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EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) DOUTOR (A) JUIZ ( ÌZA) DE DIREITO DA_____________VARA CÍVEL DA COMARCA DE RIBEIRÃO DAS NEVES
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS
GERAIS, por seus representantes infra-assinados, no uso de suas atribuições, vem,
perante Vossa Excelência, com fundamento no art. 129, incs. II e III, da Constituição
Federal; no art. 120, inc. III, da Constituição Estadual; no art. 25, inc. IV, alínea “a”,
da Lei nº. 8.625/93; no art. 66, inc. VI, alínea “a”, da Lei Complementar Estadual nº.
34/94; no art. 1º, art. 5º, caput, art. 21, todos da Lei Federal n.º 7.347/85, no art. 81,
parágrafo único, incisos II e III, art. 82, inciso I, art. 83, art. 117, todos da Lei nº
8.078/90, na Lei nº 8.080/90, e no artigo 74, inciso I, do Estatuto do Idoso, propor a
presente AÇÃO CIVIL PUBLICA, com PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA
contra o
ESTADO DE MINAS GERAIS, pessoa jurídica de direito
público interno, neste ato representado pelo Advogado-Geral do Estado, que pode ser
localizado na praça da Liberdade, s/nº, Belo Horizonte-MG;
MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO DAS NEVES, pessoa jurídica
de direito público interno, representado pelo Prefeito Municipal, Walace Ventura
Andrade, com sede na Av. Ari Teixeira da Costa, 1.110, bairro Savassi, Ribeirão das
Neves – MG.
Pelos fatos e fundamentos a seguir expendidos.
1
I – Dos fatos
No dia 19 de outubro de 2006, o Dr. Gustavo H. A . Caetano
enviou laudo médico sobre o estado de saúde da Sra. Hilda Moreira dos Santos,
nascida em 01 de agosto de 1946, portadora do CPF nº 522.201.336-72 e Título
Eleitoral nº 47811530264.
O médico apresentou o seguinte diagnóstico da idosa:
“Paciente acamada por seqüela de AVC, hipertensa,
diabética, com quadro de dor abdominal e constipação
intestinal.
“U.S. transversal sugere câncer de útero.
(...)
“ Paciente necessita de avaliação em serviço de oncologia
com urgência devido risco de vida (sic)”
Na mesma oportunidade, a Dra. Viviane Cristina A A Meira,
Diretora Técnica do Hospital São Judas Tadeu, informou que a Sra. Hilda Moreira dos
Santos está internada naquele nosocômio e que a paciente está cadastrada na central de
vagas sob nº 071056209. A médica relatou, ainda, que a idoso foi internada no hospital
com “quadro de neoplastia uterina avançada diagnosticada em abril de 2007”. Por fim,
a Diretora Técnica asseverou que a paciente aguarda vaga na central de leitos desde 16
de outubro de 2007 e que “necessita de avaliação oncológica urgente”.
Os exames complementares anexados demonstram que a Sra.
Hilda Moreira dos Santos apresenta um quadro de câncer de útero agravado por um
acidente vascular cerebral (AVC).
Não obstante o grave quadro clínico da paciente – o médico
aponta risco de morte -, a idosa aguarda vaga na central de leitos.
Ora, a omissão do Estado de Minas Gerais é patente. A pessoa
jurídica de direito público não forneceu, com a celeridade que o caso exige, uma vaga
em hospitais da rede pública estadual para o tratamento indispensável da idosa. Não se
pode olvidar que, caso a idosa não seja atendida com a máxima urgência, ela poderá
2
falecer.
Por seu turno, a omissão do Município de Ribeirão das Neves
consiste em não fornecer no sistema municipal de saúde o tratamento médico
indispensável para garantir a vida da Sra. Hilda Moreira dos Santos.
As desídias do Estado de Minas Gerais e do Município de
Ribeirão das Neves, consistentes, e síntese, em não fornecer a adequada e integral
assistência à saúde do idoso, coloca em risco a vida da Sra. Hilda Moreira dos Santos,
uma vez que, sem o tratamento oncológico urgente [que não existe em Ribeirão das
Neves], ocorrerá o falecimento precoce da paciente
Ante tal quadro, não restou outra medida senão a prospositura
da presente ação, eis que a Sra. Hilda Moreira dos Santos necessita de tratamento
médico urgente, sob pena de morrer em razão das vicissitudes impostas pelo nefeasto
sistema público de saúde.
II- Do Direito
Relevante a transcrição das normas jurídicas que tratam do
direito do cidadão à saúde, para que se tenha exata compreensão da efetiva proteção
que lhe dá o ordenamento jurídico de nosso país, possibilitando aos titulares dos
direitos fundamentais o exercício, individual ou coletivamente, desse direito público
subjetivo em face do Estado.
II.1- Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamou
como princípio de Direito Internacional a dignidade da pessoa humana (artigo 1º). É
indiscutível que a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos a dignidade da
pessoa humana, que era considerada apenas um valor superior pelo direito natural,
passou a constituir-se como princípio elementar da humanidade.
Esse princípio elementar fora reiterado pelos diversos
documentos internacionais de direitos humanos. Constitui-se, portanto, em norma
3
jurídica obrigatória, que deve ser cumprida pelos Estados independentemente de seu
consentimento.
Com efeito, as normas internacionais de Direitos Humanos, a
partir da Declaração Universal, positivaram a dignidade da pessoa humana como
princípio, transformando-o de um valor ético e moral em norma jurídica com força
vinculante e obrigatória. A noção jurídica da dignidade da pessoa humana foi
fundamental para densificar os direitos humanos fundamentais, pois estes representam
a concretização do princípio supremo de toda a ordem jurídica internacional.
Por seu turno, os direitos humanos fundamentais, como
direitos absolutos e inderrogáveis, “integram o núcleo duro dos direitos humanos”1,
por ser a expressão máxima do princípio da dignidade da pessoa humana no plano
internacional2.
Juan António Carrillo Salcedo sublinhou que a obrigatoriedade
e imperatividade das normas internacionais de Direitos Humanos tem por fundamento
a “aceitação geral da noção jurídica da dignidade intrínseca de todo ser humano”3.
Por essa razão, a dignidade da pessoa humana foi erigida como
o princípio supremo que confere unidade ao sistema dos direitos fundamentais.
Princípio que, além de seu conteúdo moral e ético, constitui norma jurídico-positiva.
Nessa linha de raciocínio, o artigo 1º, inciso III, da
Constituição Federal, erigiu como fundamento da República Federativa do Brasil a
dignidade da pessoa humana.
1 Cf. Juan António Carrillo Salcedo. Soberania de los Estados y Derechos Humanos en Derecho
Internacional Contemporáneo. 2ª ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2001, p. 148.
2 Nesse sentido, o artigo 1º da Resolução adotada em 13 de Setembro de 1989 pelo Instituto de Direito
Internacional, sobre a Proteção dos direitos humanos e o princípio da não intervenção nos assuntos
internos dos Estados, prescreve: “Os direitos humanos são a expressão direta da dignidade da pessoa
humana. A obrigação dos Estados de assegurar os seu respeito depreende-se do próprio reconhecimento
desta dignidade que já proclamaram a Carta das Nações Unidas e a Declaração de Direitos Humanos…”
(texto extraído da obra de Juan António Carrillo. Soberania de los Estados y Derechos Humanos en
Derecho Internacional Contemporáneo…, op. Cit., p. 149).
3 Soberania de los Estados y Derechos Humanos en Derecho Internacional Contemporáneo…, op. Cit.,
p. 148.
4
Ao incorporar o princípio da dignidade da pessoa humana no
texto constitucional, o legislador constituinte elegeu-o como o valor primário e
superior em que se baseia o Estado brasileiro. Com isso, os direitos, liberdades e
garantias e os direitos econômicos, sociais e culturais encontram o seu fundamento4
ou, segundo Jorge Miranda, “a sua fonte ética” na dignidade da pessoa humana5.
Dignidade da pessoa humana que deve ser entendida como um
atributo do homem concreto e individual, dotado de razão e consciência, como
prescreve o artigo 1º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Numa outra
perspectiva, podemos considerar que é esta racionalidade que fundamenta a
superioridade do ser humano sobre os demais seres que carecem de razão, sendo,
portanto, chamada de dignidade da pessoa humana6
Decorre daí as características da dignidade da pessoa humana,
que podem ser assim sintetizadas: a) a dignidade refere-se à pessoa concreta e
individual; b) universalidade, consistente na igualdade do reconhecimento da
dignidade para todas as pessoas; c) dignidade da pessoa humana como fundamento
para alcançar uma vida com qualidade7.
Dessas características extraímos que o sujeito portador do
valor dignidade é o homem e a mulher. Portanto, a dignidade da pessoa humana visa a
proteção individual do homem e da mulher concretos, sem olvidar da sua relação com
os demais membros da sociedade.
A visão antropocêntrica da dignidade da pessoa humana
implica em uma atuação dos poderes públicos voltada à proteção do homem. O Estado
deverá agir (facere) para implementar, promover e garantir os meios necessários para
4 Invocando a lição de Rusen Ergec, Francis Delpérée afirma que o “conceito de dignidade humana
repousa na base de todos os direitos fundamentais, civis e políticos ou sociais”. O referido autor
relembra que o direito à dignidade humana é a fonte “de outros direitos, e especialmente dos direitos
econômicos, sociais e culturais ( O Direito à Dignidade Humana. In Estudos em Homenagem a Manoel
Gonçalves Ferreira Filho/coordenadores Sérgio Rezende de Barros e Fernando Aurélio Zilveti. São
Paulo: Dialética, 1999, p. 155).
5 A Constituição e a dignidade da pessoa humana. Revista da Faculdade de Teologia – Lisboa, volume
XXIX, 1999. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, p. 473.
6 Jesus Gonzales Perez. La Dignidad de La Persona. Madrid: Editorial Civitas, p.24.
7 No mesmo sentido Jorge Miranda. A Constituição e a dignidade da pessoa humana…, op. cit., p. 476.
5
que todas as pessoas – universalidade- tenham as mesmas oportunidades – igualdade –
para alcançar uma vida com qualidade.
É uma vida com qualidade que os direitos fundamentais sociais
buscam efetivar, implementar e garantir8. Mas, como uma vida com qualidade funda-
se na dignidade da pessoa humana, somente poder-se-á falar em efetiva tutela dos
direitos fundamentais sociais quando forem concedidos às pessoas todos os meios
materiais e espirituais para o desenvolvimento pleno da personalidade humana,
oferecendo a todos os indivíduos o mínimo necessário para alcançar aquele objetivo
(uma vida com qualidade).
A dignidade da pessoa humana, portanto, é um princípio
supremo, que teve sua origem no direito natural ou uma origem divina9 como um valor
superior, e que fora introduzido no direito positivo por via da Declaração Universal
dos Direitos do Homem10, e tem por finalidade garantir aos seres humanos, dotados de
inteligência e liberdade, sem distinção de raça, cor, credo, nível sócio-econômico e
outras, um padrão de vida tal que possa ser considerada uma vida com qualidade.
Garantir uma vida com qualidade como corolário da dignidade
da pessoa humana é o objetivo dos direitos fundamentais sociais, que encontram nos
princípios insertos na Constituição Federal, assim como na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, os fundamentos para a concretização de seus preceitos e do seu
núcleo essencial.
Urge salientar que uma vida com qualidade como fim da
dignidade da pessoa humana não significa o mero existir ou sobreviver, mas viver com
padrões mínimos de alimentação, vestuário, habitação, saúde, educação e segurança.
O mero sobreviver com fome, na miséria, sem moradia, sem educação, sem
8 Nesse sentido, Francis Delpérée aduz que o fim dos direitos económicos, sociais e culturais é o de
permitir que todos levem uma vida de acordo com a dignidade humana (O Direito à Dignidade
Humana…, op. cit., p. 158).
9 No sentido da origem divina da dignidade da pessoa humana vide Jesus Gonzales Perez. La Dignidade
de La Persona y el Derecho…, op. cit., 27-30.
10 A Declaração proclama em seu preâmbulo a fé da Carta e dos povos das Nações Unidas “na
dignidade e no valor da pessoa humana”. No artigo 1º prescreve que: “todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os
outros em espírito de fraternidade”.
6
atendimento médico, sem medicamentos, representa a negação do próprio
direito à vida e a violação da dignidade da pessoa humana. Pertinente a pergunta de
Francis Delpérée: “Para que serve o direito à vida, se esta for desprovida de
dignidade?11”.
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, ao interpretar
o significado do artigo 1º, da Lei Fundamental12, destaca que a dignidade da pessoa
humana está inserida nos princípios básicos da Constituição, designando-a como o
“valor jurídico supremo da ordem constitucional”13.
A dignidade da pessoa humana é, também no Brasil, o
princípio supremo de todo o ordenamento jurídico. A supremacia do princípio da
dignidade da pessoa humana coloca-o em uma posição hierárquica superior14, isto é,
ocupa o “primeiro posto” dessa hierarquia normativa”15.
O princípio da dignidade da pessoa humana gera, ademais, um
direito subjetivo público de todas as pessoas terem acesso às condições necessárias
para uma vida com qualidade. Em contrapartida e em virtude do efeito vinculante do
princípio fundamental, há uma obrigação correlata dos poderes públicos, os quais têm
a obrigação de respeitar, proteger e garantir a dignidade de todas as pessoas. Respeitar
a dignidade da pessoa humana significa que o Estado deve omitir-se de todas as
condutas que possam violar o princípio fundamental. Por seu turno, proteger significa
que os poderes públicos devem impedir, através de comportamentos de fato e de atos
normativos, ataques de terceiros à dignidade da pessoa humana. E, por fim, garantir
materializa-se no dever de implementar (dever de agir, fazer) os meios
11 O Direito à Dignidade Humana…, op. cit., p. 152.
12 Artigo 1º, parágrafo 1º, nº1: “A dignidade da pessoa humana é intangível. Todos os poderes do Estado
estão obrigados a respeitá-la e protegê-la”.
13 Cf. Ingo Von Munch, citando a decisão BVerfGE, 6, 32 e ss e BVerfGE, 45, 187 e ss. La Dignidade
del Hombre en el Derecho Constitucional. In Revista Española de Derecho Constitucional, número 5
(Maio-Agosto). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, p. 11.
14 Francis Delpéré utiliza uma expressão ilustrativa para demonstrar a posição da dignidade humana na
Constituição da Bélgica. Diz o autor que a dignidade da pessoa humana “é colocada sobre um pedestal.
É o sustentáculo, é o ponto de referência” da Constituição (O Direito à Dignidade Humana…, op. cit., p.
159)
15 Cf. Ingo Von Munich. La dignidade…, op. cit., p. 11.
7
necessários para que todos tenham uma vida com dignidade, removendo os
obstáculos que dificultem ou impeçam a sua plena realização 16 , tais como a fome,
a miséria, a falta de educação e de atendimento médico-hospitalar, etc.
A dignidade da pessoa humana gera, então, obrigações de non
facere e de facere para o Estado, consistentes no dever de omissão de atos atentatórios
à dignidade; comportamentos fáticos e jurídicos para impedir a ofensa à dignidade da
pessoa humana por terceiros; e comportamentos positivos para implementar as
condições necessárias para a promoção da dignidade da pessoa humana17.
O Estado, ao omitir-se quando deveria agir e vice –versa (agir
quando deveria omitir-se), viola o princípio da dignidade da pessoa humana. Por
ilação, a concretização da dignidade da pessoa humana está intimamente vinculada ao
respeito, à proteção e à garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais e dos
direitos, liberdades e garantias. Sem o respeito, a proteção e garantia da unidade dos
direitos fundamentais, em última análise, estar-se-á violando o princípio supremo do
ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, o Conselho Europeu de Luxemburgo afirmou,
em 29 de Junho de 1991, que a promoção dos direitos fundamentais econômicos,
sociais e culturais e civis e políticos é fundamental para a realização da dignidade da
pessoa humana18. O Conselho Europeu reiterou a concepção da unidade,
indivisibilidade, inter-relação e interdependência dos direitos fundamentais,
ressaltando o seu papel fundamental na efetivação, proteção e garantia da dignidade da
pessoa humana.
Decorre justamente do princípio da dignidade da pessoa
humana os deveres do Estado de Minas Gerais e do Município de Ribeirão das Neves,
ora réus, de garantirem o mínimo necessário à existência digna de da Sra. Hilda
16 No mesmo sentido, Jesus Gonzalez Perez. La Dignidad de La Persona…, op. cit., p. 63.
17 No mesmo sentido, Jesus Gonzales Perez. La Dignidad de La Persona…, op. cit., p. 59.
18 Eis o teor do texto: “A promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais, como aquela dos
direitos civis e políticos, (…) são de uma importância fundamental para a plena realização da dignidade
humana e para as aspirações legítimas de todo indivíduo” (texto extraído da obra de Francis Delpérée.
Direito à Dignidade Humana…, op. cit., p. 159).
8
Moreira dos Santos, que, no caso em apreço, materializa-se no fornecimento de
atendimento médico integral para tratar o câncer de útero diagnosticado.
Em outro enfoque: a omissão do Estado e do Município no
fornecimento de tratamento viola o princípio da dignidade da pessoa humana.
Sobreleva salientar que a obrigação do Estado e do Município
de garantir o tratamento médico integral e com qualidade da idosa decorre, segundo
nosso entendimento, da interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana
como núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais.
A Constituição Federal, no entanto, foi além e determinou no
artigo 196 o seguinte:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”- grifei
No mesmo sentido, o artigo 186, da Constituição do Estado de
Minas Gerais, prescreve:
“A saúde é direito de todos, e a assistência a ela é dever do
Estado, assegurada mediante políticas sociais e
econômicas que visem à eliminação do risco de doenças e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e aos serviços para sua promoção, proteção e
recuperação”.
II.2- Do Direito à Saúde.
As normas insertas nas constituições Federal e Estadual, que
definem o direito fundamental social à saúde (artigo 196 e 186), são dirigidas aos
9
órgãos estatais, informando, desde o seu nascimento, a atuação do Poder Legislativo,
da Administração Pública e do Poder Judiciário19. É justamente a supremacia da
Constituição que fundamenta esse efeito vinculante dos direitos fundamentais, de
maneira que os seus preceitos são obrigatórios para todos os poderes públicos20. Logo,
as normas constitucionais definidoras dos direitos sociais não se dirigem apenas ao
Poder Legislativo, que as deve densificar através da elaboração de leis, mas também à
Administração Pública, para a sua concretização por via de políticas públicas. Daí
surge o papel da Administração como “guardiã da Constituição”21.
Para que a Administração Pública possa concretizar os direitos
sociais e cumprir o dever que decorre da própria Constituição é preciso que o conteúdo
dos preceitos constitucionais, respeitantes a direitos fundamentais sociais, estejam
determinados ou pelos menos sejam determináveis pelo intérprete diretamente da
Constituição.
É justamente os direitos fundamentais sociais mínimos, que
denominaremos direito ao mínimo de existência condigna, que apresenta o seu
conteúdo determinado (ou pelo menos determinável) na própria Constituição. Extrai-
se da própria Constituição um direito fundamental social a um mínimo vital, como
consectário do princípio da dignidade da pessoa humana22 e do desenvolvimento da
personalidade. Retira-se também, diretamente da Constituição, o direito a determinada
prestação social necessária para a proteção do mínimo essencial.
O núcleo dos direitos sociais é constituído pelo mínimo que,
caso seja submetido a limitações ou não sejam implementadas ações para garanti-
19 Eduardo Garcia de Enterria afirma que todos os sujeitos públicos ou privados, em razão de estarem
vinculados à Constituição, não poderiam deixar de aplicar os preceitos Constitucionais sob o
argumento de que seriam artigos meramente programáticos. No entanto, o autor enfatiza que “nem
todos os artigos da Constituição têm o mesmo alcance e significação normativas…” (La Constitución
como Norma y El Tribunal Constitucional. 3ª ed. 4ª reimpressão. Madrid: Civitas, 2001, p. 68.
20 José Afonso da Silva afirma que “das normas programáticas, em geral, derivam vínculos para o
legislador, para o administrador e para o juiz” (Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3ª ed. 2ª
tiragem. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 174).
21 A expressão é de Paulo Otero. O Poder de Substituição em Direito Administrativo. Volume I. Lisboa:
Lex, 1995, p. 109.
22 Cf. Cristina M. M. Queiroz.Direitos Fundamentais (Teoria Geral). Coimbra: Coimbra editora, 2002.
p. 151.
10
lo, o próprio direito fundamental torna-se impraticável, despojando-o da necessária
proteção. Esse mínimo essencial não pode ser objeto de restrição (aspecto negativo) e
deve receber a prestação necessária para a sua proteção efetiva (aspecto positivo),
sob pena de violação de valores subjacentes aos preceitos de direitos fundamentais,
mormente o princípio da dignidade da pessoa humana. O mínimo necessário à
existência condigna estará satisfeito, por exemplo, com uma casa digna, educação,
saúde e alimentação, enfim com aquelas prestações sociais que, se forem excluídas
ou negadas pelo poder público, colocarão em risco a realização do próprio direito
fundamental social, o direito à vida e à dignidade da pessoa humana.
Assim, pode-se definir o núcleo dos direitos fundamentais
sociais a partir da “teoria dos interesses juridicamente protegidos”, nos termos da lição
de Perez Luño23.
Viera de Andrade reconhece, primeiramente, de maneira
implícita, e, depois, de forma explícita, que o conteúdo do direito ao mínimo de
existência condigna está definido na Constituição. Ao estabelecer o critério da
determinação do conteúdo do direito pela Constituição como forma de definir se se
aplica ou não o regime dos direitos, liberdades e garantias a determinado direito
fundamental, o aludido autor afirma que: “(…) o regime dos direitos, liberdades e
garantias se aplica aos direitos susceptíveis de concretização ao nível constitucional,
mas já não àqueles que, para além do mínimo, (grifo nosso), só se tornam ´líquidos e
certos´ no plano da legislação ordinária24”. Posteriormente, expressa que “os preceitos
relativos aos direitos sociais têm um mínimo de conteúdo determinável por
interpretação em referência à Constituição”, decorrendo daí, segundo o autor, as
posições jurídicas subjetivas. E, por fim, diz que o conteúdo dos preceitos relativos aos
direitos sociais a prestações “é determinado pela Constituição, em regra, apenas num
mínimo (…)”25.
Ora, a afirmação de que não se aplica o regime dos direitos,
liberdades e garantias aos direitos que, “para além de um mínimo”, necessitam de
legislação densificadora, o constitucionalista partiu do pressuposto que o conteúdo do
23 Los Derechos Fundamentales. 7ªed. Madrid: Editorial Tecnos, 1998, p. 77.
24 Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª ed: Coimbra:Almedina, 2001, p.
183.
25 Idem, p. 183 e 378.
11
“mínimo” está definido na Constituição, não necessitando de legislação
infraconstitucional para ser concretizado. Tal ilação tornou-se óbvia quando o próprio
Vieira de Andrade reconheceu que o intérprete consegue extrair da própria
Constituição o conteúdo mínimo dos direitos sociais.
O direito ao mínimo de existência condigna, portanto, tem
estabelecido o seu conteúdo na Constituição justamente por encontrar o seu
fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Com isso, supera-se a
questão da natureza de norma programática dos direitos sociais a prestações e, por
conseguinte, da necessidade de interposição de legislação infraconstitucional para a
concretização desses direitos pela Administração Pública.
Assim, a norma constitucional definidora do direito social à
saúde é norma preceptiva e exequível por si mesma, na justa medida da proteção desse
mínimo essencial à existência condigna.
Ao garantir a eficácia plena do direito fundamental social à
saúde, na medida do mínimo indispensável à existência condigna, está-se
reconhecendo que a Constituição é um ordenamento comprometido com valores, cujo
fim supremo de todo o Direito é a proteção da dignidade humana26. Por essas razões
que o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, elegeu o princípio da dignidade da
pessoa humana como o valor primário e superior em que se baseia o Brasil.
Ernest Benda aduz que a proteção da dignidade da pessoa
humana exige uma obrigação prestacional do Estado, com vistas a prover uma
existência humana condigna. Conclui afirmando que, ao contrário de uma anterior
interpretação do Tribunal Constitucional Alemão, hoje há uma obrigação do Estado à
procura de um mínimo existencial, donde decorre um direito subjetivo público à
assistência àqueles que, por causas alheias à sua vontade, estejam em situação de
necessidade27.
26 Cf. Ernest Benda. Dignidad humana y derechos de la personalidad (Capítulo IV). Manual de Derecho
Constitucional. Obra coletiva: Benda, Maihofer, Vogel, Hesse e Heyde. Madrid: Marcial Pons
Ediciones Jurídicas e Sociales S.A, 2001. p. 118.
27 Idem, p. 126.
12
A jurisprudência de Portugal reconheceu também o direito de o
indivíduo não ser privado do mínimo para a sua existência condigna, bem como o
direito a exigir do Estado que implemente prestações sociais, com o escopo de garantir
esse mínimo de existência condigna. O Tribunal Constitucional de Portugal
reconheceu, no acórdão n º 509/2002, “que o direito ao mínimo de existência condigna
se encontra constitucionalmente garantido”28. Já, no acórdão n º 349/91, prescreveu
que “ a percepção de uma prestação proveniente do sistema de segurança social que
lhe possibilite uma subsistência condigna (...)” decorre do artigo 63º, da Lei
Fundamental, e do princípio da dignidade da pessoa humana, “(...) condensado no
artigo 1º, da Constituição”29
O direito ao mínimo necessário à existência condigna do
indivíduo e o correlato dever da Administração Pública decorrem diretamente da
Constituição, em razão do núcleo dos direitos sociais concretizar a igualdade material
e garantir a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do ordenamento
jurídico e do Estado.
A própria Constituição fundamenta o dever da Administração
Pública de implementar as políticas públicas necessárias à concretização do direito
fundamental à saúde, como conseqüência do efeito vinculante dos direitos
fundamentais. Há, pois, uma obrigação derivada da Constituição de proteção, respeito
e garantia dos direitos fundamentais. Essa vinculação implica uma ampliação do
conceito de princípio da legalidade, “que deixa de ser visto como uma mera submissão
da Administração à lei, para passar a significar a realização do Direito através da lei”30.
Vale dizer, a Administração não está sujeita apenas à lei formal, senão também aos
princípios gerais de direito.
Elucidativo o parecer da Comissão que elaborou o Código de
Procedimento Administrativo de Portugal, que, ao analisar o artigo 3º, nº 1, asseverou
que a acepção ampla do princípio da legalidade implica a submissão da Administração
28Jurisprudência do Tribunal Constitucional. Disponível em:
«http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudência/htm». Acesso em: 15 de Agosto de 2003.
29 Acórdãos do Tribunal Constitucional. Lisboa: Tribunal Constitucional, 19º volume, 1991 (maio a
agosto), p. 507-525
30 Cf. Vasco Pereira da Silva. Em busca do acto administrativo perdido.Reimpressão.
Coimbra:Almedina, 2003, p. 85.
13
aos “princípios gerais de direito, à Constituição, a normas internacionais, a disposições
de carácter regulamentar, a actos constitutivos de direitos, etc”31.
No mesmo toar, Paulo Otero preceitua que o Estado não está
vinculado apenas à lei formal, mas à idéia do “Direito justo, que lhe é superior,
anterior e indisponível”. O autor afirma ainda que “o princípio da legalidade cede
perante o princípio da juridicidade”32. Este, esclarece Paulo Otero, é formado pela
integração dos princípios da constitucionalidade e da legalidade33.
Extrai-se da lição de Paulo Otero que o Estado, ao invés de
“ser escravo da lei positiva”34, está vinculado a princípios ou valores superiores e
anteriores à própria ordem Constitucional. Dentre esses princípios ou valores o
primordial é a dignidade da pessoa humana. Logo, o Estado está vinculado não apenas
a uma ordem jurídica positiva estabelecida na Constituição, senão também ao
princípio da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, a administração pública extrai dos preceitos
constitucionais insertos nos artigos 196 e 186 e do princípio da dignidade da pessoa
humana a obrigação de desenvolver políticas públicas indispensáveis à concretização
do direito social à saúde. A vinculação de todos os poderes a uma ordem de valor
superior e anterior ao legislador constituinte determina o comportamento ativo da
Administração Pública.
Correlato ao dever da Administração Pública origina-se
também do direito fundamental à saúde e do princípio da dignidade da pessoa humana,
sem necessidade de intervenção do legislador infraconstitucional, direitos subjetivos
públicos, em princípio, de todas as pessoas verem implementadas as políticas públicas
necessárias à concretização do referido direito social. Entenda-se direito subjetivo
como o poder jurídico de fazer valer, por intermédio de uma ação, o não cumprimento
31 A Comissão era formada por Diogo Freita do Amaral, João Caupers, João Martins Claro, João
Raposo, Pedro Siza Vieira, Vasco Pereira da Silva. Apud Vasco Pereira da Silva. Em busca do ato
administrativo perdido…, op. cit., p. 85.
32 O Poder de Substituição em Direito Administrativo, Vol. II…, op. ci.t. p. 552-554.
33 Idem, p. 567.
34 Expressão utilizada pelo citado autor (op.cit., p. 552).
14
de um dever jurídico35. Ou, segundo Luigi Ferrajoli, direito subjetivo é uma
expectativa a que corresponde uma obrigação: “a uma expectativa positiva
corresponde uma obrigação positiva de prestação, a uma expectativa negativa
corresponde uma obrigação negativa de lesionar”36.
Dissertando sobre direitos subjetivos públicos dos indivíduos
perante a Administração Pública, Vasco Pereira da Silva reconheceu que a titularidade
de direitos subjetivos públicos perante a Administração Pública representa a “projeção
jurídica da dignidade da pessoa humana”, constituindo um “princípio essencial do
Estado de Direito (…)”37.
Nessa linha de raciocínio, o titular do direito fundamental à
saúde possui a faculdade de exigir do Estado, por intermédio do poder judiciário, o
cumprimento da prestação necessária à concretização desse direito, isto é, o direito
fundamental social gera uma expectativa positiva para o titular, que, por sua vez,
produz uma obrigação também positiva para o destinatário, que, em caso de
descumprimento (omissão), acarreta uma pretensão dedutível em juízo.
De fato, tal concepção reconhece a relevância jurídica da
omissão da Administração Pública, o que implica uma evolução na proteção dos
direitos fundamentais, que, segundo a doutrina clássica, somente seriam violados
por comportamentos positivos dos poderes públicos. Com o Estado Social e o
surgimento da Administração Pública como prestadora de políticas públicas, o
não agir representa uma violação dos direitos fundamentais, reconhecendo – se a
faculdade do particular reagir contra a inércia mediante a busca de uma tutela
jurisdicional. A inatividade ou o não agir, portanto, contradiz o dever de atuação
dinâmica que a própria Constituição impõe à Administração Pública.
35 Cf. José Reinaldo de Lima Lopes, citando Kelsen. Direito Subjetivo e Direitos Sociais: O Dilema do
Judiciário no Estado Social de Direito. In Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. José Eduardo
Faria (organizador). 1ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 114.
36 Cf. Riccardo Guastini, citando Luigi Ferrajoli. Tres Problemas para Luigi Ferrajoli.In Los
fundamentos de los derechos fundamentales. Luigi Ferrajoli. Debate com Luca Baccelli e outros.
Madrid: Editorial Trotta, 2001,p. 57
37 Em busca do acto administrativo perdido…, op. cit., p. 213.
15
Daí decorre a conclusão de que são direitos subjetivos porque,
como esclarece Marcelo Rebelo de Souza, correspondem ao “poder de cada qual agir e
exigir um comportamento de outrem”38, este, no caso em testilha, corporificado na
Administração Pública.
Resumindo para esclarecer: a Constituição e os princípios
fundamentais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, funcionam como “lei”
habilitante do dever de agir da Administração Pública e do correlato direito subjetivo
do individuo à implementação das políticas públicas necessárias à proteção do direito
à saúde. Há, segundo Paulo Otero, a “substituição da lei pela Constituição como
fundamento de agir da Administração”39. Ousamos ir além: existe a substituição da lei
pela Constituição também como fundamento do direito subjetivo do indivíduo de
exigir um comportamento ativo da Administração, o qual fundamenta, por seu turno, a
faculdade do titular do direito de postular uma tutela jurisdicional em caso de omissão
do poder público.
Em bom rigor, o dever da Administração Pública de agir para a
concretização do direito fundamental à saúde é corolário do princípio da juridicidade,
segundo o qual a atividade da Administração não está vinculada à reserva total de lei,
mas a atuação administrativa deve ter por base uma norma jurídica prévia, “qualquer
que seja sua classe formal”40, Constituição, lei ou regulamento.
No caso em apreço, a atuação da Administração Pública e o
correlato direito subjetivo público do cidadão têm por fundamento, direta e
imediatamente, a própria Constituição41, cumprindo, dessa forma, o princípio da
38 Introdução ao Estudo do Direito. 5ª ed. Lisboa: Lex, 2000, p. 10.
39 O Poder de Substituição em Direito Administrativo, vol. II…, op. cit., p. 571.
40 Cf. Marcos Gómez Puente. La inactividad de la Administración.3ª ed.Navarra: Editorial Arazandi, p.
82.
41 Sempre esclarecedoras as palavras de Paulo Otero, segundo as quais “a subordinação dos órgãos
administrativos à Constituição não é mera delicadeza do texto constitucional, antes constitui a
afirmação de um princípio que coloca na Constituição, em paralelo com a lei, uma fonte habilitadora do
agir da Administração”. Entendimento contrário, conclui o autor, acabaria “por conduzir a um
fenómeno de inferioridade ou menoridade da Constituição perante a lei”, bem como tornaria o poder
administrativo como o “único Poder do Estado imune a uma relevância directa do princípio da
constitucionalidade” (O Poder de Substituição em Direito Administrativo, vol. II…, op. cit., p. 573).
16
juridicidade, que se caracteriza pela conjugação dos princípios da legalidade e da
constitucionalidade.
Estabelece-se, como isso, uma relação jurídica entre o titular
do direito fundamental à saúde e a Administração Pública, que encontra o seu
fundamento na Constituição e nos princípios fundamentais. Não há, nesse caso,
qualquer supremacia fática ou jurídica da Administração Pública, mas uma relação
jurídica em que dois sujeitos de direito se relacionam de “igual para igual”: a) um
deles é o indivíduo como titular do direito fundamental à saúde; b) e o outro a
administração pública como pessoa jurídica de direito público interno, que pauta sua
atividade pela busca do interesse público. Essa relação jurídica implica o
reconhecimento de um direito subjetivo do particular a omissões e ações dos poderes
públicos, e um correlato dever da Administração de omitir-se e de agir, tendo
como fonte direta os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa
humana. Donde se infere que a dignidade da pessoa humana fundamenta o
reconhecimento de direitos subjetivos frente à Administração Pública, porquanto o
indivíduo não pode ser tratado como um objeto, mas deve sê-lo como um sujeito de
direito.
No entanto, a atuação complexa e interventora da
Administração Pública no Estado Social e Democrático de Direito não fica
simplificada subjetivamente à situação singular de um indivíduo (Administração –
cidadão)42. A própria Constituição ampliou a incidência do direito fundamental à saúde
para além da relação jurídica subjetiva Administração – indivíduo, “fixando objetivos
de caráter coletivo ou social e impondo à Administração deveres que não podem
conter-se no molde individualista direito e obrigações subjetivos”43. Constata-se,
assim, que os deveres da administração, além da satisfação de interesses
subjetivos, devem representar a concretização de interesses gerais ou coletivos.
É importante esclarecer, como já fizemos, que o direito do
cidadão e o correlato dever da Administração nascem da própria Constituição (artigo
196 e 186), sem necessidade de norma densificadora.
42 Cf. Marcos Gómez Puente. La inactividade…, op. cit., p. 75.
43 Idem, p. 74
17
A eficácia imediata do preceito constitucional definidor do
direito fundamental à saúde fundamenta o comportamento ativo da Administração
Pública, visando a tutela dos princípios da igualdade e liberdade, em seu aspecto
material, e da dignidade da pessoa humana.
Em outro enfoque, mas não menos importante, o direito
fundamental à saúde, segundo a classificação de Gomes Canotilho, é um direito
originário a prestações, porquanto da norma constitucional decorre, sem a necessidade
de interposição de lei infraconstitucional, a obrigação de a Administração Pública
implementar e concretizar o referido direito social e a correlata faculdade de o cidadão
exigir as prestações necessárias à defesa do seu direito fundamental. A Administração
Pública tem, então, o dever, imposto diretamente pela Constituição, de implementar
uma política de bem-estar social e não apenas acudir as necessidades dos desvalidos44.
Essa política converte-se em ações dos poderes públicos, necessárias à proteção da
dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade materiais.
Destarte, do artigo 196, da Constituição Federal, e do artigo
186, da Constituição do Estado de Minas Gerais, derivam (a) um domínio jurídico-
subjetivo que fundamenta um direito fundamental subjetivo definitivo à saúde; e (b) o
dever da Administração Pública de implementar as prestações públicas necessárias
para garantir a fruição do respectivo direito pelo titular, bem como a efetivação do
princípio da dignidade da pessoa humana.
Além disso, o direito fundamental à saúde constitui a
extensão da proteção do direito à vida. Donde se conclui que esse direito social é
análogo aos direitos, liberdades e garantias e goza do respectivo regime reforçado
de proteção, mormente a aplicabilidade imediata 45 .
Aceita a tese de que o direito fundamental à saúde, como
direito a prestação, tem como fim a proteção do direito a vida e a dignidade da pessoa
humana, não há como questionar a sua natureza de direito subjetivo público; a sua
aplicabilidade imediata; e a sua justiciabilidade.
44 Nesse sentido, Cristina M. M. Queiroz, citando Frist Ossenbühl, Direitos Fundamentais, op.cit., p.
156.
45 Nesse sentido J. C. Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais..., op. cit., p. 388.
18
Nestes termos, impende concluir que o direito fundamental à
saúde tem natureza de direito subjetivo público definitivo vinculante e constitui a
extensão do próprio direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Decorre daí a
faculdade do titular do direito de exigir, independentemente de qualquer opção
legislativa, as ações necessárias à implementação e concretização do direito
fundamental social.
Para ilustrar o nosso raciocínio tomemos como exemplo a
situação que até pouco tempo vigorava no Brasil com relação aos doentes com AIDS
(SIDA), para demonstrar a imprescindibilidade e a plausibilidade jurídica de retirar-se
direitos subjetivos públicos a prestações diretamente da Constituição, assim como o
correlato dever da Administração Pública de implementar prestações destinadas a
concretizar os direitos sociais.
No Brasil não havia qualquer legislação que concretizasse o
direito fundamental dos doentes de AIDS (SIDA) receberem gratuitamente a
medicação, denominada “coquetel” por ser constituída por vários remédios, que
garantiria a sobrevivência (não a cura) com dignidade dessas pessoas; que
determinasse os meios e os recursos necessários à concretização específica desse
direito fundamental; nem tampouco de quem era a atribuição para fornecer a
medicação, ou seja, qual dos três níveis da Administração Pública - municipal ,
estadual ou federal- estaria obrigada a cumprir a norma constitucional.
Existiam apenas os preceitos constitucionais, que assim
prescreviam: “art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado…”; “art. 197. São
de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor,
nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle…”.
Analisando apenas esses dois artigos da Constituição do Brasil,
alguns operadores do direito concluíram que a norma constitucional exigia uma lei
infraconstitucional para concretizar o direito à saúde.
Com efeito, quando um doente de AIDS (SIDA) postulasse
perante o Poder Judiciário que lhe fosse fornecida, gratuitamente, a medicação
necessária à sua sobrevivência, o magistrado não poderia condenar a Administração
Pública na obrigação de fazer ou de dar, porque não havia lei infraconstitucional
19
concretizadora do preceito previsto na Constituição. Utilizando uma linguagem
coloquial, seria o mesmo que afirmar: “ o senhor, doente de AIDS (SIDA), que não
possui condições financeiras para comprar os medicamentos que compõem o
“coquetel”, vá para casa e aguarde a morte, pois não há lei que regulamente a norma
constitucional e determine o fornecimento de medicamentos pela Administração
Pública”. Ou, ainda, poderia determinar que o titular do direito à saúde postulasse, por
intermédio de um mandado de injunção, que o Poder Legislativo fosse cientificado
pelo Poder Judiciário para legislar e, caso se quedasse inerte, não haveria como
compeli-lo a cumprir o seu dever. Em suma, seria o mesmo que decretar uma sentença
de morte ao doente.
Ora, o Estado não poderia relegar à morte uma pessoa, pelo
simples fato de não possuir condições financeiras para comprar medicamentos.
Nessa hipótese, o Poder Judiciário condenou a Administração
Pública a fornecer os medicamentos, extraindo diretamente da Constituição, sem
necessidade de aguardar a ação do Poder Legislativo, o conteúdo concreto do direito
ao mínimo necessário à existência condigna dos doentes de AIDS (SIDA). Tal
determinação judicial representa a concretização do princípio da dignidade da pessoa
humana e encontra fundamento no dever de proteção do próprio direito à vida.
O Supremo Tribunal Federal prescreveu que:
“Medicamentos para Pacientes com AIDS (Transcrições) RE
267.612-RS* RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO EMENTA: PACIENTES
COM HIV/AIDS. PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS.
DIREITO À VIDA E À SAÚDE. FORNECIMENTO GRATUITO DE
MEDICAMENTOS. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º,
CAPUT, E 196). PRECEDENTES (STF). - O direito público subjetivo à saúde
representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas
pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico
constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira
responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas
sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e
igualitário à assistência médico-hospitalar. - O caráter programático da regra
inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes
políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado
20
brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob
pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável
dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental…”
E prossegue o Ministro relator:
“(…)Na realidade, o cumprimento do dever político-
constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente
na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que,
associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público,
qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa
organização federativa. A impostergabilidade da efetivação desse dever
constitucional desautoriza o acolhimento do pleito recursal ora deduzido na
presente causa. Tal como pude enfatizar, em decisão por mim proferida no exercício
da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da
presente causa (Pet 1.246-SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à
saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela
própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196), ou fazer prevalecer,
contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do
Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-
jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o
respeito indeclinável à vida e à saúde humana “(grifo nosso).
Em conclusão, o v. aresto preleciona:
“ (…)O sentido de fundamentalidade do direito à saúde - que
representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa
humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas -
impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por
cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências
destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada
pelo texto constitucional. Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação
dos direitos sociais - que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação
constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica
(JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Poder Constituinte e Poder Popular", p. 199, itens
21
ns. 20/21, 2000, Malheiros) -, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional
consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a
permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação
estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias
instrumentalmente vinculado à realização, por parte das entidades governamentais,
da tarefa que lhes impôs a própria Constituição. Não basta, portanto, que o Estado
meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial
que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele
integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em
que o direito - como o direito à saúde - se qualifica como prerrogativa jurídica de
que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações
positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional. Cumpre assinalar,
finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador
constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços
de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do
Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente,
deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe,
arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por
qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.
Todas essas considerações - que ressaltam o caráter incensurável da decisão
emanada do Tribunal local…”46
A decisão do órgão supremo do Poder Judiciário é
emblemática e de fundamental importância para o caso em análise. Decorrem dela
várias ilações, que podem assim ser sintetizadas:
a) o tribunal reconheceu o direito subjetivo público de exigir o
cumprimento de prestações positivas pelo Estado, necessárias à concretização do
direito social (saúde). O direito subjetivo decorre diretamente do artigo 196, da
46 Decisão proferida em recurso extraordinário interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul, com o objetivo de
buscar a reforma de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça local, que reconheceu incumbir, a essa unidade
federada, com fundamento no art. 196 da Constituição da República, a obrigação de fornecer, gratuitamente, aos
doentes de AIDS (SIDA), medicamentos necessários ao tratamento da moléstia, eis que se refere a pacientes
destituídos de recursos financeiros e portadores do vírus HIV. Recurso extraordinário 267612. Disponível em:
«www.stf.gov.br/jurisprudência». Acesso em: 14 de Setembro de 2003.
22
Constituição Federal, sem necessidade de intervenção legislativa. Ou seja, o tribunal
prescreveu que o direito à saúde é um direito originário à prestação;
b) como consequência da conclusão anterior, o Supremo
Tribunal Federal reconheceu o dever do Poder Público de implementar políticas
públicas, isto é, um dever de prestação positiva, que visa a garantia de um direito
social (saúde);
c) o tribunal esclareceu que, apesar do caráter programático da
norma constitucional, todos os entes políticos estão vinculados ao cumprimento do
preceito, sob pena de, em caso de omissão, o Poder Público “substituir, de maneira
ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável
de infidelidade governamental”;
d) o Supremo Tribunal Federal afirmou, também, que, no
conflito entre a proteção de um direito fundamental inviolável e inalienável - no caso
o direito à vida e à saúde – e o interesse financeiro do Estado, deve prevalecer o direito
fundamental. Com espeque no conflito entre princípios constitucionais, o Tribunal
apresentou uma solução para afastar o caráter absoluto que alguns doutrinadores
atribuem ao princípio da reserva do possível.
e) por fim, o acórdão traz em seu bojo o reconhecimento da
legitimidade do Ministério Público e do Poder Judiciário para atuar, com a finalidade
de suprir a omissão do Poder Legislativo, que, arbitrariamente, frustra a eficácia
jurídico-social da norma constitucional. Extrai-se dessa conclusão e, utilizando-se uma
expressão de Robert Alexy, o seguinte: “(…) de modo algum um tribunal
constitucional é impotente frente a um legislador inoperante”47.
Do v. aresto dessume-se que, mesmo em caso de omissão do
Poder Legislativo, a Administração Pública deve (não é uma faculdade) implementar
as políticas públicas necessárias para garantir o gozo efetivo do direito fundamental à
saúde (prestação positiva do Estado), no limite do mínimo necessário à existência
47 Citando W. Schmidt. Teoria de Los Derechos Fundamentales. 2ª reimpressão.Madrid: Centro de
Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 496
23
condigna, pois esse mínimo pode “considerar-se, em regra, constitucionalmente
determinado, em termos de ser judicialmente exigível”48.
Assim, a atuação positiva da Administração Pública assume
um papel de extrema importância para a concretização do direito fundamental à saúde,
tendo a conduta do Município o objetivo de proteger o princípio superior do sistema
jurídico – princípio da dignidade da pessoa humana - e de garantir uma vida com
qualidade a todas as pessoas.
Nesse sentido, a Constituição Federal atribui aos municípios o
dever de prestar serviços de atendimento à saúde da população:
“Art. 30. Compete aos Municípios:
VII- prestar, com cooperação técnica e financeira da União e
do Estado, serviços de atendimento à saúde da população” –
grifei.
Apesar do dever do Município de fornecer serviços de
atendimento à saúde da população decorrer da própria Constituição (artigos 30, 196, e
198), como forma de concretização e proteção da dignidade da pessoa humana (artigo
1º, inciso III, da Constituição Federal) e do direito à vida (artigo 5º, caput, da
Constituição Federal), o legislador infraconstitucional densificou os preceitos insertos
na Carta Magna por via da Lei nº 8.080/90.
48 Cf. José Carlos Vieira de Andrade. O mesmo autor suscita algumas dúvidas pertinentes ao caso que
citamos como exemplo. Ei-las: “ não deverá defender-se que é constitucionalmente insuportável a
situação do cidadão cujas necessidades mínimas em matéria de habitação, de tratamento médico e
sanitário, de alimentação, de educação, não são satisfeitas? Não deverá, então reconhecer-se a todas as
pessoas o direito a esse mínimo, independentemente de quaisquer opções legislativas?”. Ademais, o
constitucionalista traz à baila outras dúvidas, as quais concretiza em duas indagações: (a) o direito ao
mínimo não constitui a concretização da dignidade da pessoa humana?, e (b) o direito ao mínimo não
implica a proteção do próprio direito à sobrevivência, “enquanto direito social de personalidade,
entendido como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (…)?” ( Os direitos
fundamentais na Constituição Portuguesa…, op. cit., p. 386-388).
24
II.3- Da Lei nº 8.080/90
O artigo 2º, da norma sob comento, prescreve que
“A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo
o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício”.
“§1º: O dever do Estado de garantir a saúde consiste na
formulação e execução de políticas econômicas e sociais que
visem à redução de riscos de doença e de outros agravos e no
estabelecimento de condições que assegurem acesso
universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação.”
Já o artigo 4º reza que:
“O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por
órgãos e instituições públicas federais, estaduais e
municipais, da Administração Direta e Indireta e das
fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema
Único de Saúde – SUS”.
Por seu turno, o artigo 5º preleciona:
“São objetivos do Sistema Único de Saúde – SUS:.
...
“III- a assistência às pessoas por intermédio de ações de
promoção, proteção e recuperação da saúde, com a
realização integrada das ações assistenciais e das atividades
preventivas.”
No mesmo sentido, o artigo 7º:
“As ações e serviços púlicos de saúde e os serviços privados
contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de
25
Saúde – SUS, são desenvolvidos de acordo com as diretrizes
previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo
ainda aos seguintes princípios:
I_ universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os
níveis de assistência;
II integralidade de assistência, entendida como conjunto
articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e
curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em
todos os níveis de complexidade do sistema;
IV igualdade da assistência à saúde, sem preoconceitos ou
privilégios de qualquer espécie;
...
XXII- capacidade de resolução dos serviços em todos os
níveis de assistência”.
Extrai-se dos preceitos citados que o legislador
infraconstitucional apenas concretizou, na lei ordinária, a proteção do direito à saúde,
inserto na Constituição Federal como direito fundamental social.
II.4. Do Estatuto do Idoso
O artigo 2º, da Lei nº 10.741, de 1º de Outubro de 2003,
prescreve que o idoso é titular de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe assegurado todas as “oportunidades e facilidades, para a
preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual,
espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.
Para garantir que o idoso goze de todos os direitos
fundamentais, o estatuto estabelece, com absoluta prioridade, a responsabiliade da
família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público de assegurar a efetivação
do “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao
26
lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência
familiar e comunitária” (artigo 3º).
O artigo 9º reitera a obrigação do Estado de garantir à pessoa
idosa a proteção à vida e à saúde, “mediante efetivação de políticas sociais públicas
que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade”
Já o artigo 10 impõe ao Estado a obrigação de assegurar à
“pessoa idosa a liberdade, o respeito, a dignidade, como pessoa humana e sujeito de
direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis”.
Ora, o legislador infraconstitucional apenas concretizou na lei
ordinária o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos à vida, à liberdade e
à saúde previstos na norma constitucional.
Com relação ao direito à saúde, cuja importância se mostra
capital no caso do fornecimento de medicamentos aos idosos, o artigo 15 prescreve
que:
“É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por
intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-
lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e
contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção,
proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção
especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.
“§ 1º A prevenção e a manutenção da saúde do idoso serão
efetivadas por meio de:
“I – cadastramento da população idosa em base territorial;
“II – atendimento geriátrico e gerontológico em
ambulatórios;
“III – unidades geriátricas de referência, com pessoal
especializado nas áreas de geriatria e gerontologia social;
27
“IV – atendimento domiciliar, incluindo a internação, para
a população que dele necessitar e esteja impossibilitada de se
locomover, inclusive para idosos abrigados e acolhidos por
instituições públicas, filantrópicas ou sem fins lucrativos e
eventualmente conveniadas com o Poder Público, nos meios
urbano e rural;
“V – reabilitação orientada pela geriatria e gerontologia,
para redução das seqüelas decorrentes do agravo da saúde.
“§ 2º Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos,
gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso
continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos
relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação (grifo
nosso)..
Analisando-se a Constituição Federal e o Estatuto do Idoso
conclui-se que o Município de Campestre está obrigado a fornecer medicamentos aos
idosos, não só para tratamento da osteoporose, mas para combater outras
enfermidades, a fim de garantir o direito à saúde, proporcionando uma vida com
qualidade e digna aos idosos.
O artigo 4º preceitua que qualquer atentado aos direitos do
idoso, por ação ou omissão, deve ser punido na forma da lei.
Nessa linha de proteção, o artigo 5º estabelece que a
“inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade à pessoa
física ou jurídica nos termos da lei”.
Os documentos juntados ao Procedimento Preparatório n°
_______ nos mostram que o Município de Ribeirão das Neves não tem cumprido o seu
dever Constitucional e legal. Dessa forma todas as pessoas idosas, sobretudo as de
baixa renda, encontram-se tolhidas em seu direito de acesso à saúde, com grave
prejuízo à vida e à dignidade desses hipossuficientes. Tal omissão do réu viola, de
28
forma frontal, os artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 9º, 10 e 15, da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do
Idoso), bem como os artigos 1º, inciso III; 5º, caput; 196; e 230, caput, da Constituição
Federal.
Contemplada a ação da Administração Pública como um dever
jurídico e constatada a relevância jurídica da omissão, é importante ressaltar que o
dever de fornecer medicamentos aos idosos não se insere no poder discricionário da
administração pública.
II.5- Da responsabilidade do Município de Ribeirão das Neves.
Analisando-se a Constituição Federal e a Legislação ordinária
em vigor conclui-se que o réu está obrigado a fornecer o atendimento integral ao
paciente Washington Campos Prado, a fim de garantir-lhe o direito à saúde, como
forma de proporcionar-lhe uma vida com qualidade e digna.
Nesse sentido, o artigo 18, da Lei nº 8.080/90, diz que à
direção municipal do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
“I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os
serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de
saúde”.
Com relação ao transporte da paciente fora do domicílio em
que reside, a Portaria /SAS/ nº 055, de 24 de fevereiro de 1999, regulamenta o TFD e
diz que:
“ Art. 1º - Estabelecer que as despesas relativas ao
deslocamento de usuários do Sistema Único de Saúde – SUS
para tratamento fora do município de residência possam ser
cobradas por intermédio do Sistema de Informações
Ambulatoriais – SIA/SUS, observado o teto financeiro
definido para cada município/estado”.
29
Já o artigo 4º, da referida portaria, estabelece que:
“ Art. 4º - As despesas permitidas pelo TFD são aquelas
relativas a transporte aéreo, terrestre e fluvial; diárias para
alimentação e pernoite para paciente e acompanhante,
devendo ser autorizadas de acordo com a disponibilidade
orçamentária do município/estado”.
Apesar de todo o arcabouço legislativo determinar a
responsabilidade do Município pelo transporte e tratamento de Washington Campos
Prado, os documentos coligidos nos mostram que o réu não tem cumprido o seu dever
constitucional e legal. Dessa forma, o paciente de baixa renda e hipossuficiente
encontra-se tolhido em seu direito de acesso à saúde, com grave prejuízo à sua vida e
à sua dignidade. É patente a violação dos artigos 1º, inciso III; 5º, caput; 196 e 198, da
Constituição Federal, e artigo 186, da Constituição do Estado de Minas Gerais.
Da Constituição e da legislação ordinária extrai-se o dever de
agir da Administração Pública e o correlato direito subjetivo público ao tratamento
médico adequado. Isso gera um direito de reação do titular do direito fundamental
frente à omissão da Administração Pública. Tal conclusão é conseqüência da
vinculação direta da Administração Pública aos direitos fundamentais sociais.
Nesse contexto, a inação, ou omissão, ou o non facere da
Administração Pública configura-se como um ato lesivo aos direitos fundamentais,
porquanto representa a negação de um direito subjetivo ao portador de cirrose
hepática e o descumprimento de um dever de agir imposto pela Constituição e pela lei.
O titular do direito subjetivo público vê-se impossibilidade de usufruir do direito
fundamental à saúde, justamente em decorrência da recusa da prestação pela
Administração Pública.
Considerando, portanto, que a obrigação de agir da
Administração Pública deriva da Constituição e da Lei, impondo ao poder público o
30
dever (e não a faculdade) de implementar os meios necessários à concretização dos
direitos fundamentais sociais, a omissão administrativa é ilícita e inconstitucional49.
Decorre daí a relevância jurídica da omissão para a proteção
dos direitos fundamentais. Da mesma maneira que nos clássicos direitos de defesa
somente se consideravam violados os direitos fundamentais pela ingerência arbitrária
do Estado no âmbito das liberdades individuais, para os direitos sociais, “na lógica da
Administração prestadora, a não atuação significa a recusa de uma benefício a um
particular”50 e uma ofensa à Constituição.
Marcos Gómez Puente esclarece que, em virtude do
protagonismo da atividade administrativa na vida política e social, a “inatividade da
Administração põe em perigo a eficácia política do modelo social de Estado”. Conclui
o autor que a omissão da Administração Pública é ilegal e, se permanecer “impune”,
negaria “os postulados básicos do Estado de Direito que se resumem ao princípio da
legalidade”51.
Com espeque nas ilações do aludido autor e nos argumentos já
apresentados, conclui-se que a omissão da Administração Pública nega o princípio da
juridicidade, que congrega os princípios da legalidade e da Constitucionalidade.
Ademais, na esteira do que disse o autor espanhol, o non facere põe em perigo a
eficácia dos Direitos Fundamentais sociais.
Esse dever da Administração Pública, cuja omissão constitui
uma ofensa à Constituição e à legislação ordinária, é um dever jurídico. Donde se
depreende que há necessidade da existência de um poder que determine o
cumprimento do preceito Constitucional em caso de violação do dever de agir. Se não
existisse o poder de coação ou de sanção do comportamento, não apenas ilegal, senão
49 Rodolfo de Camargo Mancuso esclarece que as “inconstitucionalidades que podem inquinar as
políticas públicas tanto podem se revelar por via comissiva, com o fracasso dos objetivos colimados
(…), como podem ainda ocorrer por via omissiva, ante uma abstenção inescusável…” (A Ação Civil
Pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas. In Ação Civil Pública -
Lei nº 7.347/85- 15 anos. Obra Coletiva. Coordenador Edis Milaré. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2002., p. 787).
50 Cf. Vasco Pereira da Silva. Em busca do acto administrativo perdido…, op. cit., p. 101-102.
51 La inactividad de la Administración…, op. cit., p. 77.
31
também inconstitucional da Administração, não seria um dever jurídico, mas apenas
moral. Essa atribuição materializa-se no Poder Judiciário.
Assim, da vinculação da Administração Pública à Constituição
no Estado Social e Democrático de Direito resultou um dever de atuação positiva do
Município de Ribeirão das Neves, que visa a concretização do direito fundamental à
saúde.
Verifica-se, pela análise da Circular CRS/GRS/BH n°
021/2009, juntada nos autos do procedimento preliminar, que o Município de Ribeirão
das Neves se utiliza da Programação Pactuada Integrada para realização, em unidade
hospitalar localizada em Belo Horizonte, de exames, consultas, cirurgias e outros
procedimentos médicos não realizados neste nosso Município.
O artigo 1° da Portaria 1.097, de 22/05/2006, do Ministério da
Saúde, define a Programação Pactuada e Integrada de Assistência à Saúde como sendo
um processo instituído no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde), em consonância
com o processo de planejamento, em que são definidas e quantificadas as ações de
saúde para a população em cada território, bem como efetuado os pactos intergestores
para a garantia de acesso à população aos serviços públicos de saúde.
A Programação Pactuada e Integrada representa uma garantia
aos usuários do serviço público de saúde do município de Ribeirão das Neves do
acesso aos exames e demais procedimentos de saúde não disponibilizados no
Município.
Constata-se que Ribeirão das Neves tem pactuado com Belo
Horizonte, através de coordenação do setor estadual, vários serviços de saúde de alta e
média complexidade, contemplando o exame de tomografia computadorizada, do qual
necessita a idosa.
Nesse sentido, é dever do Município disponibilizar ao idoso
____ os meios necessários para que possa realizar o tratamento médico necessário ao
tratamento do ___________ a que foi acometido, proporcinando-lhe o acesso ao
adequado atendimento médico para que seu direito fundamental à vida seja
preservado.
32
Contemplada a ação da Administração Pública como um dever
jurídico, e constatada a relevância jurídica da omissão, é importante ressaltar que o
dever de pagar a realização dos exames de tomografia computadorizada do abdome e
angiotomografia ao paciente Washington Campos Prado não se insere no poder
discricionário da administração pública.
II.6. A discricionariedade mínima da Administração Pública
A Administração Pública está vinculada aos preceitos
Constitucionais e Legais definidores dos direitos sociais e à concretização dos
princípios da igualdade real e da dignidade da pessoa humana.
Decorre, outrossim, da Constituição e da Legislação ordinária
um direito subjetivo público em face da Administração Pública, consistente no dever
desta implementar as políticas públicas indispensáveis à concretização dos direitos
fundamentais sociais, mormente a obrigação de fornecer, gratuitamente,
medicamentos. Tal dever constitucional e legal visa proteger os hipossuficientes-
idosos-, garantindo-lhes uma vida com dignidade.
Amalgamados esses dois elementos – dever da Administração
Pública e direito subjetivo público dos idosos – depreende-se que, ao invés da
atribuição de um poder discricionário à Administração Pública, entendido como a
faculdade conferida por lei para escolher, mediante critérios de oportunidade e
conveniência, se implementa políticas públicas ou não52, a Constituição e a Lei
impuseram a atuação administrativa de forma a garantir os patares mínimos
necessários à proteção da pessoa humana e da sua dignidade. Logo, a Administração
Pública não tem a faculdade de decidir, por questões de conveniência ou oportunidade,
se concretiza ou não os direitos sociais por intermédio das políticas públicas, ou, como
no caso em apreço, se fornece ou não medicamentos aos idosos.
52 Maria Sílvia Zanella Di Pietro conceitua discricionariedade administrativa como: “a faculdade que a
lei confere à Administração para apreciar o caso concreto, segundo critérios de oportunidade e
conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito”
(Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 67.
33
María Jesús Montoro Chiner afirma que não é lícito à
Administração Pública, por decisão própria, omitir-se na prática de uma conduta
imposta por lei, porquanto, segundo ela, quando uma lei estabelece obrigações
administrativas, a Administração não goza do poder de decisão sobre a sua execução
ou não53.
Isso não significa a erradicação da discricionariedade, mas
implica uma vinculação da Administração Pública aos fins impostos pela Constituição
e pela Lei. O poder público não tem a liberdade de escolher se implementa ou não as
políticas públicas imprescindíveis à garantia do mínimo indispensável à existência
condigna, pois deve fazê-lo. A discricionariedade existe na possibilidade de escolha
dos meios que serão utilizados para alcançar os fins determinados pela Constituição e
pelo estatuto do idoso, isto é, entre várias alternativas de políticas públicas a
Administração deverá escolher uma que se adapte melhor à garantia de determinado
direito social. Mesmo nessa hipótese, a liberdade da Administração Pública não será
total, mas estará vinculada aos princípios da legalidade, moralidade, eficiência,
adequação, razoabilidade e proporcionalidade.
O que se verifica é também reflexo da evolução do Estado
Liberal para o Estado Social e Democrático de Direito, cujo resultado foi a
reformulação do antigo conceito de poder discricionário54. Hoje, há o entendimento de
que o espectro de liberdade de escolha do poder público é reduzido, pois os atos estão
vinculados aos novos imperativos fáticos e sociais. Isso nos leva a concluir que a
Administração Pública está sujeita a uma “liberdade vigiada”55. Nesse contexto, o
53 La Inactividade Administrativa en el Processo de Ejecucion de las Leys. Control Jurisdiccional
“versus” fracaso Legislativo. In Revista de Administración Publica. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, maio-agosto de 1986, p. 263-365.
54 Miguel Sánchez Moron reconhece que se deixou de considerar a discricionariedade administrativa
como “um âmbito material confiado à livre disposição da Administração, injusticiável por essência”.
Esta concepção, segundo o autor, denota a ruptura decisiva com “a teoria do direito público do século
passado”. No entanto, o autor ressalta que, apesar da discricionariedade estar submetida aos limites
jurídicos gerais e a regras de organização e procedimento, não se justifica a sua eliminação no Estado de
Direito. Por fim, alerta que o controle judicial da discricionariedade administrativa tem limites e não
pode interferir nos aspectos políticos, técnicos ou não jurídicos” (Discrecionalidad administrativa y
control judicial. 1ª ed. Reimpressão. Madrid: Editorial Tecnos, 1995, p. 91).
34
poder discricionário administrativo, antes ilimitado, restringe-se a um campo
delimitado pelos princípios acima mencionados.
Tal concepção levou Rodolfo de Camargo Mancuso a afirmar
que se deu a superação do Estado de Direito formal ou retórico “(= correspondência
teórica ou abstrata entre a conduta administrativa e a norma de regência), por um
modelo de Estado de Direito num sentido plenamente material”, segundo o qual os
atos dos poderes públicos, para terem validade, devem estar em consonância “com os
valores maiores da moralidade, eficiência, economicidade, razoabilidade,
proporcionalidade, não bastando mais, simplesmente, a mera coincidência entre o ato
ou conduta e a norma de regência”56. E justamente são esses princípios que regem a
atividade administrativa, autorizando o controle jurisdicional amplo da Administração
Pública57.
Destarte, para que o ato administrativo, especificamente o ato
que concretiza as políticas pública, tenha validade é necessário que, além de subsumir-
se à lei e à Constituição, corresponda à nota da efetividade58, isto é, adequar-se aos
valores subjacentes aos princípios prescritos na Constituição.
Para a ilustrar a concepção proposta, é importante trazer à
colação o seguinte exemplo: diante da escassez de recursos públicos, a Administração
Pública de um Município carente de políticas sociais básicas (tal como Campestre),
como saúde, educação, habitação, não pode comprometer o erário com obras de “mero
embelezamento”. Embora o ato administrativo possa cumprir o princípio da
legalidade, visto sob o prisma meramente formal, pois há uma subsunção do ato à lei,
no aspecto material, o comportamento da Administração Pública é passível de
55 Expressão utilizada por Rodolfo de Camargo Mancuso. A Ação Civil Pública como instrumento de
controle judicial das chamadas políticas públicas…, op. cit., p. 776.
56 A Ação Civil Pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas…, op.
cit., p. 769.
57 No sentido da “jurisdicização” da discricionariedade como ideal do Estado Social de Direito Vasco
Pereira da Silva. Em busca do acto administrativo perdido…, op. cit. P. 90. Invocando a lição de Freitas
do Amaral, o autor afirma que não há, em regra, atos totalmente vinculados, nem atos totalmente
discricionários, pois “quase todos os atos administrativos são simultaneamente vinculados e
discricionários…” (op. cit., p. 88).
58 No mesmo sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso, op. cit., p. 769.
35
questionamento, justamente porque não cumpriu os princípios da razoabilidade e
eficiência.
A Administração Pública, no exercício da atividade de
implementação de políticas públicas, não tem discricionariedade para empregar o
dinheiro público ao talante do “chefe de plantão” (Prefeito) Ao contrário, para que o
ato, além de válido seja eficaz, deve cumprir o direito positivo (a lei ou Constituição) e
os princípios e valores superiores e anteriores ao Constituinte, que, muitas vezes,
encontram-se positivados nos textos constitucionais59.
Essa concepção, em última análise, demonstra a vinculação da
Administração não apenas ao princípio da legalidade, entendido este como a exigência
de correspondência entre o ato administrativo e a lei formal, mas também ao princípio
mais amplo da juridicidade, consistente na subsunção do ato à Constituição, à lei, aos
princípios e valores.
Isso não significa que a Administração não se sujeita à lei, mas
que encontra o fundamento de validade para a sua atuação na Constituição e nos
princípios fundamentais. Logo, a Administração vê-se “obrigada” a implementar
políticas públicas, sobretudo garantir o fornecimento de remédios aos idosos, à medida
em que os direitos fundamentais sociais e os princípios da igualdade real e da
dignidade da pessoa humana “exigem”, para a sua concretização e proteção, um
comportamento ativo do poder público.
De todo o exposto é forçoso reconhecer que a Administração
Pública, no Estado Social e Democrático de Direito, não tem a função apenas de
executar a lei. Além dessa função, a Administração tem o dever de agir para satisfazer
os interesses públicos, submetendo-se à Constituição e aos princípios fundamentais.
Estes operam como fundamento da atuação da Administração Pública e como limite
negativo da discricionariedade administrativa. Discricionariedade que consiste, não na
análise da oportunidade e conveniência da implementação da política pública, mas na
59 A Constituição do Brasil, no artigo 37, caput , prescreve que a Administração Pública deve obedecer
“os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência…”. No mesmo
sentido, a Constituição de Portugal, no artigo 266º, nº 2, determina que os órgãos e agentes
administrativos devem atuar com respeito “pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da
justiça, da imparcialidade e da boa-fé”.
36
escolha de qual, entre duas ou mais opções, adapta-se melhor ao objetivo proposto
pela própria Constituição e pelo Estatuto do Idoso.
Nessa hipótese, a discricionariedade administrativa não está
isenta de controle, o qual deve ser exercido não só pelo Poder Judiciário, senão
também pela própria Administração Pública (auto-controle), pelo Poder Legislativo
(controle político) e pela sociedade.
Daí que não há discricionariedade do Município de Ribeirão
das Neves, ora réu, em escolher se fornece medicamentos ou não aos idosos, segundo
a sua conveniência e oportunidade. Vale dizer, o réu tem o dever de fornecer
medicamentos, porquanto a própria Constituição Federal e a Legislação Ordinária
assim impõem.
Com efeito, como o réu omitiu-se e não cumprir o seu dever
constitucional e legal, o Ministério Público detém legitimidade para postular a defesa
dos direitos dos idosos.
II.7- Da condenação do Município na obrigação de fazer e a não violação da
separação de poderes.
As transformações ocorridas pela instauração do Estado Social
e Democrático de Direito, como um “Estado Constitucional” e provedor do bem-estar,
determinaram também modificações na relação entre os poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário. Com isso, o princípio radical da separação de poderes, que
não previa um controle jurisdicional efetivo da atividade administrativa, transforma-se
em um modelo próprio do sistema democrático de direito, que autoriza a plenitude do
controle da Administração Pública pelo Poder Judiciário60.
A mutação da relação entre os poderes do Estado, com o
conseqüente controle pleno das atividades administrativas pelo Poder Judiciário61, está
60 No mesmo sentido Marcos Gómez Puente. La Inactividad de La Administración…, op. cit., p. 74.
61 António- Carlos Pereira Menaut aduz que “ no Estado Constitucional submete-se ao escrutínio
judicial todos os âmbitos da atuação política e administrativa” (Rule of Law o Estado de Derecho.
Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 89).
37
ligada à teoria da vinculação positiva da Administração Pública ao princípio da
juridicidade, segundo o qual os poderes públicos estão subordinados à Constituição e
aos princípios gerais de Direito, extraindo-se das normas constitucionais obrigações
positivas para a Administração Pública. Constitui uma evolução do princípio da
legalidade como limite negativo da atuação administrativa, que se caracterizava pela
imposição de obrigações de não fazer à Administração Pública. Logo, o controle pleno
da Administração Pública pelo Poder Judiciário, tanto com relação ao comportamento
ativo quanto ao negativo, deve-se à mudança da supremacia da lei pela supremacia da
Constituição.
Da supremacia da Constituição extrai-se também que o direito
fundamental à saúde é um direito subjetivo público, que legitima a pretensão do
indivíduo em face da Administração Pública.
A partir daí começa a ser objeto de conhecimento judicial a
omissão administrativa lesiva dos direitos fundamentais sociais.
Contudo, como a atuação da Administração Pública não se
restringe à esfera individual do titular do direito subjetivo, porquanto visa salvaguardar
também interesses coletivos, é necessário ampliar o controle jurisdicional para tutelar
os direitos individuais homogêneos.
Esses direitos são direitos individuais que, em razão de uma
origem fática comum, podem ser tutelados coletivamente em juízo, quando a
Administração Pública não cumprir o dever de agir imposto pela Constituição.
Impende concluir que a sindicabilidade judicial da omissão da
Administração pública tem por fundamento a vinculação positiva da Administração
Pública ao princípio da juridicidade e a natureza de direito subjetivo público do direito
fundamental à saúde, que, por seu turno, pode ser defendido coletivamente em razão
da sua característica de direito individual homogêneo.
Nessa linha de raciocínio, diante de uma Administração
prestadora de serviços públicos, a recusa em agir configura uma lesão ao direito
fundamental do cidadão e à própria Constituição. Por conseguinte, a inatividade da
Administração Pública assume relevância jurídica, autorizando os titulares do direito
38
fundamental à saúde buscar, individual ou coletivamente, a proteção jurisdicional
indispensável para afastar a lesão ao seu direito subjetivo.
Em outro falar, a lesão do direito subjetivo decorre da omissão
da Administração Pública. Sendo assim, para restaurar a legalidade e para a satisfação
do direito subjetivo do cidadão impõe-se uma atuação do Poder Judiciário.
Além da lesão ao direito subjetivo, a inatividade da
Administração Pública é inconstitucional, porque a omissão viola o dever de atuação
material deduzido da Constituição62 e da Lei.
Configurada a atuação da Administração Pública como um
dever jurídico e o correlato direito subjetivo do cidadão, assim como a
inconstitucionalidade da omissão, cabe ao Poder Judiciário exercer o poder coativo
para fazer cumprir a norma constitucional e os preceitos legais.
Nesse sentido, a atividade jurisdicional é ampliada para
solucionar conflitos coletivos e suprir a omissão inconstitucional da Administração
Pública, por intermédio de sentenças condenatórias em obrigações de fazer. Esse
comportamento do magistrado demonstra a superação do dogma da separação rígida
de poderes, pois no modelo jurídico-constitucional francês era proibido ao juiz
condenar a Administração a um fazer determinado63. Segundo o modelo de separação
de poderes do Estado Liberal, ao juiz caberia apenas fazer a subsunção do fato à
norma, dirimindo conflitos individuais.
62 Gomes Canotilho esclarece que “o princípio da conformidade dos actos do estado com a Constituição
(…) exige desde logo a conformidade intrínseca e formal de todos os actos dos poderes públicos (…)
com a constituição (art. 3º/2)”. O autor afirma ainda que os atos políticos também devem sujeitar-se aos
“parâmetros constitucionais e ao controlo (político ou jurídico) de conformidade (cf. Art. 3º, 3)”. Por
fim, o autor reconhece que o princípio da constitucionalidade não se restringe apenas à exigência de
atos que não violem positivamente à constituição, mas também a omissão inconstitucional…” (Direito
Constitucional e Teoria da Constituição…, op. cit., p. 246). Apesar de Canotilho aduzir que a omissão
inconstitucional refere-se à “falta de cumprimento do dever de legislar contido em normas
constitucionais”, entendemos que a amplitude do princípio da constitucionalidade e a força da
vinculação da Administração aos Direitos Fundamentais Sociais justificam a concepção que aceita a
inconstitucionalidade por omissão da Administração Pública.
63 Cf. Marcos Gómez Puente. La Inactividade de la Administración…, op. cit., p. 167.
39
Com a evolução ao Estado Social e Democrático de Direito, o
juiz não é somente a “boca que pronuncia as palavras da lei”64. A atuação do
magistrado vai além e assume um caráter concretizador dos direitos fundamentais
sociais, devendo suprir as omissões dos poderes Executivo e Legislativo.
Para cumprir essa função o magistrado deve, em razão da
omissão do réu, determinar que a Administração Pública implemente as prestações
necessárias à consecução dos fins previstos nos preceitos constitucionais e legais.
A atuação do magistrado não representa intromissão indevida
na esfera de atuação política da Administração Pública, mas apenas exercício da
função jurisdicional, decorrente do modelo de Estado de Direito. Trata-se, em poucas
palavras, da aplicação da norma constitucional ao caso concreto. Em consequência,
como a omissão da Administração Pública viola a Constituição e a Lei, e como cabe
ao Poder Judiciário velar pela constitucionalidade das ações ou omissões estatais, esse
poder deve afastar a inconstitucionalidade derivada da omissão da Administração
Pública e condená-la na obrigação de fazer.
O ato emanado do Poder Judiciário não viola o princípio da
separação de poderes, pois tem por fundamento restaurar a legalidade que fora violada
pela omissão da Administração Pública, assegurando a submissão plena de todos os
poderes do Estado à Constituição e ao Direito.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão da lavra de
Desembargador Lineu Peinado, analisou argumento do Município de São Paulo, que
fora condenado pelo juiz de primeira instância na obrigação de prestar assistência
social básica à população de rua da Capital, acerca do Poder Judiciário “ser
transformado em co-gestor dos recursos destinados ao bem-estar social”. O relator
refutou os argumentos do Município e alegou :
“ não se estar violando a disposição constante do artigo 2º da
Constituição da República [princípio da separação de
poderes], mesmo porque cabe exclusivamente ao Poder
64 Expressão cunhada por Eros Roberto Grau. A ordem econômica na Constituição de 1988. 5ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2000, p. 320.
40
Judiciário dizer o direito. E na hipótese concreta outra coisa
não se está fazendo senão dizer o Direito, determinando-se
seja cumprida a Constituição da República em sua inteireza.
Existindo norma constitucional determinando seja prestado o
atendimento social, não há que se falar em opção da
Administração, pois a liberdade cessa ante o texto de lei”65.
Na hipótese em que há a condenação da Administração
Pública em obrigação de fazer, a decisão do magistrado, segundo Marcos Gómez
Puente, “produz uma substituição judicial da vontade administrativa de intensidade
variável que contradiz o alcance tradicional do princípio da separação de Poderes”. O
autor afirma que a substituição da vontade administrativa pela decisão judicial é
consequência do equilíbrio funcional entre os poderes do Estado, o qual fora alterado
quando a Administração Pública não cumpriu suas obrigações. “O juiz”, conclui
Marcos Gómez Puente, “não se subroga na função administrativa senão que exerce sua
função jurisdicional”. Por fim, o autor espanhol esclarece que o poder de substituição
concedido ao poder judiciário não atenta contra o princípio da separação de poderes66.
Vasco Pereira da Silva reconhece a faculdade do particular
reagir contra atitudes omissas ilegais da Administração Pública, “sobretudo, a partir
do momento em que a Administração Pública passa de agressiva a constitutiva, sendo
chamada a desempenhar uma actividade prestadora favorável aos particulares”. O
autor demonstra que, no contencioso administrativo da Alemanha, as omissões da
Administração Pública são supridas pela “criação de sentenças condenatórias (…) em
ações de cumprimento de um dever”67.
Devido ao caráter absolutamente regulado do ato omitido,
alheio a qualquer juízo de oportunidade e conveniência quanto ao agir para concretizar
o objetivo imposto pela norma constitucional, a decisão judicial que condena a
Administração Pública na obrigação de fazer não viola a discricionariedade
administrativa. Isso ocorre porque o comportamento exigido da Administração Pública
não se situa no âmbito da sua livre disposição. Ao contrário, a realização das condutas
65 Recurso de Apelação nº 61.146.5/0-00, 2ª Câmara de Direito Público, julgado em 22.06.1999.
Disponível em «http://www.tj.sp.gov.br». Acesso em 29.09.2003.
66 La Inactividade de la Administración…, op. cit., p. 171-172.
67 Em busca do acto administrativo perdido…, op. cit., p. 102-103.
41
concretizadoras do direito fundamental à saúde está inserida no âmbito do poder
vinculado da Administração Pública.
A liberdade da Administração Pública, ainda que limitada,
restringe-se à eleição do “meio” que será empregado para a consecução das finalidades
determinadas pela Constituição e que foram objeto da decisão judicial. Essa
discricionariedade, porém, está limitada pelos princípios da moralidade, razoabilidade,
eficiência, proporcionalidade, dentre outros.
No âmbito restrito da discricionariedade, não cabe um
pronunciamento judicial que substitua a vontade administrativa. Todavia, após a
formação da vontade da Administração Pública, com a conseqüente escolha da política
pública que será implementada para alcançar o objetivo imposto pela Constituição, o
Poder Judiciário deve fiscalizar a legalidade e eficiência do ato administrativo, ou seja,
se o ato cumpriu a lei e a Constituição e os princípios da moralidade, eficiência,
razoabilidade, proporcionalidade, etc.
Assim, o Poder Judiciário realiza um controle positivo e
negativo da Administração Pública. No primeiro, constatada a omissão violadora de
um dever imposto pela Constituição, o Poder Judiciário profere uma decisão que
condena a Administração Pública na obrigação de fazer. No segundo, implementada a
política pública para o cumprimento da decisão judicial, o Poder Judiciário fiscaliza
apenas a legalidade e a eficiência do ato administrativo.
Em poucas palavras: o controle positivo é realizado no âmbito
do poder vinculado e o controle negativo sobre o poder discricionário limitado da
Administração Pública.
Posto isso, não pairam dúvidas que o novo modelo de Estado
Social e Democrático de Direito não só autoriza como impõe o controle jurisdicional
pleno sobre a atividade administrativa, com a finalidade de compeli-la a cumprir o
dever jurídico de agir derivado diretamente da Constituição e da Lei e, com isso,
concretizar o direito fundamental social à saúde.
42
Parafraseando Robert Alexy, de modo algum o Poder
Judiciário é impotente frente a um administrador inoperante68.
II.8- Da jurisprudência.
O Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais se pronunciou
acerca da possibilidade de o Poder Judiciário condenar o município em obrigações de
fazer, em v. aresto da eminente desembargadora Dra. Maria Elza, que merece todos os
encômios na sua árdua luta na proteção dos direitos fundamentais sociais. Ei-lo:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. OMISSÃO DO PODER
EXECUTIVO NO FORNECIMENTO DE SERVIÇO DE
RELEVÂNCIA PÚBLICA DE TRANSPORTE DE
DOENTES. DETERMINAÇÃO DO PODER
JUDICIÁRIO PARA CUMPRIMENTO DE DEVER
CONSTITUCIONAL. INOCORRÊNCIA DE OFENSA
AO PRINCÍPIO DE SEPARAÇÃO DE PODERES E À
CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL.
“O Ministério Público, como defensor dos interesses da
sociedade perante o Estado, possui legitimidade para zelar
pelo efetivo cumprimento dos serviços de relevância pública
assegurados na Constituição, promovendo as medidas
necessárias a sua garantia (art. 129, inciso II cumulado com
art. 197, da CF). Ademais, a sua atuação para assegurar a
prestação de serviço de relevância pública encontra amparo
no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e
nos direitos sociais fundamentais à vida e à saúde. Um
pedido, que concretiza objetivos, princípios e direitos
fundamentais da República e que se harmoniza com o Estado
Social e Democrático de Direito, consagrado pela
Constituição da República de 1988, não pode ser considerado
juridicamente impossível. A judicialização de política
pública, aqui compreendida como implementação de política
pública pelo Poder Judiciário, harmoniza-se com a
68 Citando W. Schmidt. Teoria de Los Derechos Fundamentales…, op. cit., p. 496
43
Constituição de 1988. A concretização do texto constitucional
não é dever apenas do Poder Executivo e Legislativo, mas
também do Judiciário. É certo que, em regra a
implementação de política pública, é da alçada do Executivo
e do Legislativo, todavia, na hipótese de injustificada
omissão, o Judiciário deve e pode agir para forçar os outros
poderes a cumprirem o dever constitucional que lhes é
imposto. A mera alegação de falta de recursos financeiros,
destituída de qualquer comprovação objetiva, não é hábil a
afastar o dever constitucional imposto ao Município de
Teófilo Otoni de prestar serviço de relevância pública
correlacionado com a área de saúde. Assim, a este caso não
se aplica à cláusula da Reserva do Possível, seja porque não
foi comprovada a incapacidade econômico-financeira do
Município de Teófilo Otoni, seja porque a pretensão social de
transporte público na área de saúde se afigura razoável,
estando, pois, em plena harmonia com o devido processo
legal substancial. Louve-se a atuação do Ministério Público
do Estado de Minas Gerais na defesa permanente dos direitos
sociais da população carente que, por ser menos favorecida
do ponto econômico, social, político e cultural, é constante
esquecida pelos donos do poder, sendo apenas lembrada em
épocas eleitorais”69.
II.9 – Da impossibilidade de o Município alegar falta de previsão orçamentária
para cumprir seu dever Constitucional
Não há que se falar em limites orçamentários ou em
observância da Lei de Responsabilidade Fiscal, como desculpa para a manutenção da
situação ilegal narrada nesta inicial. O paciente Washington Campos Prado possui
direitos extraídos do ordenamento jurídico em vigor, identificados em normas
jurídicas auto-aplicáveis. Submetê-lo ao saldo do “caixa” do Poder Público Municipal
69 Apelação cível nº 1.0686.02.040293-5/001- Comarca de Teófilo Otoni- Apelante: Ministério Público
do Estado de Minas Gerais- Apelado Município de Teófilo Otoni.
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significa, na verdade, negá-los. Note-se que a legislação alhures citada não sujeita o
direito à saúde, em nenhuma passagem, ao “saldo bancário” da Administração. O
Legislador Constituinte, sábio, percebeu que, assim não fosse, tais direitos seriam
sempre negados sob a desculpa da falta de dinheiro, o que jamais poderia ser posto em
dúvida, pois a ninguém é dado conhecer o movimento financeiro de qualquer pessoa
jurídica de direito público interno. Por outro lado, antes da “Responsabilidade Fiscal”
há a “Responsabilidade Social”, muito mais importante - quer nos direitos
hierarquicamente superiores que ampara, quer nas conseqüência legais àqueles que a
desrespeitam.
E não se pode ignorar que nenhum administrador público seria
alcançado pelas penalidades previstas na “Lei de Responsabilidade Fiscal” se
demonstrar estar agindo em defesa da vida, no cumprimento da Lei e de Decisão
Judicial.
Sobre a questão, em casos semelhantes, já se manifestaram os
Tribunais:
“O Judiciário não desconhece o rigorismo da Constituição
ao vedar a realização de despesas pelos órgãos públicos além
daquelas em que há previsão orçamentária; este Poder,
todavia, sempre consciente de sua importância como
integrante de um dos Poderes do Estado, como pacificador
dos conflitos sociais e defensor da Justiça e do bem comum,
tem agido com maior justeza optando pela defesa do bem
maior, veementemente defendido pela Constituição – A VIDA
– interpretando a lei de acordo com as necessidades sociais
imediatas que ela se propõe a satisfazer” (Apel. Cível nº
98.006204-7, Santa Catarina, Rel. Nilton Macedo Machado,
08/09/98).
Mais adiante, nessa mesma Decisão:
“Com relação à previsão orçamentária para o custeio dos
medicamentos específicos, basta relembrar que já há no
orçamento do Estado, dotação apropriada; da mesma forma
não pode o apelante pretender eximir-se de suas
responsabilidades sob a alegação de que enfrenta sérios
45
problemas financeiros, em face da escassez de recursos, o
que soa falso em face dos gastos publicitários que se vê nos
meios de comunicação, apregoando obras e realizações
governamentais (...)”. Citando o Ministro Celso de Mello em
caso também relativo à saúde: “A singularidade do caso (...), a
imprescindibilidade da medida cautelar concedida pelo Poder
Judiciário do Estado de Santa Catarina (...) e a
impostergalidade do cumprimento do dever político
constitucional que se impõe ao Poder Público, em todas as
dimensões da organização federativa, de assegurar a todos a
proteção à saúde CF, art. 6º, c.c art. 227, Parágrafo 1º)
constituem fatores que, associados a um imperativo de
solidariedade humana, desautorizam o deferimento do pedido
ora formulado pelo Estado de Santa Catarina (...). Entre
proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica
como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria
Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer
prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um
interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma
vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-
jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o
respeito indeclinável à vida”.
“...Sendo a saúde direitos e dever do Estado (CF, art. 196,
CE, art. 153), torna-se o cidadão credor desse País para o
tratamento reclamado. A existência de previsão orçamentária
própria é irrelevante, não servindo tal pretexto como escusa,
uma vez que o executivo pode socorrer-se de créditos
adicionais. A vida, Dom maior, não tem preço, mesmo para
uma sociedade que perdeu o sentido da solidariedade, num
mundo marcado pelo egoísmo, hedonista e insensível.
Contudo, o reconhecimento do direito á sua manutenção (...)
não tem balizamento caritativo, posto que carrega em si
mesmo, o selo da legitimidade constitucional e está ancorado
em legislação obediente àquele comando” (TJSP, Des. Xavier
Vieira, Agravo de Instr. Nº 96.012721-6).
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“A respeito, cabe ver que a Portaria nº 21, de 21.3.95, do
Ministério da Saúde, já recomendava a utilização da
combinação de novos medicamentos com o então conhecido
AZT, de modo que, somente atribuível à incúria da
Administração não ter ela já licitado, - inclusive com
previsão orçamentária – de modo a permitir, de modo
continuado, o fornecimento de tais medicamentos aos dele
necessitados, em quantidades adrquadas. Portanto, não
socorre a agravante o argumento de necessidade de licitação
prévia ou previsão orçamentária, muito menos cabe-lhe
colocar em dúvida a eficácia dos remédios em questão, os
quais, aliás, são sempre receitados pelos médicos” ( Agravo
de Instrumento nº 82.036-5, 8ª Câm. Dir. Público do TJSP,
Rel. José Santana).
Como se percebe, mostra-se irrelevante eventual falta de
prévia dotação orçamentária prevendo o atendimento integral do adolescente.
Consoante enfatiza com lucidez João Angélico (contabilidade
Pública , Ed. Atlas, pág. 35), “durante a execução orçamentária, o Poder Executivo
pode solicitar ao Legislativo, e este conceder, novos créditos orçamentários. Eles serão
adicionados aos créditos que integram orçamento em vigor. Por essa razão,
denominam-se créditos adicionais. Os créditos adicionais aumentam a despesa pública
do exercício, já fixada no orçamento”.
Por fim, vale tanscrever parte da obra de Germano Schwartz
(Direito à Saúde – Efetivação em uma Perspectiva Sistêmica, pág. 80/81, Ed. Livraria
do Advogado):
“...Não é por falta de aporte financeiro que o Estado poderá
se eximir de seu dever. A saúde reclama prestação sanitária
tão-somente. Sarlet (1998), a respeito da negação das
prestações sanitárias com base na ausência orçamentária
estatal, refere que: “em relação aos habituais argumentos da
ausência de recursos e da incompetência dos órgãos
judiciários para decidirem sobre a alocação e destinação de
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recursos público, não nos parecer que esta solução possa
prevalecer, ainda mais nas hipóteses em que está em jogo a
preservação da vida humana (p. 298).Ora, a hipótese de não-
existência de previsão orçamentária não pode ser alegada
pelo Estado, até porque não se pode antever com eficácia as
necessidades da população, ou ainda, de outa banda, não se
pode favorecer a omissão do ente responsável, premiando-o
por sua negligência e/ou inércia. Ao se referir ao Sistema
Único de Saúde e à sistemática sanitária brasileira instalada
pela CF/88, Cláudio Barros Silva (1995) se posiciona
expressamente quanto à impossibilidade de condicionantes
para o exercício do direito à saúde: “Como consequência do
sistema, o acesso à assistência, à saúde, passou a ser
universal e igualitário, não havendo, por ser direito subjetivo
do cidadão, qualquer condicionante ao exercício. O papel do
Estado é garantir a satisfação desse direito público subjetivo”
(p.100).
O Supremo Tribunal Federal – STF, em acórdão nos autos do
Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 238.328-0 (Julgado em 16.11.99),
no voto do Relator Ministro Marco Aurélio, quando provocado a se pronunciar sobre a
matéria, afirmou que a falta de dispositivo legal para o custeio e distribuição de
remédios para AIDS não impede que fique comprovada a responsabilidade do Estado,
pois “decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei”. E,
esclareça-se desde já, com base no art. 23 da CF/98, que o cidadão pode demandar
contra qualquer dos entes federados na busca da proteção de saúde:
“SAÚDE PÚBLICA. FORNECIMENTO GRATUITO DE
MEDICAMENTOS POR ENTIDADE PÚBLICA
MUNICIPAL PARTICIPANTE DO SUS. CONCESSÃO DE
TUTELA ANTECIPADA EM PLEITO ORDINÁRIO.
DIREITO À VIDA. DEVER COMUM DOS ENTES
FEDERADOS. ARTS. 196 E 198 DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. PRECEDENTES PRETORIANOS. AUSÊNCIA
DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA QUE NÃO PODE
PENALIZAR O CIDADÃO. AGRAVO NÃO PROVIDO.
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DECISÃO CONFIRMADA. AS entidades federativas têm o
dever ao cuidado da saúde e da assistência pública, da
proteção e garantia das pessoas portadores de deficiência de
saúde, a teor do disposto no art. 23 da Constituição Federal.
Assim, não se pode prestar à fuga de responsabilidade a mera
arquição de violação ao princípio do orçamento e das normas
de realização de despesa pública, quando verificado que o
Estado, na condição de instituição de tributo especial dirigido
a suplementar verbas da saúde, não o faz com competência
devida”. (Agravo de Instr. Nº 1999.002.12096, 9ª Câm. Cível,
TJRJ, Rel.: Des. Marcus Tullius Alves, Julgado em
02.05.2000)”.
III- Dos Pedidos
III.1 – Do Pedido de Tutela Antecipada
A assistência e o atendimento da saúde, por guardarem estreita
relação com a manutenção da vida humana, são sempre relevantes e urgentes. Diante
da urgência reclamada pela espécie, requer-se a concessão da antecipação dos efeitos
da tutela pretendida, nos termos do disposto nos artigos 273, inciso I, e 461 do
Código de Processo Civil, e 84, parágrafo 3º, do Código de Defesa do Consumidor.
O deferimento da antecipação da tutela impõe-se, porquanto o
provimento da pretensão, somente ao final, poderá ser inócuo para prevenir os danos à
saúde e à vida de Washington Campos Prado, ou seja, o não deferimento da
antecipação da tutela provocará a morte do paciente, pois o impedirá de realizar
transplante de fígado.
Relevante é o fundamento da lide, pois se pretende, em última
análise, a manutenção da vida e da saúde de um ser humano.
Na hipótese dos autos, encontram-se presentes os requisitos
para a concessão da antecipação da tutela, inaudita altera parte, na forma prevista no
art. 12, da Lei na 7.347/85 e no artigo 273, inciso I, do Código de Processo Civil, haja
vista a presença do fumus boni juris e do periculum in mora.
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É importante ressaltar que, em razão da ameaça iminente de
perecimento do direito, não há necessidade de manifestação do réu, podendo ser
concedida a antecipação da tutela inaudita altera parte, mesmo diante do disposto no
artigo 2º, da Lei nº 8.437/92.
O fumus boni juris está caracterizado pela previsão
constitucional e legal acerca do direito do paciente receber tratamento adequado, de
modo a ter respeitados seus direitos à vida, à saúde e à dignidade, os quais são
violados por omissão do Município de Ribeirão das Neves.
Presente, também, o periculum in mora, visto que Washington
Campos Prado necessita da realização dos exames de tomografia computadorizada do
abdome e angiotomografia para realizar transplante de fígado.
Verifica-se, pelo documento referente à visualização de
solicitação de transferência (fls. ___), que a solicitação é prioritária em razão do risco
de morte da paciente.
Além disso, os relatórios médicos de fls. ___, subscritos em
_____, revelam a evolução com piora do estado de saúde do idoso apresentando, hoje,
deteriorização progressiva da função renal, necessitando da realização de diálise,
equipamento não existente no Município, além de permanecer intubada e colocada em
ventilação em razão da apresentação de pneumonia.
Assim, é imperativo que se conceda a tutela antecipada, sem a
oitiva da parte contrária, sob pena de danos de difícil reparação, bem como de graves
prejuízos à vida de Elaine, que está doente e necessita de tratamento médico eficiente.
Por essas razões, a tutela antecipada deverá fixar multa diária
de R$ 10.000,00 ( dez mil reais) a ser recolhida em favor do fundo de que trata o art.
13 da Lei nº. 7.347/85 para o caso de descumprimento da decisão judicial com o não
fornecimento do medicamento.
Diante todo o exposto, restando evidente a violação ao
direito à vida, à saúde e à dignidade do ser humano, o Ministério Público requer:
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A concessão de tutela antecipada, inaudita altera parte ,
para determinar que o réu forneça os medicamentos xxxx, no prazo de 72
(setenta e duas) horas.
III.2 – Dos pedidos principais.
Concedida a tutela antecipada, requer:
1- a prioridade na tramitação do
presente processo, nos termos do artigo 71, e seu parágrafo 1°, da Lei 10.741/03;
2- a citação do Estado de Minas Gerais e do Município de
Ribeirão das Neves, na pessoa de seus representantes legais, para, querendo, responder
a presente ação, no prazo que lhe faculta a lei, sob pena de revelia.
3- Que, ao final, seja julgado procedente o presente pedido,
determinando-se que o réu forneça todo o tratamento à paciente Elaine , incluindo
medicação, cirurgia (se for necessário), entre outros tratamentos, fixando-se, na
sentença, multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a ser recolhida em favor do
fundo de que trata o art. 13 da Lei nº. 7.347/85, para o caso de descumprimento da
decisão judicial, bem como condenando-se o requerido ao pagamento das custas e
demais cominações legais.
Protesta provar o alegado por todos os meios de prova em
direito admitidos, mormente a documental, pericial e testemunhal, cujo rol será
depositado em cartório no prazo facultado pelo art. 407, do CPC, e o depoimento
pessoal do representante legal do requerido.
Dá à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Termos em que,
Pede Deferimento.
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Ribeirão das Neves, 17 de junho de 2011.
Marcelo Dumont Pires Promotor de Justiça
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