416
ACTAS III AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA GRUPO Krisis

Actas das IIIas Jornadas de Jovens Investigadores de ... · inteiramente distinta do corpo. Contudo, na Quinta Parte do Discurso, Descartes novamente caracteriza a substância como

Embed Size (px)

Citation preview

  • ACTAS

    IIIAS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA

    GRUPO Krisis

  • ACTAS

    IIIAS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA

  • ISBN : 978-989-20-3141-5 Ttulo: Actas das IIIas Jornadas Internacionais de Jovens Investigadores de Filosofia Autor: Grupo Krisis Data: 20120530 Editoras: Irene Pinto Pardelha / Irene Viparelli Disponvel in http://www.krisis.uevora.pt/edicao/actas3.pdf

  • 3

    NDICE

    APRESENTAO ..................................................................................................................................................................................5

    Mariana de ALMEIDA CAMPOS O homem e a teoria cartesiana da substncia ....................................................................................................................7

    Carlos d'ALMEIDA PEREIRA O positivismo clssico enquanto expresso capitular de cientismo: Trmites da separao entre Cincia e tica ................................................................................................................... 25

    Jos Antnio ALVES A correspondncia filosfica de Edmundo Curvelo a relevncia da dcada de 1940 para a renovao da filosofia em Portugal .................................................... 33

    Miguel ANTUNES Dificuldades na fundao de uma nova filosofia Deleuze e o negativo ................................................................ 47

    Cristiano BEDIN DA COSTA Sob o rosto, atravs dos olhos: Ddeleuze, Barthes e a anatomia palimpsstica ............................................... 55

    Mara Cintia CARAM Michael Oakeshott: aciertos y desaciertos en su concepcin de la Modernidad ............................................... 63

    Jos Carlos CARDOSO Espao do corpo e orientao transcendental. Algumas notas sobre um impasse kantiano ...................... 71

    Joana Cordovil CARDOSO Literatura e Virtude .................................................................................................................................................................... 79

    Antnio CASELAS Poltica e direito: Acordo, dissenso e violncia performativa ................................................................................. 87

    Jos CASELAS A Comunidade imprevista: Para uma definio menor de democracia ............................................................... 99

    Helena COSTA O indito comentrio de Lus de Molina sobre a Isagoge de Porfrio. O problema dos universais nas universidades portuguesas na transio do sculo XVI para o sculo XVII.............. 113

    Margarida DIAS Leitura do vivente de Hegel como realidade que no se esgota no processo fsico-qumico da vida .... 121

    Moiss David FERREIRA O Lugar da Criao Simblica na Psicoterapia: Uma Proposta de Abordagem Filosfica ....................... 129

    Daniele FOTI Spinozismo e antispinozismo in Giambattista Vico .................................................................................................... 139

    Victor GONALVES A (im)possibilidade de ler Friedrich Nietzsche ............................................................................................................. 163

    Sndor KARIK An Outline on the Concept of Youth (In a Philosophical Outlook) ....................................................................... 175

    Helena LEBRE Epistemologia-Hermenutica e Traduo uma relao de dependncia. A perspectiva de Vilm Flusser ............................................................................................................................................ 183

    Elfge LEYLAVERGNE Une Introduction la Science de la Logique. Concept fini et Concept Infini ................................................... 191

  • 4

    Elfge LEYLAVERGNE An Introduction to the Science of Logic. Finite concept and infinite Concept ................................................. 203

    Lucia MANCINI Il ritmo del pensiero in isviluppo: gli Appunti di filosofia di Antonio Gramsci ........................................... 213

    Domenico MANCUSO Forme della possibilit nellatto libero ............................................................................................................................ 227

    Ana MORAIS SANTOS Neurocincias e Filosofia da Aco.................................................................................................................................... 245

    Federica PAU Per un'estetica dell'architettura medievale: Rosario Assunto e il meditato ripensamento storico............................................................................................. 257

    Igor PELGREFFI Assurdo, scrittura e soggetto. Un confronto fra Albert Camus e Jacques Derrida ........................................ 271

    Irene PINTO PARDELHA Do natural ao mgico. Esboo antropo-fenomenolgico da emoo em Merleau-Ponty .......................... 297

    Ilaria RESTO "Philosophy and the way out of the trap": Wittgenstein and the world of the I......................................... 307

    Lisete RODRIGUES Do ser-em-comum ao ser da comunidade....................................................................................................................... 317

    Marlia ROSADO CARRILHO Mudar a vida, mudar a poltica. A defesa de uma governao assente no Outro segundo Maria de Lourdes Pintasilgo .............................. 327

    Thiago SALES Bayoumi, o domador de macacos: a ddiva da divagao na obra de Albert Cossery ............................... 335

    Maria SALLES Mnada e totalidade no pensamento de Virginia Woolf .......................................................................................... 351

    Pedro SARGENTO Se um conceito desce terra: A implementao da forma artstica na objetualidade e na presencialidade ................................................ 359

    Roberto SIFANNO Brevi riflessioni sul concetto fenomenologico di atteggiamento mondano ..................................................... 371

    Tibor SZAB Sartre et Lukcs un dbat philosophique virtuel ......................................................................................................... 381

    Timothy TAMBASSI Le basi ontologiche e metafisiche della filosofia della mente. Essere e soggetto in Jonathan Lowe .................................................................................................................................. 389

    Cristina TRAVANINI Nonexistent Objects in Alexius Meinongs Thought .................................................................................................... 399

    Irene VIPARELLI Lo statuto incerto della dialettica in L. Althusser ....................................................................................................... 409

  • 5

    APRESENTAO Este volume de Actas publicado pelo Grupo Krisis e tem como objectivo dar

    a conhecer alguns dos textos apresentados nas IIIas Jornadas Internacionais dos Jovens Investigadores de Filosofia. Este encontro, cuja organizao esteve responsabilidade do Grupo Krisis, teve a colaborao do Departamento de Filosofia da Universidade de vora e o apoio do Instituto de Filosofia Prtica. A Universidade de vora acolheu as jornadas nos dias 6, 7 e 8 de Junho de 2011. A Comisso organizadora do encontro foi formada por Irene Pinto Pardelha, Jos Caselas, Antnio Caselas, Miguel Antunes, Luizete Dias e Dominique Mortiaux. Participaram da Comisso cientfica: o Prof. Doutor Olivier Feron, a Doutora Irene Viparelli e Prof. Doutor Eduardo Pellejero da Universidade de Natal (Brasil).

    A publicao foi pensada em formato web de forma a proporcionar uma maior visibilidade e acessibilidade aos contedos cientficos abordados pelos participantes das jornadas, oriundos de vrios pases tanto europeus como americanos.

    A temtica das jornadas foi livre e as intervenes sujeitas ao escrutnio de ambas as comisses do evento. Os textos reunidos neste volume so testemunhos da fecundidade das temticas apresentadas ao longo dos trs dias de encontro e reflectem o trabalho de investigao que os seus autores levavam a cabo na altura do mesmo.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    7

    O homem e a teoria cartesiana da substncia

    Mariana DE ALMEIDA CAMPOS Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)

    Universit de Bourgogne (Frana) RESUMO: Levando em conta o debate entre os intrpretes sobre a extenso do conceito cartesiano de substncia, pretendo responder pergunta sobre se o homem pode ser considerado uma substncia na ontologia cartesiana. Ao tratar desta questo, examinarei os principais textos em que Descartes apresenta as suas definies de substncia, e tentarei formular algumas consideraes sobre as conseqncias dessas definies para a defesa do dualismo. Defenderei que, considerando a teoria cartesiana da substncia, o homem no uma substncia na ontologia de Descartes. PALAVRAS-CHAVE: Substncia, dualismo, homem, ontologia. ABSTRACT: By taking into consideration the debate among interpreters regarding the scope of the concept of substance, my aim is to respond if man should be considered as a substance in Cartesian ontology. To deal with this problem, I will examine Descartes key texts in which he defines substance and then I will outline considerations on the consequences of these definitions that defend dualism. I will thus defend that given the Cartesian theory of substance, man is not a substance in Descartes ontology. KEYWORDS: Substance, dualism, man, ontology.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    8

    1. Introduo: a substncia segundo Descartes

    Alguns intrpretes defendem que Descartes teria considerado como representativas de substncias as seguintes entidades: Deus, a mente, o corpo tomado em geral, e o homem (GUEROULT, 2000a: 107-118. GUEROULT, 2000b: 137-138, 147. GILSON, 1976: 435). Outros negam que o homem seja uma substncia cartesiana, e sustentam que somente Deus, a mente e o corpo tomado em geral seriam substncias (GOUHIER, 1999: 363, 392. BEYSSADE, 2001: 242, n. 53. BEYSSADE, 1997: 2, 3, 8. GUENANCIA, 1999: 101, 110. WOOLHOUSE, 1993: 22-26). Nestes dois casos, os corpos particulares so concebidos como um conjunto de modos de uma nica substncia extensa. Em geral, a segunda posio interpretativa considerada como representando o que seria a leitura tradicional da ontologia cartesiana. Porm, segundo outros intrpretes, teria havido uma evoluo nos escritos de Descartes sobre a substncia, o que o teria levado a incluir, em textos posteriores s Meditaes, novas entidades em sua categoria de substncia, tais como o homem e tambm os corpos particulares (MARKIE, 1994: 71. SCHMALTZ, 1992: 282, 286, 288, 289. SCHMALTZ, 2009: 119. SKIRRY, 2005: 1-3). Seguindo esta mesma posio quanto extenso do conceito de substncia, embora rejeitando a tese de uma evoluo, h, por outro lado, intrpretes que defendem que Descartes sempre considerou o homem e os corpos particulares como substncias (HOFFMAN, 1991: 171-174. LAPORTE, 1945: 183, 186-189, 226, 235). Por fim, h aqueles que, por um lado, rejeitam a tese de uma evoluo, como os anteriores, e, por outro lado, defendem a idia segundo a qual Descartes nunca concebeu o homem como uma substncia, mas que ele teria admitido que os corpos particulares seriam substncias (CHAPPELL, 2007: 260. CHAPPELL, 1994: 408-410, 416-422. KAUFMAN, 2008: 39-42, 50-57).

    Levando em conta esse debate na literatura sobre a extenso do conceito cartesiano de substncia, pretendo responder questo sobre se o homem poderia ser concebido como uma substncia na ontologia cartesiana. Ao tratar desta questo, examinarei os principais textos em que Descartes apresenta as suas definies de substncia, e por fim, farei algumas consideraes sobre as conseqncias destas definies para a defesa do dualismo. Tambm estar no horizonte desta discusso a questo sobre se, em suas diversas definies de substncia, Descartes teria includo os corpos particulares ou se ele os teria considerado apenas como um conjunto de modos de uma nica substncia extensa.

    Assim, a partir da anlise de alguns dos principais textos de Descartes sobre a substncia, pretendo discutir as seguintes questes: Qual seria a extenso das diversas definies de substncia apresentadas por Descartes ao longo de sua obra? Quais tipos de entidades elas compreendem? So elas as mesmas em todos os casos? Se elas forem diferentes, seria possvel admitir uma evoluo na teoria cartesiana da substncia? Em que consistiria esta evoluo? 2. Primeiros escritos sobre a substncia

    A primeira ocorrncia do termo substncia na obra cartesiana aparece em O

    Homem, e data de 1633. Nesse texto, no publicado por Descartes, a substncia

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    9

    compreendida como matria da qual uma coisa feita ou composta, ela caracterizada como a matria do crebro (ALQUI, I, 388. A.T, XI, 129)1.

    Alguns anos mais tarde, em 1637, na Quarta Parte do Discurso do Mtodo, uma mudana ocorre: a substncia passa a ser caracterizada como uma coisa existente, e no mais como a matria ou a composio da qual uma coisa feita. Porm, no Discurso, nem Deus nem o corpo so denominados ainda de substncias. Descartes restringe esse termo substncia pensante que , segundo ele, inteiramente distinta do corpo. Contudo, na Quinta Parte do Discurso, Descartes novamente caracteriza a substncia como a matria da qual uma coisa feita, mais precisamente, como a matria dos cus e dos astros, como ele havia feito anteriormente em O Homem: Juntei a isso tambm vrias coisas atinentes substncia, situao, movimento e todas as diversas qualidades desses cus e desses astros (GUINSBURG/PRADO JUNIOR, I, 53. A.T, VI, 44).

    Em 1641, no incio da Terceira Meditao, Descartes destaca a relao de inerncia dos modos do pensamento (duvidar, afirmar, negar, conhecer, ignorar, querer, imaginar, sentir) em uma substncia pensante:

    Sou uma coisa que pensa, isto , que duvida, que afirma, que nega, que

    conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e no quer, que tambm imagina e que sente. Pois, assim como notei acima, conquanto as coisas que sinto e imagino no sejam talvez absolutamente nada fora de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginaes somente na medida em que so maneiras de pensar, residem e se encontram certamente em mim (GUINSBURG/PRADO JUNIOR, II, p. 31. A.T, VII, 34).

    Depois, no contexto de sua anlise da representao, ele estabelece que as idias possuem diferentes realidades objetivas. A diferena entre as realidades objetivas das idias indica igualmente uma diferena em seus graus de ser ou de

    1 As citaes e referncias da obra de Descartes sero feitas da seguinte forma: as citaes e referncias ao O mundo ou Tratado da luz e ao O Homem sero feitas segundo a edio de Csar Augusto Battisti e Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli, designada por Battisti e Donatelli, seguida do nome da obra, e do nmero da pgina; as relativas s Regras para a Direo do Esprito sero feitas segundo a edio de Joo Gama, designada por Gama, seguida do nmero da regra, e do nmero da pgina; as relativas s Meditaes, Exposio Geomtrica das Respostas s Segundas Objees, ao Discurso do Mtodo e s Paixes da Alma sero feitas segundo a edio de J. Guinsburg e Bento Prado Jnior, designada por Guinsburg e Prado Jnior, seguida do nmero do volume, e do nmero da pgina, sendo que as relativas s Paixes da Alma, em particular, traro tambm o nmero do artigo citado; as relativas primeira parte dos Princpios, segundo a edio de Guido Antonio de Almeida (coordenador da traduo), designada por Almeida, seguida de I (Primeira Parte dos Princpios), e do nmero do artigo citado; as relativas s demais partes dos Princpios sero feitas segundo a edio de Joo Gama, designada por Gama, e seguida da parte (II ou III ou IV), e do nmero do artigo citado; as relativas aos demais textos, segundo a edio de Ferdinand Alqui ou de John Cottingham, Robert Stoothoff, e Dugald Murdoch, designada por Alqui ou CSM, seguida do nmero do volume e do nmero da pgina; as relativas ao Comentrio acerca de um certo cartaz sero feitas ou segundo a traduo parcial deste texto de Ethel Rocha que se encontra em ROCHA, Ethel. IN: Os filsofos Clssicos da Filosofia. ORG. Rossano Pecoraro. Rio de Janeiro: Vozes e Editora PUC - RIO, 2008. Volume 1. p. 230-232, designada por Rocha, 2008, e do nmero da pgina; ou segundo a edio de Ferdinand Alqui, designada por Alqui, seguida do nmero do volume e do nmero da pgina. Em todos os casos, as citaes viro acompanhadas da referncia edio padro de Charles Adam e Paul Tannery, que ser designada por A.T, seguida do nmero do volume e do nmero da pgina.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    10

    perfeio. Segundo Descartes, a idia de substncia finita tem mais realidade objetiva do que a idia de modo; a idia de substncia infinita tem ainda mais do que a idia de substncia finita:

    Pois, com efeito aquelas [as idias] que me representam substncias

    so, sem dvida, algo mais e contm em si (por assim falar) mais realidade objetiva, isto , participam, por representao, num maior nmero de graus de ser ou de perfeio do que aquelas que representam apenas modos ou acidentes. Alm do mais, aquela pela qual eu concebo um Deus soberano, eterno, infinito, imutvel, onisciente, onipotente e criador universal de todas as coisas que esto fora dele; aquela digo, tem certamente em si mais realidade objetiva do que aquelas pelas quais as substncias finitas me so representadas (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p. 35. A.T, VII, 40).

    Nesse contexto, Descartes fornece dois novos exemplos de substncia em relao ao Discurso: Deus e uma pedra. Primeiramente, Deus concebido como uma substncia infinita:

    Pelo nome de Deus entendo uma substncia infinita, eterna, imutvel,

    independente, onisciente, onipotente e pela qual eu prprio e todas as coisas so (se verdade que h coisas que existem) foram criadas e produzidas por. (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p. 39. A.T, VII, 44).

    Em seguida, a pedra, assim como a mente, considerada uma substncia finita:

    Pois, quando penso que a pedra uma substncia, ou uma coisa que por si capaz de existir, e em seguida que sou uma substncia, embora eu conceba de fato que sou uma coisa pensante e no extensa, e que a pedra, ao contrrio, uma coisa extensa e no pensante, e que, assim, entre essas duas concepes h uma notvel diferena, elas parecem, todavia, concordar na medida em que representam substncias (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p. 39. A.T, VII, 44).

    Contudo, ainda que Descartes apresente como exemplo de uma substncia finita uma pedra, preciso verificar se esse exemplo exprime a verdadeira concepo cartesiana da substncia extensa ou se ele representa antes um modo de uma nica substncia extensa. Se aceitarmos a segunda leitura, podemos nos perguntar se esta maneira imprecisa de definir a substncia no seria o indcio de uma doutrina da substncia ainda lacunar.

    Embora possa existir uma tentativa de sistematizao da parte de Descartes em seus primeiros escritos, parece que a sua posio sobre a substncia ainda no se encontra plenamente consolidada. Em O Homem, encontramos uma nica ocorrncia do termo em um sentido que no ser o verdadeiro sentido adotado por Descartes posteriormente. No Discurso, Descartes hesita entre duas maneiras de caracterizar a substncia. Primeiro, na Quarta Parte, ele a caracteriza, em coerncia com seus escritos posteriores de metafsica, como uma coisa existente, independente, dotada de um atributo principal e de modos. Mas na Quinta Parte, ele parece retomar sua caracterizao da substncia como a matria da qual uma coisa constituda. Alm disso, no Discurso, a nica entidade que designada pelo nome de substncia a mente. De modo contrrio, na Terceira Meditao, ele

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    11

    denomina de substncia Deus e a pedra. Mas veremos no Resumo das Seis Meditaes uma mudana em relao sua posio sobre a substncia extensa nas Meditaes. Com efeito, no Resumo, por substncia extensa Descartes concebe apenas o corpo tomado em geral, e ele considera os corpos particulares uma pedra, por exemplo como modos de uma nica substncia extensa. 3. A noo de pura substncia

    Descartes escreveu o Resumo depois de ter concludo as Meditaes, mas antes de escrever as suas Respostas s Objees. A primeira vez em que o termo substncia aparece nesse texto, ele vem depois de uma explicao de Descartes sobre as razes pelas quais no encontramos nas Meditaes argumentos concernentes imortalidade da alma.

    Nessa explicao, ele afirma que a primeira condio para provar a imortalidade da alma formarmos uma concepo da alma completamente distinta de toda concepo do corpo. Mas para isso necessrio sabermos que todas as coisas de que temos uma inteleco clara e distinta so verdadeiras, o que provado na Terceira Meditao. preciso ainda formar uma concepo distinta da natureza corporal, o que demonstrado em parte na Segunda Meditao, em parte tambm na Quinta e na Sexta. Aps ter provado todas essas coisas, Descartes poder concluir, na Sexta Meditao, que a mente e o corpo so substncias realmente distintas. Para explicar o que ele entende por realmente distintas, ele afirma: de sorte que suas naturezas no so somente reconhecidas como diversas, porm mesmo, de alguma maneira, como contrrias (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p. 12. A.T, VII, 13). Aqui, Descartes enuncia uma tese fundamental para a compreenso de seu dualismo: a mente e o corpo so substncias cujas naturezas so no apenas diferentes, mas, sobretudo, contrrias, o que significa que essas substncias no podem subsistir em uma terceira substncia, visto que suas naturezas se excluem mutuamente.

    Em seguida, Descartes apresenta um argumento para provar a imortalidade da alma. Nesse argumento, ele introduz uma definio de substncia. Segundo ele, todas as substncias finitas devem ser criadas por Deus para existir. E uma vez que uma coisa considerada como uma substncia segundo esse critrio, ela por sua prpria natureza incorruptvel, e s pode deixar de existir se Deus reduzi-la ao nada, e priv-la de seu concurso. Por fim, Descartes conclui que o esprito de natureza imortal:

    () primeiramente, a fim de saber que, em geral, todas as substncias,

    isto , todas as coisas que no podem existir sem serem criadas por Deus, so por sua natureza incorruptveis e jamais podem cessar de ser, caso no sejam reduzidas a nada por este mesmo Deus que lhes queira negar seu concurso ordinrio. E, em seguida, a fim de que se note que o corpo, tomado em geral, uma substncia, razo pela qual tambm ele no perece de modo algum; mas que o corpo humano, na medida em que difere dos outros corpos, no formado e composto seno de certa configurao de membros e outros acidentes semelhantes; e a alma humana, ao contrrio, no assim composta de quaisquer acidentes, mas uma pura substncia. Pois, ainda que todos os seus acidentes se modifiquem, por exemplo, que ela conceba certas coisas, que

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    12

    queira outras, que ela sinta outras, etc., , no entanto, sempre a mesma alma; ao passo que o corpo humano no mais o mesmo pelo simples fato de se encontrar mudada a figura de alguma de suas partes. Donde se segue que o corpo humano pode facilmente perecer, mas que o esprito ou a alma do homem (o que eu absolutamente no distingo) imortal por sua natureza. (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p 12. A.T, VII, 14).

    Por substncias Descartes entende aqui criaturas incorruptveis por sua natureza, que ele denomina de substncias puras. Assim, segundo esta definio, o corpo humano no uma substncia, pois, sendo composto de uma configurao determinada de rgos e de outros acidentes, ele perece por decomposio ou por modificao de suas partes. A mente, ao contrrio, uma substncia pura, ela no constituda de acidentes, no perece por modificao de suas partes, mas apenas se Deus, ao recusar o seu concurso, a reduz ao nada. O corpo tomado em geral tambm uma substncia pura, pois, embora seja composto de partes que podem se modificar, ele nunca perece enquanto totalidade, exceto se Deus recusar a ele o seu concurso. 4. Substncia como sujeito de propriedades

    Na definio V da Exposio Geomtrica das Respostas s Segundas Objees encontramos uma explicao sobre a substncia que se tornou muito conhecida entre os especialistas de Descartes. Nessa definio, a substncia designada como um sujeito de propriedades:

    Toda coisa em que reside imediatamente como em seu sujeito, ou pela qual existe, algo que concebemos, isto , qualquer propriedade, qualidade, ou atributo, de que temos em ns real idia, chama-se substncia. Pois no possumos outra idia da substncia precisamente tomada, salvo que uma coisa na qual existe formal, ou eminentemente, aquilo que concebemos, ou aquilo que est objetivamente em alguma de nossas idias, posto que a luz natural nos ensina que o nada no pode ter nenhum atributo real (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p 102. A.T, IX, 125).

    Na passagem acima, a expresso pela qual na frase pela qual existe algo que concebemos indica a natureza deste sujeito. Seria ele um substrato de propriedades, que em si mesmo seria vazio, na medida em que seria distinto dessas propriedades? Seria ele um indeterminado, conhecido somente por sua funo de suporte de propriedades? Ou seria ele uma coisa concreta cujas propriedades seriam constitutivas de seu ser?2 Ainda que uma resposta mais completa a essas questes nos levaria a anlises sobre a relao entre a substncia, seus atributos e seus modos, o prprio Descartes, na passagem em questo, faz uma preciso sobre a relao entre a substncia e as suas propriedades. Ele diz que 2 A tese segundo a qual a substncia cartesiana pode ser considerada como um simples suporte de qualidades sustentada por Loeb, em LOEB, 1981: 78-82. Para criticar Descartes, Loeb se apia nas objees levantadas por Locke (Essai sur lentendement humain. II, ch. xxiii). Contudo, muitos intrpretes defendem a tese contrria, segundo a qual a substncia para Descartes uma coisa concreta: PEREYRA, 2008: 75, n. 12. SKIRRY, 2005: 21. MARKIE, 1994: 78-79. GOUHIER, 1999: 396-397.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    13

    no possumos outra idia da substncia [...] salvo que uma coisa na qual existe [...] aquilo que concebemos. A expresso na qualexiste torna um pouco mais claro o fato de que as propriedades, qualidades ou atributos existem na substncia, isto , tais propriedades so constitutivas da substncia, pois tomadas em seu conjunto elas no se distinguem da substncia. Alm disso, nas definies seguintes (VI e VII), Descartes demonstra que os pensamentos puramente intelectuais so propriedades do esprito, e os movimentos puramente fsicos e mecnicos so propriedades do corpo. Nos dois casos, as substncias so coisas concretas:

    VI. A substncia, em que reside imediatamente o pensamento, aqui

    chamada esprito [...] VII. A substncia que o sujeito imediato da extenso e dos acidentes que pressupem a extenso, assim como da figura, da situao, do movimento local, etc., chama-se corpo (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p 102. A.T, IX, 125).

    Quando Descartes afirma que a idia de substncia a idia das coisas que temos em ns uma real idia, ele no explica exatamente o que ele entende pelo termo real idia. Uma interpretao possvel que as idias reais se opem s idias materialmente falsas, cujos objetos no podem existir fora de nossa mente, e no podem existir em uma substncia diferente como em seu sujeito. Nesse sentido, o termo real idia serve para distinguir as idias reais, idias de coisas que podem existir fora da nossa mente, das idias materialmente falsas, idias de coisas que s existem enquanto modos da mente.

    Descartes tambm afirma que a substncia um sujeito de propriedades, e por propriedades ele compreende qualidades e atributos. Mas o que ele compreende verdadeiramente por essas noes explicado nos Princpios, I, 56:

    E aqui, de fato, entendo por modos exatamente o mesmo que entendi

    alhures por atributos, ou qualidades. Mas, quando considero que a substncia por eles afetada, ou alterada, eu os chamo de modos; quando pode ser denominada tal ou qual a partir dessa alterao, chamo [os modos] de qualidades; e, por fim, quando levo em conta de maneira mais geral to-somente que esto na substncia, chamo-os de atributos. E por isso digo que, em Deus, h apenas atributos, e no propriamente modos ou qualidades, porque no se deve entender nele nenhuma alterao. Assim tambm o que nunca se acha de modo diverso nas coisas criadas, como a existncia e a durao na coisa que existe e dura, deve ser dito, no qualidade ou modo, mas atributo (ALMEIDA, I, art. 56. A.T, VIII, 32).

    Para Descartes, as propriedades variveis que constituem uma substncia e que ele designa de um modo impreciso de qualidades e atributos so os modos desta substncia. Impreciso porque Descartes tem para cada um desses termos um sentido estrito. Modos e atributos so diferentes na medida em que correspondem a tipos distintos propriedades. Atributos so propriedades que exprimem a essncia ou a natureza de uma substncia, e neste sentido eles no so sofrem nenhuma mudana. Modos, ao contrrio, designam uma mudana na substncia. Mas todo modo depende da substncia da qual ele o modo. Segundo Descartes, cada modo , portanto, modo de um atributo, e de um nico e o mesmo atributo, porque toda substncia finita tem um nico atributo principal para o qual todos os

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    14

    seus modos se referem. Desta forma, a extenso o atributo principal da substncia extensa, e o pensamento o atributo principal da substncia pensante. Alm disso, para Descartes a substncia e o seu atributo principal no so ontologicamente distintos, pois a distino entre eles somente de razo. Quando Descartes fala do atributo de uma substncia finita em um sentido preciso, o que ele tem em vista o atributo principal desta substncia. O que no o caso do uso que ele faz desse termo na definio V da Exposio Geomtrica das Respostas s Segundas Objees, visto que, nesse texto, esse termo concebido de um modo geral, como sinnimo de modo.

    Aps essas observaes preliminares, restam ainda duas questes a serem examinadas. A primeira questo chama a ateno para o fato de que a definio de substncia como sujeito de propriedades no parece suficiente para distinguir uma substncia de um modo, pois dada essa definio algum poderia argumentar que um modo tambm poderia ser o sujeito de outro modo. Esse contra-exemplo aparece em uma carta de Descartes a Mersenne (para Hobbes), na qual Descartes afirma que no h dificuldade ou absurdo em dizer que o acidente o sujeito de um outro acidente, como dizemos que a quantidade o sujeito de outros acidentes (CSM-K: 178. A.T, III, 355). Ento, ser um sujeito de propriedades no um critrio suficiente para reconhecer uma coisa como uma substncia, porque esse critrio poderia tanto se aplicar tanto a um modo de uma determinada substncia, quanto a uma substncia.

    Porm, essa impreciso na definio de substncia como sujeito de propriedades pode ser eliminada desde que levemos em conta uma diferena fundamental entre as substncias e os modos. Essa diferena se baseia no fato de que para Descartes as substncias, ao contrrio dos modos, no existem como entidades inerentes a um sujeito distinto delas mesmas, isto significa que elas so sujeitos ltimos de atribuio. Ainda que Descartes no tenha dado essa explicao nesse texto, e que a definio de substncia como sujeito de propriedades no represente de fato uma definio estrita de substncia, ela traz certamente ganhos em relao s definies anteriores, pois ela til para destacar que propriedades, atributos e qualidades so no podem existir sem uma substncia.

    A segunda questo refere-se extenso do conceito de substncia. Na Exposio Geomtrica das Respostas s Segundas Objees, Descartes apresenta trs exemplos de entidades que poderiam ser atribudas ao conceito de substncia, a saber, a mente, o corpo e Deus, nas definies VI, VII, VIII, respectivamente. Apesar disso, alguns intrpretes sustentam a tese de que o homem seria uma substncia, baseando-se na definio V desse texto, onde Descartes define a substncia como um sujeito de propriedades (SCHMALTZ, 1992: 286. HOFFMAN, 1991: 168-192. MARKIE, 1994: 71. GILSON, 976: 435. LAPORTE, 1945: 235. GUEROULT, 2000b: 137-138, 147, 206). Segundo essa leitura, o homem seria uma substncia cujas propriedades seriam os sentimentos, isto , as sensaes, os apetites e as paixes.

    Na Sexta Meditao, em sua definio do que so os sentimentos, Descartes conclui que so modos confusos do pensamento que so o resultado da unio entre a mente e o corpo. Nos Princpios, I, 48, aps ter distinguido as propriedades que pertencem alma e aquelas que pertencem ao corpo, ele afirma de maneira semelhante que:

    () tambm experimentamos em ns certos outros contedos

    [percebidos] que no devem ser referidos nem mente s, nem tampouco s

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    15

    ao corpo, e que, [...] provm da estreita e ntima unio de nossa mente com o corpo (ALMEIDA, I, art. 48. A. T, VIII, 22-23).

    Na carta de 21 de maio de 1643 a princesa Elisabeth, Descartes introduz a sua teoria das trs noes primitivas, cuja unio representa uma noo que sendo primitiva no compreensvel nem pela noo de pensamento, nem pela noo de extenso, nem pela conjuno dessas duas noes. A partir desses textos, alguns intrpretes se questionam se esses sentimentos, que no so propriedades claramente compreensveis enquanto modos puros da mente, teriam como sujeito ltimo de atribuio a mente ou o composto substancial mente-corpo, a saber, o homem.

    Entretanto, se aceitssemos que o sujeito ltimo de propriedades que descrevem os sentimentos corresponde a uma substncia, a saber, ao homem, ento teramos que determinar qual seria o atributo principal do qual os sentimentos seriam os modos. primeira vista, o candidato mais plausvel para este caso seria a noo primitiva de unio. Contudo, Descartes no afirma em nenhum momento de sua correspondncia com a princesa Elisabeth que a unio representa um atributo principal de uma substncia. Desta forma, o homem no poderia ser o sujeito ltimo de inerncia de nenhuma propriedade, e no poderia corresponder ao critrio de substancialidade fornecido na Exposio Geomtrica das Respostas s Segundas Objees, segundo o qual toda substncia um sujeito (ltimo) de propriedades. Portanto, de acordo com esse texto, as nicas entidades que poderamos considerar como substncias seriam a mente, o corpo e Deus.

    5. A noo de substncia completa, e a noo de substncia incompleta

    Nas Quartas Objees, Arnauld havia sugerido que o argumento proposto por Descartes em favor da distino real da mente e do corpo, na Sexta Meditao, parecia muito excessivo na medida em que ele remetia idia platnica segundo a qual o homem seria uma mente se servindo do corpo (ALQUI, II, 640. A.T, IX, 158). A resposta de Descartes a essa objeo contm uma explicao sobre a substncia.

    Em um primeiro momento, Descartes apresenta uma definio de substncia como uma coisa completa. E por coisa completa ele entende uma substncia revestida das formas, ou atributos, que bastam para [ns] sabermos que ela uma substncia (ALQUI, II, 662. A.T, IX, 173). Contudo, essa definio no acrescenta nada de novo em relao sua definio anterior, onde a substncia era definida como um sujeito de propriedades. Descartes havia afirmado que atravs do conhecimento das propriedades de uma substncia podemos conhec-la. Mas que no seria necessrio conhecer todas as propriedades de uma substncia para ter um conhecimento completo dela, pois bastava conhecer a sua propriedade principal: para o corpo a extenso, para a mente o pensamento.

    Em seguida, Descartes apresenta uma segunda definio de substncia, na qual ele introduz duas noes, a de substncia como entidade independente, e a de substncia incompleta. No que concerne segunda noo, Descartes reconhece que ela pode parecer primeira vista uma contradio, visto que por substncia devemos compreender uma coisa que pode subsistir por si mesma, e por

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    16

    incompleta o que no pode subsistir por si mesmo. Entretanto, ele explica que, em um sentido preciso, podemos considerar as substncias como incompletas:

    verdade que em um outro sentido podemos cham-las incompletas, no que elas tenham nada de incompleto enquanto substncias, mas apenas na medida em que elas se referem a alguma outra substncia com a qual elas compem um todo por si e distinto de qualquer outro (ALQUI, II, 663. A.T, IX, 173).

    Depois ele apresenta dois exemplos de substncias desse tipo. Primeiramente, ele afirma que a mo uma substncia incompleta, se voc a relaciona a todo o corpo de que ela parte, mas se voc a considera sozinha, ela uma substncia completa (ALQUI, II, 663. A.T, IX, 173). O segundo exemplo vem em seguida:

    E similarmente a mente e o corpo so substncias incompletas, quando

    relacionamo-las ao homem que elas compem; mas sendo consideradas separadamente, elas so substncias completas (ALQUI, II, 663. A.T, IX, 173).

    Essas trs passagens das Respostas s Quartas Objees, que acabo de destacar, so uma fonte de controvrsia na literatura. Alguns intrpretes, como Peter Markie, Tad Schmalzt, Paul Hoffman e Jean Laporte, consideram que a introduo da noo de substncia incompleta permitiu que Descartes incluisse os corpos particulares e o homem em sua categoria de substncia (MARKIE, 1994: 71. SCHMALTZ, 1992: 282, 286, 288, 289. SCHMALTZ, 2009: 119. HOFFMAN, 1991: 171-173. LAPORTE, 1945: 186-189). Segundo eles, a mo, a mente e o corpo, so substncias incompletas, no sentido de que eles so partes substanciais de outra substncia.

    Contudo, outros intrpretes, Vere Chappell e Dan Kaufman, por exemplo, acreditam que a noo de substncia incompleta serve apenas para explicar em qual sentido os corpos particulares podem ser considerados substncias, mas no que o homem seja uma substncia (CHAPPELL, 2007: 260. CHAPPELL, 1994: 408-410, 416-422. KAUFMAN, 2008: 39-42, 50-57). O argumento que eles fornecem consiste em mostrar que se, por um lado, a mo compartilha com o corpo humano, do qual ela uma parte substancial, o mesmo atributo principal que a extenso, por outro lado, no podemos afirmar o mesmo da mente e do corpo em relao ao homem. A mente e o corpo no compartilham o mesmo atributo principal, visto que cada uma dessas substncias possui um nico atributo principal, e a relao entre os seus atributos de mtua excluso. Por conseqncia, Chappell e Kaufman afirmam que os dois exemplos que Descartes considera como exemplos de substncias incompletas so muito diferentes um do outro: a mo uma parte substancial de uma substncia que o corpo humano; a mente e o corpo so partes do homem, mas isso no significa que o homem seja uma substncia.

    O argumento de Chappel e Kaufman me parece apropriado no que concerne o papel do homem na ontologia cartesiana, visto que Descartes nunca afirmou que ele seria uma substncia. Entretanto, a tese de que o corpo humano seria uma substncia, defendida por esses intrpretes, no me parece totalmente clara. Como vimos no Resumo, Descartes fornece uma definio de substncia extensa na qual

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    17

    ele parece excluir o corpo humano desta categoria. De acordo com esse texto, as substncias como puras entidades incorruptveis so apenas Deus, a mente e o corpo tomado em geral. Para superar esta dificuldade textual, Chappell e Kaufman mostram que seria possvel compreender o corpo humano no como uma substncia pura e incorruptvel, mas como uma substncia impura, corruptvel e composta, isto significa, em um sentido mais fraco de substncia (CHAPPELL, 2007: 260. CHAPPELL, 1994: 408-410, 416-422. KAUFMAN, 2008: 39-42, 50-57). Por outro lado, Hoffman e Laporte argumentam que a expresso o corpo tomado em geral nesse texto permanece equvoca porque no claro se ela designa uma substncia extensa em sua totalidade ou o que denominamos, em geral, um corpo. Alm disso, eles destacam o fato de que Descartes no afirma, de modo explcito, nesse texto, que os corpos particulares so modos de uma nica substncia.

    Porm, outros intrpretes, como Jean-Marie Beyssade, Michelle Beyssade, Pierre Guenancia, Henri Gouhier, Martial Gueroult e Woolhouse, no aceitam a tese de que o corpo humano seria uma substncia extensa (BEYSSADE, J-M, 2001: 242, n. 53. BEYSSADE, M, 1997: 8. GUENANCIA, 1999: 101, 110 GOUHIER, 1999: 392. WOOLHOUSE, 1993: 22-26. GUEROULT, 2000a: 107-118). E para explicar a individualidade desse corpo, eles afirmam que a unidade funcional que ele possui na medida em que unido alma permite que ele seja dotado de uma substancialidade. Segundo essa leitura, cuja fonte textual a carta a Mesland de 9 de fevereiro de 1645, a alma que fornece ao corpo uma unidade e uma indivisibilidade que ela possui como substncia, porque o corpo humano nele mesmo, e independente de sua unio com a alma, apenas um modo do corpo tomado em geral.

    Contudo, o que me parece claro at aqui que quer aceitemos que o corpo humano seja uma substncia quer aceitemos que ele seja um modo de uma nica substncia extensa, isso no significa, nos dois casos, que o homem seja uma substncia, isto , nenhuma dessas duas interpretaes implica que devemos aceitar uma leitura trialista da ontologia de Descartes.

    6. A noo de substncia como entidade independente

    Descartes comeou a trabalhar nos Princpios da Filosofia no incio de 1641, pouco depois da publicao das Meditaes Metafsicas. Nesse livro, ele tinha a inteno de publicar os resultados de suas investigaes sob a forma de um manual para substituir os manuais escolsticos que existiam poca. Ainda que inicialmente ele tenha sido concebido como uma exposio sistemtica de sua filosofia, cujo objetivo era retomar as teses que tinham sido expostas nas Meditaes, Descartes realmente no terminou de escrev-lo. Contudo, podemos encontrar nesse livro, precisamente na primeira parte, do artigo 51 ao artigo 54, uma das explicaes mais detalhadas sobre a natureza da substncia cartesiana. Em geral, os intrpretes consideram os Princpios como sendo o texto o mais sistemtico no que concerne a teoria cartesiana da substncia (BEYSSADE, J-M, 2001: 217-218, 231. CHAPPELL, 2007: 261). Em parte porque ele maior do que os textos precedentes sobre o assunto, mas tambm porque muitas imprecises presentes nas explicaes anteriores so eliminadas nesse texto.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    18

    No artigo 51, Descartes apresenta uma definio de substncia como entidade independente que j havia aparecido em textos anteriores: Por substncia no podemos entender seno a coisa que existe de tal maneira que no precise de nenhuma outra coisa para existir (ALMEIDA, I, art. 51. A.T, VIII, 24). Aps essa definio, ele introduz uma restrio, no seio da noo de entidade independente, que no havia aparecido antes. Ele afirma que em um sentido estrito somente Deus uma substncia independente. As criaturas no podem ser consideradas como substncias independentes no mesmo sentido em que Deus, porque elas no precisam do concurso e da preservao de Deus para existir:

    E, de certo, s h uma nica substncia que se pode entender como absolutamente independente de qualquer outra coisa, a saber, Deus. Todas as outras, porm, percebemos que no podem existir a no ser graas ao concurso de Deus (ALMEIDA, I, art. 51. A.T, VIII, 24).

    A consequncia que o nome substncia no convm a Deus e a elas univocamente, como se costuma dizer nas Escolas, isto , no se pode entender qualquer significado desse nome que seja comum a Deus e s criaturas (ALMEIDA, I, art. 51. A.T, VIII, 24). Depois, no artigo 52, ele introduz uma segunda definio de substncia que s se aplica s substncias criadas:

    Porm, a substncia corprea e a mente, ou a substncia pensante,

    criada, podem ser entendidas sob esse conceito comum, porque so coisas que precisam to somente do concurso de Deus para existir (ALMEIDA, I, art. 52. A.T, VIII, 25)

    Ainda que nos Princpios a noo de substncia esteja ligada a uma independncia, o termo independncia, nesse contexto, no claro. Podemos pensar que Descartes considera que a independncia envolvida no conceito de substncia causal. Compreendida como sendo causal, teramos um sentido forte de substncia em oposio a um sentido fraco. No sentido forte, somente a substncia incriada (Deus) seria uma substncia, porque ela seria a nica substncia causalmente independente de todas as outras coisas. As substncias criadas (a mente e o corpo) seriam causalmente dependentes de Deus, na medida em que ele seria a causa e a preservao delas, mas sendo, entretanto, causalmente independentes de todas as outras coisas criadas, elas seriam substncias em um sentido fraco. Porm, admitir a distino entre esses dois sentidos de substncia (um forte e um fraco) implica tambm em reconhecer que a noo de entidade independente no se aplica de maneira unvoca aos diferentes tipos de substncias no sistema cartesiano. Essa no univocidade foi reconhecida pelo prprio Descartes que declarou no artigo 51, como vimos, que Deus e as criaturas no so substncias no mesmo sentido.

    Entretanto, embora a compreenso do sentido do termo independncia como causal seja til para mostrar que o sentido do termo substncia no unvoco quando ele aplicado a Deus e as substncias criadas, ela no parece ser suficiente para distinguir as substncias criadas e seus modos. Dada a definio de substncia como entidade independente (no sentido causal de independncia) segue-se a formulao seguinte: x uma coisa criada que no tem outra causa alm de Deus. O problema que, segundo essa formulao, os modos poderiam ser igualmente

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    19

    considerados como substncias, porque um modo poderia ser considerado como uma entidade independente (no sentido causal) de todas as outras coisas (exceto de Deus) incluindo a substncia da qual ele um modo, visto que a relao de dependncia entre um modo e a substncia no parece ser causal. Se for assim, as substncias criadas e os modos seriam igualmente substncias no sentido fraco. Contudo, essa consequncia absurda, pois sabemos que para Descartes os modos no podem existir sem a substncia da qual eles so modos:

    () preciso notar que, graas luz natural, muitssimo manifesto

    que o nada no tem afeces ou qualidades; e que, por isso, onde quer que constatemos algumas, a se encontra necessariamente uma coisa ou substncia qual pertenam (ALMEIDA, I, art. 11. A.T, VIII, 8).

    Alm disso, algum poderia argumentar com recurso definio V da Exposio Geomtrica das Segundas Respostas, onde Descartes faz meno ao fato de que a substncia seria a causa de suas qualidades, que a relao de dependncia entre um modo e a substncia seria causal. Nesse texto, ao definir a substncia como um sujeito de propriedades, atributos e qualidades, ele afirma que a substncia seria a razo (ou a causa) de suas propriedades: [...] pela qual existe algo [...] (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p. 102. A.T, IX, 125). Em todo caso, ainda que estejamos certos de que a consequncia em questo absurda, consider-la serve ao menos para colocarmos em questo se o sentido de independncia que Descartes atribui s substncias criadas nos Princpios seria somente causal.

    Outro modo de compreender a noo de independncia compreend-la como uma independncia de inerncia. De acordo com essa compreenso, a substncia enquanto entidade independente seria o que no inerente a nenhuma outra coisa, na perspectiva de que se trata de uma coisa que no reside em nenhum outro sujeito que poderia ser considerado como seu sujeito ltimo de atribuio. Esse sentido de independncia, como no inerncia, permite enfraquecer a distino entre um sentido forte e um sentido fraco de substncia, que era necessria quando o sentido de independncia era causal. Alm do mais, ele permite mostrar que se as substncias criadas possuem uma independncia de inerncia com relao a todas as outras coisas, visto que elas so seus prprios sujeitos ltimos de atribuio, os modos, por outro lado, carecem deste sentido de independncia, pois eles so entidades que existem somente como inerentes a uma substncia. Desta forma, os modos no poderiam ser considerados entidades independentes nesse sentido, e assim eles no poderiam ser substncias.

    Esta noo de independncia de inerncia parece ter sido reconhecida por Descartes, pois, na verso francesa dos Princpios, ele acrescentou ao artigo 51 uma explicao sobre as substncias na qual esse sentido de independncia aparece:

    Mas porque entre as coisas criadas algumas so de tal natureza que

    no podem existir sem outras, distinguimo-las daquelas que s tm necessidade do concurso ordinrio de Deus, chamando ento substncias a estas, e qualidades ou atributos das substncias quelas (Gama, I, art. 51. A.T, IX, 47).

    Nessa explicao, Descartes mostra que as coisas criadas podem ser de dois tipos, ou elas so substncias ou elas so modos. Quanto s substncias, podemos

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    20

    consider-las como sendo independentes de Deus somente no sentido de independncia de inerncia, mas no no sentido de independncia causal. Em relao aos modos, se eles possuem alguma independncia causal, esta deve permanecer subordinada causa primeira (Deus) e s causas segundas (outras coisas criadas, no caso, as substncias criadas) desses modos. Porm, claramente eles no so independentes das substncias no sentido de uma independncia de inerncia, porque eles s existem como inerentes em uma substncia.

    Desta forma, parece que Descartes aceitou esses dois sentidos de independncia (de causalidade e de inerncia) em sua definio de substncia como entidade independente. A independncia em seu sentido causal permitiu a Descartes mostrar que o termo substncia no unvoco quando ele aplicado substncia incriada e s substncias criadas. Alm disso, a conjuno desses dois sentidos de independncia permitiram a ele compreender que o tipo de dependncia que existe entre as substncias criadas e Deus (dependncia causal) no o mesmo tipo que existe entre as substncias criadas e os seus modos (dependncia de inerncia). Assim, esses dois sentidos de independncia esto presentes na definio de substncia como entidade independente que Descartes introduz nos artigos 51-52 da Primeira Parte dos Princpios.

    Aps ter fornecido uma definio de substncia, Descartes explica, nos artigos seguintes, de que maneira podemos conhec-la. No artigo 53, ele introduz a tese segundo a qual cada substncia possui um nico atributo principal, que constitui a sua natureza e essncia, e atravs da qual ela conhecida e concebida. Segundo ele, o atributo principal da mente o pensamento, e o do corpo a extenso: A saber, a extenso em comprimento, largura e profundidade constitui a natureza da substncia corprea, e o pensamento constitui a natureza da substncia pensante (ALMEIDA, I, art. 53. A.T, VIII, 25). Por outro lado, os modos de cada substncia dependem do atributo principal para existir e para serem concebidos, enquanto o atributo permanece independente de cada um de seus modos. No artigo 54, ele mostra que podemos ter uma idia clara e distinta das substncias criadas desde que tenhamos uma idia de seus respectivos atributos principais, da mente o pensamento, e do corpo a extenso:

    E, assim, podemos facilmente ter duas noes, ou idias, claras e distintas, uma da substncia pensante criada a outra da substncia corprea, bem entendido, desde que distingamos cuidadosamente todos os atributos do pensamento dos atributos da extenso (ALMEIDA, I, art. 54. A.T, VIII, 25-26).

    Uma consequncia da tese segundo a qual os atributos principais constituem a essncia das substncias, afirmada no artigo 53, que as substncias no podem existir sem esses atributos. Essa consequncia parece, entretanto, primeira vista, colocar um problema para a noo de independncia presente na definio cartesiana de substncia. Se toda substncia criada possui apenas um nico atributo principal, sem o qual ela no pode existir nem ser concebida, ento parece que podemos dizer que a substncia dependente deste atributo, portanto poderamos concluir que nem as substncias criadas nem Deus seriam substncias, porque eles seriam dependentes de seus respectivos atributos. Ainda nesta perspectiva, visto que Deus uma substncia incriada, que possui infinitos atributos, ele seria a substncia mais dependente de todas, visto que todos os seus atributos so principais, e expressam a sua perfeio. Porm, como sustenta

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    21

    Pereyra, esse problema s seria real se Descartes concebesse que a substncia e seus atributos fossem coisas distintas, o que no o caso (PEREYRA, 2008: 69). Dada a doutrina cartesiana da simplicidade divina, Deus no distinto dos seus infinitos atributos, assim como as substncias criadas no so distintas dos seus atributos principais, pois entre os atributos principais e as substncias existe apenas uma distino de razo: concebemos em Deus uma imensidade, simplicidade ou unidade absoluta, que abrange e contm todos os seus outros atributos (GUINSBURG/PRADO JNIOR, II, p. 88. A.T, IX, 111). Por consequncia, h uma identidade entre os atributos principais e as substncias das quais eles so os atributos:

    O pensamento e a extenso podem ser considerados como constituindo a natureza da substncia inteligente e a da corprea; e, assim, no devem ser concebidos de outro modo seno como a prpria substncia pensante e a substncia extensa, isto , como a mente e o corpo (ALMEIDA, I, art.63. A.T, VIII, 30).

    Assim, a tese da identidade entre o atributo e a substncia no um problema para a teoria cartesiana da substncia, muito pelo contrrio. Pois, a partir desta tese, emergem duas outras: por um lado, cada substncia criada possui um nico atributo principal, por outro lado, a distino entre a substncia criada e o seu atributo conceitual, como observou Pereyra (PEREYRA, 2008: 89).

    Finalmente, no que concerne extenso da definio cartesiana de substncia independente nos Princpios temos os seguintes resultados: Deus a nica substncia absolutamente independente no sentido causal. Contudo, possvel aceitar um sentido fraco de independncia causal e aplic-lo mente e ao corpo. Por consequncia, a mente e o corpo seriam independentes em um sentido fraco, e Deus em um sentido forte. Por outro lado, Deus, a mente, e o corpo, so substncias no mesmo sentido, se por substncia independente compreendermos uma independncia de inerncia. No entanto, em nenhum caso o homem seria uma substncia, pois ele no corresponde a nenhum dos dois critrios de independncia (causal e de inerncia) que acabamos de mencionar como decisivos para que uma coisa seja considerada uma substncia. 7. Substncia e atributo principal

    Segundo Paul Hoffman, no texto Comentrio acerca de um certo cartaz, escrito por Descartes durante o inverno de 1647-1648, em resposta a Regius, h uma passagem que representa uma mudana na teoria cartesiana da substncia, porque ela parece negar uma tese afirmada no artigo 53 da Primeira Partes dos Princpios, a saber, a tese segundo a qual toda substncia criada possui um nico atributo principal:

    Quanto aos atributos que constituem as naturezas das coisas, no se

    pode dizer que os que so diferentes, e de tal forma que o conceito de um no est contido no conceito do outro, esto conjuntamente presentes em um e mesmo sujeito; pois isso seria equivalente a dizer que um mesmo sujeito tem duas naturezas diferentes, o que envolve uma contradio, ao menos quando

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    22

    se trata, como o caso aqui, de um sujeito simples e no de um sujeito composto (ROCHA, 2008: 230-232. ALQUI, III, 798. A. T, VIII, 349-350).

    De acordo com a leitura de Hoffman, Descartes poderia admitir que uma substncia pudesse ter dois atributos principais, porque ele compreende que os atributos pensamento e extenso so apenas diferentes entre si, e o fato de que um atributo seja diferente do outro no seria suficiente para excluir que eles pudessem existir em uma mesma substncia. O argumento de Hoffman o seguinte: se um atributo A diferente de um atributo B, e se nenhum atributo est contido em outro, ento um sujeito que contm esses dois atributos poderia ter duas essncias ou naturezas, a diferena entre dois atributos diferentes que existem em uma mesma substncia uma diferena de razo. Assim, ainda que uma substncia, enquanto sujeito composto, possa ter dois atributos principais diferentes, ela no pode ter duas essncias ou naturezas. Esta interpretao nos levaria a uma leitura trialista da ontologia cartesiana, segundo a qual o homem seria uma substncia composta de dois atributos principais diferentes, mas com uma nica essncia ou natureza (HOFFMAN, 2009: 59-60).

    Porm, outros intrpretes, tais como Vere Chappell e Ethel Rocha, analisam essa mesma passagem de outra maneira (CHAPPELL, 2007: 268-269. ROCHA, 2006: 99-104). Para eles, quando Descartes diz que um atributo no o outro, o que isso significa que os atributos so contrrios, e no apenas diferentes, como sustenta Hoffman. O argumento de Chapell o seguinte: se um atributo A diferente de um atributo B, ento A oposto a B, ou seja, A contrrio a B. Se A contrrio a B, ento seria contraditrio que um mesmo sujeito tivesse A e B. Portanto, se o pensamento e a extenso, enquanto atributos principais da mente e do corpo, tm a caracterstica de serem mutuamente excludentes, ento eles no podem coexistir em uma terceira substncia que seria o homem. Portanto, o que parece claro at aqui que no h nenhuma mudana na teoria cartesiana da substncia a partir dos Princpios. 8. Concluso: substncia e dualismo

    A teoria da substncia foi desenvolvida por Descartes em diferentes

    momentos de sua obra, e algumas teses presentes nessa teoria contm argumentos importantes para a defesa do dualismo cartesiano. Por exemplo, duas teses so particularmente importantes: aquela segundo a qual cada substncia criada possui um nico atributo principal, e aquela que implica a excluso mtua dos atributos principais da substncia pensante e da substncia extensa respectivamente. Uma das consequncias dessas teses que o homem no pode ser uma substncia criada, na medida em que ele uma entidade composta de duas substncias criadas, que possuem dois atributos principais mutuamente excludentes. Portanto, em suas diversas definies de substncia, Descartes sempre foi coerente com a tese segundo a qual em nenhum caso o homem poderia ser considerado uma substncia. Assim, as nicas entidades que poderiam satisfazer as definies de substncias fornecidas por Descartes em seus textos seriam Deus, a mente, e o corpo.

    Contudo, um problema concernente extenso da noo de substncia extensa se coloca quando nos perguntamos se Descartes aceita uma nica

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    23

    substncia extensa ou uma pluralidade de substncias extensas. Parece possvel, a partir dos textos, sustentar essas duas teses, porque h textos em que ele afirma que a pedra uma substncia, entretanto, em outros, ele sustenta que apenas o corpo tomado em geral seria uma substncia. Assim, com base nos textos, as duas posies podem ser consideradas como exprimindo uma posio cartesiana. Porm, at aqui ainda no vejo claramente qual delas seria a posio mais vantajosa para a defesa do dualismo. Essa questo ser o assunto de um prximo estudo.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Edies da obra de Descartes

    DESCARTES, Ren. Oeuvres de Descartes. Publies par Charles Adam et Paul Tannery. Paris: Vrin, 1996. 12 v.

    ___________ Oeuvres Philosophiques de Descartes. Ed. par Ferdinand Alqui. Paris: Garnier, 1997. 3 v.

    ___________ The Philosophical Writings of Descartes. John Cottingham, Robert Stoothoff, and Dugald Murdoch. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. 2 v.

    ___________ Mditations mtaphysiques. Texte latin accompagn de la traduction du Duc de Luynes; prsentation et traduction de Michelle Beyssade. Paris: Le Livre de Poche, 1990. (Classiques de la philosophie).

    ___________ Regras para a Direo do Esprito. Traduo de Joo Gama. Lisboa: Edies 70, 1989.

    ___________ O Mundo ou Tratado da Luz, O Homem. Edio em francs e portugus. Apresentao geral, apndices, traduo e notas de Csar Augusto Battisti e Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

    ___________ Meditaes, Objees e Respostas, Cartas. Trad. por J. Guinsburg e Bento Prado Jnior. So Paulo: Abril, 1998. (Os Pensadores, Descartes, 2).

    ___________ Discours de la Mthode. Texte et commentaire par tienne Gilson. Paris: J. Vrin, 1976. (Bibliothque des Textes Philosophiques).

    ___________ Princpios da Filosofia. Traduo coordenada por Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.

    ___________ Princpios da Filosofia. Traduo de Joo Gama. Lisboa: Edies 70, 1997.

    Estudos sobre Descartes

    ALQUI, F.: La dcouverte mtaphysique de lhomme chez Descartes. Paris: PUF, 1991.

    BAKER, Gordon; MORRIS, J. Katherine: DescartesDualism. London: Routledge, 1996.

    BEYSSADE, Jean-Marie : La philosophie premire de Descartes. France: Flammarion, 1979.

    ___________ tudes sur Descartes. Paris: ditions du Seuil, 2001. p. 217-242.

    ___________ A teoria cartesiana da substncia. Equivocidade ou analogia? In Analytica. So Paulo: Analytica (2), 1997; pp. 203-218.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Mar

    iana

    ALM

    EID

    A C

    AMPO

    S

    24

    BEYSSADE, Michelle : Le dualisme cartsien et lunit de lhomme. In : Idias de subjetividade na filosofia moderna e contempornea. GIACOIA JUNIOR, O. (Org.) ; EVORA, F. R. R. (Org.). 1. ed. Campinas: Anpof, 1997. v. 1. pp. 1-9.

    CHAPPELL, Vere: Lhomme cartsien. In : J.-M. Beyssade and J-L-Marion. ed. Descartes : Objecter et rpondre. Paris : Presses Universitaires de France. 1994. pp. 403-26.

    ___________ Descartess ontology. Topoi. v. 16. pp. 111-127. 1997.

    ___________ Descarteson substance. In: Janet Broughton, John Carriero. Blackwell Companion to Descartes. Oxford: Blackwell, 2007. pp. 251-270.

    ___________ Comments on Hoffman on Principal Attributes. Posted with a response by Hoffman. 2006. at www. courses.umass.edu/chappell/ publications.html

    COTTINGHAM, John. A Filosofia de Descartes. Traduo Maria do Rosrio Sousa Guedes. Rio de Janeiro: Edies 70, 1989.

    GUENANCIA, Pierre : Le Corps peut-il tre un Sujet? In: Descartes et la Question du Sujet. Org. ONG-VAN-CUNG, Kim Sang. Paris: PUF, 1999. pp. 93-110.

    GUEROULT, Martial: Descartes selon lordre des Raisons. Paris: Aubier, 2000a. 1 v.

    ___________ Descartes selon lordre des Raisons. Paris: Aubier, 2 v, 2000b. 2 v.

    GOUHIER, Henri. La pense mtaphysique de Descartes. Paris: J. Vrin, 1999.

    GILSON, E. : Etudes sur le rle de la Pense Mdivale dans la Formation du Systme Cartsien. Paris: J. Vrin, 1967.

    HOFFMAN, Paul: The Unity of Descartes Man. In: George J. D. Moyal. Ren Descartes. Critical Assessments. London: Routledge, 1991. pp. 168-193. 3 v.

    ___________ Descartess Theory of Disctiction. In: Essays on Descartes. Oxford: University Press, 2009b. pp. 51-70.

    KAUFMAN, Dan: Descartes on Composites, Incomplete Substances and Kinds of Unity. In: Archiv Fr Geschichte der Philosophie, 90, 1, 2008. pp. 40-72.

    LAPORTE, Jean : Le Rationalisme de Descartes. Paris: PUF, 1945.

    LOEB, Louis: From Descartes a Hume: Continental Metaphysics and the Development of Modern Philosophy. Itaca: Cornell University Press, 1981. pp. 78-82.

    MARKIE, Peter: Descartess concepts of substance. In: Cottingham, J. ed. Reason, Will and Sensation: Studies in DescartesMetaphysics. Oxford: Clarendon Press, 1994. pp. 64-87.

    PEREYRA, Gonzalo Rodriguez: Descartess Substance Dualism and His Independence Conception of Substance. Journal of the History of Philosophy. Volume 46, Number 1, January 2008. pp. 69-89.

    ROCHA, Ethel Menezes: Observaes sobre a Sexta Meditao de Descartes. Cadernos de Histria da Filosofia da Cincia. Campinas, Srie 3, v. 16, n. 1, pp. 127-144, jan-jun. 2006.

    ___________ Os filsofos Clssicos da Filosofia. ORG. Rossano Pecoraro. Rio de Janeiro: Vozes e Editora PUC - RIO, 2008. Volume 1. pp. 230-232.

    SCHMALTZ, Tad M.: Descartes and Malebranche on Mind-Body Union. The Philosophical Review, vol. 101. n. 2. Apr., 1992. pp. 281-325

    ___________ Descartes on Extension of Space and Time. Analytica. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. vol. 13, n 2, pp.113-147.

    SKIRRY, Justin: Descartes and the Metaphysics of Human Nature. London, New York: Continuum, 2005.

    WOOLHOUSE, R. S.: Descartes, Spinoza, Leibniz. The concept of substance in seventeenth-century metaphysics. New York: Routledge, 1993.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Car

    los

    DA

    LMEI

    DA

    PER

    EIR

    A

    25

    O positivismo clssico enquanto expresso capitular de cientismo: trmites da separao entre Cincia e tica

    Carlos dALMEIDA PEREIRA Instituto de Biotica | UCP (Portugal)

    RESUMO: no diagnstico da circunscrio, na actividade investigacional, do espao para determinaes ticas ou princpios precaucionais, comum incriminar o processo de autonomizao da cincia, do sculo XVII, como o momento inflexvel no qual se processou a disjuno entre saber e reflexo normativa no acto objectivo de proteco do imperativo conhecer por conhecer; a nossa posio, contudo, reconhecer no positivismo de Comte o efectivo processo de polarizao decisiva e irrevogvel, a ultimar por derivaes igualmente positivistas posteriores, entre tica e cincia, entre preceituao moral e virtude epistmica. PALAVRAS-CHAVE: Biotica; Cincia; Comte; Epistemologia; Positivismo. ABSTRACT: on the diagnose of the decrease, in the scientific research, of the importance of ethics, it is common to incriminate the process of empowerment of science in the seventeenth century as the moment in which has been unfolded the disjunction between knowledge and normative reflection; our point of view, however, will recognize in the positivist movement the effective process of polarization among epistemic virtue and moral prescription. KEYWORDS: Bioethics; Science; Comte; Epistemology; Positivism.

    Licenciado em Filosofia. Ps-Graduado em Biotica (com especializao em Antropologia e Sade). Ps-Graduado em Neurocincias. Doutorando em Biotica. Email: [email protected]

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Car

    los

    DA

    LMEI

    DA

    PER

    EIR

    A

    26

    Introduo

    No mbito das relaes entre Cincia e tica, a delao, pela Biotica e pelos Science Studies, de uma prtica cientfica exclusivamente determinada por pressuposies epistmicas ou mesmo por um novo ethos deontolgico, baseado em princpios de manegement, em que complexo nocional de liberdade de investigao, subterfgio predilecto da impugnao de qualquer tipo de heterorregulao tica ou imposio de democraticidade na cincia, soobra estrondosamente perante o carcter imperativo de que se reveste a autorregulao pelo mercado , diagnostica a circunscrio, na actividade investigacional, do espao para determinaes ticas ou princpios precaucionais. Inteleces filosficas prestigiadas, como a de Edgar Morin, no acto de imputao do carcter profundamente ambivalente da essncia de uma cincia desvirtuada pelas circunstncias do seu vnculo indstria, tcnica, sociedade e poltica, incriminam o processo de autonomizao da cincia, do sculo XVII, como o momento inflexvel no qual o seu postulado de objectividade operou, por si mesmo, a disjuno entre saber e tica no acto de proteco do seu imperativo conhecer por conhecer, circunstncia a partir da qual a cincia moderna, na sua prpria natureza, se tornou visceralmente indiferente a qualquer considerao tica que no a tica do conhecimento e a tica do respeito pelas regras do jogo cientfico (MORIN, 2004: 73-76).

    Suportada na circunstncia da persistncia de circunspectos ndices de eticidade nos projectos epistmicos de Bacon e de Isaac Newton, a nossa posio, contudo, a de que, mais do que na mudana de paradigma ontolgico da modernidade, ser no mbito do positivismo de Comte efectivo momento de eleio, por parte da cincia, da busca desinteressada pela verdade e da referncia ao suporte estrutural da objectividade como bem e tica prpria, e dos valores epistmicos como os nicos com vigncia que se enceta o processo de polarizao decisiva e irrevogvel, a ultimar por derivaes igualmente positivistas posteriores, entre tica e cincia, entre preceituao moral e virtude epistmica. O Positivismo

    A ambincia social da Europa do sculo XIX desenvolvia-se j numa confiante progresso racional, plasmada numa estabilidade poltica considervel e num processo de industrializao significativo, terminantemente compassados pela cincia e a tecnologia, quando Comte edita a obra Curso de Filosofia Positiva1 (1830-1842), em seis volumes, durante a dcada de trinta e incios da dcada de quarenta, convicto que estava da extrema urgncia em cindir com a justificao metafsica do saber nas diversas reas do conhecimento (inclusive social), e da premente necessidade da imposio do aval da cincia na instituio da noo de

    1 O complexo nocional filosofia positiva poder contrair (pelo menos) cinco acepes: filosofia real; filosofia exacta; filosofia rigorosa; filosofia profcua; filosofia experimental na oposio ao que depreciativamente negativo.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Car

    los

    DA

    LMEI

    DA

    PER

    EIR

    A

    27

    verdade2. Se, como constatmos, os sistemas baconiano e newtoniano, entre outros3, progrediam cientificamente escorados nos alicerces de uma causalidade final, plasmada na ideia de Deus garantia da preceituao de uma sensibilidade tica congnita a inteleco de Comte visar, sobretudo, desenlear os sistemas cientficos, de base geomtrica ou propenso indutiva, das amarras teolgico-metafsicas em que se enliavam aquando da demanda pela unificao estrutural almejada; persuadido do carcter progressista da histria, e crente na maturao intelectual da sua poca, o filsofo vislumbrar reunidas as condies para que as coordenadas das verdicas sendas do conhecimento cientfico passem a ser exclusivamente delineadas pela potestade intelectual, estribada na verificao emprica. A concretizao deste ideal impe-se, considerou, pois se na tentativa de compreenso dos enigmas da existncia, bem como dos enlevos naturais, o homem se vem inscrevendo na inquirio gnoseolgica pelos assuntos mais insolveis, pelos contedos mais impenetrveis ao pendor investigacional, pelas causas essenciais e pelos conhecimentos absolutos, tem-no feito mediante uma exegese asctica gradativa, correspondente s teorizaes do estado teolgico e do estado metafsico, com as quais premente exsolver: num original estdio evolutivo, as justificaes existenciais processam-se por intermdio de um dinamismo teortico cujo mbil explicativo radica em entidades sobrenaturais, plasmado no feiticismo, no politesmo e no monotesmo; numa subsequente etapa, as entidades sobrenaturais so substitudas por abstraces personificadas, cujo uso, verdadeiramente caracterstico, permitiu muitas vezes design-las sob o nome de ontologia (COMTE, s/d: 171) se o primeiro estado pautado pelo predomnio da especulao, fecundada pela imaginao, a capacidade argumentativa domina o segundo. Ao esprito humano urge, pois, renunciar s pesquisas absolutas, que no convinham seno sua infncia, e restringir os seus esforos ao domnio, desde ento progressivamente alargado, da observao (COMTE, s/d: 174), assim como o determina o estado positivo ou da racionalidade definitiva , em que a circunspeco de um enunciado, exsolvido de quaisquer propsitos metafsicos, radica na dependncia da sua vinculao aos factos.

    O itinerrio positivista comtiano norteia-se sobretudo pelo desgnio de descoberta das leis com que se processa a regularidade dos fenmenos. Na expectativa de confirmao ou infirmao de teorias cientficas, predispe-se organizao sistemtica dos diversos ramos do saber, patrocinando o agrupamento metdico das disciplinas cientficas. Crente no desenvolvimento infindo do conhecimento, mediante uma acumulao gnoseolgica progressiva derivada de novas observaes ou de meditaes mais elaboradas, outorga-se a incumbncia de determinao das possibilidades de agnio da realidade. E porque toda a cincia tem por fim a previdncia4 (COMTE, 2008: 146), pautar-se- por um veemente pendor operativo.

    Dos rasgos gerais do positivismo salienta-se, pois, a exaltao da cincia, cada vez mais espartilhada em reas de conhecimento tcnico, enquanto nico meio em condies de solucionar, do decurso do tempo, todos os problemas humanos e 2 Os desgnios do positivismo clssico de Comte encontravam eco, entre outras, nas posies filosficas de Littr, Spencer e Mill. 3 At o cartesiano, por exemplo, no qual Deus constitui suporte e garantia do edifcio gnoseolgico. 4 Em Cours de Philosophie Positive, na Deuxime Leon, a enunciao semelhante: cincia, logo previdncia; previdncia, logo, aco, Cf. COMTE, 2008: 36 e ss.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Car

    los

    DA

    LMEI

    DA

    PER

    EIR

    A

    28

    sociais que at ento haviam atormentado a humanidade (REALE, 2001: 272). A supremacia daquela enquanto instrumento cognoscitivo e a evidncia da equabilidade metodolgica que a consolida caucionam a convico do carcter inelutvel do domnio absoluto do homem sobre a natureza; a especializao do conhecimento cientfico, por sua vez, potencia a irrupo do man of science5 em detrimento do diletantismo aristocrata , que passa a operar em dedicao exclusiva nos grupos de pesquisa laboratorial emergentes, assomando igualmente desta conjectura a tendncia preambular da profissionalizao6, bem assim como a disposio expressiva para a produo de publicaes especializadas referentes a assuntos cientficos e at encontros de discusso e publicitao de resultados investigacionais. Mas da consubstanciao do estado positivista, na economia da lei dos trs estados, enquanto sistema opositor aceitao das causas essenciais e apologista da valorizao da observao, da previso racional e da formulao de leis gerais factores concorrentes ordenao positiva e linear das cincias , transcorrero prejuzos ontolgicos srios. O empreendimento gnoseolgico da filosofia positivista, ao instituir-se como corpo metodolgico das diversas cincias, no se absolve do oprbrio da restrio da amplitude das potencialidades cognoscitivas do sujeito, uma vez que imola a dinmica criativa do esprito aos ditames do monismo metodolgico, na consagrao das cincias como paradigma cognitivo exclusivo a focalizao restrita nos critrios de objectividade que elege, coage padronizao e tecnicizao dos processos de recolha de dados, no propsito de uma neutralidade processual que impe a passividade do sujeito. E ao contrrio dos sistemas filosficos precedentes, devotados a pendncias concernentes questo do Ser, revela-se verdadeiramente reducionista. Presta-se tambm ao ensejo de avaliao crtica a conjectura positiva de que do conhecimento apenas factores benignos sobreviro para a humanidade, suportada na citao bblica do evangelista Joo7: ser o conhecimento sempre benfico em todas as acepes que se tomem? (KITCHER, 2002: 147). Incorre, ainda, nas limitaes inerentes a qualquer teorizao que, pela confuso frequente entre filosofia e cincia, mundo humano e fsico, esprito e matria, se circunde nefastamente da realizao de m cincia, com base em pseudo-pressupostos filosficos, e de m filosofia, com base em princpios cientficos

    5 Apesar de, a pedido do poeta Coleridge, William Whewell, filsofo e historiador da cincia ingls, ter inventado, j em 1833, a palavra inglesa scientist - publicada pela primeira vez num escrito annimo de 1834, intitulado On the connexion of the physical sciences (editado pela Quarterly Review), com o intuito de substituir, qui tambm simbolicamente, os termos habituais natural philosopher e man of science - o conceito no granjearia aceitao generalizada antes do fim do sculo XIX (Cf. William Whewell: Stanford Encyclopedia of Philosophy verso on-line). 6 Em Making the Man of Science (2003), baseado na figura e obra de Thomas Huxley notvel naturalista britnico e elevado difusor do darwinismo latente , Paul White examina a configurao epistmica e psicolgica do homem de cincia no perodo vitoriano (1837-1901). A partir, sobretudo, da moldagem que Huxley perpetra s determinaes do scientific practitioner, e apesar de ser possvel vislumbrar ainda neste a acomodao efectiva de virtudes morais e religiosas e do prprio complexo nocional man of science consistir numa idealizao , reconhece-se que as determinaes seculares que lhe comeam a ser impostas permitiro a White inferi-lo j como o eptome do professional scientist emergente, com uma nova postura face sociedade e tica. Quando, no final do sculo XIX, a terminologia proposta por Whewell scientist se dissemina (cf. nota anterior), a ideia de que ao bom praticante de cincia exigida a estrita observao da separao entre factos e valores constitui j um axioma. 7 () e deves conhecer a verdade, e a verdade libertar-te-: JOO, 8: 32.

    http://en.wikipedia.org/wiki/Quarterly_Reviewhttp://en.wikipedia.org/wiki/Quarterly_Reviewhttp://plato.stanford.edu/entries/whewell/

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Car

    los

    DA

    LMEI

    DA

    PER

    EIR

    A

    29

    discricionariamente aplicados de resto, j na poca, esclarecidas correntes intelectuais, manifestavam a sua apreenso em evidente timbre crtico: Charles Pellarin, influncia clssica de posteriores censores, redige Essai Critique sur la Philosophie Positive: Lettre a M. . Littr (De L'Institut), logo em 1864; Ea de Queirs, em Positivismo e Idealismo, de 1893, compendiado em Notas Contemporneas (2000), reage ao modo brutal e rigoroso com que o positivismo cientfico trata a imaginao, que uma to inseparvel e legtima companheira do homem, como a razo (EA DE QUEIRS, 2000: 193); e Sampaio Bruno, em O Brasil Mental (1898), sustenta no consistir o positivismo na expresso da concepo antropolgica que ele idealizava, ao mesmo tempo que advoga que sem a janela da metafsica no se poder entender verdadeiramente o mundo e a sua evoluo (SAMPAIO BRUNO, 1997).

    Dos vectores especficos que a propsito desta preceituao racionalista tramos, a ciso que Comte vem assestar entre a prtica cientfica e a unidade metafsica ou teolgica das cincias e a avocao da autonomia do puramente epistmico como uma conquista excelsa assumem particular relevncia, pois que consideramos ser a partir da extrema disjuno positiva mais concretamente da conjugao dos trs dogmas positivistas, comummente referidos nesta conjectura, e que aqui se concretizam: a incompatibilidade da investigao quantitativa com pressupostos qualitativos; a imposio, em mbito investigacional, de uma rgida separao entre factos e valores; a ciso acadmica entre uma investigao marcadamente cientfica e uma investigao de mbito humanstico que se enceta o processo de polarizao decisiva e irrevogvel, a ultimar por derivaes igualmente positivistas posteriores, entre tica e cincia, entre preceituao moral e virtude epistmica8, sendo ratificada, promulgada e instituda, no plo exclusivo da cientificidade, a substituio do anterior vnculo finalista pela conjugao oportuna entre cincia e tcnica.

    O assomar do puramente epistmico

    Edgar Morin comunga da posio dos Science Studies na condenao de uma operatividade cientfica que, desde o perodo em anlise e at contemporaneidade, se queda desvinculada de quaisquer pressuposies ticas. Em Science sans Conscience assume que

    () os mltiplos e prodigiosos poderes de manipulao e de

    destruio, nascidos das tecnologias contemporneas, levantam, doravante, aos cientistas, ao cidado e a toda a humanidade o problema do controlo tico e poltico da actividade cientfica (MORIN, 1994: 9),

    postulando categoricamente que a enorme massa do saber quantificvel e tecnicamente utilizvel no passa de veneno se for privado da fora libertadora da reflexo (Idem: 18). Mas em Science, thique, Socit, parte integrante de La Mthode thique (2004), texto que, por sua vez, encerra a asseverao categrica,

    8 Diversos autores comungam desta perspectiva, reconhecendo a credenciao positivista na dissociao do objecto cientfico de tudo o que se refere ao mundo da religio, da metafsica, do senso comum e, naturalmente, da prpria tica, Cf. ARAJO, MANUEL, 1999: 523.

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Car

    los

    DA

    LMEI

    DA

    PER

    EIR

    A

    30

    ainda que excessivamente genrica, da ciso entre cincia e normatividade, o autor situa o processo de autonomizao da cincia no sculo XVII, asseverando ser a partir dali que o seu postulado de objectividade operou, por si mesmo, a disjuno entre saber e tica no acto de proteco do seu imperativo conhecer por conhecer (MORIN, 2004: 73), e que a cincia moderna, na sua prpria natureza, se tornou visceralmente indiferente a qualquer considerao tica que no a tica do conhecimento e a tica do respeito pelas regras do jogo cientfico (MORIN, 2004: 76) e isto por quatro motivos fundamentais: pelo princpio fundador da cincia ocidental, que rejeita toda a tica exterior; pelos princpios motores da cincia clssica, que so o determinismo e o reducionismo; pela cultura disciplinar que, fragmentando o conhecimento e a formao especializada, convertem o cientista em ignorante e indiferente problemtica epistemolgica e, bem entendido, problemtica tica; pela cegueira da cincia a propsito da sua prpria essncia, a propsito do que faz, do que se tornou, do que poderia ou deveria tornar-se (MORIN, 2004: 78). Introduzindo-se nas universidades a partir do sculo XIX, e no corao das empresas industriais e dos estados que financiam as investigaes cientficas e se apropriam dos seus resultados para os seus prprios fins no sculo XX (MORIN, 2004: 73), a cincia acaba por ser decisivamente captada pelos interesses econmicos e polticos (MORIN, 2004: 73-74), sendo contaminada e contaminando (por) estas duas instncias (MORIN, 2004: 76). Os graves risco que comporta, na sua omnipresena e no mbito de um desenvolvimento incontrolado, continua o autor, residem no facto de desenvolver, por si mesma, poderes de manipulao e potenciais de destruio inusitados (MORIN, 2004: 76).

    O reparo que nesta circunstncia se faz a Morin o de que, no acto de circunscrio da origem da enunciada conjuntura de ciso poca moderna, no dissecar circunspectamente as causas da mesma, no problematizar honrosas excepes como Bacon e Newton , nem distender o teor repreensivo ao cientismo positivista do sculo XIX, efectivo momento de eleio, por parte da cincia, da busca desinteressada pela verdade e da referncia ao suporte estrutural da objectividade como bem e tica prpria, e dos valores epistmicos como os nicos com vigncia.

    Para ns, fundamentalmente nos trmites do positivismo novecentista que a clssica perspectiva natural, a determinao qualitativa, orgnica, contingente e religiosa intuda pelos gregos e ainda presente, se bem que refreada, nos cnones eclesisticos medievais se perde em favor de uma nova imago mundi, de pendor quantitativo, mecnico, incomensurvel e dessacralizado, apropriada a uma compreensibilidade determinada por coordenadas geomtricas, tcnicas, na qual a referncia objectividade constitui o exclusivo suporte da cincia. Projecto concreto e quantificado de poder sobre a natura dominata, o aparelho cientfico promove agora a subordinao da natureza operacionalidade e impetuosidade do tecnicismo, matriz de uma abundncia a sub-rogar delicada tarefa poltica da demanda pela igualdade e pela justia. E a observncia do programa mecanicista na fsica, na qumica, na biologia , pela desvitalizao do mundo, objecta a possibilidade de fundamentao, no campo investigacional, de pressupostos axiolgicos. cincia, instrumento distinto de compreenso, interpretao e domnio da natureza, convir exclusivamente operar sobre o quantificvel, o mensurvel, predispondo-se eliminao do qualitativo e do subjectivo e

  • ACTAS III

    AS JORNADAS INTERNACIONAIS DE JOVENS INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Krisis 2011

    Car

    los

    DA

    LMEI

    DA

    PER

    EIR

    A

    31

    perspectivando, por afinidade, a subjectividade humana e, logo, qualquer reportao aos domnios etreos da tica como negligencivel e at mesmo perigosa. As qualidades adstritas ao conhecimento passam a assumir a aproximao inflexvel s determinaes de utilidade, certeza, relatividade, positividade e neutralidade, e o bom cientista a ser unicamente iniciado e obrigado a incorporar (n)os novos atributos deontolgicos de preciso, rigor e consistncia, associados aos procedimentos de clculo.

    As repercusses na cincia e em toda a ambincia intelectual da poca foram imediatas: Claude Bernard (1813-1878), fisiologista francs e um dos fundadores da linha experimental hipottico-dedutiva formalizada nas etapas de observao / hiptese / experincia / resultado / interpretao / concluso , em razo de estrito cumprimento deste itinerrio positivista, no que daquele convm especificidade e imposies para a constituio de uma medicina cientfica, experimental, determinista e assptica em relao a sentimentalismos ou contries, afirmar em 1865, no captulo segundo da obra Introduction ltude de la mdecine exprimentale, no ponto dedicado vivissecao, que

    () o fisiologista no um homem comum, um cientista possudo e absorvido pela ideia cientfica que persegue. Ele no ouve os gritos do animal, no v o seu sangue a correr. No v nada a no ser a sua ideia (). Sob a influncia da ideia cientfica, segue