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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - GVlaw TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO São Paulo 2013

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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS - GVlaw

TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO

São Paulo

2013

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FERNANDO PEREIRA ALQUALO

TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

como requisito para obtenção do título de

especialista em Direito Civil pela Fundação

Getúlio Vargas – FGV.

Orientador: Prof. Francisco Eduardo Loureiro

São Paulo

2013

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RESUMO

O presente trabalho estuda a Teoria do Adimplemento Substancial do Contrato, abordando os

princípios que deram a sua origem (boa-fé objetiva e função social do contrato). Também foi

abordada a teoria frente aos direitos da contraparte do negócio, como o direito potestativo de

resolução do contrato e a exceção do contrato não cumprido. Os pontos abordados buscam

esclarecer ao leitor uma melhor análise sobre quando, como e porque deve ocorrer a aplicação

da teoria, bem como a importância do adimplemento substancial. Para tanto, num primeiro

momento o trabalho versou sobre a definição dos princípios e dos demais institutos, através

da pesquisa das mais renomadas obras sobre os temas. Após, foi estudada a teoria

propriamente dita, direcionando o modo da sua efetiva aplicação prática, nos mais

diversificados contratos que são levados para discussão no judiciário, em especial no Superior

Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça de São Paulo. Constatou-se, como principais

conclusões, que a aplicação da teoria visa coibir o abuso de direito e preservar os princípios

contratuais da boa-fé objetiva e função social, notadamente quando o inadimplemento não

prejudicar a função econômico-social do contrato, utilizando-se como parâmetro para

configuração do adimplemento substancial a teoria da causa.

Palavras-chave: Adimplemento – Contrato - Inadimplemento – Resolução – Substancial.

ABSTRACT

This paper studies the Theory Fulfillment Substantial Contract, addressing the principles that

have their origin (objective good faith and social function of the contract). Also addressed was

the theory forward to the rights of the counterparty's business, as potestative the right to

terminate the contract and the contract is not fulfilled exception. The issues addressed are

seeking to clarify the reader a better analysis about when, how and why should occur the

application of theory, and the importance of due performance substantially. Therefore, at first

the work was about the definition of the principles and other institutes through research of the

most renowned works on the subjects. After we studied the theory itself, directing the mode

of its effective practical application, in most diversified contracts that are taken for discussion

in the judiciary, especially in the Superior Court of Justice and Court of São Paulo. It has, as

its main conclusions, that the application of the theory aims to curb the abuse of law and

preserve the principles of contractual good faith and objective social function, especially

when the default does not impair the function of the economic and social contract, using as a

parameter for setting fulfillment substantial cause theory.

Keywords: Fulfillment - Contract - Default - Resolution - Substantial.

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SUMÁRIO

1. Introdução........................................................................................................................4

2. Formas de Extinção dos Contratos.................................................................................6

3. Princípio da Boa-Fé Objetiva........................................................................................11

4. Princípio da Função Social do Contrato........................................................................14

5. Teoria do Adimplemento Substancial...........................................................................16

5.1 Boa-fé objetiva como fundamento da teoria

5.2 Função Social como fundamento da teoria

5.3 A Teoria e Exceção do Contrato não Cumprido

5.4 Valoração do inadimplemento e parâmetros utilizados para aplicação da teoria

6. Conclusão......................................................................................................................25

7. Bibliografia....................................................................................................................27

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1. Introdução

A Teoria do Adimplemento Substancial do Contrato teve sua origem basicamente

através dos princípios da boa-fé objetiva e função social.

Entende a doutrina e o Judiciário, em alguns casos, que face ao adimplemento pelo

devedor de quase a totalidade das obrigações pactuadas no contrato, injusta seria a resolução

do contrato pelo inadimplemento das restantes.

Considera-se relevante o tema apresentado, porque nos dias atuais muitos são os

contratos de execução diferida em que a obrigação do devedor está dividida em prestações,

como por exemplo, o financiamento de um veículo em 60 (sessenta) parcelas mensais.

Não raro nessa hipótese, o devedor cumpre pontualmente com o pagamento de quase a

totalidade das prestações, porém, deixa de adimplir com as pouquíssimas parcelas restantes.

Baseadas em expressas disposição contidas no contrato, ainda utilizando o exemplo, a

financeira extingue automaticamente o contrato e aciona o judiciário pleiteando a busca e

apreensão ou reintegração de posse do bem.

O problema a ser enfrentado, está consubstanciado em identificar quando realmente o

contrato pode ser considerado pelo judiciário como adimplido substancialmente de modo a

evitar sua resolução.

Torna-se ainda mais importante o tema, considerando que a teoria está calcada em

princípios de caráter extremamente subjetivos, e relativamente novos, o que certamente

dificulta a sua aplicação.

Utilizando-se ainda o exemplo do contrato de financiamento, quantas parcelas pagas

pontualmente pelo devedor seriam aptas a caracterizar o Adimplemento Substancial? Há uma

média de porcentagem (do cumprimento das obrigações) que o Judiciário serve de parâmetro

nos casos em que as prestações não são iguais? Esse parâmetro pode ser utilizado? E se o

devedor sempre efetuou os pagamentos com atraso, aplica-se a teoria?

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5

Pretende-se também o enfrentamento do problema, no que tange a aplicação da teoria

sob o prisma da obrigação acessória ou dos deveres anexos ou laterais do contrato, isto é, o

estudo abordará também se o adimplemento substancial refere-se tão somente a obrigação

principal e expressamente contratual.

O presente trabalho visa, pois, o estudo da aplicação da Teoria em casos práticos

levados ao Judiciário, sem perder o enfoque dos princípios que a norteiam, pois estes são a

razão de sua existência e derradeiramente o fundamento da aplicação.

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2. Formas de Extinção do Contrato

Com o cumprimento integral de todas as obrigações pactuadas, a finalidade do

contrato estará alcançada e consequentemente ocorre sua extinção por morte natural

(GOMES, 2007, p.202).

No entanto, há hipóteses em que no curso de sua execução, e antes do cumprimento de

todas as obrigações estipuladas, o contrato possa ser extinto por meio de uma das formas

previstas em lei: rescisão, resilição ou resolução.

De antemão, importante destacarmos o problema da terminologia utilizada pelo

legislador no Código Civil, visto que em muitos casos, quando na verdade trata-se da hipótese

de resolução, o legislador empregou o vocábulo rescisão.

Quiçá por conta disso, o referido vocábulo tenha caído no gosto popular, sendo

utilizado pelas pessoas para se referir a qualquer hipótese em que haja a extinção do contrato,

ora quando o caso seja de resilição unilateral, onde costumeiramente identificamos o emprego

da palavra rescisão utilizada para estipular no contrato a faculdade prevista no art. 473 do

Código Civil, ora nas demandas judiciais quando quer-se aludir a resolução por

inadimplemento de um dos contratantes.

Entretanto, a doutrina majoritária já pacificou o entendimento que a terminologia

rescisão deverá apenas ser empregada nas hipóteses de lesão (art. 156) ou estado de perigo

(art. 157), visto que a tutela rescisória somente servirá para sanar vício contemporâneo a

formação do contrato, isto é, já existente no momento da sua formação, diferindo totalmente

da Resilição e Resolução onde as causas são supervenientes à sua formação (ASSIS, 1999,

p.77).

Quanto à extinção do contrato pela modalidade da resilição, esta poderá ocorrer de

duas formas: Resilição Bilateral ou Resilição Unilateral.

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7

A Resilição Bilateral, denominada como Distrato, visa a desconstituição do negócio

jurídico celebrado, através de manifestação das partes contratantes, dada pela mesma forma

exigida para o respectivo contrato, se extinguido, assim, todos os seus efeitos1.

Por seu turno, a Resilição Unilateral é meio de extinção do contrato pela vontade

exclusiva de uma das partes, conferida em razão na natureza do próprio negócio ou nos casos

caso em que a lei permita, operando-se pela simples notificação à outra parte2.

Exemplo clássico de resilição unilateral é a denúncia vazia prevista no art. 6ª da lei

8.245/91 (lei do inquilinato), na qual faculta-se ao locatário no contrato por prazo

indeterminado denunciá-lo mediante simples notificação com antecedência mínima de 30

(trinta) dias3.

Cabe salientar, que o parágrafo único do art. 473 do Código Civil, restringe a

faculdade da imediata resilição unilateral, quando uma das partes houver feito consideráveis

investimentos para a execução do contrato, preceituando que nesses casos a denúncia

unilateral só produzirá efeitos após o prazo compatível com a natureza e vulto dos

investimentos.

Quanto à resolução como meio de extinção do contrato, o Código Civil prevê a

possibilidade nas hipóteses de incumprimento do devedor ou pela onerosidade excessiva

suportada por um dos contratantes4.

De acordo com o escopo do trabalho aqui proposto, nos interessa o estudo apenas da

resolução do contrato pela primeira hipótese de resolução, isto é, pelo inadimplemento do

devedor.

Nesse caso, segundo o dispositivo legal, a referida resolução é alternativa conferida ao

contratante (credor da obrigação) para a extinção do vínculo contratual, quando a outra parte

1 Art. 472 do Código Civil e art. 9ª, inciso I, da lei 8.245/91.

2 Art. 473 do Código Civil.

3 Art. 6º O locatário poderá denunciar a locação por prazo indeterminado mediante aviso por escrito ao locador,

com antecedência mínima de trinta dias. 4 Art. 474, 475 e 478 do Código Civil.

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(devedor) descumprir a prestação ou dever que estava obrigada, sendo o inadimplemento,

porquanto, pressuposto para a ocorrência da resolução.

Assim, a resolução vincula-se aos contratos bilaterais, onde há reciprocidade entre a

prestação de uma parte e a contraprestação da outra, podendo ser decorrente de cláusula

expressa ou tácita5.

A cláusula resolutiva expressa “concerne à uma previsão contratual de imediata

resolução em caso de inadimplemento da parte. Trata-se de direito negocial à resolução,

contido na própria avença ou em documento posterior, que emana da inexecução de uma ou

mais prestações” (ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado, Coordenação do

Ministro Cézar Peluso, 5ª ed. Barueri/SP: Manole, 2011, p. 538).

Segundo o mesmo autor, não tendo sido estipulada cláusula resolutiva expressa,

subentende-se a existência de cláusula resolutiva implícita nos contrato bilaterais, onde o

lesado necessariamente deverá interpelar o devedor para constituí-lo em mora antes de

propugnar a resolução contratual.

Como visto, além da existência de um contrato bilateral válido, a resolução

necessariamente depende do inadimplemento pelo devedor, sendo de suma importância tais

definições para o deslinde do trabalho.

Contratos Bilaterais, por sua vez, são aqueles que os contratantes possuem obrigações

recíprocas, na medida em que são simultaneamente credores e devedores do outro, dotados de

direitos e obrigações e, portanto, são sinalagmáticos (GONÇALVES, 2004, pag. 23).

Exemplo clássico é o contrato de compra e venda, seja de bem móvel ou imóvel, no

qual o vendedor se obriga a entregar o bem, quando do recebimento do preço pelo comprador.

Não se pode olvidar, que nesta espécie de contrato não pode um dos contratantes, antes de

cumprir a sua obrigação, exigir o cumprimento da do outro (exceptio non adimpleti

contractus)6.

5 Art. 474: “A Clausula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial”.

6 Art. 476: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida sua obrigação, pode exigir o

implemento da do outro”

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No que concerne ao inadimplemento, pode ocorrer de forma absoluta ou relativa.

Sobre inadimplemento absoluto, Hamid Charaf Bdine Jr. (2005, p. 409) ensina que:

[...] inadimplemento absoluto é aquele em que a obrigação não foi nem

poderá ser cumprida de modo satisfatório. É o que ocorre, por exemplo, com

o perecimento do objeto. Nesse caso, o inadimplemento absoluto poderá ser

total ou parcial, caso a integralidade da prestação, ou parte dela, não puder ser

cumprida.

Muitas vezes citado na doutrina como exemplo, é o caso do bufê que foi contratado

para servir os convidados do contratante na sexta feira às 20:00 horas, todavia, chega ao local

às 06:00 do dia seguinte, quando todos os convidados já deixaram a festa7.

Assim, ainda que o contratado tenha cumprido a obrigação, esta se tornou totalmente

desinteressante para o contratante porquanto ocorrida de forma extemporânea, pelo que

poderá pleitear a resolução do negócio jurídico e perdas e danos, consoante preceitua o art.

389 do Código Civil8.

Salienta-se, por oportuno, e já adiantando o tema principal do presente trabalho, que a

doutrina e jurisprudência vêm rechaçando abusos de direito nesta seara, especialmente nos

casos de ínfimo inadimplemento, incumbindo ao juízo verificar se o referido é capaz de

ensejar a resolução do contrato, ante os princípios da boa-fé objetiva e função social.

O inadimplemento relativo, por seu turno, “é aquele em que a obrigação não é

cumprida no tempo, no lugar e na forma devidos, mas poderá sê-lo, com um proveito para o

credor. Nesse caso, estará caracterizada a mora, disciplinada pela regra do art. 394”

(CHARAF BDINE JR, Hamid. Código Civil Comentado, Coordenação do Ministro Cézar

Peluso, 5ª ed. Barueri/SP: Manole, 2011, p. 409).

Assim, o inadimplemento relativo ou mora ocorre quando, descumprida a obrigação

no seu prazo, ainda sim sua efetivação é de interesse ao credor, sendo que por certo o seu

7 Exemplo utilizado por Hamid. Código Civil Comentado, Coordenação do Ministro Cézar Peluso, 5ª ed.

Barueri/SP: Manole, 2011, p. 409. 8 Art. 389: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização

monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”

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cumprimento ilidirá a resolução do negócio jurídico, a exemplo do locatário que atrasa o

pagamento em poucos dias.

Nesse passo, ainda que de forma extemporânea, o pagamento é útil ao credor,

configurando-se, pois, a mora, tal qual dá ensejo ao acréscimo de penalidades e encargos

legais na obrigação9 (juros, correção monetária e honorários advocatícios), mas não permitirá

a resolução do contrato.

9 Art. 389 do Código Civil

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3. Princípio da Boa-fé Objetiva

A boa-fé no direito contratual do novo código10

, denominada pela doutrina como

boa-fé objetiva, distingue daquela já conhecida do antigo sistema, consistente da análise

subjetiva do estado de consciência do agente quando da avaliação do seu comportamento

(NEGREIROS, 2007, pag. 119).

Assim, para melhor entendermos a boa-fé objetiva, necessário fazer uma sucinta

distinção da boa-fé subjetiva.

Podemos dizer que a boa-fé subjetiva está ligada diretamente à elementos

psicológicos e, porquanto, intrínsecos do sujeito da relação jurídica. Denomina-se subjetiva,

justamente porque deverá ser considerada a íntima intenção do indivíduo ou do seu estado

psicológico, conforme nos ensina Judith Martins-Costa:

A expressão boa-fé subjetiva denota o estado de consciência ou

convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito

(sendo) aplicável, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria

possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve

o intérprete considerar a intenção do sujeito na relação jurídica, o seu estado

psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé,

também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem

(MARTINS-COSTA, 2000, p. 411).

A boa-fé subjetiva apresenta a ideia de ignorância, isto é, a equivocada crença do seu

direito ou desconhecimento da lesão ao direito de outrem. “A pessoa acredita ser titular de um

direito, que na realidade não tem, porque só existe na aparência” (NORONHA, 1994, p. 132).

A boa-fé objetiva, por sua vez, está relacionada com a honestidade e lealdade do

sujeito, que deverão ser demonstrados através do seu comportamento. Cuida-se de um dever

ético e de fidelidade à palavra, no sentido de não trair a confiança ou expectativa do outro

(MARTINS-COSTA, 2000, p. 412).

Destarte, diferentemente da boa-fé subjetiva, não tem qualquer relação com o estado

de consciência do sujeito ou sua noção de realidade sobre o direito. Caracteriza-se, pois, pelo

10

Art. 422 do Código Civil

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agir de modo honroso com o outro, sem deslealdade, tomando por base as condutas do sujeito

de acordo com os parâmetros de honestidade da sociedade, não frustrando a legítima

expectativa do outro. Ou, nas palavras de Judith Martins-Costa:

Ao conceito de boa-fé objetiva estão subjacentes as ideias e ideais que

animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de conduta fundada na

honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para

os interesses do ‘alter’, visto como um membro do conjunto social que é

juridicamente tutelado. Ai se insere a consideração para com as expectativas

legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da

comunidade, especialmente no outro polo da relação obrigacional

(MARTINS-COSTA, 2000, p. 412).

No mesmo sentido, também são os ensinamentos da inigualável professora Cláudia

Lima Marques:

Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação

refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o,

respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus

direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou

desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o

cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes

(MARQUES, 2004, p. 181-182).

A doutrina elenca, sem maiores discussões, três principais funções do Princípio da

boa-fé objetiva, quais sejam: a) função interpretativa no âmbito dos contratos; b) função

restritiva ao exercício de direitos, coibindo o abuso; e c) função criativa de deveres anexos à

prestação principal (TEPEDINO, 2006, p. 252).

A primeira função encontra-se positivada no art. 113 do Código Civil: “Os negócios

jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.

Assim, exige que a interpretação do contrato seja realizada visando sempre o objetivo comum

pretendido pelas partes (TEPEDINO, 2006, p. 252).

A segunda função encontra-se positivada no art. 187 do Código Civil: “Também

comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites

impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Consiste,

pois, numa função com conotação negativa e restritiva na medida em que estabelece limites

para o exercício dos próprios direitos (TEPEDINO, 2006, p. 252).

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Por último, a boa-fé exerce função de fonte criadora de deveres anexos à prestação

principal, que são os deveres de lealdade, informação e transparência inerentes e implícitos no

regulamento de interesses (TEPEDINO, 2006, p. 253).

À esta terceira função da boa-fé, também deverá ser observado o negócio caso a caso,

pois, nas palavras de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber:

[...] seria um absurdo supor que a boa-fé objetiva criasse, por exemplo, um

dever de informação apto a exigir de cada contratante esclarecimentos acerca

de todos os aspectos de sua atividade econômica ou de sua vida privada.

Assim, se é certo que o vendedor de um automóvel tem o dever – imposto

pela boa-fé objetiva – de informar o comprador acerca de dos defeitos do

veículo, não tem, por certo, o dever de prestar ao comprador esclarecimentos

sua preferência partidária, sua vida familiar ou seus hábitos cotidianos

(TEPEDINO; SCHREIBER, 2003, p. 146).

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4. Princípio da Função Social do Contrato

O direito contratual conteMporâneo prestigia quatro importantes princípios: autonomia

privada, boa-fé, justiça contratual e função social do contrato (ROSENVALD, 2011, p. 484),

este último, objeto de estudo, encontra-se positivado no art. 421 do Código Civil, in verbis:

“A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

O princípio da função social não limita e nem tampouco coíbe da liberdade de

contratar, que é plena e ilimitada, apenas legitimou a liberdade contratual ou, nos dizeres do

Professor Nelson Rosenvald:

A função social não coíbe a liberdade de contratar, como induz a dicção da

norma, mas legitima a liberdade contratual. A liberdade de contratar é plena,

pois não existem restrições ao ato de se relacionar. Porém, o ordenamento

jurídico deve submeter a composição do conteúdo do contrato a um controle

de merecimento, tendo em vista as finalidades eleitas pelos valores que

estruturam a ordem constitucional (ROSENVALD, 2011, p. 485).

Assim, o conteúdo contratual será submetido a um controle de merecimento para

examinar se o mesmo encontra-se em consonância com a ordem social. Neste mesmo sentido

é o entendimento de Flávio Monteiro de Barros:

O contrato tem de ser entendido não apenas como as pretensões individuais

dos contratantes, mas como verdadeiro instrumento de convívio social e de

preservação dos interesses da coletividade, onde encontra sua razão de ser e

de onde se extrai a sua força, pois o contrato pressupõe a ordem estatal para

lhe dar eficácia (BARROS, 2008, p. 218).

A doutrina cogita duas espécies de função social do contrato: Função Social Interna e

Função Social Externa.

A Função Social interna é aquela relacionada à necessária cooperação entre os

contratantes, enquanto perdurar a relação jurídica, implicando no dever de se colocarem na

situação de sujeitos titulares de direitos fundamentais e de igual dignidade, colaborando

reciprocamente com os deveres de proteção, informação e lealdade contratual, com a

finalidade comum de buscar o adimplemento contratual (ROSENVALD, 2011, p. 485).

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Quanto à Função Social Externa, é sabido que os contratos interessam à sociedade.

Tanto os bons como os maus contratos tem repercussão social e econômica, sendo que os

bons promovem a confiança nas relações sociais, já os contratos cevados por cláusulas

abusivas tem como consequência o reconhecido desprestígio aos princípios da boa-fé e

solidariedade (ROSENVALD, 2011, p. 485).

Dessa forma, existem contratos que satisfaçam integralmente as vontades dos

contratantes, mas, por outro, ofendem interesses de um terceiro ou da sociedade, à exemplo

dos contratos que possam afetar o meio ambiente, a livre concorrência, direito do consumidor,

dentre outros, conforme ensina Rosenvald.

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5. Teoria do Adimplemento Substancial

Segundo a teoria do adimplemento substancial, o cumprimento bem próximo do

resultado final afasta o direito potestativo de resolução do contrato, previsto no art. 475 do

Código Civil, restando ao credor apenas o direito de pedir a execução da prestação

inadimplinda, acrescida das perdas e danos, se for o caso (MARTINS-COSTA, 2000, p. 479).

Isso porque, se a obrigação foi substancialmente adimplida, o pedido de resolução não

trará nenhum benefício legítimo ao credor, apenas prejuízos para o devedor que, tendo

praticamente satisfeito a totalidade da obrigação, verá tudo retornar ao status quo ante

(BECKER, 1993, p. 70).

Destaca-se, desde já, que inexiste remissão da parcela ou prestação não adimplida,

podendo esta ser cobrada em juízo, o que ocorre é apenas e tão somente a vedação ao

desfazimento de todo o contrato.

Para tanto, a teoria está basicamente fundamentada nos princípios da boa-fé objetiva e

função social do contrato, já estudados no presente trabalho, sendo imperioso analisarmos o

adimplemento substancial sob os enfoques seguintes, para entendermos melhor a importância

prática da sua aplicação.

5.1. A Boa-fé objetiva como fundamento da teoria

Como visto, o art. 475 do Código Civil permite ao credor resolver o contrato em razão

do inadimplemento do devedor, isto é, ante o descumprimento de prestar deste, àquele pode

buscar o desfazimento do negócio.

Todavia, o referido dispositivo não especifica a modalidade de inadimplemento que

enseja o credor exercer seu direito de resolução, levando a ideia que o simples

descumprimento de qualquer obrigação, por mínima que seja, enseja a hipótese de resolução

do contrato.

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De outra parte, a resolução pelo inadimplemento do devedor é medida extrema da

extinção do contrato, vez que surtirá efeitos ex tunc, retirando do negócio todos os efeitos

jurídicos produzidos, bem como obstará aqueles que ainda seriam produzidos e, portanto, de

legítima expectativa dos contratantes.

Nesse passo, havendo inadimplemento mínimo em relação à obrigação total, isto é,

insignificante, de mínima importância ou gravidade, o direito potestativo de resolução será

uma conduta manifestamente desproporcional e contrária finalidade econômica do contrato.

Destarte, ao vedar o uso desproporcional do direito de resolução, a teoria do

adimplemento substancial encontra fundamento na boa-fé objetiva, especialmente na função

limitativa do exercício de direitos.

Teresa Negreiros assevera que, em tal função, a boa-fé objetiva está estritamente

ligada à teoria do abuso de direito, na medida em que servirá como parâmetro para analisar as

condutas dos contratantes no exercício dos seus direitos e obrigações, limitando, se o caso,

àquele que abusar do seu direito, ou, nas palavras da ilustre Autora:

Diante da ordenação contratual, o princípio da boa-fé e teoria do abuso de

direito completam-se, operando aquela como parâmetro de valoração do

comportamento dos contratantes: o exercício de um direito será irregular, e

nesta medida abusivo, se consubstanciar quebra de confiança e frustração de

legítimas expectativas. Nesses casos, o comportamento formalmente lícito,

consistente no exercício de um direito, é, contudo, um comportamento

contrário à boa-fé e, como tal, sujeito ao controle da ordem jurídica

(NEGREIROS, 2006, p. 141).

Nesta senda conclui Negreiros que “no exercício da sua função de limitar o exercício

de direitos subjetivos em nome da preservação do sinalagma que a boa-fé serve como

fundamento para a chamada teoria do adimplemento substancial” (NEGREIROS, 2006, p.

145).

No mesmo sentido, observa Anelise Becker que:

O princípio da boa-fé objetiva aí atua de forma a proteger o devedor frente a

um credor malicioso, inflexível (boa-fé eximente ou absolutória), como causa

de limitação ao exercício de um poder jurídico, no caso, do direito formativo

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de resolução, do qual é titular o credor de obrigação não cumprida

(BECKER, 1993, p. 70).

A par disso, o Superior Tribunal de Justiça já assentou que a extinção do contrato por

inadimplemento do devedor, somente se torna plausível quando o inadimplemento seja de tal

envergadura que não interessa mais ao credor o recebimento da prestação devida, pois a

economia do contrato está afetada.

Julgando ação de busca e apreensão, na qual o a Instituição Financeira promoveu

corolário do inadimplemento pelo consumidor da última prestação, o Ministro Ruy Rosado de

Aguiar (Superior Tribunal de Justiça, REsp 272739/MG), ensinou que não atende o princípio

da boa-fé objetiva a conduta credor ao exercer seu direito potestativo de resolução por conta

do ínfimo inadimplemento:

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Falta da última prestação.

Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento,

com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da

ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O

adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a

propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda

do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda

houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à

exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e

promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse.

Recurso não conhecido.

A doutrina também denomina de exercício desequilibrado de direitos (inciviliter

agere), pois há manifesta desproporção entre a vantagem do titular do direito e o sacrifício

imposto à outra parte, mesmo se não houver intenção de lesar, vale dizer, o titular do direito

age com desconsideração à outra parte contratante (NORONHA, 1994, p. 179)

O ilustre professor Francisco Loureiro, assevera o exercício do direito potestativo de

resolução do contrato deve guardar correlação com a relevância do inadimplemento, sob pena

de se converter em abuso de direito11

.

11

Entendimento retirado da Apelação Cível nº 0003286-03.2010.8.26.0077; Tribunal de Justiça de São Paulo.

Page 20: Adimplemento substancial tcc

19

5.2. A Função Social com fundamento da teoria

O Enunciado nº 361 da IV Jornada de Direito Civil que dispõe, in verbis: 361 – Arts.

421, 422 e 475. O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de

modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva,

balizando a aplicação do art. 475.

Já nas palavras do Ministro Luis Felipe Salomão:

[...] o contrato deixou de ser a máxima expressão da autonomia da vontade

para se tornar prática social de especial importância, prática essa que o

Estado não pode simplesmente relegar à esfera das deliberações particulares.

Instituto nascido no âmbito do Direito Privado, o contrato passou a ter

colorido publicístico, exigindo do julgador a aplicação, no caso concreto, das

chamadas cláusulas abertas, dentre as quais se destacam a boa-fé-objetiva e a

função social. Vale dizer, não se pode mais conceber o contrato unicamente

como meio de circulação de riquezas. Além disso - e principalmente -, é

forma de adequação e realização social da pessoa humana e meio de acesso a

bens e serviços que lhe dão dignidade (Superior Tribunal de Justiça,

REsp nº 1.051.270/RS, 2011).

Desta feita, para que o contrato cumpra sua função social, seja interna ou externa,

imprescindível que as partes devam buscar durante sua execução a solidariedade, confiança e

cooperação, sendo que na inobservância de qualquer desses deveres anexos, a teoria se aplica

para restabelecer a ordem contratual justa.

5.3. Adimplemento Substancial e a Exceção do Contrato Não Cumprido

Com fundamento no art. 476 do Código Civil12

, “qualquer dos contratantes pode

utilizar-se da exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), para

recusar a sua prestação, ao fundamento de que o demandante não cumpriu a que lhe

competia” (GONÇALVES, 2004, p. 24).

Quando a hipótese for de inadimplemento parcial ou adimplemento incompleto,

estaremos diante da exceptio non rite adimpleti contractus, tratando-se, pois, de uma segunda

espécie de exceção do contrato não cumprido, conforme assevera Flávio Monteiro de Barros:

12

Art. 476: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida sua obrigação, pode exigir o

implemento da do outro”.

Page 21: Adimplemento substancial tcc

20

Doutrinariamente, assim se diferenciam as duas exceções: a primeira

(exceptio non adimpleti contractus) pressupõe completa e absoluta

inexecução do contrato, enquanto a segunda [exceptio non rite

adimpleti contractus] tem como pressuposto a execução insuficiente,

defeituosa, diferente ou incompleta (MONTEIRO, 2003, p. 80).

Eduardo Luiz Bussata defende que, na hipótese de exceptio non rite adimpleti

contractus, a teoria do adimplemento substancial deve ser aplicada na exceção do contrato

não cumprido, especialmente como forma de coibir o uso abusivo da exceção, asseverando

que:

Se o descumprimento da parte que está exigindo a prestação for leve, de

pequena importância para a economia contratual, não há dúvida de que será

abusivo o uso de tal exceção. De fato, se o inadimplemento de escassa

importância mantém o vínculo contratual, não permitindo que o contratante

não inadimplente busque dissolver o contrato, faz também com que fique

vedado à parte, abusivamente, alegar o leve descumprimento contratual para

não cumprir com a prestação que lhe cabe (BUSSATA, 2008, p. 105).

Assim, nesta seara a teoria do adimplemento substancial servirá, em suma, como

matéria defensiva àquele que imputar a exceção do contrato não cumprido frente ao

contratante que adimpliu quase na totalidade sua obrigação.

Isso porque, contraria os ditames da boa-fé objetiva a conduta do contratante de

utilizar o direito de exceção, escusando-se de cumprir sua obrigação frente à um mínimo

inadimplemento da parte inadimplente (ROSENVALD, 2011, p. 541-542), dando azo,

inclusive, ao abuso de direito, vedado expressamente no nosso ordenamento como ato

ilícito13

.

Assim, na exceptio non rite adimpleti contractus, quando tratar-se de um pequeno

descumprimento, ou de escassa importância, este inadimplemento não pode sustar a

exigibilidade de toda a prestação do outro contratante, sob pena de converter-se em abuso do

direito.

13

Art. 187 do Código Civil

Page 22: Adimplemento substancial tcc

21

Cumpre esclarecer que, caso a caso, urge a necessidade sempre de precisar a

proporcionalidade entre a inexecução da contraparte e o exercício da exceção

(ROSENVALD, 2011, p. 542)

Neste sentido, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, ensina que o exemplo mais significativo

desse abuso, na função de controle do princípio da boa-fé objetiva é:

[...] o da proibição do exercício do direito de resolver o contrato por

inadimplemento ou suscitar a exceção de contrato não cumprido, quando o

incumprimento é insignificante em relação ao contrato total. O princípio do

adimplemento substancial, derivado da boa-fé, exclui a incidência da regra

legal que permite a resolução quando não verificada a integralidade do

adimplemento (AGUIAR JÚNIOR, 2003 p. 252).

De igual modo, seja para aplicar a Teoria do Adimplemento Substancial, seja para

afastá-la, imperando a arguição da contraparte de exceção de inadimplemento, o Superior

Tribunal de Justiça vem mantendo o mesmo entendimento quanto a necessidade de verificar

no caso concreto a proporcionalidade entre a inexecução do inadimplente e o exercício da

exceção da contraparte:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO

CUMPRIDO. DESCUMPRIMENTO PARCIAL DA AVENÇA. ESCASSA

IMPORTÂNCIA. 1. Em havendo mora de um contratante (vendedor) de

escassa importância, relativa a débito de IPTU, a suspensão indefinida do

pagamento por parte do outro contratante (comprador) de importância de

aproximadamente um milhão de reais, já estando aquele gravame tributário

liquidado, com sua manutenção na posse do bem (imóvel), a exceptio

favorece ao primeiro, acarretando a rescisão da avença. 2. A exceção,

consoante a melhor doutrina, não pode "ser levada ao extremo de acobertar o

descumprimento sob invocação de haver o outro deixado de executar parte

mínima ou irrelevante da que é a seu cargo". 3. Recurso especial conhecido.

(RESP Nº 883.990 - RJ [2006/0159555-1])

No mesmo sentido: REsp 1200105.

Verifica-se que, ocorrendo inadimplemento de escassa importância, baseada em

comparação com a obrigação da contraparte, esta não poderá invocar a exceção do contrato

não cumprido para escusar-se do seu dever contratual, pois àquela haveria cumprido

substancialmente o contrato.

Page 23: Adimplemento substancial tcc

22

Destarte, além de ilidir a resolução do contrato, o adimplemento substancial

desautoriza o exercício da exceção de contrato não cumprido nas hipóteses vistas, mesmo

porque a exceção sempre esteve vinculada a equivalência das prestações, inclusive no que

tange ao grau de importância entre elas.

Dessa forma, somente restará a contraparte que arguiu a exceção, e porquanto

lesionada pelo inadimplemento, o direito de buscar em juízo a execução da parte inadimplida,

acrescida de perdas e danos, se o caso.

5.3. Valoração do inadimplemento e parâmetros utilizados para aplicação da

teoria.

Durante o trabalho, muito foi falado à respeito do inadimplemento, sendo certo que a

partir de tal analise se verificará a substancialidade do adimplemento ou, ao revés, a

insignificância do inadimplemento, este último denominado como doutrinariamente como de

“escassa importância”14

e imprescindível para aplicação da teoria.

O problema está, pois, nos parâmetros que devem ser utilizados pelo julgador para

averiguar se o inadimplemento é de “escassa importância”. Embora obviamente seja uma

questão de extrema subjetividade, devendo a verificação da importância ou não ser realizada

no caso concreto, o que se busca nesse momento são alguns parâmetros que possam de

alguma forma auxiliar o magistrado.

Assim, poderíamos considerar que o pagamento de 98% do preço devido no contrato

de compra e venda seja substancial, não permitindo a resolução pelo inadimplemento de

insignificante importância e, portanto, considerar a referida porcentagem como um parâmetro

fixo para aplicação da teoria.

Contudo, como já foi dito, a questão é de extrema subjetividade, e porquanto sendo

imprescindível sua análise ao caso em concreto para analisar o inadimplemento não só quanto

14

Expressão muito utilizada por Eduardo Luiz Bussata, em Resolução dos Contratos e Teoria do Adimplemento

Substancial. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

Page 24: Adimplemento substancial tcc

23

à sua extensão, mas sim sua intensidade e demais características para sua adjetivação de

escassa importância.

Por oportuno, basta imaginarmos no exemplo acima que a venda tenha ocorrido na

modalidade ad mensuram, na qual o art. 500, §1º, do Código Civil, concede o direito ao

comprador de resolver o contrato inobstante o pequeno descumprimento, para constatarmos

que o inadimplemento dos 2% seria totalmente relevante e afastaria a aplicação da teoria.

Na tentativa de amenizar o problema, a doutrina aponta dois critérios para valorar o

inadimplemento de escassa importância e consequentemente utilizar como parâmetro a

aplicação da teoria (BUSSATA, 2008, p. 108).

O primeiro critério, denominado como subjetivo, baseia-se na vontade hipotética do

contratante não inadimplente, medindo o interesse no plano do interessado. Assim, seria

considerado grave o inadimplemento, dando azo à resolução, quando o julgador pudesse

concluir que a parte inadimplente não realizaria a contratação se suspeitasse que o respectivo

inadimplemento pudesse vir a ocorrer (BUSSATA, 2008, p. 108).

O segundo critério, de caráter objetivo, deixa de lado qualquer valoração subjetiva que

o próprio contratante possa fazer do seu interesse, levando em conta a economia do contrato, a

totalidade da relação existente e o desequilíbrio ocasionado pelo descumprimento, fazendo,

em suma, uma comparação entre tudo o que fora programado no contrato e aquilo que

efetivamente foi realizado (BUSSATA, 2008, p. 109-110).

Em algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça, é possível verificar a

utilização dessa última valoração, ao entender que “o cumprimento do contrato de

financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza ai credor lançar mão da

ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante”15

, hipótese na qual o

valor inadimplido correspondia a menos de 20% do devido, bem como que “não viola a lei a

decisão que indefere o pedido de liminar de busca e apreensão considerando o pequeno valor

15

REsp 272.739-MG, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, j. 01/03/2001.

Page 25: Adimplemento substancial tcc

24

da dívida em relação ao valor do bem”16

e “a seguradora não pode dar por extinto o contrato

de seguro, por falta de pagamento da última parcela do prêmio”17

Destarte, a jurisprudência brasileira vem utilizando o critério objetivo, notadamente

nos contratos de execução diferida, acorde verificou dos julgados colacionados, sendo este

quase que matemático, pois os julgados têm levado em consideração o adimplemento

realizado e a aproximação com aquele que efetivamente deveria ser realizado de acordo com

o contrato e, em seguida, analisa se o inadimplemento prejudicou a função econômico-social,

ou se o cumprimento imperfeito ainda sim permita que cumpra essa função.

Todavia, questão que insurge, seria o fato do inadimplemento versar apenas e tão

somente sobre dever acessório ou lateral do contrato. Nesta hipótese estaria o inadimplemento

apto a ensejar a resolução aplicando-se a teoria?

Analise Becker assevera que haveria direito de resolução na hipótese da compra de um

vestido de estilista famoso, na qual a exclusividade prometida foi descumprida, pois, mesmo

que a obrigação principal tenha sido cumprida (entrega do vestido), o dever acessório

(obrigação de não fazer) de exclusividade, não cumprido, esta apto a ensejar a resolução

(BECKER, 1993, p. 64).

Contrariando Autora o exemplo utilizado por Becker, Eduardo Luiz Bussata afirma

que o descumprimento do referido dever acessório de exclusividade não acarreta a inutilidade

da prestação principal, bem como não impede a realização do resultado típico, pelo que a

resolução deve ser afasta com base na teoria do adimplemento substancial, restando aberta

simplesmente a via ressarcitória para satisfação do lesionado (BUSSATA, 2008, p. 127).

16

REsp 469.577-SC, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, j. 25/03/2003. 17

REsp 76.362-MG, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, j. 25/03/2003.

Page 26: Adimplemento substancial tcc

25

8. Conclusão

Seja baseado em cláusula resolutiva expressa ou no próprio direito potestativo

insculpido no artigo 475 do Código Civil, já não mais se sustenta ao credor pedir a resolução

do contrato, ao seu critério, pelo simples fato do inadimplemento do devedor.

Para que o contrato seja resolvido, imprescindível minuciosa análise da relação

jurídica contratual, caso a caso, avaliando julgador se o inadimplemento foi de tamanha

envergadura que prejudicou a função econômico-social do negócio, tornando-o totalmente

desinteressante para o credor o recebimento da prestação.

Não se deixou de aplicar as regras contidas nos artigos 474 e 475 do Código Civil,

tampouco tenham caído em desuso, apenas demonstrou a necessidade do julgador na

observância de princípios de natureza cível-constitucional, notadamente a boa-fé objetiva e a

função social do contrato, sob pena de converter o seu uso em abuso de direito (art. 187, CC).

A vedação do uso desproporcional do direito de resolução, isto é, quando o

inadimplemento for de escassa importância que não abale a economia do contrato, encontrou

total fundamento na boa-fé objetiva, na função limitativa do exercício de direitos que,

justamente por isso, está estritamente ligada à teoria do abuso de direito.

No decorrer do estudo, foi possível verificar o surgimento de dois critérios para a

análise da gravidade do inadimplemento para afastar a resolução do contrato e,

consequentemente, a aplicação da teoria do adimplemento substancial. Um objetivo e outro

subjetivo.

A jurisprudência brasileira vem utilizando o primeiro deles, notadamente nos

contratos de execução diferida, acorde verificou dos julgados colacionados. Quase que

matemático, o parâmetro objetivo leva em consideração o adimplemento realizado e a

aproximação com aquele que efetivamente deveria ser realizado de acordo com o contrato.

Page 27: Adimplemento substancial tcc

26

Em seguida, o julgador analisa se o inadimplemento prejudicou a função econômico-

social, ou se o cumprimento imperfeito ainda sim permita que cumpra essa função, também

denominado pela doutrina como “Teoria da Causa” do contrato.

Na hipótese de exceptio non rite adimpleti contractus, a teoria do adimplemento

substancial pode ser aplicada na exceção do contrato não cumprido, especialmente como

forma de coibir o uso abusivo da exceção, encontrando, mais uma vez, fundamento na boa-fé

objetiva e teoria do abuso de direito, na medida em que afasta o direito do credor sustar sua

prestação frente à um mínimo inadimplemento da parte inadimplente.

Quanto aos deveres acessórios ou laterais, verificou-se a necessidade de constatar

objetivamente se o inadimplemento do respectivo dever causa inutilidade da prestação

principal, ao revés, o direito de resolução deverá ser excluído com fundamento na teoria, com

base quase que nos mesmos parâmetros utilizados pela jurisprudência para valorar a

gravidade do inadimplemento.

Page 28: Adimplemento substancial tcc

27

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