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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA Programa de Pós-graduação em Filosofia Agamben & Bartleby: a personagem como paradigma para investigar a potência de não e a inoperosidade. Diego Guimarães Ouro Preto 2015

Agamben & Bartleby - A Personagem Como Paradigma Para Investigar a Potência de Não e a Inoperosidade

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Dissertação de mestrado acerca do tema da inoperosidade na obra de Giorgio Agamben através de Bartleby como paradigma da potência do não.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

    INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA

    Programa de Ps-graduao em Filosofia

    Agamben & Bartleby: a personagem como paradigma para

    investigar a potncia de no e a inoperosidade.

    Diego Guimares

    Ouro Preto

    2015

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    DIEGO GUIMARES

    Agamben & Bartleby: a personagem como paradigma para

    investigar a potncia de no e a inoperosidade.

    Dissertao apresentada ao Mestrado em

    Esttica e Filosofia da Arte da Universidade

    Federal de Ouro Preto como parte dos

    requisitos para a obteno do ttulo de Mestre

    em Filosofia.

    Linha de pesquisa: Esttica e Filosofia da arte

    Orientador: Prof. Dr. Gilson Iannini

    Ouro Preto

    2015

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    aos que comigo j pensaram sorrindo

    dedico este sorriso

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    Resumo

    Nesta dissertao investigarei os conceitos de potncia de no e inoperosidade na obra do

    filsofo italiano Giorgio Agamben, partindo, para tanto, do uso que este faz da personagem

    Bartleby, o escrivo de Melville, que, como um paradigma, auxilia-o a explicit-los. No

    decorrer de minha investigao, mapearei e rastrearei as aparies da personagem na obra do

    filsofo, contextualizando-a em cada texto em que ela aparece ao mesmo tempo em que a

    relacionarei com os dois conceitos aqui perseguidos. Com estes iluminados por aquela, ser

    possvel pensar de maneira mais clara o ser humano como um ser, sobretudo, potencial, e cuja

    vida, ao invs de capturada, limitada e regrada por realizaes especficas, est sempre

    disponvel a um novo uso.

    Palavras-chave: Giorgio Agamben. Filosofia italiana. Bartleby. Potncia de no.

    Inoperosidade.

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    Abstract

    In this dissertation I will investigate the concepts of potentiality not to (potenza di non) and

    inoperative (inoperosit) in the work of the Italian philosopher Giorgio Agamben, starting,

    therefore, of the use of the character Bartleby, the Melvilles scrivener, did by him, that, as a

    paradigm, helps to explain both the concepts. In the course of my research, I will track and

    map the quotes of the character in the philosophers work, contextualizing that in every text in

    which it appears at the same time that I will link it with the concepts pursued here. With these

    enlightened by that, will be possible to think more clearly the human being as a being, above

    all, potential, and whose life, instead of captured, limited and regulated by specific

    realizations, is always available to a new use.

    Keywords: Giorgio Agamben. Italian philosophy. Bartleby. Potentiality not to. Inoperative.

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    Sumrio

    Introduo. 10

    1. O escrivo e a potncia. 12

    1.1 A personagem em Agamben. 13

    1.2 O paradigma Bartleby. 34

    2. Constelaes. 41

    2.1 Constelao literria. 42

    2.1.1 Ggol. Akki Akkievitch. 42

    2.1.2 Flaubert. Bouvard e Pcuchet. 44

    2.1.3 Walser. Simon Tanner. 46

    2.1.4 Dostoivski. Prncipe Mchkin. 48

    2.1.5 Kafka. Tribunais. 50

    2.1.6 Melville. Bartleby. 51

    2.2. Constelao filosfica. 52

    2.2.1 Aristteles. 52

    2.2.2 Um percurso na constelao. 57

    3. No rastro de Bartleby. 61

    3.1 Quatro glosas a Kafka (1986). 62

    3.2 Bartleby no escreve mais (1988). 64

    3.3 A comunidade que vem (1990). 65

    3.4 O poder soberano e a vida nua (1995). 71

    3.5 Ideia da prosa (1985/2002). 78

    3.6 Opus Dei (2012). 83

    3.7 Saldo de um percurso. 86

    4. Bartleby morre. 88

    Concluso. 96

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    Referncia da imagem. 98

    Referncias bibliogrficas. 99

    Anexo: Bartleby no escreve mais. 103

  • 10

    Introduo.

    O filsofo italiano Giorgio Agamben tem como forte caracterstica no desenvolvimento de

    seu pensamento a no distino entre as reas de reflexo humana, lidando com os diversos

    saberes (filosofia, literatura, msica, medicina, direito, biologia, cinema, histria etc.) na

    medida em que eles se aproximam e se afastam, ao invs de mant-los apenas apartados uns

    dos outros. Ele relaciona as diversas reas do saber de maneira criativa, elencando paradigmas

    de modo a lanar luz sobre uma ideia em questo; tal relao anloga, ao invs de restringir-se

    a reas especficas, traz luz o aspecto humano de toda a criao e o contexto no e com o qual

    ela se entrelaa, de modo a considerar que todas as obras humanas esto em contato no uso e

    na vocao para este; assim, seria na vocao para o uso (vocao para ser paradigma) que a

    filosofia e a literatura se aproximariam de maneira mais ntima.

    O foco desta dissertao est em investigar dois conceitos caros ao pensamento de Agamben:

    a potncia de no (potenza di non) e a inoperosidade (inoperosit). Para tanto, em meio s

    variadas possibilidades de abordagem destes conceitos na vasta obra produzida pelo italiano

    at ento (2014), optei por nesta seguir o percurso de uma personagem literria, Bartleby, o

    escrivo de Melville, que inmeras vezes utilizado pelo filsofo como um paradigma tanto

    para compreender a potncia de no quanto para iluminar o conceito de inoperosidade.

    O problema que me instiga e motiva a debruar-me sobre os dois conceitos o de uma arte e

    uma poltica calcadas por seres potenciais, o que significa pens-las no como presas a

    realizaes especficas, mas, ao invs, como sempre disponveis para um novo uso. Da a

    importncia dos conceitos de potncia de no e inoperosidade na obra de Agamben, j que

    sobretudo com eles que tal disposio pensada pelo filsofo italiano.

    A recorrncia do escrivo nas obras de Agamben o que me chamou a ateno para a

    viabilidade da incurso que aqui proponho; toda a dissertao ser estruturada com base

    nestas recorrncias e tendo por centro de organizao o texto especfico sobre a personagem

    escrito pelo filsofo italiano em 1993, de modo que o percurso a ser traado com a

    personagem obedecer a seguinte ordem: Bartleby ou da contingncia (1993), Quatro glosas

    a Kafka (1986), Bartleby no escreve mais (1988), A comunidade que vem (1990), O poder

    soberano e a vida nua (1995), Ideia da prosa (1985/2002) e Opus Dei (2012).

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    Os dois primeiros captulos focaro naquele texto de 1993, j que se trata do debruar mais

    longo de Agamben sobre o escrivo e de uma anlise mais detida sobre a questo da potncia

    e da impotncia. No captulo 1 resgatarei o conto de Melville, apresentando-o de maneira

    breve, para ento percorrer o texto do filsofo italiano com a inteno de apresentar quem o

    Bartleby de Melville de Agamben; na segunda parte deste captulo, no subcaptulo 1.2,

    debruar-me-ei sobre outras duas questes em torno da personagem: como Agamben a utiliza

    (como paradigma) e por que ele a utiliza (por causa do exerccio da privao que a postura do

    escrivo significa, um dos aspectos mais importantes para a investigao dos conceitos

    propostos). O captulo 2 tratar das constelaes nas quais o filsofo situa a personagem, uma

    literria e uma filosfica, momento em que ampliarei o comentrio ao texto de 1993 e que

    trabalharei um pouco mais o mtodo utilizado por Agamben na lide com a personagem, o

    mtodo constelar de pensamento. De maneira anloga, trabalharei no captulo 3 as demais

    aparies e usos da personagem em outras seis obras de Agamben, seguindo o seu rastro,

    sempre com vista potncia de no e inoperosidade. No captulo 4, o momento em que

    tratarei as obras de Agamben com maior liberdade, analisarei de maneira mais detida os dois

    conceitos para, tendo-os claros em mente, fazer uma leitura prpria da morte da personagem,

    levando s ltimas consequncias as relaes dela com aqueles, iluminando-os assim com

    uma intensidade ainda maior: com a morte de Bartleby encerrarei a investigao sobre a

    potncia de no e a inoperosidade.

  • 12

    1._O escrivo e a potncia.

    O conto Bartleby, o escrivo: uma histria de Wall Street foi publicado pelo norte-americano

    Herman Melville (1819-1891) no ano de 1853 na Putnams Magazine, e em 1856 no livro The

    Piazza Tales. O efeito do conto sobre Agamben (1942-) se evidencia na obra do filsofo

    italiano intitulada Bartleby ou da Contingncia, publicado na Itlia no livro Bartleby: A

    frmula da criao (1993), como desfecho provisrio da reflexo do autor sobre questo da

    potncia, presente nas obras iniciais de Agamben, entre as quais destaco A ideia da prosa

    (1985) e A comunidade que vem (1990), esta com captulo dedicado personagem, aquela

    com dois acrscimos feitos em 2002, para a segunda edio italiana da Ideia da prosa, onde

    Bartleby utilizada nos ensaios Ideia do estudo e Ideia da poltica. Antes disto, a personagem

    j havia aparecido em dois artigos da dcada de 80, Quatro glosas a Kafka (1986) e Bartleby

    no escreve mais (1988), em abordagens sobre aquela mesma questo. Posterior ao

    comentrio de 1993, Bartleby tambm invocado em dois volumes da tetralogia Homo Sacer,

    em O poder soberano e a vida nua (1995) e em Opus Dei (2012), respectivamente volumes I

    e II.5. Se o desfecho da reflexo de Agamben sobre a potncia dito provisrio no texto de

    1993, porque sua leitura da questo e da personagem vem ganhando novas implicaes no

    decorrer de sua reflexo filosfica, como por exemplo a relao da potncia de no com a

    noo de inoperosidade. Antes, contudo, de seguir esse rastro de Bartleby na obra de

    Agamben, de sua primeira apario em 1986 at a sua ltima em 2012, irei expor e analisar o

    conto de Melville e o texto de 1993, comeando, portanto, o percurso por Bartleby ou da

    Contingncia.

  • 13

    1.1 A personagem em Agamben.

    O narrador do conto um advogado de meia idade, mestre escrivo do estado de Nova York,

    que possui um escritrio de cpias de documentos legais (contratos, processos etc.),

    localizado na Wall Street. Ele, que no informa o seu nome, j possua dois escrives e um

    garoto de recados (office boy), quando devido ao aumento da procura por seus servios decide

    aumentar o nmero de escribas. Em resposta a um anncio, certa manh um jovem inerte

    apareceu minha porta, que estava aberta pois era vero. Ainda vejo a sua figura: levemente

    arrumado, lamentavelmente respeitvel, extremamente desamparado! Era Bartleby

    (MELVILLE, 1853a, p. 7). Sem muitas exigncias, o homem de leis o contrata, valorizando

    sua serenidade, o que poderia ajudar a temperar os outros funcionrios, que em determinadas

    partes do dia tinham suas agitaes. A personagem inicialmente corresponde s expectativas,

    fazendo uma elevada quantidade de cpias; escrevia em silncio, com apatia, mecanicamente;

    era sempre o primeiro a chegar e o ltimo a sair.

    Acho que foi no terceiro dia em que estava comigo, antes que

    houvesse necessidade de ter o seu trabalho verificado, e estando eu

    com muita pressa para terminar um pequeno negcio sob meu

    encargo, que chamei Bartleby abruptamente. Na pressa e expectativa

    natural de uma resposta imediata, sentei-me com a cabea inclinada

    sobre o original na minha mesa, a minha mo direita de lado, e, um

    pouco nervoso, estendi a cpia para que Bartleby pudesse peg-la e

    comeasse a trabalhar sem demora, assim que sasse do seu retiro.

    Estava sentado nessa posio quando o chamei, dizendo depressa o

    que eu queria que fizesse, isto , conferir um pequeno documento.

    Imagine a minha surpresa, ou melhor, a minha consternao, quando,

    sem sair do seu retiro, Bartleby respondeu com uma voz

    singularmente amena e firme, Preferiria no (ibidem, pp. 8-9; destaque prprio).

    Alguns dias depois, o advogado pede para ele conferir mais cpias, e obtm a mesma

    resposta. Ao questionar o no do escrivo, este varia a frmula, enfatizando que no o

    caso dele no querer: Prefiro no (ibidem, p. 10). Em outra, o chefe pede para a

    personagem ir ao correio, a resposta, Preferiria no. Mais uma vez o advogado insiste.

    Voc no vai?. Prefiro no (ibidem, p. 13). Esta a segunda, de trs vezes1, que o

    escrivo deixa o condicional para no indicativo evidenciar que no se trata de vontade; no

    mais, a frmula padro, Preferiria no. A terceira vem logo em seguida, quando o advogado

    1 Na edio americana, MELVILLE, 1853b, pp. 14, 18 e 19.

  • 14

    pede a ele que chame outro funcionrio: Prefiro no, disse respeitosa e lentamente,

    desaparecendo de mansinho (ibidem, p.14).

    Intrigado, certa hora o advogado resolve chamar a personagem para interrog-la, na tentativa

    de compreend-la melhor. Diga-me onde voc nasceu, Bartleby. / Preferiria no. /

    Voc poderia me contar qualquer coisa a seu respeito? / Preferiria no. (ibidem, p. 19).

    Apesar de tudo, mantm o escrivo, j que este fazia um bom trabalho com as cpias, sem

    parar. At que, passado algum tempo, ele repara que Bartleby no estava escrevendo mais,

    que ele apenas olhava em devaneio pela janela, que tinha a sua frente, a poucos metros,

    apenas um muro, to pouca era a distncia entre os prdios por ali. Como assim? O que

    isso agora?, exclamei, no vai mais escrever? / No. / Por qual motivo? / No

    percebe qual o motivo?, respondeu com indiferena (ibidem, p. 21; destaque prprio). O

    advogado tenta encontrar uma explicao, e olhando no rosto do escrivo, v que seus olhos

    esto vtreos, o que o leva pensar que a pouca luz e o excesso de trabalho tenham prejudicado

    a viso daquele; comovido, resolve aguardar at que ela melhore.

    Mais uns dias se passaram. Se os olhos de Bartleby melhoraram ou

    no, no sei dizer. Ao que tudo indicava, parecia que sim. Mas quando

    lhe perguntei, no se dignou a responder. De qualquer forma, no

    fazia cpias. Por fim, em resposta minha insistncia, informou-me

    que deixara de fazer cpias para sempre (ibidem, p. 22).

    O advogado resolve ento despedi-lo, ao que Bartleby permanece indiferente, respondendo:

    Preferiria no (ibidem, 22). Na tentativa de evitar uma medida enrgica contra o escrivo,

    o advogado decide mudar de escritrio, j que o ex-empregado no saa de l por nada; e no

    sai nem com a mudana, fica para trs, plantado no meio da sala vazia.

    Tempos depois, um desconhecido entra no novo escritrio, dizendo que Bartleby permanecia

    no antigo e que, como o advogado, o narrador, o havia deixado por l, ele que deveria

    resolver o problema, j que o escrivo se recusava a partir e tampouco fazia qualquer coisa. O

    advogado se recusa a ir, diz no ter vnculo com o antigo empregado e que este j no era

    mais assunto seu. No entanto, tendo transcorrido alguns dias, um grupo de pessoas, inquilinos

    do antigo prdio, junto com o proprietrio, aparece no novo escritrio para pedir que ele d

    um jeito na situao. Para evitar que algo de mal acontea a Bartleby, o advogado acaba indo

    conversar com ele, mas no consegue convenc-lo a sair de l.

  • 15

    Por meio de um bilhete, deixado debaixo de sua porta pelo proprietrio do antigo prdio, o

    advogado fica sabendo que acabaram chamando a polcia para levar o escrivo, que foi preso.

    Pediam que ele fosse ao local servir de testemunha. L ele encontra Bartleby, indiferente

    como sempre; tenta conversar com ele, mas no obtm nada de novo. Sem comer, silencioso

    no seu canto, o escrivo acaba morrendo no ptio da cadeia, com vista para os muros que a

    cercavam. Para terminar este breve resumo do conto, cito o penltimo pargrafo de Melville:

    No haveria necessidade de continuar esta histria. A imaginao

    poderia suprir com facilidade o relato inadequado do enterro do pobre

    Bartleby. Mas, antes de me despedir do leitor, desejo dizer que se esta

    narrativa curta interessou-lhe a ponto de despertar a sua curiosidade

    para saber quem era Bartleby, e que tipo de vida levava antes de

    conhecer o narrador, posso apenas assegurar que sinto a mesma

    curiosidade, mas sou incapaz de satisfaz-la. No sei se devo contar

    um boato que me chegou aos ouvidos, alguns meses depois da morte

    do escrivo. No posso dar garantias sobre sua origem e nem de quo

    verdadeiro . Mas j que esse relato obscuro teve algum interesse para

    mim, embora triste, pode ser que o mesmo acontea aos outros; por

    isso menciono-o brevemente. O relato o seguinte: Bartleby havia

    sido funcionrio da Repartio de Cartas Mortas, em Washington, do

    qual fora afastado de sbito devido a uma mudana na administrao.

    Quando penso sobre esse boato mal posso exprimir minhas emoes.

    Cartas mortas! No se parece com homens mortos? Pense num

    homem que, por natureza e infortnio, era propenso ao desamparo;

    poderia haver um trabalho mais adequado para aguar o seu

    desamparo do que lidar o tempo todo com cartas mortas, deparando-as

    para jog-las ao fogo? Pois elas so queimadas todos os anos, aos

    montes. Por vezes, entre os papis dobrados, o funcionrio lvido

    encontrava um anel o dedo ao qual estava destinado talvez estivesse apodrecendo na sepultura -; algum dinheiro, enviado por caridade aquele que teria sido ajudado talvez j no estivesse sentindo fome;

    um perdo para os que morreram em desespero; esperana para os que

    morreram sem nada esperar; noticias boas para os que morreram

    sufocados por calamidades insuportveis. Com recados de vida, essas

    cartas aceleram a morte (ibidem, pp. 36-7).

    ***

    Antes de passar ao texto de Agamben sobre escrivo de Wall Street, deixarei uma constelao

    de respostas inquietantes (ou questes sem interrogao, o que inquieta mais ainda), que

    ilustram o tom de Bartleby e da investigao do filsofo italiano. A listagem e a repetio

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    tentam evocar a cadncia do conto, marcada pela repetio da frmula na qual o escrivo

    demora.

    Preferiria no (p. 9). Preferiria no (p. 9). Preferiria no (p. 9). Preferiria no, ele disse, desaparecendo silenciosamente atrs do biombo (p. 10).

    Preferiria no (p. 10). Prefiro no, respondeu num tom agudo (p. 10). Preferiria no (p. 12). Prefiro no (p. 13). Prefiro no, disse, respeitosa e lentamente, desaparecendo de mansinho (p. 14).

    Preferiria no (p. 19). Preferiria no (p. 19). Preferiria no dar nenhuma resposta no momento (p. 19). Preferiria no ser sensato no momento, foi sua resposta um tanto soturna (p. 19).

    ...

    ***

    Uma anlise de tradues da obscura frmula de Bartleby ajudar a esclarecer seu significado.

    A frmula americana I would prefer not to foi traduzida para o italiano como Preferirei di

    no, por Patrizio Sanasi (Edizione Acrobat). A mesma maneira de traduzir foi adotada por

    Agamben no seu texto de 1993 sobre o conto de Melville (AGAMBEN, 1993a). Na traduo

    francesa, Je prfrerais pas e Je ne prfrerais pas, por Pierre Levris para a Gallimard

    (Paris : Galimard, 1986). Ainda em francs, Deleuze, em seu posfcio para outra traduo

    francesa de Bartleby, de 1989, adota uma traduo idntica para a frmula2. J na traduo

    espanhola, de Jorge Luis Borges (Buenos Aires: Edicom, 1969), uma traduo semelhante

    de algumas brasileiras, Preferira no hacerlo (com variao Prefiero no hacerlo). Por sua

    vez, na traduo portuguesa da obra, a frmula ganha forma semelhante italiana, Preferiria

    de no, numa traduo de Pedro Paixo para a editora Assrio & Alvim (Lisboa: Assrio &

    Alvim, 2007), sob a superviso de Agamben. Das edies brasileiras do conto, consultei duas

    tradues. A da Editora Cultrix, de 1969, feita por Olvia Krhenbhl, Prefiro no faz-lo; e

    a traduo de 2005, realizada por Irene Hirsch para a editora Cosac Naify (So Paulo, 2005),

    Acho melhor no. A meu ver, a melhor traduo seria Preferiria no (ou Eu preferiria

    2 MELVILLE, H. Bartleby. Traduo de Michle Causse. Paris: Flammarion, 1989.

  • 17

    no, o que d no mesmo, j que no portugus o pronome facultativo neste caso; o mesmo

    vale para o idioma italiano; j no ingls e no francs ele obrigatrio no uso em questo). Tal

    traduo equivalente francesa consultada, diferindo da italiana e da portuguesa no de

    presente entre o verbo e a negao. Outra considerao relevante para a traduo e

    compreenso da frmula o condicional presente na frase em ingls, at pelo verbo

    condicional ter forma equivalente em todos os idiomas em questo; deste modo, a traduo

    por Acho melhor no ou por Prefiro no faz-lo seria inapropriada. Estas ltimas opes

    de traduo apresentam outro problema. No conto, quando interrogado se quer ou no quer

    fazer algo, pelo advogado, em trs ocasies3 Bartleby altera a frmula I would prefer not to

    para I prefer not to, Prefiro no, trocando o condicional pelo modo indicativo, visando

    com isso enfatizar que no se trata de querer ou no querer, que no est em questo a

    vontade. Quando se traduz por Acho melhor no, torna-se difcil dar a mesma nfase

    alterao na postura da personagem, e com isso a leitura do conto perde em sutileza; na

    traduo brasileira que adotou essa opo, a variao foi suprimida, havendo apenas uma

    construo da frmula (que, apesar do deslocamento estratgico feito por Bartleby, continua

    sendo uma s). O condicional uma opo interessante de ser mantida por pelo menos dois

    motivos: 1) ao exprimir um fato no futuro em relao a um passado, ele leva a uma situao

    temporal em que h uma restituio de potncia ao passado (o que logo mais ser explorado

    no texto do Agamben); 2) o condicional tambm considerado um modo para exprimir o

    irreal (fato no realizado ou no realizvel), o realizvel no futuro (ou vivel), uma notcia

    no confirmada, uma surpresa, um arrependimento, uma eventualidade (ou possibilidade), o

    que significa dizer, acima de tudo, que o condicional expressa dvida ao invs de certeza

    (papel do indicativo); isto se d de modo semelhante ao subjuntivo, do qual um exemplo :

    Talvez eu possa preferir. Como se nota, retornando frmula, h uma enorme preocupao

    em desvincul-la de qualquer vestgio de vontade, e o recurso ao condicional essencial para

    que esta condio estranha seja mantida. Acima de tudo, se com a sua frmula Bartleby

    utiliza o condicional para renunci-lo, justamente por utiliz-lo sem um referencial definido.

    ***

    3 Pginas 14, 18 e 19 da edio americana, MELVILLE, H. 1853b; pginas 10, 13 e 14 da brasileira,

    MELVILLE, H. 1853a.

  • 18

    Em 1989, Gilles Deleuze escreveu um posfcio para a traduo francesa do Bartleby de

    Melville4, aos cuidados da editora Flammarion. Este posfcio, intitulado Bartleby ou a

    frmula, foi publicado posteriormente tambm no seu volume de escritos Crtica e clnica5.

    No mesmo ano, 1993, foi publicada uma traduo para o italiano do texto, no Bartleby: a

    frmula da criao6, pela Quodlibet, volume em que tambm Agamben publicou a sua

    investigao sobre a personagem, Bartleby ou da contingncia.

    Cronologicamente, at onde pude notar, o posfcio o primeiro texto em que Deleuze utilizou

    a personagem, sendo que ele retorna ao escrivo em outra oportunidade, desta vez com

    Guattari, poucos anos depois, em O que a filosofia? (1991). No caso de Agamben, os

    primeiros usos datam de um pouco antes, 1986 e 1988, nos artigos Quatro glosas a Kafka

    (1986) e Bartleby no escreve mais (1988)7. Portanto, a leitura de Agamben no est

    amarrada de Deleuze, nem o seu uso da personagem totalmente vinculado a ele, embora haja

    a influncia do francs no texto do italiano, como o prprio aponta na obra de 1993. Esta se

    d principalmente quanto a tratar a frase de Bartleby por frmula e quanto sua quase

    agramaticalidade.

    Em Deleuze, por exemplo, a seguinte passagem sobre a questo:

    [...] ela corta a linguagem de qualquer referncia, em conformidade

    com a vocao absoluta de Bartleby, ser um homem sem referncias,

    aquele que surge e desaparece, sem referncia a si mesmo nem a outra

    coisa. Por isso, apesar de seu aspecto correto, a frmula funciona

    como uma autntica agramaticalidade (DELEUZE, 1993, p.86).

    E, como Agamben utiliza a passagem:

    Gilles Deleuze analisou o carter particular da frmula, aproximando-

    a quelas expresses que os linguistas definem como agramaticais,

    como he danced his did em Cummings ou jen ai un de pas assez, atribuindo a esta secreta agramaticalidade o seu poder devastador: a frmula desune as palavras e as coisas, as palavras e as aes, mas

    tambm os atos lingusticos e as palavras: ela corta a linguagem

    de qualquer referncia, segundo a vocao absoluta de Bartleby,

    ser um homem sem referncia, o que aparece e desaparece, sem

    4 MELVILLE, H. Bartleby. Traduo de Michle Causse. Paris: Flammarion, 1989.

    5 DELEUZE, G. Crtica e clnica. Traduo de Peter Pl Pelbart. So Paulo: Editora 34, 1997.

    6 AGAMBEN, G. DELEUZE, G. Bartleby: La formula della creazione. Traduo de Stefano Verdicchio

    Macerata: Quodlibet, 1993. 7 Os dois artigos de Agamben sero objeto dos subcaptulos 3.1 e 3.2 desta dissertao, respectivamente.

  • 19

    referncia a si ou a outro. Jaworski, por seu lado, observou que a frmula no nem afirmativa nem negativa, que Bartleby no aceita nem rejeita, avana e retira-se no seu prprio avanar; ou seja, como sugere Deleuze, que ela abre uma zona de indiscernibilidade entre o

    sim e o no, o prefervel e o no preferido. Mas tambm, na

    perspectiva que nos interessa, entre a potncia de ser (ou de fazer)

    e a potncia de no ser (ou de no fazer) (AGAMBEN, 1993b, p.

    27; destaques prprios).

    Os dois filsofos do diferentes nfases ao lidarem com a personagem. Enquanto o foco de

    Agamben na potncia sobre a qual a postura da personagem lana luz (o que trabalharei na

    sequncia), Deleuze, foca no rompimento da comunidade com a relao patriarcal que o

    escrivo de Melville representaria, focando, portanto, na relao de Bartleby com a

    humanidade. Na leitura do filsofo francs, a personagem reconciliaria o inumano com o

    humano, fazendo cair a natureza do pai caridoso, rompendo com o pacto de tal relao ao

    firmar uma aliana [que] substitui a filiao, e o pacto de sangue, [que substitui] a

    consanguinidade (DELEUZE, 1993, p. 97), ao substituir a filiao pela confiana.

    Pode-se supor que a contratao de Bartleby foi uma espcie pacto,

    como se o advogado, depois de sua promoo, tivesse decidido

    converter esse personagem, sem referncias objetivas, num homem de

    confiana que lhe deveria tudo. [...] O pacto consiste no seguinte:

    Bartleby copiar, prximo de seu chefe, a quem ouvir, mas no ser

    visto, tal como um pssaro noturno que no suporta ser olhado. Ento,

    no h dvida, no momento em que o advogado pretende [...] tirar

    Bartleby de seu biombo para cotejar as cpias com os outros, quebra o

    pacto (ibidem, p. 88).

    Quando o advogado contrata o escrivo, o faz sem nenhuma referncia, aps uma curta

    conversa, e o pacto se d sobre o que firmado diretamente entre os dois, nada que o

    transcenda. De modo que, aps o rompimento do pacto, a postura de Bartleby no com

    relao lei paternal, mas confiana firmada, ento j estilhaada. E a frmula um

    indicativo nesse sentido, j que abole a referncia e aniquila qualquer particularidade. A zona

    de indiscernibilidade entre o prefervel e o no preferido rompe com a lgica do

    pertencimento e com uma lei que remete ao pai, tratando-se de uma zona onde no h

    particularidade ou propriedade, na qual vigora a fraternidade ao invs da paternidade. Do

    homem com referncias, filho de um pai, para um homem sem referncias, sem pai, sem

    referncia a si mesmo ou a qualquer outra coisa: nisso que Bartleby insiste com sua a

    frmula, nisso que ele demora.

  • 20

    Bartleby o homem sem referncias, sem posses, sem propriedades,

    sem qualidades, sem particularidades: liso demais para que nele se

    possa pendurar uma particularidade qualquer. Sem passado nem

    futuro, instantneo. I PREFER NOT TO a frmula qumica ou

    alqumica de Bartleby, mas pode-se ler ao avesso, I AM NOT

    PARTICULAR, no sou particular, como o complemento

    indispensvel (ibidem, p. 87; caixa alta no original).

    ***

    Agamben, para investigar a questo da potncia sobre a qual focaliza, situa Bartleby em duas

    constelaes8, uma literria, na qual esto presentes personagens e escritores: Akki

    Akkievitch (personagem de Nicolai Ggol, em O capote), Bouvard e Pcuchet (personagens

    de um romance de mesmo nome de Flaubert), Simon Tanner (do romance Os irmos Tanner,

    de Robert Walser), Prncipe Mchkin (do romance O idiota, de Dostoivski) e os tribunais

    kafkianos (dos romances de Kafka, com nfase em O processo); todos estes com condies

    anlogas de Bartleby; e uma segunda constelao, chamada de filosfica, a qual envolve

    principalmente a questo da potncia e da potencia de no, na qual figuram diversos filsofos,

    entre eles Aristteles (em praticamente todo o texto), Avicena, Alberto Magno, Averris,

    Deleuze, Leibniz, Sexto Emprico, Duns Escoto, Nietzsche e Benjamin.

    Agamben busca a fonte da imagem do escrivo em Aristteles, na Metafsica, no De Anima e

    no Organon. Neste h uma comparao entre o nos (pensamento ou mente) com o tinteiro, e

    da tinta com o prprio pensamento que escreve; mas aqui ainda no h a figura do escriba

    com o contorno que ela tem hoje. no De Anima, ao comparar o nos (pensamento em

    potncia) a uma tabuinha de escrever sobre a qual nada est escrito, que chegamos figura

    clssica do escrivo e do pensamento como um ato. Com tal imagem Aristteles tenta ilustrar

    com traos mais definidos a questo da pura potncia do pensamento e de sua passagem ao

    ato, dizendo que o nos no tem outra natureza que a de ser em potncia e, antes de pensar,

    no em ato absolutamente nada (De Anima, 429a). Conclui-se que o nos , ento, no

    uma coisa, mas um ser de pura potncia e a imagem da tabuinha de escrever, sobre a qual

    nada est escrito, serve precisamente para representar o modo de ser de uma pura potncia

    (AGAMBEN, 1993b, p. 13). Bartleby pode levar ento at a relao potncia e ato em

    Aristteles.

    8 Sobre o conceito de constelao, ver subcaptulo 1.2.

  • 21

    No livro Teta da Metafsica se encontram as maiores implicaes da questo potncia e ato no

    filsofo grego. Agamben parte aqui da crtica que Aristteles faz aos Megricos, que

    defendem que a potncia sempre passa ao ato; isto resulta, como critica Aristteles, numa

    indistino entre ato e potncia. Este j defende, contra aqueles, que toda potncia de ser ou

    fazer tambm potncia de no ser ou fazer; com isso afirma que potncia no se confunde

    com ato, no h necessidade ou garantia da primeira converter-se na segunda. Como exemplo,

    o arquiteto que mantm em potncia construir mesmo quando no o faz, ou quando um

    msico que toca determinado instrumento no o toca; tambm, no caso do escritor, quando

    mantm em potncia sua capacidade de escrever. Para Agamben a potncia de no o

    segredo cardeal da doutrina aristotlica sobre a potncia.

    investigao, Agamben une o problema do ato criador, recorrendo, para tanto, aos

    intrpretes religiosos da filosofia aristotlica. Estes aproximam a criao do ato de escrever;

    Avicena, por exemplo, defende a criao do mundo como um ato de inteligncia divina que

    pensa a si mesma; paralelamente, o filsofo rabe coloca cada ato de criao como um ato da

    inteligncia, e cada ato da inteligncia como um ato de criao; com a imagem da escrita

    que ele ilustra vrias espcies e graus do intelecto possvel; so trs estas espcies de

    potncia: 1) a potncia material, que se assemelha criana que poder um dia aprender a

    escrever, mas que ainda no sabe faz-lo; 2) potncia fcil/possvel, que como aquela da

    criana que comea a familiarizar-se com a escrita e traa as primeiras letras; 3) potncia

    completa/perfeita, que a do escriba senhor da arte de escrever no momento em que este no

    escreve. Esta terceira espcie de potncia pode ser transposta para a personagem de Melville,

    j que o escriba que no escreve (do qual Bartleby a ltima, extremada figura) a potncia

    perfeita, que s um nada separa agora do ato da criao (ibidem, p. 16).

    A experincia da potncia enquanto tal s possvel se a potncia for sempre tambm

    potncia de no (fazer ou pensar alguma coisa), se a tabuinha de escrever puder no ser

    escrita (ibidem, p. 19). Caso contrrio, a potncia seria sempre potncia a existir somente no

    ato que a realiza, tal como na tese dos Megricos. O prximo passo a ser dado aqui, ento,

    esboar o sentido da experincia da potncia. Para tanto, o filsofo italiano recorre

    novamente a Aristteles:

    A aporia , aqui, que o pensamento no pode nem pensar nada nem

    pensar alguma coisa, nem ficar em potncia nem passar ao ato, nem

  • 22

    escrever nem no escrever. E para fugir a esta aporia que Aristteles

    enuncia a sua clebre tese sobre o pensamento que pensa a si mesmo,

    que uma espcie de ponto mdio entre pensar nada e pensar alguma

    coisa, entre potncia e ato. O pensamento que pensa a si mesmo no

    pensa um objeto nem pensa nada: pensa uma pura potncia (de

    pensar e de no pensar) [...] (ibidem, pp. 20-1; destaque prprio).

    Seguindo em frente, posso j vincular essa potncia de pensamento potncia de criao: de

    maneira anloga, na pura potncia de criao, ponto mdio entre criar e no criar, a dobra, que

    no caso anterior do pensamento sobre si, aqui seria do criador sobre si mesmo, numa

    absoluta potncia para criar.

    O ltimo item da primeira parte do texto de Agamben (item I.6, pp. 22-4) trata da relao

    entre potncia e criao, pensada a partir de Deus e da criao do homem. Como aponta o

    italiano, h uma recusa entre os telogos de reconhecer uma matria anterior divindade, o

    que faz com que concluam que Deus cria do nada (ex nihilo); a questo de fundo seria, na

    verdade, a da existncia em Deus de uma possibilidade ou potncia: Dado que, segundo

    Aristteles, cada potncia tambm potncia de no, os telogos, ainda que afirmando a

    onipotncia divina, eram, ao mesmo tempo, obrigados a negar a Deus qualquer potncia de

    ser e de querer (ibidem, p. 23). Isto porque se reconhecessem em Deus uma potncia de ser,

    teriam que reconhecer a de no ser; se pudesse querer o que no quis, ele poderia querer o

    mal. A soluo que encontram vincul-lo sua vontade, o que resulta nele no poder fazer

    ou querer algo diferente do que quis; a sua vontade, como o seu ser, , por assim dizer,

    absolutamente privada de potncia (ibidem, pp. 23-4). Esta breve abordagem da relao

    potncia e criao concluda com referncia a uma formulao considerada hertica no

    sculo XIII; opto por citar o comentrio de Agamben integralmente:

    O ato de criao a descida de Deus num abismo que no seno o

    da sua prpria potncia e impotncia, do seu poder e do seu poder no.

    Melhor, na radical formulao de David de Dinant, cuja doutrina foi

    considerada hertica em 1210, Deus, o pensamento e a matria so

    uma s coisa e este abismo indiferenciado o nada de onde o mundo

    procede e sobre o qual eternamente se apoia. Abismo no aqui uma metfora: como Bhme afirmar sem meios termos, ele , em

    Deus, a prpria vida das trevas, a raiz divina do inferno, no qual o

    nada eternamente se gera. Apenas no ponto em que nos conseguimos

    calar neste Trtaro e fazer a experincia de nossa prpria

    impotncia nos tornamos capazes de criar, nos tornamos poetas. E o

    mais difcil, nesta experincia, no so o nada e as suas trevas, nas

    quais tambm muitos ficam para sempre aprisionados o mais difcil

  • 23

    sermos capazes de anular este nada para fazer, do nada, alguma

    coisa (ibidem, p. 24; destaques prprios).

    Como saldo temporrio, apenas da anlise do primeiro tero do texto do filsofo italiano, listo

    quatro tpicos: 1) a imagem do escriba; 2) a relao potncia e ato; 3) a potncia de no;

    4) a relao entre potncia e criao. Tendo-os em mente, avano para a parte dois daquele.

    ***

    Aps ter apresentado boa parte da constelao filosfica a que pertence Bartleby na primeira

    parte de seu texto, Agamben se debrua com mais rigor sobre a personagem. Para ele, esta, ao

    cessar de escrever, torna-se potncia pura, absoluta. Bartleby, ao demorar no nada de onde

    procede toda a criao, torna-se a prpria tabuinha de escrever, e d a entender no ter

    inteno alguma de sair de tal abismo de possibilidade. Se digo d a entender, porque a

    condio de potncia, do modo como a temos neste escrivo, no est reduzida aos termos da

    vontade e da necessidade, como faz a tica clssica ao reduzir o poder ao querer e ao dever, e

    como faz o advogado no conto ao recorrer a obras como Sobre a vontade e Sobre a

    necessidade (MELVILLE, 1853a, p. 27); ela diz respeito ao poder mesmo, possibilidade

    independente de querer ou no querer, independente de vontade. E a nica maneira que

    Bartleby se d a entender, alm dele mesmo no mundo disponvel para quem com ele topava,

    atravs da lngua, das palavras de sua frmula: I would prefer not to. E ao pronunci-la

    no se posiciona, no afirma e nem nega o que quer que seja, antes, faz e no faz para

    permanecer em absoluta potncia.

    Quando o homem de leis tenta entender a condio de seu escrivo, recorre a ttulos como

    Sobre a vontade e Sobre a necessidade; tais leituras no o auxiliam a compreender o que se

    passa com Bartleby: a potncia no a vontade e a impotncia no a necessidade. Para

    Agamben, uma grande iluso da moral crer que a vontade tenha poder sobre a potncia,

    que a passagem ao ato seja o resultado de uma deciso que pe fim ambiguidade da potncia

    (que sempre potncia de fazer e de no fazer) (AGAMBEN, 1993b, p. 26). Tal iluso a

    mesma dos telogos medievais; na distino que ele fazem entre potentia absoluta (segundo a

    qual Deus pode fazer qualquer coisa) e potentia ordinata (segundo a qual Deus pode fazer

    somente aquilo que acorda com a sua vontade), a vontade seria o princpio que ordenaria o

    caos da potncia, de modo que esta, sem vontade, jamais poderia passar ao ato. Contrapondo

  • 24

    Deus e o escrivo, temos que se o primeiro, devido potentia ordinata, s pode aquilo que

    quer, o segundo pode somente sem querer, pode apenas de potentia absoluta. esta a

    questo que Bartleby coloca: contesta a supremacia da vontade sobre a potncia.

    A potncia do escrivo excede por todos os lados a vontade, ele conseguiu poder sem querer.

    No que ele no queira copiar ou que queira no deixar o escritrio somente preferiria

    no faz-lo (ibidem, p. 26). De volta frmula, Preferiria no, e sua variao, Prefiro

    no, mais uma vez vem tona a inteno da personagem de eliminar com ela qualquer

    vestgio de querer. A frmula, to agudamente repetida, destri qualquer possibilidade de

    construir uma relao entre potncia e querer, entre potentia absoluta e potentia ordinata.

    Essa a frmula da potncia (ibidem, p. 26; destaque prprio).

    Deleuze, aponta Agamben, aproxima a frmula a expresses consideradas agramaticais, j

    que ela desune palavras e coisas, palavras e aes, e tambm atos lingusticos e palavras; ela

    retira a referncia da linguagem (como mostrei antes, a negao presente na frmula

    incompleta, no nega nada) e a isso se deve o seu poder devastador. A frmula abre uma

    zona de indiscernibilidade entre o sim e o no, o preferido e o no preferido (ibidem, p. 27;

    como comentrio ao texto de Deleuze sobre Bartleby); e tambm abre uma zona de

    indiscernibilidade entre a potncia de e a potncia de no; esta ltima zona a que mais

    interessa ao filsofo italiano.

    Visando avanar sobre a zona de indiscernibilidade, a investigao que segue sobre a

    origem da frmula, de onde ela provm. Existe uma s frmula em toda a histria da

    cultura ocidental que se mantm em equilbrio com semelhante deciso entre o afirmar e o

    negar [...]. Trata-se do ou mllon, o no mais, o termo tcnico com que os cticos exprimiam

    o seu pthos mais prprio: a epoch, o estar em suspenso (ibidem, p. 27-8). Tal expresso

    no usada nem afirmativamente e nem negativamente, como no exemplo: Cila existe no

    mais (ou mllon) do que a Quimera; at mesmo a prpria expresso, no mais, contestada

    pelos cticos, de modo que ela se aplica a si prpria: o no mais no mais do que no .

    Deste modo, a frmula ctica utilizada com indiferena; empregada em modo

    indiferente e em sentido abusivo (ibidem, p. 28; com referncia a Sexto Emprico).

    Justamente assim, com indiferena, que Bartleby usa sua obstinada frmula, suspenso entre

    afirmao e negao.

  • 25

    E h outra maneira de ler a personagem recorrendo aos cticos, a partir de uma analogia com

    a figura do mensageiro. Este simplesmente leva a mensagem sem acrescentar nada, declara

    performaticamente um evento de modo que, alm de opor o silncio ao discurso, desloca a

    linguagem do registro da proposio, que predica algo de alguma coisa, para a do anncio,

    que no predica nada de nada (ibidem, p. 29). A questo a ser feita agora sobre o que a

    mensagem de Bartleby anuncia, j que ela se mantm em equilbrio entre o sim e o no, j

    que ela predica nada de nada e tambm se subtrai a si mesma. De acordo com Agamben

    (ainda comentado Sexto Emprico), os cticos viam no estar suspenso no apenas uma

    simples indiferena, mas a experincia da possibilidade ou da potncia. A resposta ltima

    questo, o que a frmula do escrivo anuncia, a prpria experincia de possibilidade; a

    mensagem traz o abismo entre ser e no ser, entre sensvel e inteligvel, entre palavra e coisa,

    no como simples nada, mas como um abismo de possibilidade.

    Da resposta questo anterior, emerge uma nova: de que modo aquilo que--no-mais-que-

    no- conserva ainda em si alguma coisa como uma potncia? (ibidem, p. 30). A soluo se

    inicia com recurso Leibniz; este desenvolveu um princpio de razo suficiente referente a

    uma potncia originria do ser; segue o princpio: h uma razo para que algo exista mais

    que no exista. J a frmula de Bartleby, por este no se deixar reconduzir ao polo do ser

    nem ao polo do nada, pe em questo o princpio leibniziano e o subverte: o no haver uma

    razo para que algo exista mais que no exista a existncia de algo no mais que nada;

    entre ser e no ser, a personagem ope um terceiro termo, no mais (ou mais, que agora tem o

    mesmo valor do no mais), que no est nem alm e nem aqum do ser e do no ser; a essa

    lio que Bartleby se atm; como se o escrivo, com sua frmula, estivesse, entre o ser ou

    no ser, no ou mesmo, e nele demorasse; este ou que conservaria a potncia, desvinculada

    da razo. Ser capaz, numa pura potncia, de suportar o no mais, para l do ser e do nada,

    demorar-se at o fim na impotente possibilidade que excede ambos esta a prova de

    Bartleby (ibidem, p. 32; destaque prprio).

    Assim como fiz ao fim do primeiro tero do texto de Agamben, restringirei o saldo da

    segunda parte a quatro pontos principais: 1) a potncia independente de vontade; 2) o modo

    condicional do verbo preferir; 3) a frmula retirando a referncia da linguagem; 4) a

    origem ctica da frmula.

  • 26

    ***

    A experincia de Bartleby uma experincia que se deliga de ser e de no ser, desligamento

    este que foi o enfoque dos ltimos pargrafos. A esta altura (incio da terceira e uma ltima

    parte do texto do italiano), entra em jogo o sentido, ou o no sentido, da experincia mesma;

    sobre ela Agamben se debrua... e se cala. Para abord-la, o filsofo invoca elementos da

    constelao literria e filosfica a que pertence Bartleby. Referindo-se a Robert Walser,

    apresenta parte da obra deste como um experimento sem verdade, uma experincia

    caracterizada pelo advir menos de qualquer relao com a verdade (ibidem, p. 33). Tal

    espcie de experimento, de maneira diferente do cientfico, que verifica a verdade ou

    falsidade de alguma coisa, pe em questo o ser para l do seu ser verdadeiro ou falso, neles a

    verdade posta em causa. Investigando mais o termo experimento, o filsofo aborda outros

    elementos da constelao, citando-os logo aps Walser; opto pelas palavras de Agamben na

    ntegra, devido quantidade de referncias e objetividade da passagem.

    Quando Avicena, propondo a sua experincia do homem voador, desmembra e desorganiza na imaginao, o corpo de um homem,

    pedao a pedao, para provar que, assim despedaado suspenso no ar,

    ele pode dizer ainda: eu sou, que o existente puro a experincia de um corpo j sem partes nem rgos; quando Cavalcanti descreve a

    experincia potica como transformao do corpo vivo num autmato

    mecnico [...] ou quando Condillac abre o olfato sua esttua de

    mrmore e la no mais que cheiro de rosa; quando Dante desobjetiva o eu do poeta numa terceira pessoa [...], num homnimo

    genrico que faz somente de escriba ao ditado de amor, ou quando

    Rimbaud diz: eu sou um outro; quando Kleist evoca o corpo perfeito da marionete como paradigma do absoluto e Heidegger

    substitui o eu psicossomtico por um ser vazio e inessencial, que

    somente os seus modos de ser e tem possibilidade s no impossvel,

    ocorre de cada vez tomar seriamente os experimentos sem verdade nos quais estes nos convidam a calar (ibidem, pp. 33-4; destaque prprio).

    Um experimento sem verdade e que convida a calar, esta a espcie do experimento de

    Bartleby; s assim o Preferiria no adquire todo o seu sentido/no sentido. uma

    experincia inverificvel; nela prevalece o silncio, a ausncia de voz. Se ningum sequer

    sonha verificar a frmula do escrivo, porque o experimento sem verdade no diz respeito

    ao ser em ato o que quer que seja, mas exclusivamente ao seu ser em potncia (ibidem, p.

    35). Por tratar simultaneamente de ser e de no ser, tal experimento referente a uma

    contingncia absoluta, e esta a aventura em que o escrivo se arrisca.

  • 27

    A contingncia geralmente oposta necessidade, como coloca Leibniz no seu Elementos de

    Direito Natural. Associada a ela, vem a questo do ser carregar sempre a potncia de e a

    potncia de no, ou deix-las para traz ao passar ao ato; se a potncia fosse carregada, o

    passado poderia ser revogado e nenhum possvel poderia passar ao ato ou nele permanecer.

    Dois princpios so tradicionalmente invocados para esse problema, visando manter a

    potncia distante do ato. Um deles o princpio de irrevocabilidade do passado, ou de

    irrealizabilidade da potncia no passado. O outro, vinculado ao primeiro, o princpio da

    necessidade condicionada, limita a fora da contingncia sobre o ser em ato, para o qual o

    que e o que no no ; versa sobre o mesmo que o princpio de contradio: impossvel

    que algo seja e ao mesmo tempo no seja. Recorrendo definio de contingncia dada por

    Duns Escoto, Agamben rebate esses princpios: como contingente entendo, no alguma

    coisa que no necessria nem eterna, mas alguma coisa cujo oposto poderia ter

    acontecido no exato momento em que ela advm (ibidem, pp. 36-7; destaque prprio), ou

    seja, num mesmo instante em que posso agir de um modo e posso agir de outro; estou agindo

    de um modo, mas poderia estar agindo, potencialmente, de uma maneira diferente.

    Outra objeo feita contingncia que o necessrio verificar-se ou no verificar-se de um

    evento futuro retroage sobre o momento da sua previso, cancelando a sua contingncia

    (ibidem, p. 37-8); o problema dos futuros contingentes, que pode ser ilustrado do seguinte

    modo: se digo que amanh haver ou no haver uma batalha, e no dia seguinte ela se

    verifica, ento j era verdade no dia anterior que a batalha ocorreria; o mesmo no caso dela

    no se dar. Deste modo, insere-se necessidade e impossibilidade na contingncia. O

    argumento contra esta objeo que a necessidade do enunciado est no seu conjunto, ou

    seja, o verificar-e-no-se-verificar que necessrio, no um dos membros separados;

    assim, para ambos os membros, o que se realiza e o que no se realiza, restituda a

    contingncia, a possibilidade de ser e de no ser. O contingente passa ao ato, realiza-se,

    apenas quando cede toda a sua potncia de no ser, quando nele nada existir de potente

    no ser e ele poder, por isto, no no-poder (ibidem, p. 39). Como entender esta

    nadificao da potncia de no ser (no no-poder) e o que daquilo que podia no ser,

    quando o possvel se realiza, so as questes que restam ser perseguidas, objetivo da reta final

    do texto de Agamben.

  • 28

    Uma das maneiras de ilustrar o modo como Bartleby prepara seu experimento a partir da

    imagem do Palcio dos Destinos, uma pirmide ao modo dos egpcios. No conto, h

    referncia pirmide na descrio do ptio da priso em que Bartleby perece:

    O ptio estava num silncio absoluto. No era acessvel aos

    prisioneiros comuns. Os muros ao redor, de assombrosa espessura,

    isolavam os rudos externos. O estilo grandioso da alvenaria pesava

    sobre mim com a sua tristeza. Mas uma relva aprisionada brotava

    macia sob meus ps. Era como no centro das pirmides eternas no

    Egito, onde por estranha magia, brotavam nas fendas as sementes

    deixadas pelos passarinhos.

    Encolhido de um modo estranho na base do muro, com os joelhos

    levantados e deitado de lado com a cabea encostada nas pedras frias,

    estava Bartleby, abandonado. Mas no se mexia (MELVILLE, 1853a,

    p. 36).

    A esta ilustrao Agamben relaciona a encontrada na Teodiceia de Leibniz, na qual este

    justifica o direito daquilo que aconteceu contra aquilo que podia ser e no aconteceu. Na

    pirmide esto contidos os possveis desde sempre, sendo o topo dela o destino possvel que

    foi escolhido por Deus, no havendo outro alternativa ao mortal, j que a escolha daquele

    seria a melhor. Cito a analogia tal como a relata Agamben:

    Prolongando a histria narrada por Lorenzo Valla, no seu dilogo De

    Libero Arbitrio, ele imagina Sexto Tarqunio insatisfeito com a resposta do orculo de Apolo em Delfos, que lhe anunciou infortnio

    se quisesse ser rei de Roma a dirigir-se ao templo de Jpiter em Dondona e acusar o deus de o ter condenado a ser malvado, pedindo-

    lhe para mudar a sua sorte ou, pelo menos, confessar o prprio erro.

    recusa de Jpiter, que o convida ainda uma vez a renunciar a Roma,

    Tarqunio sai do templo e abandona-se ao seu destino. Porm, o

    sacerdote de Dodona, Teodoro, que assistiu cena, quer saber mais.

    Tendo-se dirigido, por conselho de Jpiter, ao templo de Palas Atenas,

    cai a num sono profundo e, em sonho, v-se transportado a um pas

    desconhecido. Aqui a deusa mostra-lhe o Palcio dos Destinos, uma

    imensa pirmide de cume resplandecente cuja base se precipita at ao

    infinito. Cada uma da inumerveis salas que compem o palcio

    representa um destino possvel de Sexto, ao qual corresponde um

    mundo possvel, mas que no se realizou. Numa das salas, Teodoro v

    Sexto sair do templo de Dondona persuadido pelo deus: dirige-se a

    Corinto, compra um pequeno jardim, descobre, cultivando-o, um

    tesouro, e vive feliz at velhice, amado e considerado por todos.

    Numa outra, Sexto est na trcia, onde casa a filha do rei e herda-lhe o

    trono, soberano feliz de um povo que o venera. Numa outra, vive uma

    existncia medocre mas sem dor e assim, de sala em sala, de destino

    possvel em destino possvel (AGAMBEN, 1993b, p. 40).

  • 29

    E nesta altura Agamben recorre diretamente a Leibniz:

    As salas formavam uma pirmide e tornavam-se mais belas medida

    que, ascendendo at ao topo, representavam mundos melhores.

    Atingiram por fim a mais alta, que culminava a pirmide e era a mais

    esplendida; porque a pirmide tinha um incio, mas no se lhe via o

    fim; tinha um vrtice, mas nenhuma base, porque se alargava ao

    infinito. Isto acontece, explicou a deusa, porque entre uma infinidade

    de mundos possveis, existe um que o melhor de todos, de outro

    modo Deus no teria decidido cri-lo; mas no existe nenhum que no

    tenha sob si um menos perfeito; por isso a pirmide desce sem fim.

    Teodoro penetrou na sala suprema e ficou extasiado... Estamos no

    verdadeiro mundo atual, disse-lhe a deusa, e vs estais na prpria

    origem da alegria. Eis o que Jpiter vos prepara, se continuardes a

    servi-lo fielmente. E eis Sexto, tal qual e ser. Sai do templo cheio

    de clera, desprezando o conselho dos deuses. Vede que corre para

    Roma, semeando desordem por todo o lado e violando a mulher do

    seu amigo. Ei-lo esmagado junto ao pai, derrotado, infeliz. Se Jpiter

    tivesse escolhido aqui um Sexto feliz em Corinto ou rei da Trcia, j

    no teria sido este mundo. E, todavia, ele no podia seno escolher

    este mundo, que supera em perfeio todos os outros, e ocupa o pico

    da pirmide (Leibniz apud Agamben. In. AGAMBEN, 1993b, pp. 40-

    1).

    Se a pirmide est de acordo com a irrevocabilidade do passado, Bartleby, em seu

    experimento, coloca em cheque a necessidade do passado, retroagindo a ele para restitu-lo de

    sua potncia de no ser; na arquitetura egpcia do Palcio dos Destinos, o escrivo no se

    contenta com o que foi ou com o que quis, mira a possibilidade de acontecer e de no

    acontecer, de ser e de no ser, resgata a contingncia absoluta mesma; e com isso ele coloca

    em cheque o princpio da irrevocabilidade do passado.

    Via Benjamin possvel dar um sentido para o modo que Bartleby pe em questo o passado.

    Aquele expressou como tarefa da redeno, a partir da memria, uma experincia teolgica

    que a recordao faz com o passado (ibidem, p. 42; destaque prprio). Tal recordao pode

    fazer do inconcluso um concludo e do concludo um inconcluso, como por exemplo

    felicidade e dor, respectivamente (esta experincia o que o filsofo chama de teolgica); de

    modo que a recordao no nem o acontecido, nem o no acontecido, mas o potenciamento

    destes, os seus re-tornarem-se possveis. neste sentido que Bartleby pe em questo o

    passado, volta a cham-lo [...] (ibidem, p. 43). A frmula, Preferiria no, restitui a

    possibilidade entre o poder ser e o no poder ser, ela recorda o que no aconteceu. E mais

    uma vez, lembro, a importncia de tratar a frmula no seu condicional original.

  • 30

    A restituio ao passado pode se dar de (pelo menos) dois modos, o de Benjamin, visto acima,

    e o de Nietzsche. O escrivo faz uso das duas, num primeiro momento maneira do

    Zaratustra nietzschiano, tendo em conta o eterno retorno. Este seria uma experincia do

    pensamento (ou um artifcio), contra o esprito da vingana, visando substituir o assim foi

    por um assim quis, um abrao ao passado e a tudo o que aconteceu; com tal experincia

    Zaratustra ensina a vontade de querer para trs; no entanto, critica Agamben, apenas

    preocupado pela remoo do esprito de vingana, Nietzsche esquece completamente o

    lamento daquilo que no aconteceu ou que poderia ser de outro modo (ibidem, p. 43); o

    eterno retorno seria uma variante ateia do Palcio dos Destinos da Teodiceia leibniziana, que

    em cada uma das salas da pirmide v repetir-se sempre e somente o que aconteceu e, s a

    este preo, apaga a diferena entre o mundo atual e o mundo possvel, restituindo-lhe

    potncia (ibidem, p. 44). Bartleby adota a soluo nietzschiana at o momento em que decide

    parar de copiar, quando ocorre a virada da personagem, o ponto alto do conto. Da pra frente,

    a soluo benjaminiana que est em jogo; no mais a infinita repetio do acontecido, o que

    abandona totalmente a potncia de no, mas a eterna recordao do que no aconteceu, re-

    potencializando o passado e todo o ocorrido.

    Esboar melhor a interrupo da escrita realizada por Bartleby ltima tarefa deste

    comentrio, o que ser feito explorando o nexo entre a sua frmula e as cartas mortas; este

    tipo de carta, nunca entregue, representa eventos que poderiam ter ocorrido, mas que no se

    realizaram; antes, a possibilidade contrria que se realizou. Mas tambm na carta entregue

    h relao com a frmula, j que o caso de encerrar o no realizar-se de algo; mensageiros

    de vida, estas cartas correm para a morte (ibidem, p. 46; ver tambm MELVILLE, 1853a, p.

    37). Esta expresso, utilizada por Melville no conto, uma citao aproximada da carta aos

    Romanos 7, 10, que neste texto de Paulo trata do mandamento que foi enviado para um fim,

    mandamento que o da Lei, do qual o cristo foi libertado. A relao entre o escrivo e a

    escrita ganha novo sentido sob esta perspectiva; Bartleby um law-copist, um escriba no

    sentido evanglico, e a sua renncia cpia tambm uma renncia Lei, um liberar-se da

    antiguidade da letra (ibidem, p. 46-7).

    Ao pensar a relao de Bartleby com a lei, importante trazer tona mais uma vez o seu local

    de trabalho, Wall Street, o centro financeiro e jurdico no corao de Nova Iorque, tendo se

  • 31

    tornado o lugar onde os conceitos tradicionalistas esto enraizados. O escrivo, enquanto law-

    copist, um homem da lei; ele recebe e redige atos, contratos, escrituras etc, para dar-lhes

    carter de autenticidade. Quando a personagem para de copiar, ela para de cumprir a lei. Por

    esta via, o gesto de Bartleby representa uma mudana na maneira de lidar com a lei.

    Se Bartleby apresenta uma mudana para a lei, contudo, a natureza

    desta mudana no fcil de categorizar. Bartleby no copia [mais] a

    lei, mas tampouco se ope a ela em nome de outra lei, uma lei natural,

    ou uma lei mais justa que poderia ser instituda no lugar daquela. Ele

    tambm no um exemplar de desobedincia civil, nem um

    revolucionrio. Ele no resiste ativamente: ele simplesmente prefere

    no [prefers not to] (WHYTE, 2009, p. 310; traduo prpria).

    Assim, na leitura de Agamben, Bartleby leva a pensar sobre a potencialidade da lei; ao invs

    de propor uma nova, foca na sua representao, na ideia de lei. Neste sentido, a personagem

    uma espcie de Messias, que abole o cumprimento da lei; tal suspenso uma demora no

    tempo messinico, o tempo-do-agora (Jetztzeit), que trata, na tica do italiano, de evidenciar a

    potncia absoluta. Se a personagem um novo Messias, como outros estudiosos do conto

    tambm apontam (entre eles Deleuze), Bartleby no vem redimir o que aconteceu, como

    Jesus, mas para redimir o que no aconteceu.

    A interrupo da escrita marca a passagem criao segunda, na qual

    Deus reclama para si a sua potncia de no ser e cria a partir do ponto

    de indiferena de potncia e impotncia. A criao que agora se

    realiza no uma recriao nem uma repetio eterna, mas antes, uma

    descriao, na qual o que foi e o que no aconteceu so restitudos

    sua unidade originria na mente de Deus e o o que podia no ser e

    aconteceu esfuma-se no que podia ser e no aconteceu (ibidem, p. 47;

    destaque prprio).

    A frmula de Bartleby, frmula de descriao, salva a criatura por t-la como no

    redimvel, j que a todo ato realizado, e a seu contrrio no realizado, restitui a contingncia,

    a potncia absoluta.

    Como saldo referente ltima parte do texto de Agamben, indico cinco pontos: 1) o

    sentido/no sentido da frmula; 2) experincia da contingncia; 3) nadificao da

    potncia de no ser (no no-poder); 4) re-potencializao do passado; 5) frmula de

    descriao.

    ***

  • 32

    Antes de fazer as consideraes finais deste primeiro subcaptulo, exporei uma constelao

    composta pelas, a meu ver, principais perguntas feitas por Agamben no decorrer de seu

    escrito sobre Bartleby. Ela serve de guia para a leitura do texto, auxiliando a percorrer o rastro

    da abordagem que o filsofo italiano d ao conto de Melville; em conjunto com a constelao

    de respostas do Bartleby, ela auxilia na aproximao do tom com que o filsofo italiano trata

    a personagem.

    De onde provm esta definio, que nos apresenta a figura

    fundamental da tradio filosfica ocidental nos trajes modestos de

    um escriba e o pensamento como um ato, mesmo se muito particular,

    da escrita? (AGAMBEN, 1993b, p. 11).

    Quem move a mo do escriba para a fazer passar ao ato de escrita?

    Segundo que leis se d a transio do possvel ao real? E se existe algo

    como uma possibilidade ou potncia, que coisa, dentro ou fora dela, a

    dispe existncia? (p. 16).

    Como possvel, de fato, pensar uma potncia de no pensar? O que

    significa, para uma potncia de no pensar, passar ao ato? E se a

    natureza do pensamento de ser em potncia, o que pensar? (p. 19).

    Que coisa significa, de fato, para uma potncia de pensar, pensar-se a

    si mesma? Como se pode pensar em ato uma pura potncia? Como

    pode uma tabuinha de escrever sobre a qual nada est escrito dirigir-se

    a si mesma, impressionar-se? (p. 21).

    Mas se, mantendo-se teimosamente em equilbrio entre a aceitao e a

    recusa, entre a negao e a posio, a frmula que ele repete predica

    nada de nada e subtrai-se, por fim, tambm a si mesma, qual a

    mensagem que ele nos trouxe, que coisa anuncia a frmula? (p. 30).

    Mas de que modo aquilo que--no-mais-que-no- conserva ainda

    em si alguma coisa como uma potncia? (p. 30).

    [...] em que condies alguma coisa poder verificar-se e (isto , ao

    mesmo tempo) no se verificar, ser verdadeiro no mais do que no

    ser? (p. 34).

    Mas como se deve entender esta nadificao da potncia de no ser? E

    o que daquilo que podia no ser, uma vez que o possvel se realizou?

    (p. 39).

    ***

  • 33

    A potncia tambm impotncia, potncia tanto para acontecer quanto para no acontecer;

    esta potncia de no o que Agamben traz tona com recurso a Bartleby. O pensamento,

    enquanto potncia, no nada em ato; da a imagem da tbua de escrever sob a qual nada est

    ainda escrito, ou da folha em branco; tal potncia no apenas de passar ao ato, a tabuinha, a

    folha, pode no ser escrita. A potncia absoluta, de e de no, a partir do pensamento que

    pensa a si mesmo, uma dobra que leva absoluta potncia de criao e experincia da

    prpria impotncia. Analogamente, tem-se o escrivo, que ao cessar de escrever imerge na

    pura potncia. Tal experincia feita com indiferena; Bartleby contesta a supremacia da

    vontade com a sua frmula, de modo semelhante atitude ctica de suspenso, expressada

    pelo no mais; no caso daquele, o condicional que traz consigo um abismo entre o ser e o

    no-ser; contingncia se prende Bartleby, ou se solta, mergulha, para demorar-se at o fim.

    H tambm na personagem de Melville, nessa mudana de foco da necessidade para a

    contingncia, uma restituio desta ao efetivado, ao acontecido; a ausncia de referncia da

    frmula, abismo de silncio, conduz a tal potencialidade.

  • 34

    1.2 O paradigma Bartleby.

    O Bartleby de Agamben tem um como e um por que: Como ele utiliza aquela personagem? e

    Por que ele a utiliza? Antes de seguir por esta via, porm, outra questo soou mais urgente:

    Quem Bartleby? Esta foi desenvolvida com os comentrios do subcaptulo 1.1 (momento em

    que tambm o porqu do escrivo acabou sendo em boa parte trabalhado); tendo nesta parte

    anterior j esboado o quem de Bartleby, fica aberto o caminho para seguir com os objetivos

    especficos desta segunda parte do captulo 1, o como e o porqu, nesta ordem.

    ***

    Como Agamben utiliza Bartleby? Como paradigma. Utilizar uma personagem, ou um

    filsofo, deste modo, significa, antes de tudo, que estes no so tratados (apenas) como

    figuras ou imagens (o que no significa dizer que uma figura ou uma imagem no pode

    contribuir para uma investigao, mas que aquela outra maneira de trabalhar pode contribuir

    com perspectivas que se tornem mais relevantes ao se investigar certo problema; o caso de

    Bartleby para Agamben), mas sim de um modo mais ativo na investigao: ao mesmo tempo

    em que um paradigma auxilia a vislumbrar constelaes, ela ajuda a tra-las e a seguir seus

    rastros. Em outras palavras, o material com que Agamben desenha seus traos o que ele

    chama de paradigma. E ao desenh-los, o italiano, alm de pensar o material que o auxilia em

    determinada questo (Bartleby, um paradigma analisado a partir de outros paradigmas,

    Aristteles e Kafka, por exemplo), tambm pensa com o material que ele utiliza.

    Os fatos e registros histricos que permeiam e so permeados pelo mtodo paradigmtico

    trazem consigo um problema aparente, o da fidelidade histria. Agamben cobrado e

    criticado por isto, ao que ele responde dizendo no ser um historiador, mas um filsofo que

    faz uso da histria ao investigar determinada ideia e a utiliza principalmente sob uma tica

    presente, contempornea. Criticado quanto ao uso que faz do campo de concentrao como

    paradigma, ele tenta esclarecer o conceito:

    [...] Quando voc usa o campo deste modo, voc no reduz ou mesmo

    anula o significado histrico do holocausto? Agamben responde indiretamente clarificando o significado que d ao termo paradigma:

    Quando eu digo paradigma eu me refiro a alguma coisa extremamente especfica uma abordagem metodolgica para

  • 35

    problemas, como faz o Foucault com o pantipo, onde ele toma um

    objeto real e concreto sem trat-lo apenas assim, mas tambm como

    um paradigma para elucidar contextos mais amplos (AGAMBEN

    apud DE LA DURANTAYE, 2009, p. 218; traduo prpria).

    A preocupao de Agamben no tanto ser fiel/fidedigno ao perseguir um rastro na histria,

    nem a sua inteno supervalorizar os eventos que evoca em sua leitura, mas pinar eventos,

    ideias e paradigmas que iluminem uma face do objeto investigado que est ou poderia estar

    obscurecida na mirada histrica.

    O filsofo italiano trabalha com mais detalhes o conceito de paradigma no livro dedicado ao

    seu mtodo de fazer filosofia (ou mtodo de pensamento), intitulado Signatura rerum (2008).

    Nele, aponta que o paradigma pressupe o abandono do particular-geral como modelo de

    inferncia lgica e tem a funo de construir e fazer inteligvel a totalidade de um contexto

    histrico-problemtico mais vasto (AGAMBEN, 2008b, p. 11; traduo prpria), no se

    tratando de elaborar teses e reconstrues de carter meramente histrico, mas de elaborar

    discursos como articulaes histricas de paradigmas. Estes so como figuras que permitem

    construir contextos e conjuntos a partir de um objeto singular que, valendo-se de todos os

    outros da mesma classe, define a inteligibilidade do conjunto do qual forma parte e que, ao

    mesmo tempo, constitui (ibidem, p. 22).

    O paradigma no um mero exemplo e nem um mero modelo, o que significaria ele estar

    colocado fora do que ele comunica, num deslocamento do universal para o particular. Ele

    um exemplo no sentido de exemplum, e se exclui apenas atravs da exibio de sua incluso.

    Dar um exemplo , ento, um ato que supe que o termo que comunica o paradigma

    desativado de seu uso normal no para ser deslocado a outro mbito, mas, pelo contrrio, para

    mostrar o cnone daquele uso, que no possvel existir de outro modo (ibidem, p. 24).

    A figura paradigmtica no transcende nada, apenas vai de singularidade a singularidade, sem

    eximir-se do que diz, sem deixar de ser parte do que comunica, de modo que o paradigma

    utilizado como analogia para trabalhar/tratar de uma ideia, tema, questo, enfim, qualquer

    assunto que seja, participando do prprio, no sendo o anlogo produzido nem particular e

    nem geral. Podemos dizer que o paradigma implica um movimento que vai de singularidade

    a singularidade e que, sem sair desta, transforma cada caso singular em exemplar de uma

    regra geral que nunca pode formular-se a priori (ibidem, p. 29; destaque prprio). No se

  • 36

    trata de simplesmente constatar uma semelhana, mas de produzi-la atravs de uma operao,

    um movimento de pensamento que produz uma constelao exemplar (ibidem, p. 36), no

    fim das contas, produzir semelhanas atravs de um movimento constelar de pensamento.

    ***

    O pensamento como movimento constelar remete ideia de constelao em Benjamin, e o

    mtodo de pensar que Agamben adota na confeco de Bartleby. Desta perspectiva

    possvel organizar/tratar os paradigmas/elementos das constelaes s quais o escrivo

    pertence e os movimentos delas em direo nfase sobre as suas ideias base, ou, em direo

    ao esclarecimento destas. A constelao literria de Bartleby, por exemplo, d mais nfase na

    figura do escrivo, produzindo e organizando um traado com auxlio de outras personagens

    literrias tambm escrives; j a constelao filosfica, enfatiza na potncia a Bartleby

    vinculada, estando esta ltima, de acordo com o italiano, mais prxima de esclarecer a cifra

    da personagem do que a anterior; mas, ainda assim, elas se tocam, rearranjam-se, ambas so

    recurso na investigao que rodeia o enigma da personagem.

    Como definir uma constelao? Apenas constelarmente, o que significa que ela o prprio

    movimento de pensar que ela denomina; a constelao no tem identidade rgida; antes, uma

    cesura, uma interrupo abrupta que confecciona paradigmaticamente uma imagem. A

    constelao imanente ao pensar, s enquanto ela se movimenta e movimento que ela se

    conforma. De volta constelao filosfica de Bartleby, que visa ideia de potncia

    (constelao de potncia, pode-se nome-la assim), tal ideia vem tona com recurso a

    Bartleby, Aristteles, Benjamin, Deleuze etc., e estes diversos elementos da constelao,

    paradigmas, no que quase se tocam lanam luz sobre a potncia, o enigma que a constelao

    persegue, o rastro que ela investiga, os percursos que nela se traam.

    Debruar-se sobre uma ideia que o objeto de uma constelao (e aqui objeto se refere ao que

    a nomeia, como, por exemplo, constelao de potncia), pensar sobre a ideia e investig-la,

    trata-se de um movimento que articula paradigmas a fim de ilumin-la. No caso da potncia,

    personagens e filsofos (estes tambm tratados como paradigmas na medida em que ideias,

    conceitos e leituras criados por eles so a eles remetidas) seriam analogicamente entrelaados

    para destacar uma ideia, trazendo-a tona. Bartleby utilizado como paradigma de duas

  • 37

    constelaes, que tambm se entrelaam: esse o mtodo de pensamento adotado por

    Agamben na confeco de Bartleby.

    Nas constelaes traadas pelo filsofo italiano, Bartleby um paradigma de destaque por ter

    mais contato anlogo com os demais paradigmas, por haver mais intensidade ao se aproximar

    delas do que as demais aproximadas entre si, de modo que o escrivo de Melville lana uma

    luz mais intensa sobre a ideia perseguida, ilumina melhor o objeto investigado9.

    ***

    A segunda questo objeto deste subcaptulo fornecer, em meio ao exerccio de construo de

    sua resposta, exemplos da maneira de Agamben utilizar a personagem como paradigma, e

    esboar alguns dos seus propsitos ao faz-lo. Irei a ela. Por que Bartleby?

    A aparncia do escrivo diz um pouco sobre ele. Levemente arrumado, lamentavelmente

    desamparado, um homem silencioso, sossegado (MELVILLE, 1853a, p. 7), que escrevia

    mecanicamente e com apatia (ibidem, p. 8). Quando se manifesta frente a uma solicitao,

    com voz amena e firme (ibidem, p. 9), rosto controlado e olhos obscuramente calmos, que

    tende assim a pronunciar a sua quase impronuncivel frmula, Preferiria no, mais do que

    uma resposta, uma suspenso desta. O escrivo opta pelo condicional e desloca o seu uso

    gramatical para torn-lo sem referncia, renunciando, assim, ao prprio condicional que ele

    utiliza; este modo verbal, no seu uso convencional, exprime um fato no futuro em relao a

    um passado, e por isso mesmo tambm um modo para exprimir o irreal, um fato no

    9 De maneira breve, relacionarei a noo de constelao com as outras duas questes relacionadas ao mtodo, a

    arqueologia e a assinatura, que juntas com o conceito de paradigma compem a obra Signatura rerum. O mtodo

    constelar se comunica com o mtodo arqueolgico na medida em que ambos buscam iluminar/desobscurecer um

    objeto (seja este uma ideia, um fato histrico humano etc.) a partir de uma articulao de paradigmas. No

    entanto, a arqueologia se diferencia por enfatizar na investigao do rastro histrico de seu objeto, escavando a

    sua emergncia: ela uma prtica que em toda a indagao histrica, trata no com a origem, mas com a emergncia do fenmeno e deve, por isso, enfrentar-se de novo com as fontes e com a tradio. No pode medir-

    se com a tradio sem desconstruir os paradigmas, as tcnicas e as prticas atravs das quais regula as formas da

    transmisso, condiciona o acesso s fontes e determina, em ltima anlise, o estatuto mesmo do sujeito

    cognoscente. A emergncia aqui, pois, de uma s vez objetiva e subjetiva e se situa, melhor, num umbral de

    indecidibilidade entre o objeto e o sujeito. Esta nunca um emergir do fato sem ser, por sua vez, o emergir do

    prprio sujeito cognoscente: a operao sobre a origem , ao mesmo tempo, uma operao sobre o sujeito (p. 110). Ainda com recurso ao Signatura rerum, prximo ao conceito de paradigma est o conceito de assinatura,

    que a marca humana em todas as ideias e fatos dotados de significado, um registro humano em todos os signos,

    em todos os paradigmas. Tal assinatura necessariamente predetermina a interpretao do signo, o seu uso e a sua

    eficcia segundo regras, que cabe arqueologia investigar, caracterizando esta como uma cincia das

    assinaturas.

  • 38

    realizado ou no realizvel, algo no confirmado, expressa mais dvida do que certeza; ao

    negar-lhe um complemento, na boca do escrivo a frmula no nega nada, o mais perto que

    chega de negar a si mesma de maneira circular: preferiria no preferiria no preferiria no...

    Bartleby no prefere nem no prefere, no se trata de vontade, pelo menos isto ele tenta

    esclarecer para o seu chefe advogado; em trs momentos adapta a sua frmula, do condicional

    para o indicativo, Prefiro no, indicando que no se trata de querer ou no querer. Um

    exemplo, quando o advogado, aps o escriba utilizar a frmula, pergunta-lhe Voc no quer

    fazer?, e ele responde, Prefiro no. O escrivo se porta com indiferena quanto ao sim e ao

    no, quanto ao fazer ou ser e o no fazer ou no ser; essa postura que instiga o filsofo

    italiano.

    Em seu comentrio a Bartleby, Agamben, com recurso a Aristteles, aponta o significado para

    potncia que mais lhe interessa, no aquela para adquirir ou desenvolver certa capacidade,

    mas a potncia daquele que j possui uma capacidade e pode ou no exerc-la, preservando

    tal capacidade em quaisquer destes dois casos. Por exemplo, no se trata do homem que pode

    aprender a construir casas, mas do que j adquiriu esta capacidade e pode lev-la a cabo ou

    no; no caso do escrivo, aquele que sabe escrever e pode, por isso, tanto faz-lo quanto no

    faz-lo.

    Da Agamben defender, com a sua leitura de Aristteles, que toda a potncia de ser ou fazer

    sempre tambm potncia de no ser ou de no fazer; sem esta, a potncia passaria sempre ao

    ato e se confundiria com ele. O italiano elege, assim, a potncia de no como o segredo

    cardeal da doutrina aristotlica sobre a potncia, que faz de toda a potncia, por si mesma,

    impotncia (AGAMBEN, 1993b, p. 13). A potncia, enquanto de uma capacidade, tambm

    privao de um exerccio; nisto o filsofo foca os seus esforos com Bartleby.

    O preferiria no que soa dos lbios de Bartleby uma frmula que remete experincia da

    pura potncia. Com ela a personagem demora sem fim entre poder e poder no; indica no

    haver necessidade no trnsito potncia-ato, tampouco necessrio vnculo com a vontade; ele

    no quer nem no quer, permanece na potencialidade para querer e querer no. Contingente

    o ser que pode ser e simultaneamente no ser. O experimento em que Bartleby se arrisca ,

    portanto, um experimento de contingncia absoluta. O escriba que no escreve a potncia

    perfeita, que s um nada separa do ato de criao. O que necessrio o conjunto verificar-

  • 39

    e-no-se-verificar; para ambos os membros restituda a potncia, e assim pode no no-

    poder. Importa aqui o conjunto poder e poder no, por isso a frmula de Bartleby de

    contingncia por excelncia. Alis, esse o motivo da escolha do filsofo italiano para o

    segundo ttulo da obra sobre a personagem, da contingncia.

    Agamben destaca a impotncia, potncia de no, e a pensa com o escrivo, porque ela para

    ele a chave da experincia da potncia absoluta. A sua ausncia ou obscurecimento dificulta

    ao homem ver-se como pura potencialidade e sem funo definida. Este objetivo margeia toda

    a obra e um dos principais pontos de contato com as demais obras do filsofo, tanto com as

    anteriores como com as posteriores. Da a importncia do conceito de potncia de no;

    resgat-la no apenas ir contra a necessidade do trnsito da potncia ao ato, trnsito da

    capacidade possvel capacidade em ato, mas tambm salvar a potncia no ato mesmo, j

    que a potncia tanto o acompanha quanto deposta quando o ato se d, em forma de privao,

    impotncia. O contingente pode passar ao ato s no ponto em que depe toda a sua potncia

    de no ser, e quando o faz, o homem capaz de viver a sua prpria impotncia. O que

    Bartleby evita em sua demora tal deposio; ele no quer abrir mo da potncia e nem da

    impotncia, prefere a pura potncia e nela estaciona, entre o poder e o poder no. Ao faz-

    lo, o escrivo ressalta a potncia de no e isto que caro a Agamben.

    Alguns anos antes da publicao de Bartleby ou da contingncia, em 1987, o filsofo

    ministrou uma conferncia em Lisboa, intitulada A potncia do pensamento, publicada em

    livro posteriormente. Os objetivos daquele momento j eram a potncia de no e a

    potencialidade do homem; h no texto da conferncia uma passagem que delineia tanto estes

    objetivos quanto o pensamento de Agamben de modo geral.

    Todavia, temos que medir todas as consequncias dessa figura da

    potncia que, dando-se a si mesma, mantm-se e cresce em ato. Ela

    nos obriga a repensar desde o incio no s a relao entre a potncia e

    o ato, entre o possvel e o real, mas tambm a considerar de outro

    modo, novo, na esttica, o estatuto do ato de criao e da obra, e, na

    poltica, o problema da conservao do poder constituinte no poder

    constitudo. Porm tambm h que pr em discusso toda a

    compreenso do vivente, se verdade que a vida deve ser pensada

    como uma potncia que necessariamente excede suas formas e

    suas realizaes (AGAMBEN apud CASTRO, 2013, p. 165; destaque

    prprio).

  • 40

    A vida como potencialidade significa que ela no tem uma funo definida, que no homem h

    uma potencialidade que permanece potencial. Um modo de destac-la a partir da impotncia

    destituda e vivenciada no ato: vai o poder no, fica o poder, a vida como uma capacidade

    relacionada no com ausncia, mas com privao.

    No se trata de pensar, frente a uma forma de vida ou uma realizao, uma outra tambm

    especfica, mas sim a capacidade potencial de todas as outras, quaisquer que elas sejam.

    Portanto, no o caso de pensar uma alternativa para determinada condio, mas de apontar a

    sua ausncia de rigidez e a potencialidade que a excede, bem como a impotncia que com ela

    se relaciona. Trata-se de pensar o diferente com indiferena.

    Como j visto mais cedo, Agamben associa a frmula de Bartleby indiferena ctica, cujo

    no mais (ou mllon), termo tcnico com que os cticos exprimem o estar em suspeno

    (epoch), mantm semelhante equilbrio entre o afirmar e o negar, numa zona de

    indiscernibilidade. Esta indiferena, no entanto, no tem o sentido de no importa qual, mas

    de o que de todo modo importa, qualquer que seja. Assim, vivenciar a potencialidade e a

    privao exercitar a indiferena, peleja do escrivo que no escreve. Bartleby resiste10

    a ter

    uma funo definida, resiste a abrir mo de sua potencialidade, e para tanto adota uma

    postura de indiferena; ao renunciar cpia, ele, um escrivo, portanto um copista jurdico,

    apesar de no romper totalmente com a Lei, renuncia-a para iluminar o seu carter potencial.

    Neste sentido, Bartleby tambm aponta para uma nova poltica, uma poltica qualquer que

    considere a potencialidade e a privao humana.

    Toda potncia ao mesmo tempo potncia para o seu oposto. A criao tambm uma

    experincia da impotncia; a descriao evidencia isto restituindo a potncia de no criao.

    A frmula do escrivo pode ser caracterizada, assim, como uma frmula de descriao, por

    salvar o que no foi, por levar pura potncia, de e de no. Ele o faz tratando o diferente com

    indiferena, destacando, assim, a potencialidade da vida, a vida como potencialidade.

    Bartleby uma personagem sem papel, por isto Agamben o escolhe como paradigma.

    10

    A resistncia do escrivo no de maneira ativa, mas algo mais prximo de passiva, suspendendo a rigidez da lei e da funo sem apontar para uma nova especfica, mas apenas para o seu carter potencial. Cf. COOKE, 2005, p. 86. WHYTE, 2009, p. 310.

  • 41

    2. Constelaes.

    Agamben insere Bartleby em duas constelaes: uma literria e uma filosfica, sendo esta a

    que ter maior nfase no texto de 1993.

    Como escrivo, Bartleby pertence a uma constelao literria, cuja

    estrela polar Akki Akkievitch (l, naquelas reprodues de cpias, estava para ele de alguma maneira contido todo o mundo ...

    certas letras eram as suas favoritas e quando a elas chegava, perdia a

    cabea), ao centro da qual se encontram os dois astros gmeos Bouvard e Pcuchet (boa ideia nutrida em segredo por ambos ... : copiar) e, no seu outro extremo, resplandecem as luzes brancas de Simon Tanner (eu sou escrivo a nica identidade que ele reivindica) e do prncipe Mchkin, que pode reproduzir sem esforo

    qualquer caligrafia. Mais alm, como uma breve cauda de asteride,

    os annimos chanceleres dos tribunais kafkianos. Mas existe tambm

    uma constelao filosfica de Bartleby, e possvel que apenas esta

    contenha a cifra da figura que a outra se limita a traar (AGAMBEN,

    1993b, p. 9; destaques prprios).

    O que o filsofo italiano procura ao levantar tais constelaes so paradigmas que dialogam

    com o paradigma Bartleby no que diz respeito condio de escrivo (principalmente com os

    elementos literrios) e a relao dele com a potncia (principalmente com os elementos

    filosficos); mesmo com nfases diferentes, estas constelaes se tocam, como na analogia do

    escrivo com a tabuinha de escrever em Aristteles e na potencialidade da lei dos romances

    kafkianos (subcaptulo 2.1.5). Nas pginas referentes constelao literria trabalharei as

    personagens mais ao nvel de aproximao, tateando algumas perspectivas que elas parecem

    compartilhar, objetivando com isto iluminar Bartleby de diferentes ngulos. No que concerne

    constelao filosfica, dos muitos paradigmas que a compe, a seguir irei debruar-me com

    mais afinco sobre o paradigma Aristteles, por ser ele o que acompanha a personagem mais

    de perto, mas, no entanto, tambm me ocuparei de traar um percurso sobre as demais, num

    tatear mais ligeiro, devido extenso do percurso.

  • 42

    2.1 Constelao literria.

    2.1.1 Ggol. Akki Akkievitch.

    Akki Akkievitch o escrivo personagem do conto O capote (1842), do ucraniano Nikolai

    Ggol (1809-52).

    Seria difcil encontrar uma pessoa to envolvida com sua funo. Isso

    ainda diz pouco: ele trabalhava com zelo; no, trabalhava com amor.

    Naquele infindvel transcrever, vislumbrava algo como um mundo

    seu, mais diverso e agradvel. Estampava no rosto uma expresso de

    gozo; tinha algumas letras favoritas, e quando, na labuta, deparava

    com elas, ficava que no cabia em si de contentamento: sorria, e

    piscava, e remexia os lbios de tal maneira que parecia deixar ler em

    seu rosto qualquer letra que a sua pena traasse (GGOL, 1842, p.

    10).

    A aparncia e o nome da personagem, estrategicamente, dizem muito sobre ele: baixote,

    tinha algumas marcas de bexiga no rosto, era um pouco arruivado, com miopia um pouco

    pronunciada, uma pequena calvcie na fronte, ambas as faces enrugadas e o semblante com

    uma daquelas cores a que s se pode chamar de hemorroidais (ibidem, p. 7); o nome, indica

    a sua essncia:

    O nome Akki representa a traduo da essncia da personagem. Sua

    repetio em cadeia Akki-ak-kiak-kia-kkiak se constitui num exerccio de gagueira, a exemplo do que acontece com a fala do

    prprio personagem, que usa uma linguagem quase desprovida de

    articulao, como se o homem ainda no tivesse criado uma

    linguagem estruturada. Na falta de palavra para completar o circuito

    comunicativo, recorre a um intraduzvel tov [aquilo], que remete a

    algo totalmente indefinido e a qualquer coisa ao mesmo tempo [...].

    Logo, o nome de Akki personifica uma impossibilidade de

    comunicao, o que no se d por opo dos pais e padrinhos, mas por

    fora de uma fatalidade mtica: essa a sina dele. J que assim, o melhor que ele tenha o mesmo nome do pai. O pai se chamava

    Akki, ento que o filho tambm se chame Akki conclui a me. Completa-se esse quadro de fatalidade com a reao do menino, que,

    ao receber o nome de batismo, chora e faz careta como se pressentisse que viria a ser conselheiro titular, um dos cargos mais baixos da burocracia russa. Assim, ao azar do nome junta-se o azar de

    uma profisso que constitui o alvo de toda a sorte de zombarias por

    parte dos que tomam por Cristo aqueles que no reagem. Como se no

    bastasse o nome, acrescenta-se-lhe ainda o sobrenome Bachmtchkin

    (d