais ligados construo da musica brasileira a partir da dcada de 1920, o exotismo passou a ser utilizado pela historiografia das prticas culturais no Brasil de uma forma ampla, qualificando qualquer interesse pelo popular e nacional na Primeira Repblica. Pelo que pude identificar, o exotismo chegou a ser definido como uma espcie de onda, ou moda europia, que teria invadido a cidade do rio de Janeiro e outras capitais do Brasil, a partir do incio do sculo XX.41 Essa moda pelas coisas exticas explicaria (e ao mesmo tempo desqualificaria) a presena de expresses culturais identificadas como populares, folclricas, regionais, sertanejas ou negras, e sua incorporao em obras literrias, teatrais e musicais do perodo cronolgico da chamada de Belle poque.

    com a chave de interpretao do exotismo, e por extenso da Belle poque, difcil buscar outros sentidos, antes da Primeira guerra Mundial, para o sucesso de expresses musicais e festivas populares. Com as len-tes do exotismo, descarta-se uma viso que busque entender as selees de msicas populares gravadas e vendidas pelas Casas Edison, desde o incio do sculo XX42; ou de grupos musicais que procuravam forjar o estilo sertanejo e regional.43 tambm no se consegue perceber a presena de jornalistas que negociavam em suas crnicas a existncia possvel do Carnaval de negros, mulatos e brancos pobres.44 Como qualificar o su-cesso da toada Cabocla de Caxang, no carnaval de 1913, e dos grupos de chores descritos por alexandre gonalves Pinto45? ou os consertos de catulo da Paixo cearense em casas de intelectuais, como Mello Moraes filho e rui Barbosa, e no instituto Nacional de Msica, patrocinado pelo maestro alberto Nepomuceno46?

    com o atributo de exotismo, tambm no se procura entender, em seus prprios termos, a presena do pblico dos teatros de revista interes-sado em gneros musicais nacionais.47 Muito menos a expressiva venda-gem de partituras e de livros de catulo da Paixo cearense, Eduardo das Neves e de muitos outros autores folcloristas que, at mesmo no ttulo de suas obras, revelavam o interesse pelas coisas do Brasil, pela mestiagem e pela divulgao do que entendiam por msica popular brasileira. Na chamada Belle poque, o mercado editorial e fonogrfico da cidade do Rio de Janeiro, oferecia, respectivamente, livros com coletneas de canes populares, identificadas como brasileiras48, e discos com modinhas, choros e lundus. o variado pblico das cidades, antes das ondas do rdio e da poltica cultural do Estado Novo, j parecia estar disposto a ouvir

    tas: uma orquestra melhor que a encomenda: histria e msica brasileira nos anos 1920. tese (Doutorado em histria) PPgh/Uff, Niteri, 2009.44 coUtiNho, Eduardo gran-ja. Os cronista de Momo: impren-sa e carnaval na Primeira rep-blica. rio de Janeiro: Editora. UfrJ, 2006.45 Ver Braga, luiz otavio rendeiro corra., op. cit., p. 195-221.46 Sobre catulo, ver fErliM, Uliana Dias campos. A polifo-nia das modinhas: diversidade e tenses musicais no Rio de Janeiro na passagem do sculo XIX ao XX. Dissertao (Mestrado em histria) ifch/Unicamp, campinas, 2005, e carVa-lho, Mrcio gonalves. Catulo da Paixo Cearense: memrias e histrias de msicos populares no Rio de Janeiro do final do sculo XIX e incio do XX. Dissertao ( Mestrado em histria) PPgh/Uff, Niteri, 2006.47 Para uma renovada produo historiogrfica sobre o teatro no rio de Janeiro, ver goMES, tiago de Melo. Um espelho no palco: identidades culturais e massificao da cultura no tea-tro de revista dos anos 20. cam-pinas: Editora da Unicamp, 2004, loPES, herculano lopes. Vem c, mulata! Tempo, v. 13, Niter, Uff, 2009, SoUZa, cristina Martins. Carpinteiros teatrais, cenas cmicas e diversi-dade cultural no Rio de Janeiro oitocentista: ensaios de histria social da cultura. londrina: Eduel, 2010, e MarZaNo, andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o rio de Janeiro (1839-1892). rio de Janeiro: folha Seca, 2008. 48 Vrias coletneas de canes, editadas principalmente no rio de Janeiro, publicavam dezenas de canes e chegavam a atingir quinze edies! Ver lEME, Mnica, op. cit.49 Ver aBrEU, Martha e Mar-ZaNo, andrea. Entre palcos e msicas: caminhos de cida-dania no incio da repblica. In: carValho, Jos Murilo e NEVES, lucia (orgs.). Repensan-do o Brasil dos Oitocentos: cida-dania, poltica e liberdade. rio de Janeiro: civilizao Brasileira, 2009. ao destacar a presena de msicas e produes literrias preocupadas com a ptria, com o nacional e com o popular na Belle poque no pretendo defender a famosa tese de hermano Vianna sobre a hist-rica e tradicional relao entre populares e setores eruditos na sociedade brasileira para expli-car o sucesso do samba como ritmo nacional aps 1930. Meu

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    msicas e poesias sobre temas nacionais, populares e patriticos; ou a transformar o campo musical em canal de discusso e crtica dos problemas polticos da jovem repblica.49

    Para o caso de minha pesquisa sobre msicos populares, especialmen-te os tocadores de lundus, modinhas, choros, maxixes e gneros regionais, tambm no podemos explic-los apenas a partir da moda do gosto pelo extico (um olhar europeu sobre as cores locais), ou da voga cientfica europia de interesse pelo etnogrfico. A produo dos msicos populares e negros relaciona-se com a prpria dinmica das expresses populares em busca de afirmao diante de diferentes pblicos, num mercado cultural em grande expanso.50 certamente, os msicos populares no precisavam esperar intelectuais de peso, como os modernistas de 1922, para ganharem projeo e pblico, ou para terem reconhecidos seus talentos e expresses como brasileiras. Tinham projeo nas festas populares, nos teatros, no mercado editorial e na indstria fonogrfica que dava ento passos impor-tantes.51 As idias de uma msica popular e de uma msica brasileira j circulavam e eram discutidas em diversos ambientes.

    Ao lado da msica popular, no foram poucos os investimentos que intelectuais da Belle poque realizaram em torno do folclore. Em meio a polticas de branqueamento da populao e de teorias sobre a degenerao e a inferioridade das populaes miscigenadas, muito presentes nos textos de literatos, mdicos, juristas e polticos imigrantistas52, o folclore nacional, centrado nas festas, poesia e cano popular, tornaram-se bandeiras de intelectuais que investiam na descoberta e divulgao de manifestaes culturais mestias. Mesmo que reproduzindo mximas apregoadas sobre a raa negra, mesmo que investindo na certeza da transformao dos traos musicais africanos e na escolha de determinados gneros como os mais nacionais, no desprezaram a contribuio dos seus descendentes para o que estavam definindo como trao original da cultura brasileira. A produo de folcloristas, entre o final do sculo XIX e XX, tambm criou um espao que reconhecia e valorizava a presena ativa dos descendentes de africanos na nao (republicana) projetada.

    Nomes como os de Mello Moraes filho, francisco Jos de Santaanna Nery, rodrigues de carvalho, francisco Pereira da costa, alexina de Maga-lhes Pinto, guilherme de Mello e Julia Brito Mendes s mais recentemente tm recebido ateno.53 ligados ao mundo rural, no deixaram de valorizar a msica popular urbana e seus registros foram editados e vendidos na cidade do rio de Janeiro, atravs de editoras e revistas de prestgio, como a Editora garnier e a revista Kosmos. as motivaes de folcloristas tambm no podem se resumir ao gosto pelo que era extico: relacionam-se com seus projetos polticos de construo da repblica e avaliao seletiva do papel dos descendentes de africanos e da mestiagem para os prognsticos nesse caso, at mesmo otimistas da nao.54

    Um pouco de msica popular

    Permanece muito forte, mesmo em trabalhos mais recentes, a idia de que a dcada de 1930 inaugurou, nos marcos da poltica cultural de Var-gas e das ondas do radio, um perodo de valorizao da msica popular brasileira, agora mais centralizado no samba (ou nos sambas?). Ao lado dos modernistas de 1922, o governo Vargas, desde 1930, representaria, na

    objetivo reforar a necessida-de de se entender a presena do popular e do nacional na Primeira repblica, em seus prprios termos. Para uma ti-ma crtica ao livro de hermano Vianna, O mistrio do samba, op. cit., ver goMES, tiago de Melo. Revista Brasileira de Histria, v. 21, n. 42, So Paulo, anpuh/humanitas, cNPq, 2001.50 Eduardo das Neves, um dos esquecidos msicos de lundu, manifestou em suas letras e canes gravadas apoio repblica e aos heris repu-blicanos. Suas canes, se no eram nacionalistas nos moldes modernistas, expressavam vi-vamente uma verso popular do patriotismo republicano. Ver aBrEU, Martha, o crioulo Dudu: participao poltica e identidade negra nas histrias de um msico cantor (1890-1920). Topoi, v. 11, n. 20, rio de Janeiro, UfrJ, 2010. Uma anli-se pioneira de letras de sambas da Primeira repblica pode ser encontra em rocha, oswal-do Porto. A era das demolies, cidade do rio de Janeiro 1870-1920. rio de Janeiro: Secretaria Municipal de cultura/Departa-mento geral de Documentao e informao cultural/Diviso de Editorao, 1986.51 Sobre a seleo de determi-nadas expresses musicais e festivas populares como marcas da identidade nacional brasileira na segunda metade do sculo XiX e incio do XX, ver aBrEU, Martha. O imprio do divino: festas religiosas e cultura popular no rio de Ja-neiro, 1830-1900. rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999, cUNha, Maria clementina Pereira. Ecos da folia, op. cit., e PErEira, Leonardo Affonso de Miran-da. Carnaval das letras. rio de Janeiro: Secretaria Municipal de cultura, 1994.52 Ver oliVEira, lucia lippi. A questo nacional na Primeira Repblica. So Paulo: Brasiliense, 1990, p. 191, SchWarcZ, lilia K. M. Usos e abusos da mesti-agem e da raa no Brasil: uma histria das teorias raciais em finais do sculo XIX. Afro-Asia, n. 18, Salvador, UfBa, 1996.53 cristina Betioli ribeiro de-monstrou o quanto o folclore no era uma temtica nova no alvorecer da repblica. a partir da produo de autores, como Juvenal galeno, Jos de alencar, celso de Magalhes, franklin tvora, Joo Barboza rodrigues, Vale cabral, Joo alfredo de freitas, araripe Jr, Julio campina, dentre outros, realizou um significativo in-ventrio do movimento das discusses e teorizaes a res-

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    aspeito do povo, seus hbitos e

    produes orais na segunda metade do sculo XiX. Ver ri-BEiro, cristina Betioli. O Nor-te, um lugar para a nacionalidade. Dissertao (Mestrado) iEl/Unicamp, campinas, 2003. a expressiva atuao de intelec-tuais do Norte e Nordeste na produo sobre o folclore no Brasil, num movimento que parte da periferia para o centro, das provncias para a capital, pode ser encontrado em Ma-toS, claudia Neiva. Poesia popular e literatura nacional, os incios da pesquisa folclrica no Brasil e a contribuio de Silvio romero. Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, n. 28, rio de Janeiro, iphan, 1999. 54 aBrEU, Martha e DaNtaS, carolina Vianna. Msica popu-lar, folclore e nao no Brasil, 1890-1920. In: carValho, Jos Murilo de carvalho. Nao e cida-dania no Imprio: novos horizon-tes. rio de Janeiro: record, 2007.55 hermano Vianna conclui que a vitria do samba como ritmo nacional relacionava-se vitria de um projeto de nacionalizao, identificado com os objetivos do Estado Novo. o Brasil teria sado do Estado Novo com o elogio (pelo menos em ideologia) da mestiagem nacional, a cia. Siderrgica Nacional, o con-selho Nacional de Petrleo, partidos polticos nacionais, um ritmo nacional.... VIAN-Na, hermano, op .cit., p. 127. Ver tambm cUNha, fabiana lopes. Da marginalidade ao es-trelato: o samba na construo da nacionalidade (1917 1945). So Paulo: annaBlume, 2004. 56 QUiNtEro-riVEra, Ma-reia. A cor e o som da nao: a idia de mestiagem musical do Caribe hispnico e do Brasil (1928-1948), So Paulo: annablume/fapesp, 2000, p.202 e 203.57 Por outro lado, se o apoio dos rgos culturais e polticos do Estado Novo valorizaram expresses culturais populares, no se pode esquecer que as operaes de escolha do que seria o verdadeiro popular e nacional nunca deixaram de ser seletivas e de envolver uma boa dose de perseguio, represso ou de censura aos candombls, s organizaes de lazer populares e s letras de samba. Mrio de andrade inclusive reclamava da perse-guio aos xangs, maracatus e bois no nordeste na poca do Estado Novo. Ver SaNDroNi, carlos. Feitio decente: trans-formaes do samba no rio de Janeiro (1917-1933). rio de Janeiro: Jorge Zahar, Editora UfrJ, 2001, p. 113

    memria nacional, um momento de ruptura do passado cultural e musical brasileiro.55 alguns historiadores chegaram a sugerir que a realizao desse projeto cultural estaria ligado emergncia dos autoritarismos populistas no Brasil e na amrica latina. a msica poderia expressar nesses regimes a conciliao de classes e a integrao nacional.56

    A exaltao da msica popular e do(s) samba(s) como msica ge-nuinamente nacional, a partir dos anos 1930, relaciona-se evidentemente com a incessante estratgia poltica getulista de oficializar esse gnero.57 como demonstrou adalberto Paranhos, realizaram-se apresentaes p-blicas de artistas nacionais em eventos bastante divulgados, como o Dia da Msica Popular e a Noite da Msica Popular. Cantores renomados integraram a comitiva presidencial em viagem a pases latino-americanos, carregando, claro, o samba na bagagem. Simultaneamente, transmisses radiofnicas oficiais, destinadas ao pblico estrangeiro, se incumbiam de transportar o samba, identificado como genuno produto musical brasilei-ro, a diferentes pontos do planeta.58 certamente, a valorizao da msica popular, ps-30, est fartamente documentada.59

    o que ainda chama a ateno, entretanto, a presuno um tanto quanto esquemtica de que em perodos anteriores, correspondendo s imagens divulgadas sobre a Belle poque, a msica popular teria sido perseguida, como uma imagem invertida ou preparatria do que viria depois. frases como a de Sergio cabral ainda possuem projeo e circulam como verdades pouco questionadas: o samba foi um gnero to execrado pelas classes dominantes das primeiras dcadas do sculo que a poltica prendia quem o cantasse, danasse ou tocasse. Para Carlos Sandroni, que nos brindou com a frase, a idia tornou-se lugar-comum na historiografia e alguns msicos, como cartola, Joo da Baiana e Noel, no deixaram de reforar e reconstruir essa memria.60

    Sem dvida, a determinao do perodo ps-30 como inaugural para a valorizao da msica popular pode estar relacionada prpria escolha dos pesquisadores pelo corte temporal do estudo e pela prioridade dada viciada discusso sobre o nacional. Mas mesmo os trabalhos que procu-ram trazer novas fontes, gneros musicais e enfoques histria da msica popular e do samba em particular no conseguem escapar completamente dos referenciais e marcos temporais tradicionais.

    Para carlos Sandroni, por exemplo, por volta de 1930 o chamado samba do morro do Estcio, no rio de Janeiro, considerado de maior contrametricidade e mais ligado a uma concepo de afro-brasileiro e do tipicamente brasileiro, passou a ser aceito por todos. como se a sociedade estivesse mais preparada, a partir daquele momento, para ouvir esse novo paradigma rtmico e para consider-lo a principal expresso musical do pas.61 Em meio a uma documentada pesquisa, o autor de alguma forma mantm a polarizao entre um samba mais amaxixado, dos primeiros tem-pos (como Pelo telefone de 1916), e outro mais batucado e nacionalizado, do incio dos anos 30, baseado exatamente na pretensa maior aceitao dos ritmos negros e populares a partir dessa poca no rio de Janeiro e no Brasil.

    Mas o mais irnico disso tudo que at mesmo a histria das in-venes e modernizaes tecnolgicas parece conspirar para reforar o marco prximo aos anos de 1930, quando a indstria fonogrfica passou a ter condies de fazer registros de percusso e orquestras, em funo do avano das gravaes eltricas62; ou quando as ondas do rdio levaram o

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    samba do rio de Janeiro aos mais distantes locais do Brasil, integrando presumidamente os sons da nao em uma unidade musical.

    Se no meu objetivo e tambm seria impossvel - inverter os sinais das (boas) relaes entre a msica popular, a valorizao do samba e o Estado Novo, entendo que j mostrei suficientes argumentos para evi-denciar o quanto o campo musical do perodo republicano variado e complexo. No pode ser entendido a partir de simples oposies polticas entre Primeira Republica e Estado Novo, ou disputas intelectuais em torno de uma pretendida nao brasileira. Para finalizar, entretanto, preciso ainda destacar alguns caminhos de pesquisa que apontam para importantes transformaes na construo da histria da msica ao longo do sculo XX.

    Jos geraldo Vinci de Moraes, por exemplo, estudou conjuntamente a produo dos primeiros historiadores da msica popular urbana no rio de Janeiro, como orestes Barbosa, Vagalume e alexandre gonalves Pinto, dentre outros, que, situados nos anos 1930, produziram outras verses sobre a msica popular urbana da Primeira repblica e sobre a autenticidade do samba.63 No valorizados at hoje pela historiografia mais acadmica, herdeira do legado dos modernistas de 192264, mais preocupado com a msica folclrica do que a urbana, podemos encontrar entre esses primeiros historiadores e suas memrias uma srie de evidncias sobre o dinmico mundo musical popular da cidade do rio de Janeiro na Primeira repblica e no incio da dcada de 1930.

    orestes Barbosa, por exemplo, considerava a existncia dos sambas desde o tempo do imperador e, portanto, inclua nessa categoria a polca, o lundu e o maxixe. Para Vagalume, desgostoso das novas modernidades do rdio, o samba dos anos de 1930 existia apenas o rtulo, era um arremedo de samba. Gonalves Pinto, por sua vez, deixava evidente, desde o final do sculo XX, uma grande falange de chores que elevaram a enalteceram as msicas genuinamente brasileiras.65 Esses historiadores demonstram em seus registros como a prpria definio do samba e do que era genuinamente brasileiro situava-se num campo amplo de significados e disputas. Poderia variar muito e estar prisioneiro dos debates polticos, culturais e comerciais de cada poca

    Para alm das polmicas intelectuais culturais, historiogrficas e polticas em torno dos significados da Primeira Repblica, encontramos tambm trabalhos que buscam construir uma histria social da msica popular, e dos sambistas em particular, nas primeiras dcadas do sculo XX. Maria clementina Pereira cunha investe no protagonismo dos msicos populares. Destaca as relaes e os conflitos sociais e profissionais entre os sambistas para a prpria afirmao do gnero no Rio de Janeiro66. outros trabalhos procuram entender trajetrias de msicos que fizeram sucesso com repertrios de lundus, identificados com as coisas do Brasil e com a vida poltica do pas67.

    ao lado da necessidade de mais estudos sobre os empresrios da indstria fonogrfica, que ajudaram a divulgar a msica popular e fizeram as conexes entre as msicas do Atlntico Negro, outros atores sociais merecem receber ateno por parte dos interessados na construo da histria dos sambas: os descendentes da ltima gerao de escravos do Vale do Paraba fluminense, paulista e mineiro. Chegaram s principais cidades do pas, rio de Janeiro e So Paulo, em diferentes momentos aps a abolio da escravido e ocuparam os morros cariocas e os bairros po-

    58 ParaNhoS, adalberto. o Brasil nasceu cansado? Entre o louvor e o horror ao trabalho na msica popular (1930/1940). Opsis,v. 8, n. 11, Ufg/cata-lo,2008.59 Sem dvida Mrio de an-drade e renato almeida de-dicaram-se com afinco, nas dcadas de 1930 e 1940, ao estudo do que entendiam por msica popular no passado e no seu prprio presente. Mas no priorizei nesse artigo essa anlise. Mrio, apesar de sua valorizao do folclore, desta-cou figuras representativas das modinhas e maxixes urba-nos, como Xisto Baia, Ernesto Nazar, Marcelo tupinamb, chiquinha gonzaga, Donga e Sinh (Ver aNDraDE, Mrio de. Compndio de histria da msica, op. cit., p. 175 e 176). cri-ticava, entretanto, os maxixes, sambas e tangos divulgados pe-los artistas em rdios e teatros de revista das cidades. Em a Msica do Brasil, op. cit., de 1941, ele reconheceu que nos ltimos dias do imprio e primeiros da repblica, a msica popular (expressa em modinhas, maxi-xes, sambas e choros urbanos) cresce e se define com uma rapidez incrvel, tornando-se violentamente a criao mais forte e caracterizao mais bela da nossa raa (p. 29). Para renato almeida, se no temos uma cano brasileira... temos uma msica popular rica e variada. A msica popular era fruto da mestiagem e uma marca positiva da identidade nacional (e vice-versa).o seu maior exemplo o samba do carnaval, a festa mais empol-gante da terra (ALMEIDA, renato. Histria da msica brasi-leira, 1941, op. cit, p. 18, 53 e 54).60 SaNDroNi, op. cit., p. 111. Ver tambm NaPolitaNo, Marcos. A historiografia da m-sica popular brasileira (1970-1990): sntese bibliogrfica e desafios atuais da pesquisa histrica. ArtCultura, v. 8, n. 13,op. cit., 2006. 61 SaNDroNi, op. cit., p. 31, 32 e 217. Ver tambm rEiS, letcia Vidor de Sousa. o que o rei no viu: msica popular e nacionalidade o rio de Janeiro da Primeira repblica. Estudos Afro-Asiticos, ano 25, n. 2, rio de Janeiro, Universidade can-dido Mendes, 2003. 62 SaNDroNi, op. cit., p.222. ary Vasconcelos, memorialis-ta da msica popular, define os seguintes perodos para a histria da msica popu-lar brasileira: fase primitiva (1889-1927), fase de ouro (1927-1946), fase moderna (1946-1958) e fase contempornea (1958

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    asbres paulistas, em sucessivas migraes, ao longo das primeiras dcadas

    do sculo XX. com sua bagagem musical, carregada de jongos, calangos e folias de reis, formaram a base das escolas de sambas do rio de Janeiro e ajudaram a transformar a vida cultural do Brasil nas dcadas seguintes.68

    Bem, mas para a concluso dessa histria, o leitor ainda ter que esperar por outras historias musicais da Primeira repblica.

    Artigo recebido em maio de 2011. Aprovado em junho de 2011.

    em diante). o marco de 1927 relaciona-se com a emergncia de novidades tcnicas: as gra-vaes e vitrolas eltricas, o microfone e o alto-falante. Sons at ento inditos puderam se percebidos. VaScoNcEloS, ary. Panorama da msica popular brasileira, v. i, So Paulo: Mar-tins, 1964, p. 21.63 Ver MoraES, Jos geraldo Vinci de. os primeiros histo-riadores da msica popular urbana no Brasil. ArtCultura, v. 8, n. 13, op. cit., 2006. 64 Idem, ibidem, p. 120.65 Sobre esses primeiros his-toriadores da msica popular urbana, ver tambm Braga, luiz otvio rendeiro corra, op. cit., cap. 3, p. 220-229 e 245-256, e as teses de doutorado de arago, Pedro de Moura. O ba do animal: alexandre gonalves Pinto e o choro. tese (Doutorado em Msica UfrJ, rio de Janeiro, 2011, e SaM-Paio, llian alves. Vaidade e ressentimento dos msicos popu-lares e o universo musical do Rio de Janeiro no incio do sculo XX.. tese (Doutorado em Sociologia fflch-USP, So Paulo, 2011.66 Ver os trabalhos recentes de cUNha, Maria clementina Pereira. No me ponha no xadrez com esse malandro: conflitos de identidades entre sambistas no rio de Janeiro do inicio do sculo XX. Afro-sia, n. 38, Salvador, UfBa, 2008, e Acontece que eu sou baiano: identidades em Santana - rio de Janeiro, no inicio do sculo XX. In: aZEVEDo, Elciene et al. Trabalhadores na cidade. campi-nas: Editora da Unicamp, 2009. 67 Ulha, Martha desenvolve importante pesquisa sobre o lundu. Ver isto bom! ou Yay, voc quer morrer? a tradio oral e a tradio escrita do lundu. Anais do XIV Congresso da Anppom. cD-roM. Porto alegre: ago. 2003. http://www.anppom.com.br/anais/aNP-PoM_2003/pdf. os lundus gravados pela casa Edison podem ser ouvidos atravs da pgina do instituto Moreira Salles, acervo musical www.ims.com.br. 68 Sobre essa discusso, ver o renovador artigo de goMES, tiago de Melo. Para alm da casa da tia ciata. outras experincias no universo cultural carioca, 1830-1930. Afro-sia, 29/30, Salvador, UfBa, 2003. Sobre os patrim-nios culturais dos descendentes de escravos do sudeste, ver o DVD Jongos, calangos e folias: msica negra, memria e poesia. Direo geral: hebe Mattos e Martha abreu http://www.his-toria.uff.br/jongos .