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Agradecimentos
No processo de confecção deste livro-reportagem nos deparamos com um
imenso desafio. Que prontamente por nós foi aceito. Mas, como em toda
caminhada, pessoas importantes cruzaram o nosso caminho. E gostaríamos de
agradecer a cada uma delas. Parceiras deste filho que a quatro mãos foi
acalentado e desenvolvido.
Ao querido Carlos Lima, dono de uma história linda e marcante. Obrigado por
compartilhar histórias de uma vida intensa e cheia de vontade. Ficamos
eternamente gratos pela sua sempre disposição, acolhida e o sorriso.
A Vanessa Pimenta o nosso eterno agradecimento pela entrevista que detalhou
em miúdes como o "Aurora da Rua" funciona. Seu poder de descrição para nós
foi de vital importância no processo.
A Vânia, Rute, Elias, Seu Gerson, Denivaldo e a todos os moradores da
Trindade. Obrigado pela confiança e receptividade. Esperamos ter sido
merecedores de tal presente.
A nossa querida orientadora Ana Carolina Castellucio pelos momentos de
apoio, pelas sugestões e direcionamento a ser percorrido. Agradecemos de
coração as dicas.
Por fim, eu, João Aguiar Neto, um dos autores deste livro, gostaria de
agradecer a duas pessoas que considero importantes no desenvolvimento do
meu gosto para a escrita e a leitura. A minha mãe, Luciana Pinto Aguiar e ao
meu eterno avô, João Adonias Aguiar, o meu eterno agradecimento.
E eu Jaqueline Vaz, também autora deste livro, meus agradecimentos a Deus,
minha fonte de energias positivas e acalento e a minha mãe, Deize de Lima
Vaz sempre presente e incentivadora nos meus dias difíceis e me
acompanhando em dias de sorrisos.
2
DESCOBRINDO A TRINDADE
Salvador esconde muitas surpresas, por ser uma cidade com nuances
bem distintas, o seu habitante não consegue vislumbrar tudo que a cidade
pode mostrar. Ruas, praças, locais dos mais diversos, compõem essa
identidade única que só Salvador possue.
Dentre esses achados, o morador ou visitante curioso percorrendo pela
Avenida Jequitáia sentido Feira de São Joaquim, se surpreenderá com uma
igreja que em um primeiro momento irá decepcionar o visitante.
A Igreja da Trindade, construída em 1739 e reconstruída em 1888 em
conseqüência de um incêndio que a destruiu quase que totalmente, só
restando as paredes externas revestidas de pedra. Na reconstrução, as
paredes internas da edificação foram erguidas com tijolo. As marcas desse
incêndio são visíveis na atual condição do local. A estrutura da igreja é
composta por uma nave única, com corredores laterais e superpostos por
3
tribunas, uma típica construção colonial. Como estes espaços são aproveitados
pelos moradores, veremos nas páginas a seguir.
O cartão de visita é um painel com a representação do que a
Comunidade da Trindade representa para os seus moradores, do lado
envolventes escadarias que dão acesso a duas vistas únicas, a primeira uma
panorâmica do local, onde se vê o Porto de Salvador, o Mercado do Peixe, o
Cais Dourado, e a maravilhosa Baia de Todos os Santos. A segunda é da
entrada da Igreja - cujo acesso se dá pelo pátio bem amplo - com a
predominância do rococó mas, deixando transparecer o desgaste evidenciando
assim, a sua idade centenária.
O visitante que chegar a comunidade irá ficar em dúvida por qual
caminho entrar. Se preferir ir em frente, passará pelo portão principal da igreja,
feito de madeira, desgastado pelo acúmulo dos tempos e a implacável ação da
maresia – um dos principais fatores de desgaste em se tratando de cidades
litorâneas – mas logo a visão estará impactada pelo interior da igreja, cuja
beleza arquitetônica fica ofuscada pela situação de degradação – o pátio
interno funciona como casa para os moradores – logo assim percebendo-se a
finalidade do local.
Mas, se preferir entrar pela direita encontrará uma frondosa mangueira,
árvore predominante no local que na época da safra brinda os moradores com
um banquete de frutas tenras e doces, contribuindo assim para que os
moradores se fartem com as mais diversas formas de receitas e quitutes.
Logo após a mangueira, o mundo comunitário da Trindade logo se
apresentará aos olhos menos acostumados com o local. Uma pilha com toras e
restos de madeira usados para o preparo dos alimentos e para a reciclagem,
logo ao lado da mangueira. Madeira que para os moradores é muito útil. Serve
de alimento para o fogão como também objeto para a venda. Um jardim bem
amplo rodeado por construções, onde acontecem as refeições, onde o jornal
“Aurora da Rua” é produzido, onde é feita a comida de cada dia. Estes e outros
locais serão descritos com mais profundidade nos próximos capítulos, todos
eles são vitais na condução do propósito comunitário do local.
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A Igreja da Trindade acolhe hoje moradores em situação de risco,
pessoas relegadas por suas famílias, pessoas com distúrbios mentais e
problemas com drogas e álcool. Destas, algumas ocupam uma importância
estratégica na organização das tarefas do dia a dia, na articulação dos projetos
que são desempenhados e uma em específico (Vânia) atualmente é a
responsável pelo jornal “Aurora da Rua”. Mas todos, em sua maioria
contribuem para a manutenção da funcionalidade do local. Pessoas como o
Elias, se encarregam de organizar a planilha com as funções de cada um
durante a semana como também o responsável por preparar as refeições
oriundas dos mantimentos conseguidos com doações ou contribuições dos
moradores. Como isso se dá? Como as tarefas são desempenhadas, veremos
no próximo capitulo deste livro-reportagem.
Alguns dos moradores, os que se permitem um tratamento advindo do
reconhecimento de algum tipo de enfermidade, contam com o apoio de
psicólogos, terapeutas e anônimos que, voluntariamente, colaboram com o
projeto. Centenas de necessitados já foram atendidos ao longo desses onze
anos. Toda quinta feira acontece a Celebração onde a população de Salvador
é convidada a conhecer a igreja e os moradores em situação de rua são
recebidos e acolhidos com uma xícara de mingau e um pão, como acontece
em detalhes, mais adiante descreveremos.
A sobriedade nos relatos e a vontade de ser reinserido no ambiente
social e familiar são as tônicas destes moradores. Veremos relatados nos
depoimentos das personagens, histórias de vida, infortuítos, escolhas erradas,
o peso das más companhias, e uma vontade de querer ser acolhido e ser
amado nem que seja em um primeiro momento, anônimos. Mas todos ali se
conhecem por uma só janela, a da vontade.
O conceito, como funciona e quais são as pessoas que contribuem
para que a comunidade da Trindade consiga sobreviver mesmo com a falta de
apoio do poder público é o que tentaremos mostrar e relatar nestas páginas.
Como uma igreja abandonada se tornou desde 2000, um lugar seguro para
quem deseja viver em família e em sociedade.
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A dignificação passa por um processo de resgate da auto-estima que
muitos ali quando chegam à Trindade julgam ou tem a certeza que a perderam.
A evolução do significado do amor, em especial do amor-próprio, da
valorização do ser humano, serão as mensagens que predominarão neste livro.
Todo ser humano tem direito a dignidade e a igualdade no tratamento1. Uma
sociedade mais justa e equânime passa por uma profunda revisão do que está
sendo feito, o que deve ser combatido e o que nunca deveria deixar de
acontecer.
Resolvemos escrever este livro por causa de uma empatia que nos foi
tomando conta desde o dia que os membros da comunidade que trabalhavam
no “Aurora da Rua’ vieram trazer suas experiências em tocar um jornal
comunitário que enfrenta várias dificuldades no seu dia a dia. Saber que os
moradores de rua fazem parte da produção de uma forma tão participativa foi
outro fator preponderante para desencadear a nossa curiosidade.
Um dos interlocutores do processo de intermediação das entrevistas e
visitas, Carlos Lima, foi uma peça fundamental para o nosso encantamento
com o propósito e dimensões do trabalho realizado na Trindade. Jaqueline e
Eu pensamos então em fazer o nosso livro-reportagem tendo como objeto a
Comunidade da Trindade e o “Aurora da Rua”.
Com entrevistas e depoimentos emocionados de pessoas que
passaram por situação de risco, fatores de solidão e exclusão pelas famílias
são revelados com sentimento – às vezes com melancolia – mostrando assim
um pequeno retrato do abandono, que tanto visita as memórias destes
cidadãos.
No processo de apuração, encontramos com Seu Gérson. Homem de
história marcante e emocionante – foi às lagrimas quando nos concedeu a
entrevista – cuja trajetória foi marcada por escolhas equivocadas e desilusões.
Carlos Lima, que agora é universitário, é outro dos personagens marcantes de
1 Declaração Universal dos Direitos do Homem
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nossa narrativa, como a lucidez em momentos decisivos, faz a diferença entre
uma recuperação e a continuidade de um processo de dependência.
Emoção, esse é o ingrediente principal deste livro. Nos depoimentos
que colhemos, foi o que nunca faltou.
Sejam bem-vindos ao “Aurora da Trindade”.
Fui excluído
Da sociedade
Fui acolhido
Na Santíssima Trindade
O álcool tirou
Minha sobriedade
Sou um alcoólatra acolhido
Na Santíssima Trindade
Estou resgatando
Minha dignidade
Aqui na igreja
Da Santíssima Trindade
Aqui encontrei
Minha liberdade
E a misericórdia
Da Santíssima Trindade
Hoje paro e contemplo
Os olhos já não choram mais
Quem chora é o coração
7
Do meu irmão que encontrou a paz
Aqui a gente se entende
Somos todos iguais
Cantamos a alegria
Dividimos os ‘ais’
Um cantinho
Um calor
Um pedaço de pão
Muito amor...
Canção Igreja da Trindade
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1 A DOCE TRINDADE
Reúne teu povo, ó doce Trindade,
reúne os eleitos, a humanidade,
para viver a união, do Espírito Santo teu dom,
para louvar bendizer e cantar teu Amor,
para louvar bendizer e cantar teu Amor!
...
Doce Trindade, doce ternura,
Te adoramos de todo coração!
Nós te pedimos, pro Povo da Rua,
Nunca lhe falte um pedaço de pão...
Glorificamos, humildemente,
Nossa dormida sobre o papelão.
E te louvamos, agradecendo,
Tua acolhida e o teu perdão!
(Canção da Trindade)
Como já visto anteriormente, a Igreja da Trindade é um local que por
aparência é abandonado, mas que traz uma amostra do nosso país. Este, que
com a sua evolução está se tornando cada vez mais, uma réplica europeia,
tomada pelo consumismo, o luxo e a frieza dos relacionamentos.
Dentro daquele espaço de paredes rebocadas, porém ásperas, a Igreja
da Trindade nos traz a primeiro momento uma impressão de uma imagem fria e
desamparada, como se fosse mais um daqueles casarões desativados, como
encontramos aos muitos na Cidade Baixa nas ruas de Salvador. Mas, este
local tão simples e sem as caprichosas decorações faustosas como
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encontramos nas igrejas católicas, nos comove e emana uma sensação única,
divina, acolhedora e confortante.
Ao entrar na igreja há uma recepção agradável por parte dos
moradores que sempre estão a fazer uma atividade. Adentrando por uma porta
rústica e visivelmente marcada pela ação do tempo, deparamos com um
grande salão, com bancos de madeira iguais aqueles que sentamos na
pracinha. É nítido observar nas paredes dianteiras armários, objetos pessoais,
colchões de pessoas que ali moram. Pessoas que residem dentro da igreja e
que dormem no mesmo local do altar e onde fazem as suas celebrações
religiosas.
Cheio de armários identificados, pois cada morador possue seu local de
acondicionamento dos seus pertences, roupas, fotos pessoais ou de familiares
e peças de grande valor artístico feito à mão. Uma área que necessariamente
resgata o sentido e o espaço que poderia ser a sua casa, o seu cantinho e
morada.
Ainda explorando os detalhes, ao meio, está o altar ornamentado por
velas acessas, produzidas na própria igreja e comercializadas diariamente ou
em eventos festivos. Também é muito forte a criatividade artística notável em
uma grande pintura, cujos personagens são pessoas negras – uma mensagem
subliminar bem suave - ao redor da mesa farta retrata com os olhos da
exclusão o quadro “Santa Ceia” 2 em que Jesus e seus apóstolos dividem o
pão e o vinho. É possível encontrar no espaço mais pinturas, todas elas com
personagens que possuem as mesmas características, afirmando como a
população de Salvador, constituída majoritariamente de negros do que
brancos, trata os que são excluídos pela sociedade.
2 Quadro pintado por Leonardo da Vinci – atualmente no Museu du Louvre - Paris
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Outro ponto a ser destacado, é a cozinha. O espaço que abastece os
moradores da Trindade. Um grande fogão a lenha composto por muitas toras
de madeira que as próprias pessoas que ali vivem trazem para a comunidade,
é o que alimenta o fogo para preparar as principais refeições. É possível
observar no pequeno espaço, enormes panelas, uma pia com alguns copos,
pratos e talheres. Os utensílios não são suficientes para todos, tendo a
necessidade de um revezamento entre todos.Tudo isso organizado por uma
planilha que organiza o dia de cada morador colaborar com o preparo das
refeições.
“Preferimos um fogão a lenha, pois ele cozinha muito mais rápido, já que
a porção dos ingredientes tem que ser a maior possível para alimentar a todos
e também de acordo com o que temos disponível no dia. Aqui todos cozinham,
mesmo quando o prato do dia não sai muito bom, comemos assim mesmo”,
complementa um residente da comunidade.
11
O morador e também um dos responsáveis pela administração da igreja
Carlos Lima3, descreve um pouco da sensação das pessoas que visitam a
Trindade: “No primeiro momento, você é imbuído de um encantamento com
lugar, mas ao vivenciar o cada dia, você observa as necessidades que
passamos e a luta para se conseguir a noite digna”.
Mesmo que essa palavra – encantador – seja um tabu para os que
vivem ali dentro, para os visitantes é um local cativante, embora não se
imagina o que é feito por aqueles que necessitam do local para poderem se
manter. As celebrações religiosas ocorridas todas as quintas à noite e nas
manhãs de domingo é diferente da maioria das igrejas. A “celebração”,
diferentemente de uma “missa” traz um ritual de integração, de músicas e da
participação de todos, onde a acolhida é destinada a todos que visitam a
Trindade.
São enfatizadas as emoções em todas as celebrações. O sentimento
toma conta do local, e as palavras são ditas de uma maneira que evidencia a
força da mensagem. Em vários momentos, percebemos a intensidade de um
desejo de internalidade, reforçado pelas palavras de Carlos Lima “É tudo de
dentro para fora”.
Durante a realização da celebração nas noites de quinta, no meio do
grande salão ficam as enormes panelas de mingau e cestos com pães. Tudo
conquistado através da luta diária dos moradores que eram das ruas e também
produzidos por pessoas como o Elias, encarregado da cozinha e exímio
cozinheiro. A celebração começa com todos rodeados dos alimentos e dos
objetos de conotação religiosa, ao som de músicas e de instrumentos como o
violão e os timbaus. Também estão presentes, pessoas que ajudam a
administrar a igreja com um pároco e o Irmão Henrique no comando.
Aos visitantes, existe o momento de se apresentar. Ninguém fica “à
parte e sim faz parte” como mais um morador e mais um integrante da família
Trindade. Nos intervalos das musicas é lido entre as pessoas um trecho dos
3 Nome fictício para preservar a identidade da fonte (pedido)
12
salmos 21, 22, 23; depois em cada intervalo todos expressam seus
agradecimentos por pedidos alcançados e súplicas por aqueles que estão
passando por um momento difícil, tendo o afago e o acolhimento dos outros.
Tudo é repartido, inclusive os momentos difíceis.
Todos são ouvidos, expressam seus sentimentos e fazem desse
momento algo muito forte, tocando os corações dos envolvidos. Assim, seguem
um caminho diferente das demais missas, que sempre se apresentam com o
mesmo ritual emblemático da Igreja Católica.
O irmão Henrique, sempre presente nas celebrações, conta as histórias
de suas peregrinações e contribui com palavras de fé e sabedoria no ato
ecumênico. Ele é um monge francês e sua missão começou em 1989 quando,
recém-chegado a Salvador, resolveu morar nas ruas para poder conhecer de
perto o drama das pessoas que vivem nessa situação. Até então, a sua
contribuição era a de levar alimentos, cobertores, roupas e, através de orações,
conforto aos desabrigados.
Recentemente o irmão Henrique, caminhou ao santuário de Goiás, e
conheceu os mosteiros trinitários e espaços de vida contemplativa.
Descrevendo em seu sotaque francês, ele contou durante a celebração de
como foi a sua peregrinação. O irmão Henrique e demais pessoas que o
acompanharam, nos conta que visitou comunidades e foi ao mosteiro da
Anunciação do Senhor e foram acolhidos pelos irmãos que vivem no mosteiro.
Também nos relatou, durante o momento da celebração, sobre as
suas caminhadas por lá, durante as andanças eles tiveram que subir uma
montanha e passaram a noite no alto dela e no meio da mata perto de um
complexo federal, contaram com a ajuda dos guardas que deixaram que os
dormissem por lá. No dia posterior depois de um dia cansativo, também
contaram com a ajuda de uma moradora que os acolheram em sua casa.
Passaram noites em outras igrejas, foram acolhidos por fazendeiros, estes que
também se sentiram motivados a seguir a peregrinação, e viveram a
experiência da devoção até chegar ao Santuário de Trindade em Goiás.
13
Ressaltaram a emoção ao pisar no Santuário de Trindade em Goiás, e
sentiram a benção de Deus em estar naquele local. Descobriram que existem
muitas pessoas boas que os ajudaram nos momentos de frio e fome. Também
observaram que este Brasil guarda riquezas muito belas, e somente quem tem
o olhar sensível e otimista consegue enxergar lugares que praticam a
solidariedade e o amor ao próximo.
Depois de todos os cânticos, da comunhão da hóstia e do vinho, é
chegada a hora da alimentação, fruto do trabalho coletivo e digno. Estes
associados da fé que movimenta estes moradores que viviam nas ruas, a
situação deplorável, o sentimento de indiferença e exclusão destinado aos que
passam por qualquer intempérie, fato comum em nossa sociedade. A esta fé
que é o elemento fundamental para o reforço de uma afirmação latente na
vontade de uma reinserção por meio da dignificação do trabalho e a revisão de
valores e condutas realizados na Trindade.
Na celebração da Trindade, os votos de unificação de pensamento
aparecem na despedida do culto. Abraços e apertos de mão fraternos, aliados
a uma mensagem de amor ao próximo fazem parte do repertório. Diferente das
missas ortodoxas, enfadonhas para algumas pessoas, como a maioria das
igrejas católicas, ao exemplo a Igreja do Rosário e Nossa Senhora das Mercês,
que por ser um ritual muito extenso e cansativo, a integração entre os
presentes não se dá de uma forma espontânea, mas sim protocolar.
“... Caminhemos a Terra Santa, Doce Trindade, da Fé e do Amor...”.
Trecho de um cântico da Trindade
O trabalho da Igreja da doce Trindade, assim como diz a letra de um
dos cânticos, deveria ter uma divulgação e visibilidade maior a um
conhecimento geral.
14
Embora, ela não seja iluminada como todas as outras, ilumina o
coração dos que a frequentam; mesmo que não seja ornamentada por imagens
de santos como as outras, mas sim a fé que move a coragem de brigar pela
conquista do pão de cada dia; mesmo que não tenha missas e sim,
celebrações que atingem o poder de reflexão e o nascimento do poder do amor
incondicional.
Doce Trindade, Nós agradecemos,
Porque nos tornaste, filhos da Luz!
Nós te agradecemos, por teu imenso amor,
Por nós Povo da Rua, povo sofredor!
Tu nos tiraste, da escuridão,
Para sermos luzes, diante das nações!
Cântico: Doce Trindade
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2 A Trindade e seus Personagens
O “mundo” da Trindade é feito pelos seus personagens, gente que lá
chega em busca de um acolhimento ou de um prato de comida e um pedaço de
pão. Muitos deles nós encontramos em nossas visitas, nos emocionamos com
relatos de pessoas que encontraram naquele local um novo sentido de família.
As mais diversas histórias de vida, contadas com o arrependimento de
ações precipitadas ou da velha influência das más companhias, fazem parte
dos vários cenários que tomamos como fio condutor deste capítulo.
Pessoas como Carlos Lima, que nas nossas conversas na Trindade se
mostrou um pouco arredio em um primeiro momento, logo depois nos expôs a
uma história de vida tão rica, que mescla passagens de sofrimento, outras de
resignação, mas que nunca perdeu a vontade de desenvolvimento.
“Eu nasci em Mossoró no Rio Grande do Norte. Meu pai era encanador
e minha mãe costureira. Meus pais trabalhavam muito para dar conta de
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sustentar eu e meus irmãos, apesar de boa parte do dinheiro que meu pai
ganhava ia para a bebida e o jogo.
O cara era muito viciado, mas eu tenho muitas boas lembranças dele.
Por causa do trabalho, minha mãe era muito ausente e quem cuidava das
coisas em casa era minha irmã mais velha. Até os sete anos de idade tive uma
vida relativamente normal, frequentava a escola, brincava, etc.
As coisas começaram a ficar esquisitas depois que minha mãe sofreu
um acidente. Ela foi atropelada por um carro enquanto voltava do trabalho de
bicicleta. O que eu sei é que ela ficou com sérios problemas mentais e não
pode mais trabalhar e muito menos cuidar da família.
- Sobre a relação do pai com a família
Meu pai, que já não era uma pessoa lá muito equilibrada, não deu
conta e saiu de casa, não abandonou a gente, mas não conseguiu mais ficar
com minha mãe que se tornou uma pessoa, digamos, extremamente emotiva
(pra não dizer violenta).
O caso é que em decorrência desses acontecimentos, deu-se início ao
tal processo de "ruptura dos laços familiares". Passei a viver em casa de tios e
por fim, após a morte de meu pai quando eu tinha 10 anos, fui morar com
minha irmã mais velha, a que cuidava da gente e que na verdade é a referência
materna que eu tive, mas que também não tinha uma vida muito estruturada.
Ela era casada com um cara que tinha o péssimo hábito de espancá-la.
Ela tinha três filhos e quando encheu-se de apanhar do marido largou tudo,
inclusive os filhos e eu, e foi embora com outro homem.
Mas ela voltou depois de algum tempo para buscar os filhos e eu.
- A imensa janela se abriu na vida de Carlos Lima:
Foi aí que eu caí no mundo. Junto dela e da família do cara com quem
ela estava agora, que também era família do corno veio, pois o cara com quem
ela foi embora era sobrinho do marido dela (confusão)...
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Junto dela e da família do cara com quem ela estava agora eu fui parar
no Pará para trabalhar numa plantação de pimenta. Depois de quase virarmos
trabalhadores escravos partimos para São Paulo e nos instalamos debaixo de
um viaduto na cidade de São José dos Campos.
Eu dei uma drástica resumida nessa parte pra coisa não ficar muito
longa.
Enfim, eu estava oficialmente em situação de rua pela primeira vez
aos 12 anos de idade. Foi então que eu comecei a fumar pedra, depois fui
parar na capital paulistana onde virei ladrão também.
- Vida de infrator:
Nessa eu já havia me apartado de minha irmã que também já havia se
apartado do cara com quem estava depois que ele inventou que também podia
bater nela. Depois de muita pedra, cola de sapateiro (benzeno), bolsas de
velhinhas e casas de família depenadas, eu fui parar no SOS Criança (não
confunda com FEBEM, eu não fui preso, mas apenas recolhido e nessa época
eu até tinha decidido parar de me drogar e consequentemente de roubar) e
depois fui deportado de volta para Mossoró que a essa altura do campeonato
era pequena demais pra mim.
Fiquei algumas semanas na casa de um tio e decidi ir embora para o
Rio de Janeiro, afinal eu ainda não conhecia a Cidade Maravilhosa. Saí de
Mossoró com 5 reais no bolso, generosamente cedidos pela esposa de meu
tio, e um péssimo senso de direção.
Se não fosse o abnegado caminhoneiro que me deu carona de
Fortaleza-CE até Macaé-RJ eu teria parado no Pará outra vez. Então, com
apenas duas caronas, aos dezesseis anos de idade eu cheguei ao Rio de
Janeiro, onde moraria por mais 15 anos.
- Vivendo na Cidade Maravilhosa:
Não tive grandes dificuldades em para me estabilizar no Rio. Depois de
algumas noites na rua consegui trabalho, fiz amigos (amigos de verdade que
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me ajudaram muito), voltei a estudar, comecei a fazer teatro e a vida seguia
bem melhor que a encomenda.
Eu morava num apartamento em Copacabana. Não é pra todo mundo
não! Com o passar do tempo fui adquirindo o hábito de beber
demasiadamente. Herança genética? Do álcool ao retorno às drogas foi um
pulo.
Das drogas às ruas outro pulo. Teve uma época na minha vida em que
eu ganhava por baixo uns três mil reais por mês, trabalho não faltava, mas eu
não conseguia sequer pagar o aluguel de 120 reais mensais do barraco na
favela da Rocinha onde então morava.
- As escolhas equivocadas:
Uma vida razoavelmente confortável jogada na latrina. Meus amigos...
Joguei todos na latrina também. Resumindo: ferrei com a porra toda! Acabei
parando numa casa de recuperação onde fiquei nove meses e de onde saí de
volta para as ruas.
Decidi então que era hora de sair do Rio. Talvez fosse uma boa
procurar a minha família. Fui parar em Salvador e acabei encontrando a
Trindade. Ou foi a Trindade que me encontrou? Não sei. Só sei que acabei
encontrando a minha família.
Eis a síntese da "estória" de minha vida. Não se engane com o humor
contido nessas palavras. A verdade é que, talvez por defesa, eu não entro em
contato de verdade com essa "estória".
Quando falo disso é como se estivesse falando de outra pessoa. Isso
tudo me soa muito distante. Não sou eu. É apenas algo que, por um acaso, fui.
Mas não me reconheço mais em nada disso. E deixe estar. É melhor assim”.
Com esse relato, de uma pessoa que enfrentou os reveses da vida, as
mazelas são expostas à medida que vamos adentrando nos relatos intensos de
uma trajetória marcada pela vontade de ter uma vida melhor e de que a
sociedade o visse com outros olhos.
19
Mas o arrependimento, na maioria das vezes, é tardio e uma
aproximação com seus entes queridos é mais complicada. Tanto que alguns
recebem visitas de familiares na Trindade, mas não são recebidos em suas
próprias casas. O medo do desconhecido ou do modo da acolhida é uma
preocupação de muitos. Tanto que evitam uma maior aproximação. “Se
quiserem me ver, estou aqui. Sabem o endereço, irei recebê-los de braços
abertos”, nos disse um morador da Trindade em uma das nossas visitas.
Apesar de todo sofrimento, em muitas das nossas conversas informais
com alguns moradores, pudemos encontrar dois tipos de entendimento. Um
aceita a vida atual, entendendo que as escolhas erradas e o fato de ter
sucumbido ao vício, é imperdoável. Já outros, tem ciência dos seus erros, mas
apontam a família como o principal fator de desencadeamento da situação.
A rua, embora seja, para os boêmios, fascinante ou fonte de
inspiração, para os que são apresentados a ela como uma única fonte de
sobrevivência o fascínio logo perde espaço para as incertezas. Rotinas simples
para a maioria como acordar, escovar os dentes, dormir, comer e tomar banho,
para os que se encontram em situação de risco tudo é cercado de incertezas,
em principal a do futuro.
Finalizando a nossa entrevista, Carlos Lima comenta sobre os erros de
interpretação comuns em se tratando de pessoas em situação de risco.
Quero deixar claro que eu não posso falar sobre moradores de rua, ou
grupos generalizados. Posso falar do que foi comigo. São processos muito
particulares para serem generalizados de qualquer modo que seja. Estamos
falando de vidas humanas, de espíritos, de seres ímpares. Não dá pra ser
cientificista. Pra mim esse é o maior erro dos antropólogos, sociólogos e...
ologos. Insistem em juntar pessoas em grupos e ficam apontando elementos
determinantes para isso e aquilo outro sem levar em consideração as
particularidades do indivíduo. Mas quem sou eu para tirar deles a razão que eu
não tenho? Deixe estar. Mas a minha maior dificuldade era exatamente lidar
com as minhas dificuldades, admitir meus problemas e procurar me ajudar.
Minha dificuldade era me respeitar. E se eu não posso tirar do outro o que eu
20
não tenho, muito menos posso dar ao outro aquilo que eu não tenho nem pra
mim.
Um dos fatores que fazem o morador de rua se sentir marginalizado é
o modo como a sociedade enxerga os que moram em situação de risco nas
ruas. Carlos Lima comenta:
Não vê. Apenas olha de canto de olho. Conviva com essas pessoas,
meu nobre. Acolha-as de verdade em sua vida e permita-se ser acolhido, pois
a questão não é exatamente como a sociedade vê, mas como eu vejo. A
sociedade é um corpo muito grande e confuso para ver algo de verdade. Só
seremos autenticamente coletivos, meu amigo, quando formos autenticamente
indivíduos e respeitarmos a individualidade do outro. Declaração estranha para
quem vive e ama tanto uma comunidade, não?
Outro dos personagens que nos contou sobre a sua história de vida foi
o Seu Gerson Boaventura. Nascido em uma família muito humilde residente em
Pero Vaz, bairro do subúrbio de Salvador, começou a trabalhar muito cedo.
Entre 11 e 12 anos estava já trabalhando como marceneiro - consertando
estofamentos e colchões - fato que impossibilitava os estudos durante o dia,
sendo quase que obrigado a passar para o turno noturno. Dentre outras
atividades, já na idade adulta, atuou também como serralheiro-metalúrgico –
trabalhando na Petrobrás – onde chegou até liderar equipes de profissionais
encarregados em manutenção de plataformas.
Uma das matérias dos tempos de escola que Seu Gerson lembra com
carinho é a Geometria:
“Ela era uma das disciplinas que eu mais gostava, pois me ensinava
formas geométricas que depois eu iria aplicar no desenho dos armários e
portões que eu fazia na oficina”.
21
A vocação para a política surgiu logo cedo, nos tempos de escola.
Engajado no movimento estudantil pode atuar na militância, em especial nos
tempos da Ditadura Militar. Sempre ia para as reuniões do “movimento” munido
com idéias que mais tarde ajudaram ao ingresso no sindicalismo, quando fez
parte do Sindicato dos Metalúrgicos, veiculado à CUT.
“Eu me lembro até hoje do medo que os meus colegas e eu sempre
passávamos quando tinha as reuniões do sindicato nas fábricas. Um sempre
ficava tomando conta do outro, com medo dos patrões descobrirem. Porque
uma vez descobertos, éramos demitidos imediatamente ou encaminhados a
Polícia Militar”.
Essa na verdade, era a rotina da época. Uma vez descobertas as
manifestações ditas “subversivas”, as conseqüências não eram nada
agradáveis. Ou a demissão sumária, ou então o encaminhamento para o
DOPS (Departamento da Ordem Política e Social), braço militar da Ditadura no
Brasil. Muitos sindicalistas foram mortos em decorrência das manifestações e
da opinião contraria a da situação. Um dos marcos da Ditadura no Brasil, a
“Marcha dos 100 mil” foi realizada por iniciativa dos sindicatos.
E por ter essa vida tão atribulada, Seu Gerson vivia mais na rua do que
em casa, aumentando assim as lacunas no relacionamento familiar. Fato que
anos depois veio a ser um dos motivos do seu rompimento com a família.
“Minha mãe era muito rígida, por isso que com o passar do tempo
meus irmãos foram se desgarrando. Minha família é muito desunida. Não tem
muita preocupação de se integrar, de fazer festa junto. Por causa disso,
começaram os problemas em casa. Só gostavam porque eu vinha com o
dinheiro da farra, mas não ficavam felizes com a minha presença”.
A separação da companheira que é mãe dos dois filhos dele foi o fator
fundamental para o descaminho. A cachaça associada com as drogas
aumentavam sensivelmente o problema. Ele foi desmoronando por causa do
22
vicio, logo passando a ser uma pessoa em situação de risco, morando na rua.
Entre situações de perigo das mais diversas, vendo a necessidade da procura
de ajuda, procurou as irmãs, que são evangélicas fervorosas. Elas lhe
apresentaram o CAPES e logo o tratamento começou inclusive com passagem
nas Obras Sociais de Irmã Dulce.
Um dos motivos que foram preponderantes para a aceitação do
problema e a busca para um tratamento foi o alto risco de vida das pessoas
que moram na rua.
“Já levei coronhada de policial, colocaram a arma na minha cabeça,
dormia ao relento só porque a droga dava sono, mas mesmo assim acordava
com medo da perversidade dos outros. Porque morador de rua não é lá muito
amigo do outro. Em muitos casos competimos por um espaço, por uma
refeição”.
A falta de compaixão e amor ao próximo eram uma dos fatores que
faziam com que o dia a dia dos moradores de rua fossem mais duros. As
poucas manifestações de caridade que encontrava, não eram de bom grado
mas sim, uma troca de favores.
“Me sentia humilhado, as pessoas me viam diferente. Quando me
davam um prato de comida, eu pensava que era um ato de caridade com um
irmão em Cristo que vivia na rua. Mas logo vinham me pedindo para jogar um
lixo para fora, pegar peso, e com isso ficamos fedorentos. Até o próximo
banho, mais outros dramas eu passava. Isso acabando com a minha auto-
estima.
“Eu não queria que o povo me visse com aquela roupa, só com os
trapos, o problema era que eu não conseguia lavar, e quando isso por milagre
acontecia, como não tinha muitas peças, eu ia para a rua com ela molhada no
corpo, aumentando o fedor”.
23
Seu Gerson por muito tempo foi catador de latinha.Tanto que a
profissão de reciclador foi regulamentada recentemente. Mas mesmo assim,
tempos atrás, o comportamento da sociedade ao lidar com essas pessoas era
bem diferente do civilizado.
“Os motoristas de carros de passeio e de ônibus, jogam os carros em
cima de nós. Já bateram o pneu em minha perna. Passam xingando e nos
colocando nomes. A classe dominante não é educada a tratar aos que passam
necessidade como iguais. Mas sim como lixo ou verme. Não sabendo eles, que
o papel do reciclador para a sociedade é de uma importância imensa”.
A Comunidade da Trindade apareceu em sua vida por causa do
tratamento que fazia na CAPES, com o apoio psicológico das Obras Sociais de
Irmã Dulce. Dentre essas sessões de tratamento, um dos psicólogos sugeriu
que fosse morar na Trindade, para que não pudesse acontecer uma recaída no
tratamento, fato que era uma ameaça iminente.
“Depois do tratamento no ambulatório, você se integra com o pessoal
da Trindade, lá eles ajudam pessoas com o seu problema” – uma sugestão de
um psicólogo na época do tratamento.
“Eu agradeço muito à Deus e a Trindade, por ter resgatado a dignidade
que achava que estava perdida. Chegando aqui fui surpreendido com a
unidade dos N.A (Narcóticos Anônimos), foi ela uma das responsáveis para eu
me afastar das drogas. Porque antes de eu vir morar na Trindade, eu tive uma
recaída”.
“Eu me dedico a Trindade, pois acredito com a filosofia daqui, neste
lugar eu levantei e andei. O acolhimento, o banquete (pois saciei a minha fome)
e o trabalho (os moradores ajudam com a coleta de materiais recicláveis),
foram fatores que me ajudaram muito a minha recuperação”.
24
“Trabalhando no “Aurora da Rua” como jornaleiro, eu ganhava pelo
serviço. Eu recebia e guardava o dinheiro, não fazia mais as “coisas” da rua.
Quando eu torrava tudo em bebida e drogas”.
Relatos como os de Carlos Lima e do Seu Gerson Boaventura,
reforçam a vontade de viver, a superação de obstáculos e de como a vida na
rua pode ser a única saída para momentos de desilusão. A companhia das
drogas, o abandono dos parentes, a marginalização pela sociedade, aumentam
sensivelmente o quadro.
Muitos deles buscam a paz que em muitos momentos da vida não
encontraram. A tranqüilidade agora é resumida em coisas simples, que muitos
não dão valor. Um teto, um prato de comida, uma roupa lavada e uma palavra
de carinho ou de conforto, para muitos de nós soam como necessidades
ínfimas, mas para várias pessoas, e a Trindade abriga muitas delas, é o
verdadeiro paraíso.
O resgate da dignidade e o sentir-se útil à sociedade, também traz um
raio de luz em todas as manhãs aos moradores da Trindade. Este que ilumina
o rosto de cada um e fazendo os olhos brilharem por uma perspectiva de
futuro, é despertado em um projeto que existe na comunidade: O Jornal Aurora
da Rua. Um jornal que é feito pelos próprios moradores da Trindade, relatando
suas experiências nas ruas, sentimentos, dificuldades, e o reerguimento que
conseguiram através da comunidade. Essa é a maior conquista: conseguir seu
sustento e o valor de si mesmo por meio de um trabalho digno.
25
3 Aurora da Rua – O Jornal que nasce da Rua
Nestas noites das noites da rua, eu canto a aurora... Nestas noites escuras sem lua, eu canto a aurora...
Um sorriso de dor, a ternura... Aurora da Rua...
Aurora da Rua... Aurora da Rua...
Papelão, cobertor, nas calçadas, eu canto a aurora... Nas marquises, viadutos e praças, eu canto a aurora...
Acolhida, partilha abraçadas... Aurora da Rua...
~~~~~~~~~~~~
Nenhum lar, ninguém mais a seu lado, eu canto a aurora... Humilhado, vencido, pisado, eu canto a aurora... Encurvado enfim levantado... Aurora da Rua...
Aurora da Rua... Aurora da Rua...
Nas prisões e nas garras das drogas, eu canto a aurora...
Adicção, dependências e morte, eu canto a aurora... Nesta luta, herói, tu és sóbrio... Aurora da Rua...
~~~~~~~~~~~~
Na violência sem lei e sem dor, eu canto a aurora...
Violentada... Queimado... Pavor! eu canto a aurora... Na ternura, partilha da dor... Aurora da Rua...
Aurora da Rua... Aurora da Rua...
Uma luz, no escuro, cintila... Aurora da Rua...
Uma fé, nesta noite, ilumina... Aurora da Rua... O Amor, como sol, ressuscita... Aurora da Rua...
Irmão Henrique, peregrino da Trindade
A idéia do Jornal Aurora da Rua, surgiu em Canudos em 2006. O
projeto, segundo o irmão Henrique, nasceu como uma utopia e o objetivo inicial
26
é ajudar a recuperar a dignidade do povo da rua. Em uma entrevista publicada
em um boletim diário do município o irmão Henrique pontua: “O que vai
permanecer desta experiência toda são mulheres e homens que caminham de
cabeça erguida, encontram uma nova aurora em suas vidas”.
No mês de março de 2007, nos seus 458 anos, Salvador recebeu um
presente especial: O "Aurora da Rua", um jornal de rua que pretende tornar
visível a face e a voz daqueles que muitas vezes são pouco vistos e pouco
ouvidos na sociedade. Um jornal que traz, pela primeira vez para o Nordeste, o
conceito de "jornal de rua". A sede do jornal fica ao lado da Igreja da Trindade.
O "Aurora da Rua" não é apenas uma publicação, mas um projeto de
reinserção social. O jornal se compromete com o processo de construção da
auto-estima e com a formação das pessoas em situação de rua. Com esse
objetivo, foi realizada uma semana de preparação e capacitação dos
vendedores.
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O jornal é vendido exclusivamente por pessoas em situação de rua,
assim servindo de fonte de renda. É fácil reconhece-los de longe, pois todos
portam uma identificação, colete e crachá. O periódico pretende ajudar no
processo de reinserção social dos vendedores, que comercializam o jornal pelo
valor de R$ 1,00 – R$ 0,75 ficam para os vendedores e o restante para a
manutenção da publicação.
Irmão Henrique e o Aurora da Rua - Internet
Os moradores da comunidade contribuem não só com a vendagem do
produto, mas sim com toda a elaboração e construção do conteúdo, através
das oficinas de texto e arte. O jornal traz ao leitor por meio da criatividade, o
universo das ruas, a dura realidade das praças, viadutos, calçadas.
Eles também participam do Código de Conduta com a função de
estimular uma postura responsável e comprometida dos vendedores:
1. Ser vendedor é cuidar de si mesmo, respeitar os
demais e manifestar nas atitudes este respeito. É não usar o nome
do jornal para qualquer outro fim que não seja a venda.
2. O vendedor deve estar sóbrio, não podendo em
hipótese alguma estar sob efeito de álcool ou droga.
3. Todo vendedor é formado, treinado e acompanhado
pela equipe do jornal "Aurora da Rua" ou por instituições parceiras.
28
4. Como vendedor, desejamos resgatar nossa dignidade
através do trabalho e nos comprometer com nossa qualidade de
vida.
O jornal possui matérias diversificadas com uma abordagem sensível e
humanizada sobre o que acontece nas ruas, também o jornal compreende
quadros como Cartas da Rua, tirinhas animadas do Aurora e a Turminha da
Rua, Aurora Notícias e entre outros. Nomes como Vânia, Rute, Carlos Lima e
Vanessa, foram os que abriram portas e janelas para o sucesso do Jornal
Aurora da Rua.
Graduada em jornalismo, Vanessa Ive Pimenta nos conta o processo
de abertura do Jornal Aurora da Rua e as dificuldades:
“O jornal nasceu a partir da necessidade de oferecer uma possibilidade
de trabalho para as pessoas acolhidas na Comunidade da Trindade.
Normalmente os moradores de rua após serem acolhidos, conseguiam se
recuperar de suas fraquezas, resgatar a auto-estima e o gosto pela vida.
Porém, para dar continuidade ao processo de reintegração social era
imprescindível que eles vivenciassem a experiência do trabalho.
Mais do que isso, o trabalho seria a alavanca principal para eles
trilharem o caminho de volta para a sociedade. Hoje, se já é difícil conquistar
um espaço no mercado para quem tem uma base familiar e educacional,
imagina para aqueles que nem se quer tem um comprovante de residência.
Difícil empregar alguém desprovido de um lar, de experiências profissionais, de
uma formação educacional básica...
Além disso, ainda há o obstáculo do preconceito e da resistência em
contratar alguém cujo currículo e trajetória de vida foram manchados, em
muitos casos, pela passagem na prisão, em centros de recuperações de
dependência química, em casas de prostituição...
Enfim... Ao se deparem com essa barreira que a sociedade impõe em
relação à contratação de pessoas fora do padrão comum, os moradores de rua
sentiam-se impotentes, incapazes de mudarem os seus destinos. Por conta de
29
tudo isso, a Comunidade da Trindade teve a idéia de criar um espaço que
preenchesse essa lacuna do trabalho e pudesse oferecer a eles uma
oportunidade de trabalhar sem precisar justificar o seu passado, os seus erros,
sem precisar de moradia fixa e até mesmo de documentos. Dessa
necessidade, nasce o Aurora da Rua.”
A jornalista expõe dificuldades passadas, com a questão do trabalho
que se aliou ao problema de configuração da imagem do morador de rua feita
pela mídia e, por conseguinte, reproduzida pela sociedade.
- O único jornal de rua do Nordeste:
“Com o desejo de revelar as experiências vividas na Comunidade, com
a população de rua, no que diz respeito ao lado humano e belo dessas
pessoas, Henrique – irmão peregrino – sugeriu que o grupo criasse o seu
próprio veículo de comunicação. Ele já conhecia as outras experiências de
jornal de rua e acreditou que fosse possível implantar essa idéia aqui em
Salvador. Hoje, somos o 3º jornal de rua do Brasil e o único do Nordeste.
Nossa experiência é singular diante dos outros exemplares (são 111 no mundo
inteiro, conforme o INSP – International Network of Street Papers).
Jornal Aurora da Rua - Internet
30
Abrangência do Jornal:
"Porque somos o único jornal que contempla as três dimensões: o
conteúdo que fala exclusivamente sobre moradores de rua é produzido e
vendido por eles. Os frutos dessas experiências são enriquecedores e revelam
o potencial de transformação do ser humano.
A partir da produção do jornal, os leitores passaram a conhecer o outro
lado do universo das ruas. Quem imaginava que nas ruas haveria um estilo
próprio de se vestir, de preparar os alimentos, de amar, criar filhos e viver?
Existe uma vida muito além da fragilidade que nossos olhos “doentes”
conseguem ver.
E é buscando o viço, a força, a energia dessa vida que o jornal mantém
aceso o brilho de sua aurora. Quem lê o jornal possui em suas mãos um
conteúdo ímpar, especial, que não será encontrado em nenhum outro veículo
de comunicação, sobretudo, da grande mídia".
Vanessa os conta sobre o processo da elaboração do jornal, que
passou um ano, longo e extenso para definir em muitas reuniões a organização
e o estilo do jornal. O periódico teve a colaboração de voluntários de diferentes
áreas, após os diversos encontros, o jornal foi lançado no dia 24 de março de
2007.
No inicio com a novidade do jornal, não houve muitas dificuldades, os
atraia a atenção da mídia e dos leitores garantindo a divulgação do produto e o
equilíbrio das finanças.
- No decorrer do sucesso, as dificuldades:
“Hoje, sim, passamos por algumas dificuldades. Optamos por ser um
jornal independente, sem publicidades e patrocínios. A sobrevivência financeira
depende da venda do jornal pelos vendedores e pelos assinantes. O jornal é
vendido a 0,25 centavos para os vendedores, embora ele tenha um preço de
custo de 0,65 centavos.
Então, na verdade, o que cobre essa diferença e ajuda a manter as
despesas são as assinaturas. Há assinantes em todo o Brasil e em algumas
empresas de Salvador. Entretanto, gostaríamos de ter mais assinantes para
31
assim pode investir no jornal, sem precisar aumentar o seu preço. Nosso
desejo é nos tornar um veículo mensal e acreditamos que breve isso será
possível.
- Dificuldades em manter um número fixo de vendedores:
Há uma dificuldade em equilibrar a equipe de vendedores. O morador
de rua é, por natureza, inquieto. Gosta de se locomover na cidade, de não ficar
parado, transitar entre as ruas... Ele é essencialmente um homem urbano. Por
conta disso, é difícil encontrar moradores de rua que tenham o perfil do
vendedor de ponto fixo.
Para nós, seria uma boa estratégia ter uma barraca, um ponto fixo em
locais movimentados como a Praça da Piedade, do Campo Grande... Mas os
vendedores, em sua maioria, gostam de vender de forma avulsa e ambulante.
Esse jeito de viver fluído também se reflete na disposição para trabalhar.
É muito comum que eles passem um tempo sem vender o jornal por
estarem indispostos, desgostosos da vida... e depois quando recuperam a
auto-estima, retomam para as atividades normais.
Essa inconstância faz parte da trajetória de recuperação. O problema é
que sempre acabamos tendo uma equipe inconstante... Ora com 10
integrantes, outrora com 15... E assim vamos caminhando.”
Vanessa também ressalta que desde o inicio foi estabelecida uma
organização no jornal que funciona até hoje. Os moradores de rua que se
interessam em entrar na equipe, fazem a formação, pegam o material e
começam a vender. O jornal, por sua vez, elabora durante dois meses o
conteúdo jornalístico e todas as oficinas que fazem parte do processo de
produção.
- A participação dos moradores:
“No começo, houve aquele boom. Todos estavam movidos pela
sensação da novidade e queriam experimentar o trabalho de vendedor.
Tivemos uma equipe significamente grande e até hoje nunca batemos o
recorde das vendas realizadas entre o 1º e o 2º número do jornal.
32
Naquela época, também contávamos com a publicidade da mídia, o
que nos favorecia muito, pois isso fazia os moradores de rua acreditarem mais
ainda no projeto. Fora isso, não há muitas mudanças.
Mantemos sempre um número de vendedores que variam de 10 a 20.
Em relação à população externa, nós sempre tivemos uma boa receptividade.
Os moradores de rua adoram o jornal, o idolatram.
Dizem ser o “melhor da cidade”. Quando fazemos as oficinas de texto
debaixo dos viadutos, sempre somos surpreendidos pela recepção calorosa do
pessoal. Muitas vezes nem conhecemos as pessoas, mas elas já nos
conhecem e nos acompanham há muito tempo”.
“A idéia nasceu na Comunidade”. Assim destaca a jornalista ao
falar das edições:
“O jornal é uma ramificação da Comunidade. É como se ele fosse a
“mãe” do nosso projeto. E como toda “mãe”, sempre olha pelo “filho”. A nossa
sede fica vizinha à Comunidade.
A proximidade física reforça ainda mais a proximidade afetiva. Primeiro,
porque são os acolhidos da Trindade que se interessam, na maior parte, em
serem vendedores. Por iniciarem o processo de reinserção, sentem-se tocados
pela instância do trabalho.
E o jornal funciona muito bem como trampolim para outras
experiências. É uma espécie de transição para aqueles que estão ainda à
margem, mas com um novo estado de consciência cidadã, política, humana e
espiritual. O jornal serve para que eles começam a se acostumar com essa
idéia do compromisso, da responsabilidade.
É uma forma de inseri-los, aos poucos, no ritmo da vida social. Depois,
há muitas pessoas da Comunidade que fazem parte da nossa equipe enquanto
voluntárias. Dessa forma, a Comunidade está sempre presente durante as
reuniões, as festas, os encontros, as oficinas...
A equipe sempre recorre aos acolhidos da Comunidade para fazer
entrevistas, colher mensagens para As cartas das ruas, fazer oficinas de texto
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e de arte, etc. É assim, a partir de encontros, que a Comunidade efetiva a sua
participação na elaboração de cada número”.
A jornalista enfatiza que para ser vendedor do jornal o único critério é a
força de vontade. Mesmo que não tenha documentação, não há empecilho
para fazer parte, pois se houvesse a exigência estariam se igualando ao
comportamento das demais empresas em relação à contratação de pessoas
em situação de rua.
“No geral, não temos problemas com os vendedores. Quem aparece na
sede já fez o primeiro passo. Alguma coisa mudou para que ele tomasse a
iniciativa de procurar o jornal. E isso já é um indício de que aquela pessoa, ao
menos, deseja mudar a sua realidade.
O problema é que o desejo apenas não é suficiente. Haverá muitos
obstáculos no caminho para realmente se estabelecerem como vendedores.
Primeiro, lidar com o dinheiro. Como poupá-lo, administrá-lo? Mais, como fugir
dos vícios? Ainda mais agora que se tem dinheiro nas mãos.
Como manter a serenidade diante dos dias ruins – aqueles em que se
vende tão pouco? São muitas questões que envolvem o vendedor na sua
profissão, sobretudo, para quem estava mergulhado em outro ritmo de vida: da
mendicância, da exclusão, da vulnerabilidade...
Por tudo isso, o jornal sempre precisa está atento ao bem estar dos
vendedores e acompanhá-los em todas as instâncias: pessoal, profissional,
amorosa, familiar, a saúde... Talvez seja por isso, por esse acompanhamento
dialógico e humano, que o jornal não enfrenta muitos problemas com os
vendedores”.
- A influência do Aurora da Rua na valorização dos moradores da
Trindade:
“Existem muitas formas de participar do jornal. Pode ser como vem
vendedor, “jornalista”, leitor, divulgador ou como fonte. Em todas essas
instâncias, é possível perceber os benefícios que o jornal oferece para os
moradores de rua.
34
Dessa forma, quando não são vendedores, os acolhidos da Trindade
também resgatam a auto-estima ao se verem no jornal como personagens de
histórias bonitas, cheias de lição de vida; ao se verem como gente, seres
humanos portadores de uma identidade, de desejos, sonhos e valores.
Depois, como leitores, também vivenciam a valorização. Lêem histórias
de parceiros, depoimentos de outras pessoas que partilham da mesma dor, da
mesma perda, da mesma esperança de dias melhores.
A descoberta de um novo caminho:
"E ainda há aqueles que se descobrem como jornalistas; que
descobrem suas habilidades desconhecidas por eles próprios. Uma das
maiores recompensas do trabalho do Aurora da Rua é ver como eles repensam
a sua condição de sujeito através dos textos; como percebem que ser morador
de rua não é motivo para vergonha, tristeza.
Passam a entender que eles fizeram (fazem) parte de uma trajetória de
perdas sucessivas, que após a perda de tantas coisas, também perderam a si
mesmo. Passam a ser mais generosos consigo mesmo; a se perdoarem; a
perdoarem seus pais, seus amores.
Passam a se perceber como um todo: um grupo imensurável de
pessoas que repetiram a mesma história; que foram desprovidos das mesmas
coisas. Assim, mudam o seu olhar diante da população a qual eles fazem
parte. Passam a ter um olhar mais sensível, mais humano.
E isso ajuda a diminuir o rancor pela sua própria condição de
marginalidade, transformando as frustrações e os desgostos em força e
perseverança para mudarem o futuro de suas histórias.
É difícil medir a valoração que o jornal atribuiu e atribui às pessoas da
Trindade e aos outros moradores de rua também. Porque até agora falamos do
valor humano, mas ainda há a descoberta do valor político enquanto sujeito de
direitos”.
- A rotina do Jornal Aurora da Rua:
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“A cada dois meses, o jornal passa por tais processos de produção:
1º: Reunião de pauta: encontro com equipe de voluntários,
vendedores, simpatizantes ao projeto e moradores de rua. Nesta reunião, nós
decidimos a temática da edição; a pauta de cada editoria; os locais e os dias
em que serão realizadas as oficinas de texto e outros assuntos que estejam
pendentes.
2ª: Partimos para a execução do material: Os moradores de rua e
vendedores, aspirantes à jornalista, são convocados para dividir as tarefas de
produção. Cada um fica com uma parte. Por exemplo, na página 3 (Diversos de
Rua), uns fazem a entrevista (elaboram a pauta e vão atrás das fontes), outros
são destinados a coletar as fotografias.
Depois, esse material é levado à sede onde eu e Íris Queiroz
(jornalistas), sentamos com eles e começamos o processo de preparação do
texto.
Como o jornal é diagramado:
Na maioria dos casos, a página 3 é uma matéria ping-pong, o que
permite mais fidelidade ao trabalho dos nossos “jornalistas”, sem muita
intervenção nossa na escrita do texto, por ser uma matéria, em maior parte, de
transcrição de fala.
As páginas 4 e 5 (Matéria de Capa) requerem mais elaboração. Nós
coletamos os depoimentos e as impressões das oficinas de texto e depois
costuramos essas informações como se o produto final fosse uma colcha de
retalhos, buscando sempre manter a fidelidade ao sentimento e a expressão do
morador de rua.
Já a página 7, (Brilho do Aurora), é feita exclusivamente por algum
morador de rua ou vendedor. Ele (a) próprio faz a entrevista e produz o perfil.
Contudo, todo o material do jornal passa pelas mãos de profissionais, pelo filtro
dos critérios e dos aspectos jornalísticos, até chegar a etapa final, que é a
impressão na gráfica.
Enquanto realizamos essas etapas de produção, o trabalho diário do
jornal se resume em: atendimento e acompanhamento aos vendedores (é
importante sentar e tomar um cafezinho com eles, ouvi-los, conversar, dar
36
atenção); atendimento de visitantes, leitores e estudantes; divulgação das
assinaturas nas empresas; gerenciamento das assinaturas.
Além das atividades mais jornalísticas: produção dos textos, assessoria
de imprensa, manutenção das redes sociais, elaboração das dinâmicas das
oficinas de arte e de texto, fotografias da matéria; diagramação; correção de
texto, etc.”.
A integrante do Jornal Aurora da Rua, pontua que para o jornal se
manter, enfrenta dificuldades com o equilíbrio no setor financeiro, necessitando
de mais assinaturas para garantir a harmonia nas despesas e também o
equilíbrio da equipe de vendedores, pois a uma inconstância no número de
vendedores.
- Jornal Comunitário X Mercado:
“Normalmente, a experiência de um jornal comunitário, como o jornal
de rua, eleva a função social do Jornalismo e, por sua vez, dos jornalistas.
Difícil responder pelos outros jornalistas dedicados a essa área, mas posso
responder pela minha experiência e de alguns colegas que sinto comungarem
do mesmo sentimento.
Para ser um jornalista comunitário, é preciso sair do seu lugar comum e
ir à busca do diferente – do outro. É preciso aguçar todos os sentidos, porque
ver e ouvir não são suficientes para traduzir sentimentos que não lhes
pertence. Mais do que dialogar, é preciso estar no lugar desse outro.
Olhar com os olhos dele, sentir com o coração dele, tocar com as
mãos dele, lembrar com a memória dele. Porque nós, jornalistas comunitários,
somos porta-vozes de rostos sem nome. Somos ecos de um grito sufocado.
Por isso, é preciso despir-se.
Despir-se dos preconceitos:
Despir-se de conceitos, preconceitos, imagens e opiniões. É preciso
estar inteiro e pronto. Pronto para sentar no papelão; aceitar um alimento
oferecido (ainda que tenha vindo do lixo); para ouvir uma fala entrecortada por
37
soluços, silêncio e divagações; para enfrentar olhos transfigurados, sofridos;
para buscar o traço de humanidade que nos une – aquele que nos permite
dizer “somos iguais”.
Quais são os espaços jornalísticos em que podemos vivenciar tudo
isso? Poucos.
Bem, o mercado não está muito preocupado com o Jornalismo atuante
em comunidades. Mas, ainda assim, conseguimos se inserir no espaço da
grande mídia para mostrar o que se faz nos lugares à margem da cidade. Caso
fizéssemos uma pesquisa na internet sobre população de rua há 10 anos,
encontraríamos majoritariamente as palavras: mendicância, violência, morte,
drogas, etc.
Inserção política e dignidade:
Hoje, essas palavras continuam, mas ao lado delas aparecem: Política
Nacional da População de Rua, Pesquisa Nacional sobre a População de Rua,
III Encontro Nacional de População de Rua, II Marcha da População de Rua, 8º
café do presidente Lula com catadores e moradores de rua... Alguma coisa já
mudou. E isso indiscutivelmente se deve ao papel de nós, jornais comunitários,
que através de nossa influência política, nossa formação profissional,
conseguimos colocar essas pessoas no palco da arena política-cidadã.
Assim, de alguma forma, estamos influenciando a formação ideológica
de leitores e de nossos colegas profissionais também. E se não há valorização
nesse âmbito, sem dúvida, haverá naquele onde estão os verdadeiros
beneficiados – gente que aprendeu desde cedo, os valores mais genuínos da
vida, a agradecer e a perdoar, a driblar as dificuldades e ainda persistir sorrindo
como todo bom brasileiro”.
Vanessa lembra como uma matéria do "Aurora da Rua" fez com
que uma leitora encontrasse um novo significado para a palavra amor:
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"Lembro de uma garota que me abordou para falar do número 8 sobre
Histórias de Amor. Ela havia descoberto nos moradores de rua o verdadeiro e
genuíno significado da palavra amor.
Se eles cujo vigor e beleza física foram usurpadas pela condição de
miséria, cuja precariedade material lhe poupa dos maiores prazeres da vida,
cuja exposição extrema lhe retira a privacidade que é essencial a qualquer
relacionamento; se eles, ainda assim, conseguem amar e manter uma relação
de 8 a 15 anos, é porque eles sim vivem e experimentam o verdadeiro amor:
aquele que rompe qualquer barreira.
Essa leitora havia lido diversas histórias de pessoas que mesmo nas
ruas conseguiram se casar e orgulham-se de suas certidões de casamento.
Casais que partilham todos os alimentos que conseguem, partilham o cobertor,
os espaços de proteção, as dificuldades, as dores e as pequenas alegrias.
Mas apesar de tudo isso, a verdadeira descoberta da leitora ainda foi
perceber que os moradores de rua são seres humanos que choram, sofrem,
riem, sonham e, sobretudo, amam".
Desta forma a Igreja da Trindade e o Jornal Aurora da Rua ajuda os
moradores de rua, como o vendedor de jornais Denivaldo Veloso, que passou
por uma dura realidade e hoje prossegue o curso da vida, longe dos vícios e
com metas a alcançar no futuro.
- Como cheguei na Trindade:
“A Comunidade da Trindade eu conheci através do projeto “Levanta Te
Anda” que atende a população em situação de rua dando suporte com oficinas,
acolhimento, onde projeto da assistência para população com a higiene como
banho, cortar cabelo, fazer barba. Também com programações educativas e
recreativas dando atendimento médico a população de rua, assistência social e
trabalha o lado espiritual, mas eu só tive um vinculo com a comunidade
mesmo, quando eu comecei a dormir na frente igreja”.
- Sua trajetória de vida nas ruas
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Ao olhar no vazio, Veloso relembra todo seu passado nas ruas, ele
tinha tudo: casa, família, uma vida aparentemente normal. Mas perdeu tudo por
causa da adicção4, passando três anos da sua vida nas ruas.
“Eu praticamente não dormia. Já dormi na frente do SAC, também teve
uma época que dormi na praia da Preguiça, mas acordava às 03h00 da manhã
e ficava em frente ao SAC, guardando fila de identidade para ganhar um
trocado para o meu próprio sustento.
Passei a morar no local onde eu guardava fila. Esperava a merenda
que começava a partir às 18h00 e já ficava por ali mesmo, quando marcava
01h00 da manhã já estava de pé para guardar fila e às 05h00 eu já estava com
uns R$30,00 a R$ 40,00 conto na mão ao qual me facilitava o dia a dia em
relação à alimentação, mas naquele tempo eu sofria com a adcção e gastava
tudo com bebida e com as drogas”.
- As dificuldades:
“A maior dificuldade que um morador de rua encontra é a
discriminação. Nós não temos valor, não merecemos respeito, somos vigiados
quando entramos em um lugar. Também temos dificuldade em relação à
dormida, pois a mudança de clima atrapalha muito. Mas também existem
pessoas que ajudam durante a noite passando e oferecendo quentinhas, suco,
sopa, mingau. No dia seguinte temos que batalhar e muito”.
Segundo Veloso, a sociedade enxerga os moradores de rua como
ladrões, drogados ou coitadinhos. Também ressalta que são muitos motivos
que levam a uma pessoa ir morar nas ruas, não conseguindo sair da situação
por causa da auto-estima muito baixa e em consequência os vícios em drogas.
- A esperança:
4 Adicção: Condição de impotência em relação a uma droga; perda do auto-controle em
relação a bebida/droga.
40
“Muitas vezes eu tive esperança e esperava algo de Deus, mas muitas
vezes me sentia um derrotado, já não tinha mais esperança de nada, a minha
vida acabava e me acomodava com aquela situação. Sempre tive fé em Deus
que um dia iria melhorar, mas descobrir que essa melhora está dentro de nós
mesmos nas ações em mudar, em decidir fazer algo por nós mesmos”.
- Como a Comunidade da Trindade ajudou?
“A comunidade me deu todo o suporte que eu precisava, no momento
eu necessitava de um lugar para dormir, pois na rua a gente não dorme e sim
cochila e essa preocupação com a noite faz com que nossas forças fiquem
esgotadas durante o dia.
Também me deu moradia, alimentação e incentiva muito na minha
recuperação, isso é fundamental. Ajuda na parte espiritual trazendo a sensação
de estarmos mais jovens e deixa a gente mais acreditado com a vida,
levantando a auto-estima para ir atrás do nosso sustento e trabalho”.
Veloso também nos explicou como é a rotina na Trindade e no Aurora
da Rua:
“Cada dia é um dia diferente temos a segunda-feira que acordamos e
oramos no café da manhã e depois saímos para trabalhar. Durante o dia nós
trabalhamos no jornal, cada um tem uma função e assume a suas obrigações,
à noite nos reunimos para a nossa oração a o jantar.
No outro dia enfrentamos a batalha de novo, isso de segunda a quarta,
a quinta-feira é um dia comunitário acordamos participando com mutirão,
depois temos a oração com o café da manhã e continuamos com o mutirão o
dia todo.
Na sexta-feira voltamos a nossa atividade de vender o jornal, no
sábado temos um dia comunitário e no domingo é o dia do encontro fraternal
onde todo mundo se reúne e divide o pão e a comida com as orações”.
Hoje, Veloso possui perspectivas de futuro e deseja que a comunidade
da Trindade esteja sempre em crescimento, pois com este trabalho que é
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exercido serve de incentivo para as outras pessoas e todo morador de rua que
chega à Trindade consegue sair dominando a própria vida.
“A minha vida hoje está retomada e estou bastante incentivado. Parei
meus estudos no 2º ano do 2º grau e vou retomar, eu sonho é fazer
comunicação, com intuito de ajudar o jornal Aurora da Rua. Voltei em ter a
esperança de construir algo na vida e que nada está perdido”.
Neste cenário percebemos a ajuda dos que tem a sensibilidade dos
principais valores humanos e o recomeçar a vida daqueles que já estavam
conformados com a situação desumana, isso traz uma reflexão de que vivemos
em uma sociedade que só pensa em si, só quer para si, praticando o
individualismo. Pelo número de pessoas que necessitam de um alimento, de
uma roupa, é desproporcional ao número de pessoas que doam e se doam
para ajudar espaços como a Comunidade da Trindade.
Ternura, Trindade de Ternura,
Trindade que acolhe o povo da rua.
Trindade, Ternura e amor,
Mistério desvendado por um povo sofredor
Com Ternura, a Trindade perdoa,
Ela não escolhe, a todos acolhe...
Acolhe perdoa e chama:
A Trindade com ternura nos ama!
É o Pai, é o Filho e o Santo Espírito...
Trindade de Ternura, mistério vivido...
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Obrigado Deus Pai
Obrigado Deus Filho
Obrigado Santo Espírito,
Pela Ternura que nos tem concedido...
Trindade de Ternura, mistério vivido...
Poesia Trindade de Ternura
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4 A Dignificação do Morador de Rua
Como foi visto nos capítulos anteriores, desde a sua fundação, a Igreja
da Trindade tem sido um local de transformação de realidades. Um lugar
abandonado, caindo aos pedaços e que resistiu a um incêndio, se transformou
décadas depois em um lugar de segurança e conforto para os que tanto
necessitam.
A iniciativa do Irmão Henrique ao acolher moradores de rua na
Trindade foi o sopro de esperança - que muitos acham perdida - para os
excluídos pela sociedade. Assim revertendo, mesmo que parcialmente, o
quadro de abandono e marginalização.
Segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que no seu
artigo 7 diz:
"Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer
distinção, a igual proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção
contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra
qualquer incitamento a tal discriminação".
A pergunta que paira no ar é a seguinte: Como os moradores de rua
são tratados? Como iguais? Com os mesmos direitos? E a vil discriminação a
que são expostos? A mesma que Carlos Lima e o Seu Gerson Boaventura
tanto frisaram nos seus depoimentos. Não somos uma sociedade justa e
democrática. O conceito de democracia que para muitos soa como um pretexto
político, para a grande maioria da população é um ideal ainda difícil de ser
concebido.
Somos democráticos a cada quatro anos. Colocamos os gestores do
dinheiro público nos seus cargos. Mas infelizmente o poder de retirá-los dos
seus cargos devido a alguma irregularidade só é possível ser feito pelos
próprios pares, ou seja, os políticos. E esse cenário desemboca na sociedade
em forma de marginalizados.
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Vanessa Pimenta, nos contou em nossas entrevistas como o "Aurora
da Rua" consegue, com êxito, fomentar na mentalidade dos moradores em
situação de risco que trabalham como jornaleiros a dignidade do sustento
baseado no trabalho e como a auto-estima dos moradores que eram retratados
no jornal era facilmente recuperada:
"A minha primeira matéria do jornal foi sobre a relação entre moradores
de rua e animais de estimação. A fonte principal era Adilson – morador de rua
alcoólatra e com aparentes problemas mentais – que tinha um cachorro
chamado Lobo, verdadeiro guardião de suas noites.
Foi muito complicado entrevistá-lo, porque suas frases eram bem
desconexas e soltas. Adilson era um sujeito atormentado pelas suas próprias
frustrações e refugiava-se na bebida.
Enfim, consegui elaborar a matéria e Adilson mais Lobo foram capa do
jornal. Resultado: Adilson se transbordou de orgulho, emoção e felicidade ao
deparar-se com a sua imagem na capa, como ele mesmo disse: “tão bonito
assim...”. Adilson descobriu que “ainda” era gente.
De lá para cá, Adilson nunca mais bebeu. Hoje, ele tem a sua casa e a
sua esposa. Dois meses após a publicação dessa edição, Adilson apareceu na
sede, de paletó, bem arrumado, e me agradeceu por eu ter devolvido a vida a
ele. Fiquei emocionada.
Tinha valido à pena ficar quatro anos numa faculdade para poder
vivenciar aquele momento e ouvir isso de alguém. Na verdade, não fui eu que
devolvi a vida para Adilson. Foi a comunicação e todos os seus potenciais.
O jornalismo tem esse poder de destruir e construir imagens. Se bem
utilizado para “fazer o bem”, ele pode colher frutos de valores imensuráveis,
como o exemplo dos nossos leitores, que se surpreendem a cada edição".
Fatos como este, que relatam o resgate de uma pessoa, são
fundamentais no reforço do papel do "Aurora da Rua" relacionado ao universo
dos que lá trabalham ou são retratados em matérias. O que para muitos seria
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um motivo para um mero bate-papo, - ser retratado em uma matéria de jornal -
se configurou em uma grande guinada na vida do Adílson.
São essas contribuições que fazem a diferença para uma pessoa
marginalizada. O fato de se sentir importante é vital no processo de
dignificação.
Seres humanos dotados de vontade para crescer e ávidos por uma
oportunidade que os façam refletir qual seria a condição para a sociedade
começar a enxergar com outros olhos, aqueles que em algum tempo tiveram
casa, família e de onde tirar o seu sustento.
O que tentamos neste livro, além de uma divulgação, o que é feito na
Trindade com o "Aurora da Rua". O acolhimento, o saciar da fome, o dormir
com teto, o banquete da alma. Nestas páginas o que foi escrito e relatado
foram as nossas experiências com pessoas que tem a mesma vontade: A de
serem vistas pela sociedade com outros olhos.
Resgatar a dignidade através do trabalho e com a acolhida um novo
sentido de "casa". Essa para nós foi a lição que a Trindade nos deu. Como
uma igreja abandonada virou o lar dos que não tinham um futuro. Ver os
jornaleiros do "Aurora da Rua" orgulhosos com seu colete e crachá de
identificação foi outra maravilhosa constatação.
Quem vende o jornal sabe que a sociedade enxerga com outros olhos
quem trabalha e luta pelo seu sustento. Um colete e um crachá, aliados a uma
proposta de amparo e dignificação se transformaram em bens preciosos para
pessoas que não tinham nenhuma posse de valor.
O valor do amanhã, da esperança e do orar agradecendo o dia de
trabalho que foi realizado. E tem gente que acha isso muito pouco. Pergunte
aos moradores da Trindade. Eles irão te responder com o sorriso nos lábios e
prontamente responder.
"Agora voltei a ser gente, sou trabalhador e tenho endereço fixo"
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5 REFERÊNCIAS:
Blog da Comunidade da Trindade: www.comunidadedatrindade.blogspot.com
Site Jornal Aurora da Rua: www.auroradarua.org.br
Entrevistas: Carlos Lima, Denisval, Seu Gerson Boaventura, Vanessa Ive
Pimenta.
Imagens fotográficas: Jaqueline Vaz Gasparini e João Aguiar Neto - Internet