56
ADEUS DOUTOR (Peça em dois atos)

ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

ADEUS DOUTOR

(Peça em dois atos)

Page 2: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

à memória de Oswald de Andrade

e

para José Celso Martinez Corrêa

Page 3: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

APRESENTAÇÃO

Originária de uma família de imigrantes libaneses no Brasil, Seriema vive o drama de

uma ocidental descendente de orientais. Suas ancestrais precisavam dar à luz um primeiro

filho homem para satisfazer à expectativa da família. A gravidez se torna um problema na

vida de Seriema, que, depois de dois abortos, se separa a contragosto do marido. Porque a

maternidade, no caso dela, é impossível? Porque ela não pode se identificar com as mulheres

da família ou por algum outro motivo?

O fato é que Seriema resolve sair do Brasil a fim de esquecer o drama da separação.

Consegue uma bolsa e vai para a França, onde se submete a uma análise. Através desta,

descobre o verdadeiro motivo pelo qual não pode dar à luz, ou seja, o desejo inconsciente de

satisfazer o desejo do pai, que nunca a autorizou a ter um homem na sua vida. Graças à escuta

do analista, Seriema deixa de ser vítima do seu inconsciente, conquista a possibilidade de

escolher um pai para o filho e se tornar mãe. Por sua vez, o Doutor, que está mal casado, se dá

conta da sua indiferença em relação a si mesmo e resolve se separar a fim de começar outra

vida.

A peça se estrutura em torno das sessões. O modo como a sessão termina é sempre

função do que é dito e o texto o indica claramente. Trata-se do modo do analista, que se vale

também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar ênfase ao que nela

é essencial. Cada sessão é uma cena e, tendo em vista a nacionalidade da analisanda, a

passagem de uma para outra cena pode ser pontuada por uma batida de tambor.

Page 4: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

PERSONAGENS

Seriema: Analisanda brasileira do Doutor

Doutor: Analista francês

Além dos dois personagens, uma dançarina para o papel de Maria, babá de Seriema, que só

entra em cena dançando e cuja voz é ouvida em off.

Page 5: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

ATO I

Page 6: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 1

(Paris. O consultório do Doutor com uma janela e duas portas no fundo. A porta da esquerda

é a porta pela qual os analisandos entram. A da direita é a porta pela qual eles saem. Do

lado esquerdo do consultório, duas poltronas de veludo. Entre elas, mesinha com telefone.

Do lado direito, o divã e a poltrona do analista, imponente.

O Doutor e Seriema estão sentados face a face nas poltronas de veludo. O Doutor com blaser

e uma camisa branca, sem gravata. Seriema de terno, calça comprida e paletó, bolsa de

couro masculina. Ao longo da peça, a roupa da heroína se torna progressivamente mais

feminina.)

DOUTOR

Mas você se separou por quê? Até hoje eu não sei o motivo, o verdadeiro motivo.

SERIEMA

Não queria me separar. Foi o Antônio que saiu de casa. Depois do segundo aborto.

DOUTOR

Foram dois abortos.

SERIEMA

Sim, foram. Perdi a criança duas vezes. No segundo, o Antônio ficou maluco. Quebrou tudo

na casa e sumiu. Pedia para um amigo buscar o que precisava, mas não dava notícia. (Um

tempo) Eu queria que ele voltasse. Esperei três meses e nada. Me virei para conseguir uma

bolsa de estudos. Consegui e fiz as malas. Me distanciei, na esperança de que ele mudasse de

ideia. Por enquanto, nada. (Um tempo) Preciso descobrir por que eu estou sozinha… por que

eu perdi o Antônio.

DOUTOR

Page 7: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

Não se separou, perdeu Antônio.

SERIEMA

(Um tempo) Perdi também o Brasil… Não sabia o que significa ser uma estrangeira.

(Sarcasticamente) “De onde você veio? De que país?” E eu nunca sei se estou falando direito.

Para qualquer açãozinha no passado, o francês usa três palavras. (Dizer as palavras em

francês uma a uma) Para comeu, il a mangé. Para um simples número noventa, três palavras:

quatre vingt dix. Eu aqui vivo vertendo e traduzindo, sou obrigada a pensar o tempo todo. No

Brasil, a língua pensa por mim…Até para tomar uma coca-cola aqui é complicado. Se você

não disser cocaaa em vez de coca e se você não mudar o artigo, não disser un coca em vez de

une coca, nada feito, ninguém entende.

DOUTOR

Hum… E o que mais? Diga.

SERIEMA

Não sei…

DOUTOR

(Solilóquio) “Não sei”. Quer e não quer fazer análise. Se o analista não tiver jogo de cintura,

está perdido. Quando está contrariado, tem que se calar. Se não, a análise acaba antes de

começar. (Um tempo) E ela vai ficar assim, em silêncio? Bonita ela… cabelos pretos lisos...

Será que ela tem algum ancestral índio? (Dirigindo-se a Seriema ) Sangue índio na sua

família?

SERIEMA

(Solilóquio) O quê? Eu, índia? Uma silvícola?! Era só o que faltava. O que ele está pensando?

Que eu sou descendente daqueles índios que viviam nus e se jogavam nos navios europeus,

achando que iam para o céu? Iam exibir o cocar e brandir o tacape, animar as festas francesas,

Page 8: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

correndo o risco de morrer de frio ou de diarreia. Cadê o arco e a flecha, Seriema? As plumas

e os maracás?

DOUTOR

Você precisa me dizer o que passa pela sua cabeça. Tem sangue índio na sua família?

SERIEMA

Seriema é o nome índio de uma ave brasileira...um nome tupi-guarani. Mas eu de índio não

tenho nada. Já disse que sou neta de libaneses. A minha avó imigrou para o Brasil, porque o

futuro marido estava lá. Casamento arranjado. E ela não fez oposição. Só sabia dizer: “Do

Líbano para o Brasil, cinco filhos, porque maktub, estava escrito. Só isso”. Maktub e ela

entrou no navio, maktub e ela se casou, maktub… Nunca passou pela cabeça dela que uma

mulher pudesse ser livre, ter os mesmos direitos de um homem.

DOUTOR

E o que tem a história desta avó a ver com a sua?

SERIEMA

O que tem a ver comigo? Quando eu nasci, ela disse: “— Bonita criança… pena que seja uma

menina”. O meu nascimento foi uma decepção, ela queria um homem, um verdadeiro

primogênito. Pena que seja uma menina… Como é possível dizer isso? Uma frase basta para

salvar ou condenar uma pessoa, cavar a sepultura.

DOUTOR

Verdade.

SERIEMA

E a minha tia, então? Rezava dia e noite para conceber um varão! “— Ave, Maria, cheia de

graça, o Senhor é convosco… Ave, Maria, cheia de graça, bendito é o fruto...”. Fez até

Page 9: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

promessa de atravessar a cidade de joelhos. Novenas e mais novenas. (Indignada) A gravidez

inteira pedindo um homem ao céu.

DOUTOR

Uma irracionalidade…

SERIEMA

Uma aberração!

DOUTOR

(Solilóquio) A gravidez era uma tortura na família dela. Ou a mulher dava à luz um

primogênito homem ou era desvalorizada. Como se o sexo da criança dependesse da mãe! A

mulher era uma injustiçada pelo simples fato de ser mulher. (Dirigindo-se a Seriema) Alguma

relação entre a sua história e a da sua mãe, da sua tia? Estou me referindo ao aborto… aos

abortos.

SERIEMA

O médico disse que foi problema no útero…

DOUTOR

E você não sabia?

SERIEMA

Na primeira vez que eu perdi a criança, não.

DOUTOR

(Surpreendido) E depois?

SERIEMA

Achei que o problema não era grave, que não teria maiores consequências. Só me operei

Page 10: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

depois do segundo aborto, quando fui obrigada… uma infecção e uma hemorragia... podia ter

morrido.

DOUTOR

(Suspiro) Você sabia e não se tratou? (Seriema baixa a cabeça e fica calada) Diga, estou

escutando.

SERIEMA

Sei que é culpa minha.

DOUTOR

Você é responsável, culpada, não. Não foi um ato deliberado. Você não ignorou o problema

porque quis.

SERIEMA

E daí? Adianta falar? Adianta pôr fechadura na porta depois que a casa foi arrombada?

DOUTOR

Não há por que se desesperar. Você está em análise… pode trilhar um caminho novo,

reinventar a sua história. (O Doutor se levanta)

SERIEMA

Acabou? Já?

DOUTOR

Volte amanhã.

SERIEMA

Amanhã eu não posso.

Page 11: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

Então, depois de amanhã, às cinco. Até. (O Doutor se levanta e Seriema também, ela põe o

dinheiro em cima da mesa e sai) O aborto poderia ter sido evitado se ela tivesse dado ouvidos

ao médico. Quer ter um filho e, por alguma razão, não quer. Tomara que ela reflita sobre o

que disse, o fato de não ter se tratado, ter ignorado o que sabia, o “problema”… A paixão da

ignorância é a pior das paixões. (Um tempo. Senta, pega o telefone e liga para a secretária)

Ligue para o Eduardo, por favor. (Irritado) O Doutor Eduardo, claro.(Fica aguardando) Boa-

tarde. Tudo bem? O resultado do exame já chegou? (Um tempo) Metástase? Quimioterapia de

novo? (Afasta o telefone assustado, respira fundo e depois volta a falar) Minha mãe não faz.

(Um tempo) Vai ser muito difícil convencer... Ela não para de dizer que já viveu o suficiente

e, se tiver uma metástase, não quer mais se tratar… Mas eu volto a te ligar. (Desliga) Deus,

meu! Minha mãe está condenada! Não acredito. Tenho que contar para minha irmã. Vou fazer

isso pessoalmente. As duas são tão apegadas.

(A luz se apaga e se reacende quando a cena seguinte começa. Isso deverá se repetir até o

final)

Page 12: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 2

(Penumbra. Maria fala em off ao som de uma batucada longínqua. Enquanto isso, o Doutor e

Seriema permanecem imóveis nas poltronas de veludo.)

VOZ OFF DE MARIA

A nuvem passa e a tristeza também. Onde está você Seriema?…você com o teu riso e a tua

alegria? Tão longe daqui! A nuvem passa e a tristeza também. O marido foi embora, mas

pode voltar. Invoca a Senhora da Magia, a Deusa da Sedução, ela tudo pode. Invoca o anjo

incendiário. (Tom de invocação) Oh, senhora da corola de fogo, prepara o filtro mágico —

olho de salamandra, dedo de rã, língua de cachorro –, prepara e faz Antônio beber. Crava no

coração dele a vara incandescente da paixão. Invoca, Seriema. (O tom do começo) A onda vai

e vem. Maria te espera, a tua Maria. Volta ouvir a bateria esquentando os tamborins. Volta ver

o voo dos pássaros inebriados pelo ritmo e pelo céu azul. A onda vai e vem.

(Iluminação do consultório)

SERIEMA

Sonhei com Maria, a baiana que me criou… “— Volta”, ela me dizia.

DOUTOR

(Um tempo) Só isso?

SERIEMA

Me aconselhava a invocar a Deusa da Sedução, pedir que me trouxesse o marido de volta.

Infelizmente, eu não acredito na magia. Se acreditasse, não estaria aqui.

DOUTOR

E o que mais?

Page 13: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

SERIEMA

(Um tempo) Pensei no que o senhor disse. O senhor gostaria que eu tivesse sangue índio…

(Riso) Assim, poderia dizer aos colegas que fez análise de uma silvícola. (Ironicamente) Os

franceses adoram os bons selvagens.

DOUTOR

(Solilóquio) Por que ela está me provocando? A troco de quê? Melhor seria que ela tivesse

pensado no que disse: “Sabia e não me tratei”. A causa da separação é esta. Mas não adianta

insistir, forçar a mão aumenta a resistência... não é para isso que eu estou aqui. Paciência,

Doutor! (Dirigindo-se a ela) Estou escutando.

SERIEMA

Na verdade, eu gostaria de ter ascendentes índios, índios e portugueses… Não ser

descendente de imigrantes.

DOUTOR

Por que isso?

SERIEMA

Na infância, eu era chamada de “turca”… era depreciativo. Além de ser uma aberração,

porque meu avô deixou o Líbano para escapar dos turcos... para não ser alistado pelo exército

invasor.

DOUTOR

O exército otomano.

SERIEMA

E o nome do meu avô foi trocado quando ele entrou no Brasil… trocado na alfândega. Que

importância tinha o nome de um imigrante? De um Zé-Ninguém? Depois, como se não

Page 14: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

bastasse, o Zé-Ninguém era chamado de come-gente.

DOUTOR

(Estranhando) Come-gente?

SERIEMA

É. Meu avô era mascate. Vendia mercadoria nos sítios … Mala nas costas, cem quilos, de sol

a sol. Vivia de lá para cá, sem almoço, sem onde dormir. “Algodão, seda, tafetá”.

Cumprimentava com Ahlo Sahla e o povo gritava: “— O turco, o come-gente chegou!” As

mães saíam correndo com as crianças. Como se o avô fosse um canibal. Come-gente, pelo

simples fato de falar outra língua.

DOUTOR

E você agora está num país cuja língua não é a sua… o francês não é a sua língua materna.

SERIEMA

Verdade, mas os meus avós são imigrantes libaneses. A França, para eles, era sinônimo de

civilização. Falar francês era o sonho da minha mãe. “— Música no meu ouvido”, ela dizia. E

eu estudei a língua.

DOUTOR

Seja como for, sua língua materna é o português...

SERIEMA

E daí?

DOUTOR

Você poderia fazer análise com uma portuguesa que mora aqui…

SERIEMA

Page 15: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

(Solilóquio) Portuguesa? Nem pensar! Será que ele não sabe que a língua dela não é a

mesma? Parece que é, mas não é. A língua de Portugal é uma, a do Brasil é outra. Para

sanduíche, ela diz prego. Se me vir comendo um sanduíche, vai dizer que eu estou comendo

um prego. Broche, na língua portuguesa dela, significa felação. Se eu a elogiar pelo broche,

me expulsa do consultório. Não, não é possível! Do ponto de vista dela, eu deturpo, estrago a

língua… preciso mais de aulas de português do que de sessões.

DOUTOR

E então?

SERIEMA

Não, com portuguesa, nem pensar! Prefiro não fazer análise.

DOUTOR

Bom, então, volte amanhã. Às cinco. (O Doutor se levanta e Seriema também. Ela paga e vai

embora. O Doutor se senta) Seriema quer fazer análise comigo. E, se não for comigo, não faz.

Então, tem que ser como ela quer. Mas por que ela insiste em fazer análise em francês, numa

língua que não é a dela? Seja como for, ela sabe o que quer e o que não quer.

Page 16: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 3

(O Doutor está sentado sozinho no consultório, lendo o jornal)

DOUTOR

(Olha o relógio) Pode ser que não venha. Insiste em fazer análise comigo e depois... falta.

Sugeri a analista portuguesa. Será que se sentiu rejeitada? Nem tudo o que se diz em

português pode ser dito em francês. Agora, o problema talvez nem seja este. Talvez seja o

sexo do analista. Pode ser que ela sequer imagine a possibilidade de fazer análise com uma

mulher. (Pega o telefone e liga. Um tempo) E mamãe que não atende? Pedi para minha irmã ir

à casa dela. (Um tempo) Mamãe não quer mesmo saber de outra quimioterapia. Já sofreu

muito, mas eu não me conformo. Como ficar sem ela? Quero ela viva enquanto for possível.

Sei que sou egoísta. Ninguém pode pedir que o outro se submeta ao tratamento custe o que

custar, doa a quem doer. Sempre me disse que respeitaria a decisão dela, só que agora… eu

não sou eu. (Pega o jornal. Vira as páginas e para na manchete que lê alto)

O CORAÇÃO TEM SEXO.

HÁ DIFERENÇAS ENTRE O DO HOMEM E O DA MULHER.

Até na anatomia do coração, homem e mulher são diferentes! (O telefone toca, ele atende)

Mamãe? Fui eu, sim, que telefonei (Um tempo) Claro, a vida é sua. Sei, sei. Você tem o

direito de decidir. Mas… Mãe? Alô, alô… Desligou, merda! (Põe o telefone no gancho e olha

de novo o relógio) Cinco e meia. Seriema não vem mais (Levanta, joga o jornal e sai)

Page 17: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 4

(O Doutor está de pé. Seriema entra irritada. Ele se senta, e ela, não)

SERIEMA

(Fala em pé) Ouvi o senhor dizer para a secretária: “— A brasileirinha pode entrar”.

DOUTOR

Sente-se. (Ela se senta e fica com a bolsa pendurada no ombro) Sim, foi, eu disse

brasileirinha. O diminutivo em francês é afetuoso.

SERIEMA

Me lembrou do turquinha da minha infância. Não suporto nenhum rótulo, Doutor. (Diz

“Doutor” sarcasticamente )

DOUTOR

(Solilóquio) Merda! Por que eu disse brasileirinha?

SERIEMA

Meu avô contava que, no Líbano, os cristãos eram obrigados a se identificar com uma tarja na

manga. Só podiam andar em um dos lados da rua. Quem andasse no outro, ia preso. “—

Ishmel! Ishmel! À esquerda.” (Irritada) O avô foi chamado de cristão, turco e come-gente e

eu agora sou a brasileirinha. Prefiro ser chamada pelo meu nome: Seriema.

DOUTOR

Com razão. E o que mais? Diga.

SERIEMA

Não sei bem por que estou na França…

Page 18: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

(Solilóquio) Ela não se escuta, não escuta o que diz. (Dirigindo-se a Seriema) Você disse que,

para sua família, a França era sinônimo de civilização… (O telefone toca. O Doutor olha o

número no mostrador e atende) Sim, mãe. Assim que terminar, eu ligo. (Dirigindo-se a

Seriema) Desculpe.

SERIEMA

Pode falar com ela.

DOUTOR

Não. Eu agora estou só para você.

SERIEMA

Verdade que mamãe queria ter nascido aqui. (Ironicamente) “— Paris! A Torre Eiffel, o

Panthéon, Edith Piaf, os direitos do homem! A Sorbonne e os doutores de verdade. A Cidade

Luz! Até a Estátua da Liberdade foi esculpida em Paris!” (Um tempo) Mas o que tenho eu a

ver com a minha mãe? Aqui eu não conheço ninguém… O meu quarto é mínimo e a cama tão

mole que prefiro dormir no chão. Eu, que me criei descalça, não tiro mais a bota do pé. Estou

a dez mil quilômetros de casa.

DOUTOR

(Enfaticamente) Verdade que você deixou o país, a casa, os familiares... Foi uma grande

largada. De um continente para o outro.

SERIEMA

Por causa de um marido que só me queria se eu desse à luz. Para ele, mulher nenhuma é

única. Se casou várias vezes. Qualquer uma ele faz sua mulher. Não quero ficar num pedestal,

mas também não quero ser igual a todas as outras.

Page 19: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

(Solilóquio) Uma ancestral que precisava pôr no mundo um homem para ser querida… corria

o risco de ser desvalorizada ao dar à luz. Seriema não podia se identificar com ela, mas

poderia ter se identificado com outra mulher e ter se tratado para chegar ao termo da gravidez.

Curioso... e se veste sempre de terninho, a mesma bolsa a tiracolo… não usa joia, só esse

pendente estranho. (Dirigindo-se a ela) Você disse que não quer um pedestal, mas também

não quer ser igual a todas as outras. O que significa isso?

SERIEMA

O que significa? Não sei.

DOUTOR

Pense. Nós hoje ficamos por aqui. (Diz isso, levanta e estende a mão para receber. Seriema

paga)

DOUTOR

São 100 euros.

SERIEMA

Como assim?

DOUTOR

Pela sessão de hoje e pela outra, a que você faltou.

SERIEMA

Não tenho 100… (Olha na carteira.) Tenho 100.

DOUTOR

Page 20: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

Então, ótimo. (Seriema, envergonhada, paga e sai. O Doutor fica sentado.) Por que ela diz

que não tem o que me deve quando tem?

Page 21: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 5

(Seriema está no consultório, sentada numa das poltronas de veludo. O Doutor está em pé,

olhando fixamente para o pendente que ela usa no pescoço)

DOUTOR

No que você está pensando?

SERIEMA

Com o senhor aí me encarando, eu não consigo pensar. (Solilóquio) Vou dizer que não gosto

de ser olhada assim? Que o olhar me incomoda? Que eu não quero ser cobiçada por ele?

(Dirigindo-se a ele) O senhor tem a idade que o meu pai teria se fosse vivo.

DOUTOR

Hum (O Doutor se afasta um pouco, mas continua em pé) E isso no seu pescoço é o quê?

SERIEMA

O olho de vidro?

DOUTOR

Sim, o olho. Seria um fetiche?

SERIEMA

(Surpreendida) Um fetiche… Nunca me ocorreu que pudesse ser um. (Solilóquio) Depois de

ter me tomado por uma silvícola, ele agora me toma por uma fetichista…

(Silêncio)

DOUTOR

(O Doutor se senta) O que mais você me diz?

Page 22: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

SERIEMA

Verdade que eu só saio de casa com o olho, “de corpo fechado”.

DOUTOR

O quê?

SERIEMA

De corpo fechado significa protegida contra a inveja… contra o olho-gordo, o olho mau,

como diz Maria.

DOUTOR

Maria? Quem é?

SERIEMA

A babá negra que me criou… O senhor não escuta. Já falei dela. Porque é dela que eu mais

sinto falta aqui.

(Penumbra. Som de canção de ninar longínqua. Voz off de Maria, que entra em cena

dançando e ninando a pequena Seriema. Enquanto isso, o Doutor e Seriema permanecem

imóveis)

VOZ OFF DE MARIA

Vem cá, coração, vem cá, meu bem. Abraço nunca é demais. A princesa agora precisa dormir.

Medo? Ora… Do quê, filhinha? O vento que zuniu? O raio que caiu? O trovão? E eu aqui?

Dorme, dorme coração.

(Maria sai. Iluminação do consultório)

SERIEMA

Page 23: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

Maria nunca me deixou. O olho é um amuleto que ela me deu, um patuá… sem ele eu não

vivo.

DOUTOR

Não vive?

SERIEMA

Não. Mas por que a pergunta?

DOUTOR

Para você se dar conta da sua crença na magia.

SERIEMA

O quê?

DOUTOR

É, você acredita na magia.

SERIEMA

(Exaltada) Acredito em Maria, que me criou. Maria é mais que mãe, é a minha protetora…

me deu o patuá para ele me proteger, como ela. Quem não precisa de proteção? Não basta

estar na França sozinha? Viver sem amor?

DOUTOR

Um amor… isso é o que você mais quer.

SERIEMA

Verdade. Um homem para quem eu seja única…

DOUTOR

Page 24: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

Tão única como a filha pode ser para o pai?

SERIEMA

(Um tempo) Meu pai? Morreu há anos! Perdi de vista.

DOUTOR

(Solilóquio) Diz que perdeu o pai de vista. O esquecimento é tão estranho quanto importante.

(Dirigindo-se a Seriema) Bom, até a próxima sessão.

SERIEMA

(Ironicamente) Até a próxima, já?

DOUTOR

(O Doutor se levanta, Seriema paga e sai. Depois, ele se senta novamente e toma notas. O

telefone toca, ele lê o mostrador e atende) Eduardo? Sei, eu sei. Minha mãe não quer fazer o

tratamento. Por que você não fala com ela? Tenta. Obrigado. (Desliga o telefone. Põe a mão

na testa. Aperta a cabeça com os dedos) Já tirou o seio e fez quimioterapia. Agora, está com

uma metástase… não quer mais. “— Não é viver que importa… é viver bem”. Mamãe diz

isso e eu concordo, mas... Não adianta saber que, para ela, a vida não vale mais a pena, se

tornou sinônimo de sobrevida. Saber é uma coisa, aceitar é outra. Preciso falar com minha

irmã (Pega o telefone e disca. Um tempo. Desliga) Secretária eletrônica.

Page 25: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 6

(Seriema e o Doutor estão sentados face a face. Silêncio)

DOUTOR

(Solilóquio) E Seriema que vem para não dizer nada? Se ao menos ela falasse, eu pararia de

pensar na morte, no tempo que passa. (Dirigindo-se a ela) Aqui, você pode falar livremente.

Nada do que você disser será censurado.

SERIEMA

Nunca me ocorreu que o senhor pudesse me censurar. Do contrário, eu não viria. Estranhei o

seu telefonema, perguntando a que horas eu estaria no seu consultório… Nunca ouvi dizer

que analista fizesse isso. O senhor deve ter adivinhado que eu não queria vir…

DOUTOR

Mas você veio, fale.

SERIEMA

(Irritada) Não tenho como dizer o que eu quero. Porque, na sua língua, a palavra me falta...

DOUTOR

Que palavra?

SERIEMA

Saudade. Sem essa palavra, eu não sou eu. Sinto falta da língua e do Brasil. Bonjour e o meu

país me falta, o bom-dia… Bonsoir e eu estranho. Bonsoir não existe na minha língua. Só

boa-noite, bonne nuit. Porque a noite, lá, cai num piscar de olhos. Aqui, quando falo uma

palavra errada, a pessoa primeiro me corrige… só depois escuta o que eu quero dizer. E é

impossível não errar. Em francês, mar é feminino, la mer, em português, é masculino. Banco

em francês é feminino, la banque. E, por mais que eu vá ao banco, eu sempre digo le banque,

Page 26: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

eu erro.

DOUTOR

(Solilóquio) Será que ela vai continuar essa enumeração? Não passa uma única sessão sem

falar do problema da língua. Isso serve para ela se desviar do que realmente importa, do

essencial.

SERIEMA

E o pior é que o samba aqui virou la samba… Tudo trocado. Árvore, palmeira, fruta em

francês são masculinos. Até o sexo da bola é diferente…

DOUTOR

O sexo masculino das palavras, o sexo feminino, o sexo… (Seriema vira abruptamente o

rosto para escapar ao olhar do Doutor. Fixa o divã. Depois, se levanta e se precipita sobre

ele. Seguindo o movimento dela, o Doutor se senta na poltrona) Você não foi para o divã,

você conquistou o divã! De agora em diante, ele é seu.

SERIEMA

(Um tempo. Ironicamente) O divã é meu… Para dizer o quê? Que eu durmo sozinha toda

noite? Nem sei mais o que é sexo. Ou melhor, sei. Mas sexo sem amor não conta. Com ele, ao

menos…

DOUTOR

Com ele quem?

SERIEMA

Antônio. Com ele, eu ao menos tinha a ilusão do amor. Achava que ele me amava... meu

contentamento saltava aos olhos.

Page 27: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

E você agora acha que estava enganada? Que não era amor?

SERIEMA

(Um tempo) Não sei mais o que eu acho.

(Seriema levanta a cabeça e olha fixamente para o Doutor)

DOUTOR

E aí? Diga.

SERIEMA

Lembrei do que o meu pai me disse pouco antes de morrer: “— Não esquece que eu te amo”.

Parecia uma cobrança.

DOUTOR

Era (Enfaticamente) E dele você não esquece… (O Doutor se levanta. Seriema paga e sai)

Bom, o face a face acabou. Seriema não precisa mais ficar me olhando. Já pode ficar deitada,

à escuta de si. Foi uma conquista. As pessoas vivem sem se escutar, orelha de eucatex… Há

quem morra por não ter se escutado, ter sido surdo para si mesmo… para o próprio corpo, que

não fala, grita. Uma surdez que basta para justificar a Psicanálise. Se é que ela ainda precisa

ser justificada.

(A partir desta sessão, até o fim, Seriema irá para o divã)

Page 28: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

ATO II

CENA 1

Page 29: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

(As poltronas de veludo estão no escuro e é o divã que a luz focaliza. A janela, apenas visível

no começo do ato, vai se tornando mais perceptível à medida que a peça avança. Seriema

entra assustada e deita.)

DOUTOR

O que aconteceu? Diga

SERIEMA

(Um tempo. Abruptamente) Aconteceu que eu tive uma alucinação. Isso nunca tinha me

acontecido antes.

DOUTOR

Uma alucinação… (Sem se alterar) E como foi isso?

SERIEMA

Como foi? Eu vi...

DOUTOR

Diga.

SERIEMA

(Baixinho) Ratos (Enojada) Vi ratos na sua sala de espera. O outro paciente disse que não

havia, mas eu vi… vi dois.

DOUTOR

Dois o quê?

SERIEMA

Dois ratos enormes, pretos, horrendos.

Page 30: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

(Estranhando) Dois ra-tos?

SERIEMA

(Um tempo) Que estranho!

DOUTOR

O quê?

SERIEMA

O senhor disse a palavra e eu me dei conta de que ra é a primeira sílaba do nome do meu

pai…e do nome do meu bisavô.

DOUTOR

Qual é o nome?

SERIEMA

Raji… E foi para não ser executado que o meu bisavô emigrou … para que os filhos

pudessem cultuar seus santos, vivessem em paz e enterrassem os seus mortos. Morreu no

navio e, para evitar a peste, foi atirado no mar. O corpo envolto numa mortalha. Os versículos

da Bíblia… adeus… alla cum mag.

DOUTOR

Hum.

SERIEMA

Saiu do Líbano, mas não conseguiu chegar no Brasil.

DOUTOR

Chegou, Seriema. Do contrário, você não estaria falando nele.

Page 31: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

SERIEMA

Até hoje, eu nunca havia falado. Como nunca dizia o nome do meu pai quando era criança.

“— Como chama o seu pai?” “— Roberto… Ricardo...” Raji, mesmo, eu nunca dizia. Ia

correr o risco de ser chamada de turquinha? (Seriema cobre o rosto com as mãos)

DOUTOR

(Afetuosamente) O importante, minha cara, é que você agora possa dizer o nome. Que você

possa dizer a sua verdade. Não há como negar eternamente as origens… renegar os ancestrais.

A vida depende do que a gente pode dizer… Sua vida mudou.

SERIEMA

E a alucinação?

DOUTOR

Não vai mais ter. O nome que você calava para esconder as origens se materializou… se

materializou no rato. Você agora pode dizer Raji. Não há mais razão para alucinação. Você

não está mais sujeita a uma aparição inesperada do seu pai… (O Doutor se levanta) Volte

amanhã. (Seriema se levanta, paga e sai) Horrível não poder ser árabe, judeu, negro... não

poder ser quem a gente é… nada é pior do que o racismo voltado contra si mesmo. Disso,

Seriema está curada… se curou hoje, aqui na análise. (Um tempo) Quem precisa de um

analista sou eu, que não aceito a decisão da minha mãe. Ela é categórica : “— Só cuidados

paliativos”. Sempre fui contra o furor terapêutico, mas a morte significa nunca mais…

significa viver sem a certeza de que ela está para o nosso encontro… para me olhar e me

chamar de filho. O filho dela eu vou ser sempre. O filho dela para ela, nunca mais.

(A luz se apaga no final desta cena e das seguintes.)

Page 32: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 2

(O Doutor na poltrona e Seriema no divã)

SERIEMA

Sonhei com meu pai. Faz tanto tempo que ele morreu!

DOUTOR

E o sonho? Como era?

SERIEMA

Estava numa sala na academia de judô, perto da casa onde eu morava na infância. Eu era a

única menina. Vestida de branco e já preparada para lutar… com a faixa amarela na cintura.

DOUTOR

Amarela?

SERIEMA

É, a dos principiantes. O pai estava sentado e me mostrava a faixa preta dos campeões. Queria

assistir à luta. De repente, o professor irrompe na sala e exige a devolução da faixa preta. Dou

um grito e saio correndo. Meu pai me alcança na rua, me segura pelo braço, tira do bolso

outra faixa e dá uma gargalhada.

DOUTOR

Um pai imbatível!

SERIEMA

Ele queria que eu fosse imbatível, campeã de judô, caratê, sei lá eu… Tudo o que os meninos

do bairro faziam eu fazia. Meu pai dizia: “— Você nasceu para ser como eles. Se os meninos

aprendem, você também pode”. O que o pai quisesse, eu queria… os esportes e os estudos.

Page 33: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

Fui educada para competir, ganhar concursos, bolsas...

DOUTOR

Por isso você está aqui… Veio com uma bolsa de estudos, não foi?

SERIEMA

(Um tempo. Ironicamente) Ganhei a bolsa depois de ter perdido a vida, o filho que eu

concebi. Abortei em vez de dar à luz. Melhor seria ter nascido estéril e não ter criado

expectativas.

DOUTOR

Que relação existe entre ter perdido o filho e a sua história?

SERIEMA

Que história?

DOUTOR

Sua infância… seu pai.

SERIEMA

Meu pai está morto e enterrado!

DOUTOR

Enterrado não quer dizer esquecido. O seu sonho é a prova disso.

SERIEMA

Morreu depois de ter me educado para gostar só dele. “— Não esquece que você comigo pode

contar sempre. Nunca alguém vai te amar como eu.” Sempre, nunca…

Page 34: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

O que mais?

SERIEMA

Ia me buscar na escola e queria saber se algum menino havia falado comigo. Quando eu

respondia não, e todo dia eu respondia a mesma coisa, ele sorria. Depois, me perguntava: “—

O que você teria feito?” Eu dizia que teria dado no menino. Daí, ele: “— Bem feito.” Não

aceitava que eu me interessasse por nenhum outro. Me queria só para ele. (Seriema cobre o

rosto com as mãos)

DOUTOR

(Solilóquio) Decididamente, ele fez tudo para indispor a filha com os homens… ou seja,

metade da humanidade. Não é à toa que ela está em análise. (Dirigindo-se para Seriema) O

que importa é você ter se lembrado da história.

SERIEMA

Importa por quê?

DOUTOR

Porque quem ignora o passado se torna vítima dele, fica se repetindo, não pode reinventar a

sua vida. (Ele se levanta, Seriema paga e sai) Não queria saber do pai, ele voltou no sonho. O

ancestral volta, não deixa de existir. O meu consolo é este. Quando mamãe não estiver mais,

ela ainda estará comigo… no sonho, na lembrança para me chamar de filho e me dizer que é

preciso viver bem.

Page 35: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 3

(O Doutor na poltrona e Seriema no divã)

SERIEMA

Saí mal daqui. Estou pagando para sofrer. Não sei se quero continuar.

(Silêncio)

DOUTOR

E saiu mal por quê?

SERIEMA

Saí com vergonha do pai… e me lembrei de outras vergonhas.

DOUTOR

Você aqui pode falar, deve… eu estou para escutar.

SERIEMA

(Um tempo) O seio… quando ele começou a crescer, que vergonha! E o bico que se

transformou numa pedrinha? Doía e significava corpo de mulher. De repente, eu deixei de

não ter sexo.

DOUTOR

Deixou de não ter sexo?

SERIEMA

É. Deixei de não ter sexo. Antes da pedrinha do mamilo, o sexo não existia. Daí, foi uma

vergonha atrás da outra. Os pelinhos, o sangue todo mês… a menstruação. Eu me retorcia de

cólica e sentia nojo. Quisesse ou não, eu não era mais como o pai. E, como a mãe, eu não

Page 36: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

queria ser... Ela vivia para a igreja. Para ela, tudo era pecado. A palavra liberdade era uma

palavra vazia. Por sorte, quem me criou foi Maria.

DOUTOR

Você teve tanta vergonha do seu corpo quanto das suas origens… o corpo contrariava seu

desejo de ser assexuada.

SERIEMA

(Ironicamente) “— Se os meninos aprendem, você também pode”. E eu imaginava que era

mesmo como eles. (Riso) Qual nada! Só tinha o direito de fazer o que o pai queria. Foi só

encontrar o primeiro namorado que ele deixou de falar comigo. Quis me matar.

DOUTOR

Verdade?

SERIEMA

Não fosse Maria…

(Penumbra. Som de bossa nova. Voz off de Maria, que entra dançando.)

VOZ OFF DE MARIA

Por que você se maltrata? Não há nada de errado com você, Seriema. O seu pai está com

ciúme. O coração ciumento é ciumento porque é. Não liga… O que importa é o que você

sente... Não dá bola, deixa estar, vem, meu bem...

(Maria sai. Iluminação do consultório)

SERIEMA

Maria me dava força. Mas o pai ficou derrotado e eu não tinha mais prazer no namoro. Quis

largar do namorado e, depois, foi ele que me largou.

Page 37: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

(Solilóquio) Mais uma vítima do ciúme… da tirania do ciúme.

SERIEMA

Só tive prazer quando conheci Antônio, ele me incendiou. Gostei do que senti… O sexo

nunca era o mesmo e eu ia para longe. Esqueci a vergonha. Para nós, a palavra pecado não

fazia sentido. Com ele, eu não sabia quem era homem e quem era mulher, cada um de nós

podia ser um e outro. Não tivesse sido o aborto… Antônio me disse que eu não queria um

filho dele. (Um tempo) Isso foi no hospital… logo depois da hemorragia e da operação do

útero. A partir daí, não deu mais certo. Fiquei curada e sem marido.

DOUTOR

(Enfaticamente) E você queria um filho de Antônio?

SERIEMA

(Um tempo) Não sei. (O Doutor se levanta) Digo não sei e o senhor se levanta.

DOUTOR

Verdade.

SERIEMA

Para me deixar com o não sei? Não suporto essa maneira de acabar a sessão… essa

interrupção repentina, brutal (Seriema se levanta e vai sair sem pagar)

DOUTOR

50 euros.

SERIEMA

Não saquei dinheiro.

Page 38: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

Então, vá e volte.

SERIEMA

(Solilóquio na porta do consultório) Amanhã eu volto. Hoje, eu vou tirar férias do

inconsciente!

Page 39: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 4

(O Doutor espera Seriema sentado na sua poltrona)

DOUTOR

(Solilóquio) Um ser sem sexo era o que Seriema queria ser. Porque o sexo biológico

contrariava a fantasia dela… a fantasia de ser como o pai.

SERIEMA

(Entra agitada e deita imediatamente) Me atrasei porque Antônio telefonou. Foi ontem à

noite. Disse que precisava me ver. Respondi simplesmente que eu agora estou em Paris. Ele

desligou e ligou de novo. “— Você está aí... então eu vou aí.” Fiquei perplexa.

DOUTOR

Não é para menos.

SERIEMA

E eu agora estou confusa.

DOUTOR

Hum.

(Silêncio)

SERIEMA

Essa história de pagar cada vez que eu venho me perturba. Não entendo por que tem que ser

assim. Seria melhor se não fosse.

DOUTOR

Para esquecer que você me paga… que eu sou o seu analista. Amor incondicional... é isso que

Page 40: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

você quer.

SERIEMA

E eu não nego. Queria ser amada sem condições por Antônio… com filho ou sem filho.

Queria ser amada como eu amava. Engravidei duas vezes porque ele queria.

DOUTOR

(Solilóquio) Engravidou para satisfazer o marido! Uma verdadeira aberração… Isso é que é

ser objeto do desejo do outro. (Dirigindo-se a Seriema) Você só queria o que o Antônio

quisesse… exatamente como na sua infância.

SERIEMA

Não entendo.

DOUTOR

Na infância, você só queria o que o seu pai quisesse… não falava com ninguém na escola...

menino nenhum.

SERIEMA

(Um tempo) Verdade. E depois... sem saber, eu vivi só para satisfazer o Antônio.

DOUTOR

Só que você engravidou e não deu à luz. O desejo de satisfazer o seu marido não foi

realizado… Por quê?

SERIEMA

O senhor só escuta o que eu digo para saber outra coisa.

DOUTOR

Page 41: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

(Solilóquio) Está se desviando de novo. Se pudesse, discutiria comigo a teoria analítica para

continuar na ignorância… para não fazer análise.

SERIEMA

O senhor faz perguntas... Respostas, nunca me dá. E eu hoje não tenho o que dizer. Não

aguento mais. Posso ir embora? Quero dormir. Nessa noite, depois do telefonema, eu não

preguei o olho. Fiquei me perguntando o que fazer.

DOUTOR

Até a próxima semana. (O Doutor se levanta)

SERIEMA

Próxima semana?

DOUTOR

O feriado... só por causa do feriado.

SERIEMA

(Seriema se levanta. Ironicamente) Boas férias. (Paga e sai)

DOUTOR

(De pé, andando) Fica mais bonita quando está contrariada. Tão feminina quanto masculina.

De sem sexo ela não tem nada, um andrógino. Por isso gosta de Antônio…“com ele eu não

sabia quem era homem e quem era mulher…cada um de nós podia ser um e outro”. Seriema

não faz questão de ser isto ou aquilo, ela tem uma liberdade que eu não tenho… Nunca tive

uma experiência como a dela. Ou melhor, posso até ter tido, porém, não ousaria dizer que

tive. Dizer que eu não sabia se era homem ou mulher? Nunca. Medo de ser homossexual…

Como se a bissexualidade não existisse. Estudei e não aprendi o que estudei… A análise é

mesmo interminável. Não basta estudar a teoria para reconhecer a própria bissexualidade. A

liberdade desta brasileira, que não tem sangue índio, mas poderia ter, me fascina.

Page 42: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 5

(O Doutor está na poltrona e Seriema, sentada no divã.)

DOUTOR

Melhor deitar. (Seriema põe uma perna no divã.)

SERIEMA

Eu nem vinha hoje.

DOUTOR

Mas você veio e é isso que importa. E você agora está no divã, está deitada… (Seriema não se

mexe e ele não insiste. Solilóquio) Não posso insistir na posição correta. Não quero correr o

risco de que ela vá embora, interrompa a sua análise... preciso ser maneiro.

SERIEMA

(Um tempo) Sexta-feira, eu esqueci a chave no apartamento e não pude entrar no prédio. Tive

que ficar na rua, esperando a vizinha chegar, até três da madrugada. Fiquei doente e passei o

fim de semana na cama. (Enfaticamente) E, ontem, não foi um sonho que eu tive, foi um

pesadelo!

DOUTOR

Estou escutando.

SERIEMA

(Ironicamente) “Estou escutando” Se não tivesse falado do meu pai, eu não teria tido o

pesadelo. Acordei tão assustada que me cortei… bati a cabeça na porta de vidro do banheiro.

Não suporto mais esta análise.

DOUTOR

Page 43: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

Mas o que você sonhou?

SERIEMA

Não posso contar.

DOUTOR

Pode, aqui você pode.

SERIEMA

(Seriema se deita) Eu estava numa bolha vermelha… dormindo no chão. De repente, um

assobio e uma voz que dizia: “— Hora agora de acordar”. A frase do meu pai... todas as

manhãs.

DOUTOR

E o que mais?

SERIEMA

(Um tempo) Acordo e vejo o chão da bolha que flutua. Me estiro e levanto com cuidado para

não cair. Ando como se estivesse em cima de uma corda bamba. A cada passo, a voz: “Mens

sana in corpore sano”. Outra frase favorita do meu pai. Paro e fico olhando o vermelho, que

vai clareando e se transforma num clarão... De repente, ele aparece.

DOUTOR

Quem aparece?

SERIEMA

O pai… (Ela se cala e cobre o rosto com as mãos)

DOUTOR

Page 44: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

Vergonha do quê?

SERIEMA

Do que aconteceu.

DOUTOR

(Suavemente) Diga.

SERIEMA

(Exaltada) O pai me entrega um recém-nascido que ele segura nos braços. “— Pega, pega o

nosso filho”. (Fora de si) “O nosso filho”… isso é incesto! (Seriema cruza os braços em cima

do peito e vira a cabeça para esconder o rosto) O filho da insanidade, do ciúme mórbido do

meu pai e da minha submissão. (Amarga) Mens sana in corpore sano. Acordei como se

tivesse saído do inferno. O incesto é um crime… uma abjeção. Tenho medo de ficar louca!

DOUTOR

Calma. Fantasia de incesto não é incest, e ninguém é louco por que quer.

SERIEMA

Hum.

DOUTOR

Verdade, a fantasia de incesto não é inócua.

SERIEMA

Não entendo o que o senhor quer dizer.

DOUTOR

Se não fosse a fantasia de incesto, você teria se tratado… poderia ter tido um filho de

Antônio. Mas o pai do seu filho, para você, não era Antônio.

Page 45: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

SERIEMA

Estou entendendo ainda menos.

DOUTOR

O pai do seu filho, na sua fantasia, era o seu pai.(Um tempo) O inconsciente existe, nós todos

estamos sujeitos a ele. (O Doutor se levanta) Venha. Você agora não ignora mais o que

precisava saber. (Seriema continua sentada) Venha, Seriema. ( Ela se levanta

mecanicamente, paga e sai) “O meu desejo será o teu”. Um pai que acorrentou a filha…

impediu que ela sequer imaginasse um pai para o próprio filho... Com isso, tornou a

maternidade impossível. Um pai perverso, ceifou a descendência antes mesmo que ela viesse

ao mundo. O inconsciente existe e ele não é um cordeirinho do bom pastor. Mas Seriema deu

o grande passo, ela se desacorrentou. Não está mais sujeita à repetição.

Page 46: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 6

(O Doutor está sentado na poltrona, sozinho)

DOUTOR

Meia hora de atraso. Um passo para a frente e outro para trás.

SERIEMA

(Seriema entra e não se deita; permanece de pé) Não tenho como fazer a sessão e nem sei se

vou ficar na França.

DOUTOR

Por quê?

SERIEMA

Perdi o olho.

DOUTOR

O quê?

SERIEMA

Saindo da cabine telefônica.

DOUTOR

Você se machucou de novo? Perdeu o olho?

SERIEMA

O olho de vidro, o pendente, o meu protetor.

DOUTOR

Page 47: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

E como foi isso?

SERIEMA

Hum… na cabine…

DOUTOR

Onde?

SERIEMA

(Hesitação) Na cabine onde eu desconecto o telefone

DOUTOR

(Sem censurar) Desconecta o telefone?

SERIEMA

É… para falar com o Brasil. Os brasileiros todos fazem isso.

DOUTOR

E como foi que você perdeu o fetiche, o protetor?

SERIEMA

Não sei. Só sei que mais nada me interessa.

DOUTOR

(Imperativamente) Volte à cabine. Procure o olho. Se não achar, telefone para o Brasil,

encomende logo outro. (Seriema sai) Sem o pendente, Seriema não fica e eu estou aqui para

que ela fique. Procure, telefone, telegrafe… Tudo para que ela faça a análise até o fim. Se for

preciso agir como um guru, eu viro guru. O analista é um ator que finge não representar, pode

encarnar qualquer um. Não é por ser francês que eu não sou brasileiro. Mesmo sem acreditar

Page 48: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

na magia.

Page 49: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 7

(O Doutor na poltrona e Seriema no divã, roupa feminina)

SERIEMA

Na sua sala de espera eu já vi ratos… Hoje, eu cochilei e sonhei que o senhor estava morto

dentro de um caixão. De vez em quando, se levantava… ia consolar os presentes, dizia Adieu.

Como se o senhor fosse uma fantasia.

DOUTOR

Como assim, uma fantasia?

SERIEMA

Não, eu me enganei. Queria dizer fantasma — como se fosse um fantasma, mas eu errei. (Um

tempo) No francês, eu me confundo. Duas línguas tão próximas e tão diferentes! Acho até que

o senhor estava morto por causa disso...

DOUTOR

Do quê?

SERIEMA

(Um tempo) Se o senhor morresse, eu iria embora para o Brasil… eu aqui tropeço nas

palavras, tropeço e caio, as palavras parecem anteparos. Só me servem para dizer:

“— Quanto custa?”, “— Me dá o troco”, “— Me passa o pão”. Não me reenviam a nada, são

opacas, elas são como coisas.

DOUTOR

(Ternamente) E as outras palavras, as do português?

Page 50: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

SERIEMA

Com elas eu nasci e me criei, elas têm muitos sentidos, me reenviam a outras épocas,

lugares… Não me valho das palavras só para conseguir isto ou aquilo. Com elas, eu brinco,

eu invento e me surpreendo. A minha língua é a minha alegria. E eu preciso do descanso que

ela me dá. No português, eu me sinto segura. Tenho certeza de poder dizer o que eu quero.

(Um tempo) E chega de viver sem sol. Os franceses dizem que o sol brilha para todos, mas eu

aqui não vejo a luz do sol. Que mal fiz eu para estar longe de casa? Antônio me telefona todos

os dias. Me pede para voltar. Ele é o homem que eu amo… de quem eu quero um filho.

DOUTOR

(Enfaticamente) O homem de quem você quer um filho. Você então escolheu o pai!

SERIEMA

(Um tempo) Escolhi.

DOUTOR

(Solilóquio) Agora ela vai embora…

SERIEMA

Quero um filho dele... um filho nascido lá, que fale a minha língua.

DOUTOR

Hum… E o que mais?

SERIEMA

(Riso) O senhor não se interessa pelo que eu digo, mas pelo que está por ser dito.

DOUTOR

Isso é verdade. Até amanhã. (Seriema paga e sai) O que pode interessar a um analista se não

Page 51: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

o que não foi dito? O fato é que o filho está ao alcance de Seriema… ela agora pode dar a

vida, porque pode escolher o pai. Deixou de ser contrária a si mesma. A análise acabou. (Um

tempo) Não, a análise só acaba quando Seriema entender por que escolheu um analista cuja

língua não é a dela, já que, para ela, a língua é fundamental.

Page 52: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 8

(O Doutor na poltrona e Seriema no divã. O celular do Doutor toca)

DOUTOR

(Perturbado) Esqueci de desligar. Desculpe.(Pega e olha o celular. Em vez de desligar, ele

atende) Morta? Não acredito. Como? (Permanece na linha) Vou, vou sim. (Desliga.)

Desculpe.

SERIEMA

Não tem por quê. Pode ir. Vai, doutor.

DOUTOR

Morreu, minha mãe morreu.

SERIEMA

Vai. Imagino o que isso significa. Meus pêsames. Lamento. (O Doutor se levanta e Seriema

também) Na vida, a gente só não perde o que está perdido. Foi o que mamãe disse quando

meu pai morreu. (O Doutor baixa a cabeça em sinal de agradecimento, ele sai por uma porta

e ela sai por outra.)

Page 53: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

CENA 9

(O Doutor está sentado na poltrona. Seriema entra e se senta no divã.)

SERIEMA

(Um tempo) Não é fácil dizer...

DOUTOR

Hum.

SERIEMA

Chegou a hora de voltar… Não quero me eternizar aqui. E eu não tenho mais o que falar.

DOUTOR

Acho que tem. Você agora talvez possa me dizer por que você fez a sua análise numa língua

que não é a sua.

SERIEMA

Não sei. (Um tempo) Talvez tenha sido…

DOUTOR

Sim, sim.

SERIEMA

(Titubeando) Talvez tenha sido para não dizer tudo.

DOUTOR

Como assim?

SERIEMA

Page 54: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

O pai sempre dizia que só para ele eu podia dizer tudo.

DOUTOR

(Solilóquio) Deus, meu!

SERIEMA

(Um tempo) Foi para fazer o que o pai desejava que eu escolhi o senhor… para não dizer

tudo. Escolhi um analista que ignorava a minha língua. Para não me desvelar… Inacreditável!

Uma aberração!

DOUTOR

Não, minha cara. Foi um ato inconsciente.

SERIEMA

Ter escolhido o analista para obedecer o pai?

DOUTOR

O inconsciente faz e fala por nós. E ninguém pode ser responsabilizado pelo que faz sem ter

consciência.

SERIEMA

Que loucura!

DOUTOR

Uma loucura que era a condição da sua análise. Tive que aceitar a sua escolha para que você

fosse em frente. (Um tempo) Você agora está livre… livre do desejo do seu pai.

SERIEMA

Livre do desejo do meu pai?

Page 55: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar

DOUTOR

Sim. Você agora pode seguir o seu caminho.

SERIEMA

(Baixinho) Acabou?

DOUTOR

Queira ou não. (Solilóquio) Claro. Não ficou livre do pai para se amarrar ao analista.

SERIEMA

(Com segurança) A análise acabou. O Brasil... Antônio me espera.

DOUTOR

Seriema…

SERIEMA

Adieu.

DOUTOR

Adeus.

SERIEMA

Adeus, Doutor.

(Os personagens ficam imóveis. Som longínquo de samba. Penumbra. Maria entra

dançando.)

Page 56: ADEUS DOUTOR - p.download.uol.com.brp.download.uol.com.br/bettymilan/teatro/pdf/adeus-doutor.pdf · também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar