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monstros fabulosos

Alberto Manguel - Edições Tinta da China...lisboa tinta ‑da china‑ MMxix tradução de Rita Almeida Simões com ilustrações do autor Alberto Manguel Monstros fabulosos drácula,

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Page 1: Alberto Manguel - Edições Tinta da China...lisboa tinta ‑da china‑ MMxix tradução de Rita Almeida Simões com ilustrações do autor Alberto Manguel Monstros fabulosos drácula,

m o n s t r o s fa b u l o s o s

Page 2: Alberto Manguel - Edições Tinta da China...lisboa tinta ‑da china‑ MMxix tradução de Rita Almeida Simões com ilustrações do autor Alberto Manguel Monstros fabulosos drácula,

l i s b o atinta ‑da ‑chinaM M x i x

tradução de Rita Almeida Simões

com ilustrações do autor

Alberto Manguel

M o n s t ro s f a b u l o s o s

drácula , al ice , super ‑homem e outros amigos literários

Page 3: Alberto Manguel - Edições Tinta da China...lisboa tinta ‑da china‑ MMxix tradução de Rita Almeida Simões com ilustrações do autor Alberto Manguel Monstros fabulosos drácula,

Prefácio 9

Monsieur Bovary 23Capuchinho Vermelho 27Drácula 31Alice 35Fausto 41Gertrudes 45Super ‑Homem 49Don Juan 55Lilith 59Judeu Errante 65Bela Adormecida 69Phoebe 73Hsing ‑chen 77Jim 83Quimera 91Robinson Crusoe 97Queequeg 103Tirano Banderas 107Cide Hamete Benengeli 113

Job 121Quasimodo 125Casaubon 131Satanás 139Hipogrifo 143Nemo 147Monstro de Frankenstein 153Arenoso 159Jonas 165Dona Emília 177Wendigo 181Avô da Heidi 185Elsa Esperta 189Long John Silver 193Karagöz e Hacivat 199Émile 203Simbad 209Mandarim 213Wakefield 219

Fontes 225Créditos 230Agradecimentos 231

í N D i C E

© 2019, Edições tinta ‑da ‑china, Lda.Rua Francisco Ferrer, 6A

1500 ‑461 LisboaTels: 21 726 90 28/9

E ‑mail: [email protected]

www.tintadachina.pt

Título original: Fabulous Monsters:Dracula, Alice, Superman,and Other Literary Friends© 2019, Alberto Manguel

c/o Schavelzon Graham Agencia Literaria, S.L.www.schavelzongraham.com

Título: Monstros Fabulosos. Drácula, Alice, Super ‑Homem e outros amigos literários

Autor: Alberto ManguelTradução: Rita Almeida Simões

Revisão: Tinta ‑da ‑chinaComposição: Tinta ‑da ‑china

Capa: Tinta ‑da ‑china (V. Tavares)

1.ª edição: Setembro de 2019

isbn 978 ‑989 ‑671 ‑503‑8Depósito Legal n.º 460303/19

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Para a Amelia, que gosta de princesas, e a Olivia, que prefere dragões

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P R E F á C i o

— É uma menina! — respondeu Felge, todo entusiasmado, pondo ‑se em frente de Alice para a apresentar, e estendendo ambas as mãos para ela, numa atitude muito anglo ‑saxónica. — Encontrámo ‑la hoje. É a sério e muito verídica.

— Sempre pensei que elas fossem monstros fabulosos! — exclamou o Unicórnio. — Está viva?

— Pode falar —disse Felge, solenemente.o Unicórnio olhou incrédulo para Alice, e pediu ‑lhe:— Fala, menina.Alice não pôde evitar um sorriso, ao dizer:— Sabes, eu também pensava que os Unicórnios eram

monstros fabulosos! Nunca tinha visto um vivo!— Bem, agora já nos vimos um ao outro — constatou o

Unicórnio. — Se acreditares em mim, eu acredito em ti. De acordo?

Lewis Carroll, Alice do Outro Lado do Espelho1

Os guias turísticos disponibilizam percursos dos árduos cami‑nhos percorridos por Ulisses e Dom Quixote. Diz ‑se que uns

1 Todos os excertos de Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho são tradução de Margarida Vale de Gato (Relógio D’água, 2000). [N. da t.]

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edifícios degradados albergam o quarto de Desdémona e a varanda de Julieta. Uma aldeia na Colômbia garante ser a Macondo de Aure‑liano Buendía, e a ilha de Juan Fernández vangloria ‑se de ter recebido, há séculos, Robinson Crusoe, esse singular imperialista. Desde há muitos anos que os correios britânicos se ocupam da correspondên‑cia dirigida a Sherlock Holmes, no número 221b de Baker Street. Já Charles Dickens recebia um sem ‑número de cartas de pessoas zan‑gadas acusando ‑o da morte da Pequena Nell, n’A Loja de Antiguida‑des. A biologia diz ‑nos que descendemos de criaturas de carne e osso, mas, no fundo, sabemos bem que somos filhos e filhas de fantasmas de papel e tinta. Há séculos, Luis de Góngora definiu ‑nos nestes termos:

o sonho, autor de representações,no seu teatro armado sobre o vento,sói vestir sombras de belo vulto.

A palavra «ficção» entrou na língua portuguesa no início do século xvi, com o significado «suposição», «hipótese». Segundo os dicio‑nários de etimologia, deriva, pelo francês, do particípio passado do verbo latino fingere, que, na origem, significava «modelar na argila, criar». A ficção é, portanto, uma espécie de Adão verbal, moldado à imagem do Autor, a partir de uma poeira primordial, e infun‑dido de vida pelo Autor. Talvez por isso, e apesar da contradição, as melhores personagens de ficção tantas vezes nos pareçam mais vivas do que amigos de carne e osso. Longe de obedecerem às suas histórias, mudam a trama a cada leitura que fazemos, iluminando certas cenas e obscurecendo outras, acrescentando um episódio surpreendente de que nos tínhamos misteriosamente esquecido ou um pormenor que nos passara despercebido. o aviso de Hera‑clito acerca do tempo é verdadeiro para todos os leitores: não lemos nunca o mesmo livro.

Para os leitores, o mundo revela ‑se frequentemente através das páginas dos livros. Quando, em Alice do Outro Lado do Espelho, Alice vê Humpty Dumpty tão precariamente empoleirado num muro estreito, pergunta ‑lhe, preocupada, se não acha o solo mais seguro. «É claro que não acho!», escarnece Humpty Dumpty. «ora, se eu alguma vez caísse… o que é bastante improvável, mas se eu caísse…» Faz pausa solene. «Prometeu ‑me o rei que… com a sua pró‑pria boca… que… que…» «Que mandava todos os seus homens e os seus cavalos», interrompe Alice, imprudente. Humpty Dumpty irrompe num ataque de fúria. «De certeza que estiveste a ouvir atrás das portas… ou das árvores… e pelas chaminés… senão não podias ter adivinhado!», grita. «Mas não fiz nada disso!», responde Alice, muito docemente. «Vem escrito num livro.» Nenhum verda‑deiro leitor acha a explicação de Alice surpreendente.

os leitores do mundo inteiro veneram escritores como Shakes‑peare e Cervantes, mas esses seres, imortalizados em retratos imaginários e solenes, são menos tangíveis que as suas criaturas imortais. o Rei Lear e Lady Macbeth, Dom Quixote e Dulcineia são presenças reais mesmo para muitas pessoas que nunca leram os livros. Conhecemos as paixões complexas de Dido e de Don Juan muito melhor do que as vidas íntimas de Virgílio e Molière, tirando os aspectos revelados nos romances de Hermann Broch e Mikhail Bulgákov. os leitores sempre souberam que os sonhos da ficção engendram o mundo a que chamamos real.

Dante sabia isto muito bem. No Canto iV do Inferno, depois de atravessar a terrível porta que bane toda a esperança, Virgílio mostra a Dante o Nobre Castelo que aloja as almas dos justos que nasceram antes da vinda de Cristo. Entre os homens e as mulheres de olhar parado e grave que lá encontra, Dante vê Eneias, o herói sonhado por Virgílio, e não lhe dedica senão duas palavras: «ed Enea.» Dante parece entender que, tendo ele concedido a Virgílio

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a complexa realidade requerida por um dos três protagonistas da Comédia, a personagem imaginada (Eneias) não pode ter o mesmo peso literário que a personagem que a imaginou (Virgílio). Eneias existe na Comédia, mas tão ‑só como sombra fugaz, para que Virgí‑lio se enraíze na mente do leitor não só como o autor histórico da Eneida, mas também como memorável companheiro de viagem de Dante.

Na minha adolescência, graças a um professor de liceu peculiar, lemos nas aulas alguns textos de Edmund Husserl acerca de feno‑menologia, que as nossas mentes idealistas acharam fascinantes. Enquanto a maior parte do mundo adulto parecia insistir que só valia a pena cuidar de coisas tangíveis, Husserl, para nossa grande alegria, defendia que podemos forjar elos, inclusive profundos, com coisas que são consideradas inexistentes. Tanto quanto sabe‑mos, não há provas concretas da existência de sereias e unicórnios, mas os bestiários chineses medievais declaram que a razão por que raramente vemos unicórnios é a sua extrema timidez. E, porém, argumenta Husserl, a mente humana pode dirigir ‑se intencional‑mente para esses seres imaginários e criar entre nós e eles aquilo a que chama, sem ponta de poesia, «uma relação diádica normal». Estabeleci relações dessas com centenas de criaturas assim.

Nem todas as personagens literárias são companheiros de elei‑ção de todos os leitores; só aquelas de que mais gostamos nos seguem ao longo dos anos. No meu caso, não sinto como meus os problemas indubitavelmente dilacerantes de Renzo e Lucia, em I promessi sposi, de Mathilde de la Mole, nem de Julien Sorel n’O Vermelho e o Negro, nem da família Bennet, tão preocupada com o estatuto, em Orgulho e Preconceito. Sinto ‑me mais próximo da ira vingativa do Conde de Monte Cristo, da confiança robusta de Jane Eyre, da razoável melancolia do Sr. Teste, de Valéry. os meus com‑panheiros mais íntimos são muitos: o Homem Que Era Quinta‑

‑Feira, de Chesterton, ajuda ‑me, como que por magia, a sobreviver ao absurdo do dia ‑a ‑dia; Príamo ensina ‑me a chorar a morte de amigos mais jovens, e Aquiles, a dos mais velhos; a Capuchinho Vermelho e Dante Peregrino guiam ‑me pelos bosques escuros da vida; o vizinho de Sancho, o exilado Ricote, permite ‑me entender parte da infame noção de preconceito. E há tantos outros!

Talvez um dos principais atractivos destes monstros fabulo‑sos sejam as suas múltiplas e mutáveis identidades. Arraigadas nas suas próprias histórias, as personagens de ficção são impossí‑veis de prender entre as capas dos seus livros, por breve ou vasto que esse espaço seja. Hamlet nasce já adulto sob as arcaturas de Elsinore, e morre ainda jovem entre uma pilha de cadáveres num dos salões do castelo, mas gerações de leitores resgataram de uma escuridão sem registo tanto a sua infância freudiana quanto a sua carreira política póstuma: no Terceiro Reich, por exemplo, quando se tornou a personagem mais representada nos palcos ale‑mães. o Polegarzinho fez ‑se homem, Helena tornou ‑se uma velha enrugada, o Rastignac de Balzac trabalha no Fundo Monetário internacional, Ulisses naufragou ao largo de Lampedusa, Kim foi recrutado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico, Pinóquio definha num campo de concentração para crianças no Texas, a Princesa de Clèves foi obrigada a procurar trabalho. Ao contrário dos seus leitores, que envelhecem e nunca voltam a ser jovens, as personagens ficcionais são, ao mesmo tempo, quem eram quando lemos as suas histórias pela primeira vez e quem se tornaram no decurso das nossas sucessivas leituras. Todas as per‑sonagens literárias são como Proteu, a divindade marinha a quem Poseidon concede o poder de se transformar em qualquer forma do universo. «Eu sei quem sou», diz Dom Quixote, numa das suas primeiras aventuras, depois de um vizinho tentar convencê‑‑lo de que não é uma das figuras imaginárias dos seus preciosos

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com as imagens que formamos delas.» Husserl acrescentaria que os «outros» não precisam de ser de carne e osso.

A minha experiência foi husserliana. Uma pessoa pode construir a sua autobiografia de muitas maneiras: pelos lugares em que viveu, pelos sonhos que teve e que ainda recorda, pelos encontros marcan‑tes com homens e mulheres imorredouros, pela mera narração cro‑nológica. Sempre pensei a minha vida como um virar de páginas de muitos livros. As minhas leituras, as leituras que formam a minha cartografia imaginária, definem quase todas as minhas experiên‑cias íntimas, e consigo associar praticamente tudo o que julgo saber acerca das coisas essenciais a um certo parágrafo ou frase.

Essas páginas tão longínquas e tão antigas incluem as experiên‑cias actuais. Nesta nossa era de angústia, as migrações forçadas, os refugiados persistentemente optimistas, as pessoas que procu‑ram asilo e naufragam e dão à costa na Europa reflectem ‑se todos na figura de Ulisses a tentar chegar a casa. Num estudo feito em 1992 por um investigador da Universidade de Guadalajara, no México, um dos trabalhadores emigrantes entrevistados descre‑veu a sua viagem rumo aos Estados Unidos: «o Norte é como o mar», disse. «Quando viajamos ilegalmente, somos arrastados pela cauda, como um animal, como lixo. Lembrei ‑me do mar, que lança o lixo para as praias, e pensei que talvez fosse como se eu estivesse no oceano, a ser rejeitado repetidamente.» É a experiência de Ulis‑ses, depois de se separar de Calipso, numa nova tentativa de alcan‑çar ítaca, mas receando um fim lastimável.

Não tinha acabado de proferir estas palavras quando o atingiu de cima a onda gigante, precipitando ‑se com força terrível. E imediatamente a jangada redemoi‑nhou em torvelinho. Ele próprio caiu ao mar, afas‑tado da jangada; deixou cair o leme da mão. Partira ‑se o

romances de cavalaria. «E sei que posso ser não só os que eu disse, mas todos os Doze Pares de França, e ainda todos os Nove da Fama, pois todas as façanhas que eles todos juntos e cada um sozi‑nho fizeram não valem tanto como as minhas.»2 Dom Quixote assume empaticamente as múltiplas identidades das personagens dos seus livros.

Mais etimologias. À semelhança de simpatia, empatia deriva da raiz grega páthos, que significa «suportar», «sofrer». A palavra empa‑thes no sentido de «muito afectado por» raramente aparece no corpus grego. Aristóteles, por exemplo, só emprega o termo uma vez, no sexto livro do seu tratado sobre sonhos, para referir o medo intenso sentido por um cobarde que sonhe que os seus inimigos se apro‑ximam. Em inglês, empathy, empatia, é uma invenção francamente recente. Foi cunhada em 1909, por um psicólogo da Universidade de Cornell, Edward Bradford Titchner, que sugeriu o termo como tradução do Einfühlung alemão. Segundo Titchner, esse impulso emotivo de nos «identificarmos» com algo ou alguém é uma estra‑tégia que empregamos para encontrar soluções para os nossos conflitos interiores em exemplos externos (como nos sonhos do cobarde de Aristóteles). Titchner sugere que a empatia cura o eu.

David Hume chegou lá mais cedo. Em 1738, no seu Tratado da Natureza Humana, observou que «é efectivamente evidente que, quando simpatizamos com as paixões e os sentimentos dos outros, esses movimentos entram na nossa mente como meras ideias, e concebemo ‑los como pertencentes a outra pessoa, tal como concebemos outro facto qualquer. Também é evidente que as ideias dos afectos alheios se transformam nas próprias impres‑sões que representam, e que as paixões surgem em conformidade

2 Todos os excertos de D. Quixote de la Mancha: o engenhoso fidalgo são tradução de José Bento (Relógio D’água, 2005). [N. da t.]

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noiva prometida chega em segredo a sua casa e descobre que ele é o líder de um bando de assassinos. Escondida atrás de uma pipa, vê o futuro marido e a quadrilha arrastarem para a casa uma rapa‑riga que chora e grita. «Deram ‑lhe vinho, três copos cheios, um de branco, outro de tinto e outro de amarelo, e o coração dela reben‑tou. Depois, rasgaram ‑lhe a roupa fina, colocaram ‑na em cima de uma mesa, cortaram o seu belo corpo em pedaços e temperaram‑‑na com sal.»4 A história termina, está claro, com o castigo dos criminosos, «pelas suas acções malvadas», mas esse fim não me servia. Robert Louis Stevenson dizia que tinha um pesadelo recor‑rente: «Um certo matiz de castanho, que não o incomodava mini‑mamente quando acordado, mas que receava e odiava quando sonhava.» Fui assombrado durante noites intermináveis pelas três cores do vinho reflectindo o seu prisma de luz nos pedaços do cadáver desmembrado.

Como o meu pai era diplomata, a minha infância foi em grande medida passada a viajar de casa em casa. os quartos em que dormi, as palavras ditas para lá da porta, as paisagens que me rodeavam mudavam constantemente. Só a minha pequena biblioteca per‑manecia igual, e lembro ‑me do intenso alívio que sentia quando, novamente enroscado numa cama desconhecida, abria os meus livros e, ali, na página esperada, se encontrava a mesma história de sempre, a mesma ilustração de sempre. A ideia de lar era um lugar nas histórias, tanto no objecto físico entre as minhas mãos quanto nas palavras impressas. Quando o Toupeira, n’O Vento nos Salguei‑ros, vem do grande mundo exterior e chega à sua casinha, e deixa os olhos vaguearem pela velha assoalhada, e vê como ela é vulgar e simples, e percebe quanto significa para ele, lembro ‑me de sentir

4 Todos os excertos dos contos de Grimm são tradução de Teresa Aica Bairos (Con‑tos Completos dos Irmãos Grimm, Temas e Debates, 2013). [N. da t.]

mastro a meio devido à força terrível das rajadas da tempes‑tade; e lá de longe no mar caíram a verga e a vela. Debaixo de água ficou Ulisses bastante tempo, pois não conseguia voltar à tona devido ao ímpeto da onda. Além de que pesa‑vam as roupas que lhe dera a divina Calipso. Finalmente voltou à tona e da boca cuspiu a amarga água salgada, que escorria abundantemente da sua cabeça. Mesmo assim, em apuros, não se esqueceu da jangada, mas esforçou‑‑se para a alcançar nas ondas e agarrou ‑a, sentando ‑se em cima dela para assim escapar ao termo da morte. Tal como no outono o Bóreas arrasta cardos e acantos pela planície e ao rolarem se juntam uns aos outros — assim os ventos arrastavam a jangada pelo mar em várias direcções.3

Aprendi a minha experiência do mundo — amor, morte, amizade, perda, gratidão, desconcerto, angústia, medo, tudo isto e a minha própria identidade em mutação — com personagens imaginárias que conheci nas minhas leituras, muito mais do que com a minha misteriosa cara no espelho ou o meu reflexo nos olhos dos outros. Eliot escreveu estes versos, em A Terra Devastada:

E mostrar ‑te ‑ei coisa diferente Da sombra que te segue ao amanhecerE da sombra que te enfrenta ao anoitecer;Mostrar ‑te ‑ei o teu medo num punhado de poeira.

É exactamente isto que penso.o primeiro «punhado de poeira» a mostrar ‑me o medo, que

me lembre, foi o Noivo Ladrão do conto dos irmãos Grimm, cuja

3 Tradução de Frederico Lourenço (Odisseia, Cotovia, 2003). [N. da t.]

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tre, no conto oriental «A Salvação de Wang ‑Fô», de Marguerite Yourcenar. Ao ver o fantasma do discípulo aparecer diante de si, Wang ‑Fô diz ‑lhe: «Julgava ‑te morto.» E Ling responde: «Vivendo vós, como poderia eu morrer?» Com efeito.

Sadegh Hedayat garante ‑nos, n’A Coruja Cega, que «ao longo da nossa vida, o dedo da morte aponta para nós». Graças a essa e outras histórias, hoje sinto que, pelo menos, tenho um guia de bolso dessa presença de dedo em riste, para me ajudar quando eu lá chegar. Para já, sei que será um verbo, não um substantivo. Quando o narrador d’A Estrada Real, de André Malraux, menciona a morte ao amigo agonizante, o homem reage com uma raiva indig‑nada: «Não há… morte… Só existo eu… eu… eu… que vou morrer.» E o ivan ilitch de Tolstói faz ‑me o favor de descrever como será a sensação de chegar ao fim: «Aconteceu ‑lhe aquilo que lhe costu‑mava acontecer na carruagem do comboio, quando pensava que seguia para a frente e ia para trás, e de repente descobria a ver‑dadeira direcção.»6 Julgo saber exactamente o que ele quer dizer. Contudo, se pudesse escolher a minha morte, escolhia a do escri‑tor Bergotte da saga de Proust: «Durante toda a noite do velório, nas janelas iluminadas, os seus livros, dispostos três a três, velaram como anjos de asas abertas e pareceram, para aquele que já não existia, o símbolo da sua ressurreição.»7

Em momentos de indecisão, em momentos de angústia, em momentos de dúvida, o conselho do Espantalho à Dorothy, quando chegam à Floresta Negra, é ‑me sempre útil, pelo seu bom senso básico: «Se esta estrada entra nela, também deverá sair, e como a Cidade da Esmeralda fica no fim da estrada, temos de ir onde ela nos conduza», diz ele. Com efeito. E, quando os nossos companheiros

6 Tradução de António Pescada (D. Quixote, 2008). [N. da t.]7 Tradução de Pedro Tamen (Relógio D’água, 2003). [N. da t.]

uma espécie de pontada de inveja, por saber que ele tinha um sítio a que regressar, um «lugar que era todo seu, estas coisas que tão alegres ficavam de o ver outra vez e com cujas simples boas ‑vindas podia sempre contar».

o amor encontrou ‑me por volta da altura em que fiz oito anos e regressámos a Buenos Aires, e me deram um quarto só para mim, em que eu podia guardar os meus livros. Veio mais ou menos no mesmo momento em que veio o medo, e também por via de um dos con‑tos de Grimm, «A Noiva Verdadeira», uma versão mais subtil da história da Cinderela, em que os amantes sabem desde o início que estão destinados um ao outro, e após uns poucos obstáculos mági‑cos vivem felizes para sempre. Percebi que, algures, o meu amor ainda sem rosto estava certamente à minha espera. Mais tarde, na adolescência, quando comecei a sentir os primeiros frémitos eró‑ticos, aterrorizava ‑me que, se declarasse imediatamente os meus sentimentos, a minha frontalidade fosse encarada como ofensiva e desencorajante. As palavras de Julieta para Romeu avisaram ‑me contra o recato artificial: «Se pensas que fui fácil de conquistar, serei cruel, carregarei o meu sobrecenho, dir ‑te ‑ei: não, para te dar ensejo a que me conquistes; doutro modo por nada deste mundo o farei.»5 Segui o conselho dela com resultados contraditórios.

Quando, finalmente, me apaixonei verdadeiramente pela pri‑meira vez e tentei perceber as minhas emoções confusas de des‑concerto, satisfação e triunfo, a frase com que termina Kim, de Kipling, acerca do que Lama sentia pelo seu chela, clarificou ‑me as coisas: «Cruzou as mãos sobre o colo e sorriu, como um homem que conquista a redenção para si próprio e para o seu ente que‑rido.» Também encontrei eco da minha devoção cega e apaixonada nas palavras que o discípulo decapitado Ling dirige ao mes‑

5 Tradução de Domingos Ramos (Lello e irmão, 1911). [N. da t.]

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tidamente, acaba por dizer a si mesma: «o que se passa comigo? Porque é que não consigo escrever um texto básico acerca de um dado assunto?» E, depois, senta ‑se e consegue escrever. Já perdi a conta ao número de vezes em que esta admoestação severa me aju‑dou a fazer o meu trabalho.

De vez em quando, os conselhos são excelentes, mas sou inca‑paz de os seguir, como quando o Rei da Alice no País das Maravilhas diz ao Coelho Branco: «Começa no começo e continua até chega‑res ao fim: depois pára.» ou quando a Jo das Mulherzinhas se fecha no quarto, veste o seu «fato de rabiscar», e «cai num turbilhão», como ela lhe chama, escrevendo com toda a alma e coração, «pois só quando terminava encontrava paz». Raramente consigo mobili‑zar tal energia criativa.

o que se tornou uma base sólida de fé, certo e sabido, e cada vez mais à medida que o tempo passa, são as palavras do abade ao iluminador, na história «o olho de Alá», de Kipling: «Pois, tirando a graça de Deus, não existe para a dor da alma senão uma droga e ela é o ofício de um homem, a aprendizagem, ou outros movimen‑tos úteis da sua mente.» os meus amigos imaginários ajudam ‑me a alcançar esses movimentos úteis.

Numa autobiografia extraordinariamente cativante, Father and Son, Edmund Gosse explica que as obras de ficção não eram admi‑tidas no austero lar calvinista dos pais.

Jamais na minha primeira infância alguém me dirigiu o emocionante preâmbulo do «era uma vez…». Falavam ‑me de missionários, mas nunca de piratas; os colibris eram‑‑me familiares, mas nunca ouvira falar de fadas. o Jack Matador de Gigantes, o Rumpelstiltskin e o Robin dos Bosques não me diziam nada, e embora soubesse umas coisas sobre lobos, desconhecia o nome Capuchinho

de viagem não são tão encorajadores como o Espantalho, penso no velho pai da história «Não ouves Ladrar os Cães?», de Juan Rulfo, que transporta às costas o filho ferido, ignacio, para o levar ao médico numa aldeia longínqua. ignacio não percebe que devia encorajar o pai exausto dizendo ‑lhe que ouve os cães da aldeia ladrar, embora não oiça. «E não os ouvias, ignacio?», pergunta‑‑lhe o pai, no fim, quando finalmente chegam. «Não me ajudaste sequer com essa esperança.»

A amizade, a colaboração, o carinho ajudam ‑nos a ouvir o que ainda não está lá e pode nunca vir a estar. Virginia Woolf retrata a frustração desta esperança no início de Rumo ao Farol, quando Mrs. Ramsay promete ao filho James, de seis anos, que o levará a ver o farol, «se fizer bom tempo amanhã». «Mas não vai fazer bom tempo», diz o pai, estacando frente à janela da sala de estar. E Woolf comenta: «Houvesse por ali um machado, um atiçador, ou qualquer arma capaz de talhar um buraco no peito e matar o pai naquele momento, James teria pegado nele.» Sinto muitas vezes a mesma pulsão de vingança do James e quero vingar ‑me do mundo objectivo e paternalista, e, como o Rei Lear, «fazer coisas tais… que são, não sei: mas serão os terrores da Terra».

Não é só no amor, na morte e na vingança que os meus ami‑gos imaginários me ajudam e aconselham. Também me ajudam na escrita, ocasionalmente. o melhor conselho para lançar mãos ao trabalho quando a inspiração falha foi ‑me dado por Harriet Vane, a autora de policiais que protagoniza Gaudy Night, de Dorothy L. Sayers. Lord Peter Wimsey, o aristocrata detective, salvou ‑a da forca num livro anterior e quer casar ‑se com ela, mas como é que ela pode iniciar uma relação equilibrada com uma pessoa a quem deve a vida? Em Gaudy Night, Harriet tenta escrever uma carta a Wimsey acerca de um assunto delicado relativo ao sobrinho dele, mas não encontra o tom correcto. Depois de tentar e falhar repe‑

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M o N S i E U R B o V A R Y

Dos dois, ele é o que fica em segundo plano, o mais pro‑saico, o menos impulsivo, o que se resigna a um anonimato

decente, aquele com quem Flaubert não se identifica. É ele que oferece a Emma uma desculpa para a infidelidade, sem nunca lhe ter exigido que fosse fiel. É ele que leva uma vida honesta, nor‑mal, trabalhadora, sem outra ambição que não seja uma satisfação tranquila, sem surpresas. É verdade que não tem encanto. Nin‑guém sente por ele uma paixão arrebatadora, ninguém o imagina a trepar varandas a meio da noite nem a bater ‑se em duelo numa clareira atapetada de neve. E, porém, Mon‑sieur Bovary é uma personagem absolutamente necessária. Recordemos que Madame Bovary começa e acaba com ele, não com Emma. Sem ele, Emma careceria de sentido, nunca se tor‑naria uma heroína romântica, nunca conhe‑ceria a paixão nem o êxtase. Deixemos isto bem claro: Monsieur Bovary existe para que Madame Bovary possa cumprir o seu des‑tino trágico.

É verdade que Charles Bovary é des‑provido de imaginação. o seu comporta‑mento apático resulta de uma vida apagada

Vermelho. Não posso senão concluir que os meus pais, no seu fervor de me educarem na «devoção», cometeram o erro de excluir a fantasia da minha visão da realidade. Desejavam tornar ‑me verdadeiro; o intuito era fazer ‑me positivo e céptico. Se me tivessem envolvido nas suaves dobras da fantasia sobrenatural, a minha mente talvez se convencesse a seguir as tradições deles durante mais tempo e com espírito acrítico.

Na longínqua infância da minha geração, envolvida nas sua‑ves dobras da fantasia sobrenatural, os nossos companheiros de brincadeiras eram a Pipi das Meias Altas e o Pinóquio, o pirata Sandokan e o mágico Mandrake; os das crianças de hoje serão, presumo, Harry Potter e os seus companheiros, e as coisas selva‑gens de Maurice Sendak. Todos esses monstros fabulosos são ‑nos tão incondicionalmente fiéis, que pouco lhes importam os nos‑sos achaques e fraquezas. Agora, que os meus ossos mal me per‑mitem chegar às prateleiras mais baixas, Sandokan chama ‑me novamente às armas e Mandrake incita ‑me a vingar ‑me dos bandi‑dos, enquanto a Pipi das Meias Altas, com grande paciência, volta a dizer ‑me para não ligar às convenções e seguir o meu próprio nariz, e o Pinóquio continua a perguntar ‑me porque é que, apesar do que a Fada Azul lhe disse, não basta ser honesto e bom para ser feliz. E eu, tal como me acontecia lá longe e há tanto tempo, con‑tinuo sem encontrar resposta.

Page 13: Alberto Manguel - Edições Tinta da China...lisboa tinta ‑da china‑ MMxix tradução de Rita Almeida Simões com ilustrações do autor Alberto Manguel Monstros fabulosos drácula,

foi composto em caracteres Hoefler Texte impresso pela Rainho & Neves,

em papel Coral Bookde 80 g, no mês de

Setembro de2019.