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Luciano de Oliveira Fernandes
Alegorias do Fausto:
o Triunfo Eucarístico e a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de
Ouro Preto
Ouro Preto Editora da Universidade Federal de Ouro Preto
2009
2
F363a Fernandes, Luciano de Oliveira. Alegorias do Fausto : o triunfo eucarístico e a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto/ Luciano de Oliveira Fernandes. - Ouro Preto : UFOP, 2009. 135 p. ISBN: 978-85-288-0067-8 1. Literatura brasileira. 2. Historiografia. 3. Ídolos e imagens. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título CDU: 821.134.3(81)
3
4
À Renata.
5
“Quanto mais expressiva da realidade concreta do povo que a produz, mais significativa culturalmente é uma linguagem, seja no domínio da arte, da religião, da ciência, da política, da moral. Em outras palavras, a expressão de uma cultura se torna significativa na medida em que permite à sociedade que a produziu o seu reconhecimento, a percepção de sua realidade através dos símbolos que procuram exprimi-la.”
(Sônia Maria Viegas Andrade,
Idéias Filosóficas e Políticas em Minas Gerais no Século XIX )
6
Alegorias do Fausto:
o Triunfo Eucarístico e a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto
Introdução: o lugar de uma memória ................................................................................ 7
Capítulo 1 – Nem tudo que reluz é ouro ......................................................................... 11
1.1 – Estado, Fé e Memória ........................................................................................ 11
1.2 – O Triunfo Eucarístico: festa barroca e documento/monumento ........................ 16
Capítulo II – Alegorias do Fausto .................................................................................. 28
2.1– Sobre a Alegoria ................................................................................................. 28
2.2– O Triunfo Eucarístico: uma interpretação iconológica ....................................... 35
2.2.1 – Anúncio e Amanhecer de um Triunfo ........................................................ 35
2.2.2 – A Fé, a Lei e o Rei ...................................................................................... 39
2.2.3 – Três Danças, Quatro Ventos, a Fama e o Ouro Preto ................................. 41
2.2.4 – Os Sete Planetas e a Igreja .......................................................................... 45
2.2.5 – Irmandades e Sociedade ............................................................................. 52
2.2.6 – O Sacramento e os Homens Bons .............................................................. 59
2.2.7 – Missas, Guardas e uma Noite de Artificiosos Castelos .............................. 61
2.2.8 – Panis et Circensis ........................................................................................ 63
2.2.9 – Dogma e Poder ........................................................................................... 64
2.3 – A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar: imagem e discurso ....................... 69
2.3.1 – O Ciclo Barroco-Rococó em Minas Gerais: uma tipologia ........................ 69
2.3.2 – Teatro Sacro: alegorias de um discurso teológico-político. ....................... 79
Considerações Finais ...................................................................................................... 97
Bibliografia ................................................................................................................... 100
Anexo: Narração do Triunfo Eucarístico (estabelecimento de texto)........................110
7
Introdução: o lugar de uma memória
“(...) querendo que se perpetue em lembrança (...) e digna de eterna memória esta
solenidade (...), a julgo merecedora de que se imprima”
(O Triunfo Eucarístico, Licenças do Santo Ofício)
É grande a importância assumida pelos lugares de memória1 na sociedade. Tais
lugares são pontos de condensação tópica da memória, de sentido material e simbólico;
eles têm a função de compensar a perda da memória como experiência coletiva; nascem
e vivem do sentimento que não há memória espontânea. E “porque não mais existiria a
memória espontânea é que seria preciso criar, fora das práticas, a memória vicária e seus
artificialismos, como os arquivos, os museus e os monumentos.”2 Ir a Ouro Preto e
visitar uma igreja barroca que abriga em seu andar subterrâneo um museu dotado de um
acervo composto por peças de prataria, obras de Antônio Francisco Lisboa, um esquife,
uma mesa de Eça utilizada nas exéquias (de corpo ausente) de D. João V, paramentos
bordados com fios banhados em ouro e, entre tantos variados artefatos que procuraram
no século XVIII ostentar a pompa e o poder do Império Português e da Igreja Católica,
um livro. Eis um exemplo de artificialismo da memória vicária: as imagens não estão ali
como ídolos; os paramentos não vestem o sacerdote; o esquife não mais transporta os
mortos; a prataria não é utilizada em cerimônias; o antigo porão agora é o Museu da
Prata; a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar é um dos monumentos mais visitados
da antiga Vila Rica; e o livro exposto não é lido.
1 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. 2 MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A Crise da Memória, História e Documento:reflexões para um
tempo de transformações.In: Arquivos, Patrimônio e Memória: trajetórias e perspectivas. p.24
8
Lê-se na folha de rosto, à qual se encontrava aberto o livro exposto na vitrine:
“TRIUMPHO / EUCHARÍSTICO, / EXEMPLAR DA CHRISTANDADE
LUSITANA / em publica exaltação da Fé na solemne trasladação / DO
DIVINISSIMO / SACRAMENTO / da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, para um
novo Templo / DA NOSSA SENHORA DO PILAR / EM / VILA RICA / CORTE
DA CAPITANIA DAS MINAS. / Aos 24. de Mayo de 1733. / DEDICADO À
SOBERANA SENHORA / DO ROSARIO / PELOS IRMÃOS PRETOS DA SUA
IRMANDADE, / e á instancia dos mesmos exposto á publica noticia / Por SIMAN
FERREIRA MACHADO / natural de Lisboa, e morador nas Minas. // LISBOA
OCCIDENTAL. / NA OFFICINA DA MUSICA, DEBAIXO DA PROTEÇAõ / dos
Patriarchas Saõ Domingos e Saõ Francisco. / M.DCC.XXXIV. / com todas as licenças
necessárias.”
O livro é uma Edição Príncipe com dimensão 20x14. As primeiras 26 páginas
não são numeradas e contém: página de título de ante-rosto (verso em branco); gravura
com a imagem de Nossa Senhora do Rosário (verso em branco); folha de rosto com
identificação da obra (verso em banco); dedicatória a Nossa Senhora do Rosário (4
páginas não numeradas); licenças do Santo Ofício (6 paginas não numeradas); licença
do Ordinário (7 paginas não numeradas); licenças do Paço (3 paginas não numeradas).
As 128 páginas seguintes contém: Prévia Alocutória (páginas numeradas de 01 a 31);
gravura com selo da Real Biblioteca (página 32 – não numerada); gravura com custódia
e Santíssimo Sacramento (página 33 – não numerada); (página 34 – não numerada e em
branco); folha de rosto da narração (página 35 – não numerada); (página 36 – não
numerada e em branco); Narração do Triunfo Eucarístico (páginas numeradas de 37 a
125); Gravura com selo da Real Biblioteca (página 126 – não numerada); Gravura com
Imagem de Nossa Senhora do Pilar (página 127 – não numerada e com verso em
branco).
9
Este trabalho tem por objetivos gerais: estudar manifestações artísticas que
através de sua permanência enquanto patrimônio cultural interferem na
contemporaneidade mostrando o desenvolvimento das artes e da literatura como
expressões culturais do ambiente histórico, econômico, social e político; e discutir as
articulações entre história, memória cultural, organização social, literatura e outros
sistemas artísticos e discursivos com o intuito de verificar suas instâncias legitimadoras
nas instituições sociais através do estudo das relações entre a sociedade e o poder do
Estado Português na região de Minas Gerais durante a primeira metade do século XVIII.
Como objetivos específicos: analisar as condições históricas de produção do
documento/ monumento Triunfo Eucarístico; e verificar a consciente utilização da
crônica como registro escrito com vistas a perpetuar traços glorificados do império, da
igreja e da sociedade mineradora para afirmar seu poder e unidade instaurando pela
pública escritura um lugar de memória. Como pressupostos teóricos utilizaremos
conceitos relativos à abordagem da relação entre Literatura, História, Memória, Arte e
Semiótica. Como método de análise, considerar-se-á os documentos como
monumentos colocando-os em série e inserindo-os nos conjuntos formados por outros
vestígios da cultura material3.
No primeiro capítulo analisaremos as condições históricas de produção do
documento/ monumento O Triunfo Eucarístico colocando-o em relação com uma série
de textos produzidos durante a expansão marítima do império português. O que se faz
possível uma vez que Simão Machado “procurou situar o acontecimento em um
contexto português de religiosidade e de ação colonizadora”4. A intenção que se tem em
colocar tais registros em série é a de melhor perceber o caráter monumental dado ao
registro do Triunfo Eucarístico e de verificar nos textos da expansão um movimento de 3 LE GOFF. Jacques. Documento/ Monumento. In: História e Memória. p.525 4 ÁVILA, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas Gerais. vol. I . p. 12
10
declínio do império português, culminando na tentativa de mascarar pela ilusão e pela
pompa teatral do triunfalismo barroco a crise política, econômica e religiosa do império.
Visando a possibilitar um estudo mais amplo dos signos utilizados para a expressão do
homem no universo barroco em que ocorrem as festividades do Triunfo Eucarístico
procederemos, no segundo capítulo, à análise iconológica comparativa das alegorias
descritas na narração do evento estabelecendo relações entre o registro escrito e outros
vestígios da cultura material: a ornamentação interna da Igreja Matriz de Nossa Senhora
do Pilar; igreja cuja inauguração motivou a festa e o registro escrito.
Portanto, a principal contribuição que deste trabalho para o campo da Literatura
Comparada reside no fato de apontar relações entre um evento histórico (a festa) e seu
registro literário (a crônica), abordando o signo em suas múltiplas representações e
códigos do mundo verbal e icônico.
11
Capítulo 1 – Nem tudo que reluz é ouro
1.1 – Estado, Fé e Memória
Segundo Charles Boxer, os impulsos fundamentais da “Era dos
Descobrimentos” surgiram de uma reunião de fatores religiosos, econômicos,
estratégicos e políticos. De acordo com o autor, os quatro principais foram: “(1) o fervor
empenhado na cruzada contra os muçulmanos; (2) o desejo de se apoderar do ouro da
Guiné; (3) a procura de Preste João; (4) a busca de especiarias orientais”.5 O autor
considera ainda que a variada motivação das descobertas portuguesas pode ser
percebida em bulas papais promulgadas durante a vida de dom Henrique e seus
sucessores imediatos. Dentre tais bulas, destaca como as três mais importantes: a Dum
Diversas, de 8 de junho de 1452, autoriza aos portugueses a conquista dos inimigos de
Cristo, bem como a tomada de posse de seus territórios; a Romanus Pontifex, de 8 de
janeiro de 1544, é denominada a carta do imperialismo português; e a Inter caetera, de
13 de março de 1456. Assim, estabelecendo diretrizes para o comportamento (ou mau
comportamento) europeu, “o efeito das bulas papais foi o de dar aos portugueses (...)
sanção religiosa a uma atitude igualmente dominadora com relação a todas as raças que
estivessem fora do seio da cristandade”.6 Pode-se também perceber que as bulas
demonstram o interesse da Coroa portuguesa (Casa de Avis) em dirigir e organizar o
trabalho de investigação, conquista, colonização e exploração. Desse modo, fundem-se
motivos de ordem apostólica e religiosa, econômica e estratégica. Os documentos
produzidos pelo vaticano atestam e dão fé ao processo de expansão do império
português durante os séculos XV e XVI. De acordo com Ana Isabel Buescu, do século
5 BOXER, Charles. O império marítimo português. (1415-1825) Trad. de Anna Olga de Barros Barreto.
Companhia das Letras. 6 Idem. p.39
12
XV para o XVI, “dois factores principais condicionam e determinam as manifestações
da cultura portuguesa. Os valores do humanismo renascentista (...) articulavam-se com
uma receptividade relativa à dimensão evangélica do humanismo cristão erasmino”.7
Chama-nos particular atenção uma gravura8 apresentada por Buescu no artigo João de
Barros: humanismo, mercancia e celebração imperial. A gravura é associada à edição
de 1628 da Década primeira da Ásia, texto escrito por João de Barros. Representa
alegoricamente a proteção que a Providência dispensa à realeza portuguesa. Buescu
comenta ainda que a gravura é posterior a 1640 e ilustra um dos vários usos políticos
que a obra de João de Barros conheceu. Em nome de Deus e do lucro, a expansão do
império marítimo português associa-se à expansão da fé católica. Pois, “se não houvesse
mercadores que fossem procurar os tesouros da terra no Oriente e nas Índias Ocidentais,
quem transportaria para lá os pregadores que levam os tesouros celestes? Os pregadores
levam o evangelho e os mercadores levam os pregadores”.9 Logo, a Companhia de
Jesus torna a luta pelas almas tão intensa e ampliada quanto a competição pelas
especiarias. Tal empenho no comércio com a Índia, no ouro da Guiné e nas guerras
travadas com o Marrocos faz com que a Coroa portuguesa não dedique atenção ao
Brasil, uma região recentemente descoberta e que não parecia ter mais do que madeira,
papagaios, macacos e primitivos selvagens nus. Estes últimos são descritos por Pero
Vaz de Caminha10 (antecipando a concepção do ‘bom selvagem’, séc XVIII) como
inocentes filhos da natureza, sendo assim comparados a Adão e Eva no Jardim do Éden
antes do pecado. Apenas a crescente ameaça da fixação dos franceses nessa parte da
América (designada à Coroa portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas em 1494), faz com
que dom João III promova a colonização do Brasil. Anos depois, a rápida expansão da
7 BUESCU, Ana Isabel. João de Barros: humanismo, mercancia e celebração imperial. 8 Idem. p 23 – a referida gravura faz parte do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa. 9 VIEIRA. Antônio. História do Futuro. (apud BOXER) 10 CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao Rei Dom Manuel. Belo Horizonte: Crisálida, 2002.
13
indústria açucareira do Brasil (1575-1600) era uma dos maiores acontecimentos do
mundo atlântico da época. Entre os anos de 1600 e 1663, ocorre a luta luso-holandesa.
Um forte elemento religioso associado à união das coroas espanhola e portuguesa na
pessoa de Filipe II de Espanha motiva maciço ataque holandês ao império colonial luso.
E no período compreendido entre os anos de 1663 e 1750, Boxer aponta para a
estagnação e retração do império português no Oriente. O declínio do império luso das
navegações, descobertas, comércio e expansão. Embora a obra épica de Luís de Camões
comemore a glória de Deus e a estirpe desbravadora e navegadora do povo lusitano, tal
declínio já era prenunciado desde 1572 em Os Lusíadas11, na falas do velho do restelo e
do gigante Adamastor. Outro texto que prenuncia o declínio do império luso é O
Soldado Prático12, escrito por Diogo do Couto e publicado em versão inicial no ano de
1588. Sátira de cunho moral em forma de diálogo histórico sob uma moldura filosófica,
O Soldado Prático procura descrever e criticar o Estado da Índia numa situação de total
falta de controle por parte da Coroa portuguesa. Uma situação de crise não apenas
comercial e territorial, mas também da memória. Notemos aqui, particularmente, o fato
de que o soldado prático considera que na índia houvera de haver uma torre de tombo
para que nela fossem reunidas:
“(...) todas as antiguidades e (...) com todas as mais cousas que podem servir pêra que
os cronistas aproveitarem pêra suas escripturas, pera de todo não se apagar e extinguir
o nome português, tão celebrado e famoso por todo o Universo; de cujo descuido
pudera fazer um muito largo capítulo e envergonhar tantos governadores, quantos na
Índia houve tão pouco curiosos do que lhes a eles mesmo cumpre; porque nesta torre
houveram seus feitos de ficar perpetuamente em memória”13.
11 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Martins Claret. 2003. 12 COUTO, Diogo do. O Soldado Prático. 13 Idem. P. 93
14
Observemos a crítica que Diogo do Couto faz aos governantes que não procuram
perpetuar a imagem do império e seus grandes feitos. Nesse sentido, Álvaro Júlio da
Costa Pimpão considera que, embora não seja uma ciência da observação, no século
XVI, “a história, no que respeita aos acontecimentos próximos ao autor, mal
documentados, tendia ser uma narrativa do observado; as escrituras, a que os cronistas
se referem, eram ainda, e, principalmente, memórias”14. Segundo Le Goff, os suportes
da memória deixados pelo passado são de suma importância para a existência da
história, forma científica da memória coletiva. Em seu texto Documento/ Monumento,
Jacques Le Goff aborda questões concernentes aos materiais da memória coletiva e da
história. Considera que os documentos são uma escolha do historiador e os monumentos
são heranças, sinais do passado. Assim estabelecendo a distinção entre tais materiais, Le
Goff chama atenção para o fato de que apenas uma escolha daquilo que existiu no
passado sobrevive. Ora, uma vez que “os documentos não aparecem, aqui ou ali, pelo
efeito de um qualquer imperscrutável desígnio dos deuses”15, aquilo que sobrevive ao
passado é uma escolha efetuada pelas forças que se relacionam com o poder e/ou pelos
historiadores daquele tempo. Le Goff considera que a memória, fenômeno individual e
psicológico, liga-se também à vida social, varia em função da presença ou da ausência
da escrita/ oralidade; e é objeto da atenção do Estado, que produz diversos tipos de
documento/monumento, faz escrever a história e acumula objetos para conservar traços
de acontecimentos do passado. Logo, a apreensão da memória depende do ambiente
social e político: “trata-se da aquisição de regras de retórica e também da posse de
imagens e textos (...) que falam do passado, em suma, de certo modo de apropriação do
14 ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica dos Feitos da Guiné.(prefácio, seleção e notas de Álvaro Júlio da
Costa Pimpão). Livraria Clássica Editora: Lisboa, 1942. p. 7 15 BLOCH. 1941-1942, pp.29-30 (apud Le Goff )
15
tempo.”16 O que é demonstrado no fragmento extraído do texto de Diogo do Couto: a
percepção do esforço das sociedades históricas para impor determinada imagem de si
próprias ao futuro de maneira voluntária ou involuntária, perpetuando assim alguns
traços para a memória coletiva. Nas lutas das forças sociais pelo poder, tornar-se
senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações daqueles que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Se a ausência de documentos que
atestem a glória de um povo é indício de seu declínio, percebemos então o possível
interesse de um império em crise no registro dos fatos e feitos. Segundo Diogo do
Couto, para esse interesse podem servir os relatos, as escrituras e as crônicas. Por isso, a
fala do Soldado Prático aponta para a necessidade de criação de monumentos escritos
que pudessem perpetuar uma imagem glorificada do império português. Notemos ainda
que a torre do tombo é um lugar que deveria reunir as antiguidades e as escrituras dos
cronistas para que os relatos ficassem perpetuamente em memória. Com isso, o soldado
prático prenunciava também o conceito de lugar de memória e a necessidade de
existência de tais lugares para a perpetuação da memória das sociedades históricas. O
Triunfo Eucarístico, texto que analisaremos a seguir, é um exemplar das escrituras às
quais se referiu o soldado prático, um documento/monumento, um atestado à
grandiosidade do império. Mas a presença ou ausência dos documentos no fundo dos
arquivos está ligada a “causas humanas que não escapam de forma alguma à análise,
(...) transmissão (...) passagem de recordação através das gerações.”17 O que aponta para
as escolhas que se operam quando do registro dos fatos e de acordo com o modo como
são estes registrados. Segundo Le Goff é preciso desmontar, demolir e desestruturar esta
construção analisando as condições de produção dos documentos/ monumentos.
Portanto, uma vez que “a produção do conhecimento histórico deve ser indissociável do 16 LE GOFF. Jacques. Memória. In: História e Memória. p. 419 17 Idem
16
conhecimento (histórico) das condições de produção do documento”18, analisaremos a
seguir as condições históricas de produção do documento/ monumento O Triunfo
Eucarístico com o intuito de verificar: o caráter monumental dado ao registro; e a
tentativa de mascarar pela ilusão e pela pompa teatral do triunfalismo barroco a crise
política, econômica e religiosa do império.
1.2 – O Triunfo Eucarístico: festa barroca e documento/monumento
A crônica intitulada O Triunfo Eucarístico - Exemplar da Cristandade Lusitana
é a narração que registra a festa homônima realizada a 24 de maio de 1733 em Vila
Rica, quando do traslado do Santíssimo Sacramento da Capela de N. Sª do Rosário dos
Pretos de volta para a nova Igreja Matriz de N. Sª do Pilar no dia da consagração desta
última. Uma vez que “a importância de um povoado e o espírito religioso de seus
moradores eram demonstrados pela imponência e suntuosidade ornamental das igrejas
matrizes”19, as principais celebrações litúrgicas assumiam aspecto espetaculoso,
incluindo-se entre os maiores acontecimentos da espécie na vida colonial brasileira e
remetendo a uma “religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das
cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior”20. A série de espetáculos e
solenidades desse festejo barroco abrangeu: ritos sacros, exibições de música e
coreografia, teatro, jogos públicos, poesia, cavalhadas, touradas, uma artificiosa
exibição pirotécnica e os carros triunfais (alegorias móveis). Numa multiplicidade de
recursos cenográficos e de pompa coreográfica dos cortejos e danças complementados
pela diversidade dos instrumentos e arranjos da música marcial e profana, o estado de
euforia da sociedade mineradora “se faz expandir através de uma festa mais de regozijo
18 MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A Crise da Memória, História e Documento:reflexões para um
tempo de transformações.In: Arquivos, Patrimônio e Memória: trajetórias e perspectivas. p. 24 19 ÁVILA, Afonso (Org). Barroco Mineiro glossário de arquitetura e ornamentação. p.7 20 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. In: SANTIAGO. Intérpretes do Brasil. p 1054
17
dos sentidos, que propriamente de comprazimento espiritual”21. Para se compreender
esse fenômeno é preciso lembrar que em Minas Gerais a vida social se concentrou nos
núcleos urbanos, centros “de residência, de negócios, de festas comemorativas”22; e que
os rituais mineiros “envolviam toda a sociedade, através das irmandades e ordens
terceiras, num congraçamento celebrativo ao mesmo tempo místico e secular. Seguidas
por religiosos leigos e fiéis de diferentes classes sociais, as procissões, (...) mais que um
ato festivo, eram um ato teatral”23 em que tais irmandades procuravam, “antes de tudo,
ostentar maior importância ou prestígio”24. E como expressão “teatral de uma
organização social, a festa é também fato político, religioso ou simbólico.”25 É o caso
das solenidades que assinalaram no ano de 1733 em Vila Rica a inauguração da Igreja
Matriz de N. Sª do Pilar: “O longo cortejo constituiu uma colorida trama coreográfica,
só comparável talvez em grandiosidade aos desfiles do moderno carnaval carioca (…)
formando toda a vila verdadeiro palco de um happening monumental”26, um “misto de
espetáculo devoto e intenção encomiástica.”27 Publicada pela Companhia de Jesus em
Lisboa no ano de 1734, a crônica que registra o evento é de autoria de Simão Ferreira
Machado, natural de Lisboa, morador das Minas e provável secretário do Conde das
Galvêas, então governador da província. Considerada “um livro muito raro e curioso
para a história do tempo”28 e como o “primeiro documento de interesse literário a
reportar às manifestações de um estilo de vida barroco na sociedade mineradora do
21 ÁVILA, Afonso. Resíduos seiscentistas em Minas, p 31. 22 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004. p. 102 23 ÁVILA, Cristina (org). Museu do Oratório. Belo Horizonte: Inst Cultural Flávio Gutierrez, 1999.p 25 24 LEMOS, Carlos A. C. et al. Arte no Brasil. São Paulo: Abril Cultural, 1979, vol. I. p.368. e ainda:
BOSCHI, Caio C. Os Leigos e o Poder. Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais 25 PRIORI, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense. 1994. p 10 26 ÁVILA, Afonso (Org). Barroco Mineiro glossário de arquitetura e ornamentação. p 7 27 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. p 57 28 GALVÃO, Benjamim Franklin Ramiz. Diogo Barbosa Machado. Catálogo de suas coleções. Anais da
Biblioteca Nacional, v.8, Rio de Janeiro, 1880. p 429 Registro bibliográfico. Apud AVILA.
18
século XVIII”29, a obra é dividida em duas partes, das quais a primeira, intitulada
Prévia Alocutória, recorda a missão catequética de Portugal e mostra as minas como
prêmio ao empenho luso na expansão da fé católica: “(...) de trinta anos ao presente se
mostrou aos portugueses a América coroada de ouro nas altíssimas (...). Viviam os
portugueses com a abundância do ouro destas Minas (...) fez aos portugueses senhores
dos mais finos diamantes de todo o mundo (...): assim aparece por sucesso da ventura, o
prêmio da diligência”30. Ávila comenta que “nesse ponto Simão Machado se inscreve na
linha de exaltação do mito edênico própria da crônica brasileira, do período colonial,
pois a realidade da terra parecerá a ele, como a tantos outros autores, uma visão do
paraíso”31. À vertigem do ouro logo se juntou “a loucura da pedra preciosa”32, e a
mineração no Brasil “ocupou durante três quartos de século o centro das atenções de
Portugal”33; que teria na América, “por sua fertilidade, e grandeza, terreno capacíssimo
para uma dilatada Monarquia”34. Na segunda parte da obra, a narração do Triunfo
Eucarístico, inebriado pelo reluzente esplendor do ouro e dos diamantes que vinham
como prêmio pela expansão da fé o lisboeta Simão Machado registra a realização da
festa de maneira pormenorizada e viva; e como testemunha ocular, entusiasta e
participante dos acontecimentos “estampa o momento cultural e histórico-social do
território mineiro”35com sua “narrativa pontilhada de suntuosas minúcias” 36. Atento à
fusão expressivamente barroca das sugestões místicas e profanas, minucioso no relato
dos trajes e alegorias, sensível aos efeitos visuais e sonoros das danças e músicas, move
sua expressão sob impulsos sensoriais em grandes marchas pictóricas. Em sua prosa
29 ÁVILA, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas. vol. I, p 27 30 MACHADO, Simão Ferreira. O Triunfo Eucarístico. 31 ÁVILA, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas Gerais. Vol I, p 15 32 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. In:SANTIAGO. Intérpretes do Brasil. pág 58. 33 PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 32ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p 56 34 MACHADO, Simão Ferreira. Op. Cit. 13 35 LOPES, Hélio. Letras de Minas e Outros Ensaios. São Paulo: EDUSP, 1997. p.50 36 CALMON, Pedro. História Social do Brasil. Livraria José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1961. IV
v. p 1315.
19
predominam verbos e substantivos cujo significado decorre do universo sensorial da
visão. Os objetos e as cores são referidos em blocos de signos estruturados de maneira a
transmitir uma imagem continuada e abrangente. Mas é na dedicatória a N. Sª do
Rosário, que precede a prévia alocutória, que o autor evidencia a intenção de utilizar-se
do registro escrito para perpetuar a memória acerca do evento:
“Do nosso mesmo afeto nasceu o desejo, de que tão grande solenidade se publicasse,
porque a notícia tem estímulos para o exemplo; e dilatando mais a veneração, e glória
de vosso Santíssimo Filho, também dilata este motivo de vosso agrado. Esta
consideração nos obriga a solicitar esta pública escritura, em que sempre o nosso
afeto esteja referindo em perpétua lembrança, e contínua narração aos presentes,
futuros toda ordem de tão magnífica solenidade. (...) e julgamos, que desta nossa nova
glória por vós recebida, além do nosso reconhecimento, e estimação, era
agradecimento, ou sinal dele esta especial diligência, em que mais que a glória de
Autores, estimamos o nome de agradecidos veneradores vossos.”37
Além da intenção de perpetuar a lembrança e a narração do evento através do
registro escrito, são também perceptíveis no fragmento acima alguns traços retóricos
comuns às crônicas coloniais. O primeiro deles, a retórica da verossimilhança, pode ser
verificado pela função da prévia alocutória com a qual Simão Machado inicia o texto.
Exaltando as condições de fausto da Capitania das Minas, o lisboeta morador de Vila
Rica se constitui como testemunha fiel dos fatos, próximo do ocorrido e participante das
atividades que narra. Isso nos leva à função do testemunho (segundo traço retórico): o
autor é testemunha e participante das ações que narra; e mostra-se como um fervoroso
cristão - esse argumento ético ganha força social e religiosa dentro do contexto de
produção da referida crônica. O autor do exemplar da cristandade lusitana comenta
ainda fato de que o ocorrido deve ter função de exempla (terceiro traço retórico), uma
vez que nasceu o desejo de que a solenidade fosse publicada “porque a notícia tem
37 MACHADO, Simão Ferreira. O Triunfo Eucarístico.
20
estímulos para o exemplo”. No que diz respeito ao papel social da memória (quarto
traço retórico), notemos que o autor observa a obrigação que se institui em solicitar a
publicação do texto com a finalidade de perpetuar a lembrança e a narração da
solenidade. Percebe-se ainda a intenção, por parte do autor, de imprimir funcionalidade
pedagógica e moralizante ao registro que é por ele efetuado. Nesse sentido, observe-se
que a “perpetuação da memória e sua transformação em história, pela mão do cronista,
são a garantia de um estatuto civilizacional. A memória é o testemunho do passado que
garante o futuro”.38 Ora, que o futuro visse então um passado triunfal; pois era o triunfo,
entrada pública feita por vitoriosos, a maior honra concedida e a mais pomposa e solene
festa que se celebrava em Roma sob um tríplice consenso: do exército, do senado e do
povo. Entretanto, o triunfalismo barroco não significa uma consciência absoluta de
vitória, e sim “a tentativa de conter, pelo ilusório e maravilhoso, a marcha
transformadora do tempo, de contrapor às forças de evolução a imagem de um mundo
estável e ideal que é preciso fazer triunfar sobre a história.”39 No contexto triunfalista
em que é produzida, a crônica de Simão Machado assume feição religiosa e política que
tende a enfatizar o poder do Estado e da Igreja através da pompa e do brilho exterior do
culto com a finalidade de estabelecer a imagem de um mundo luso estável, luxuoso,
cristão e ideal. O termo triunfo adquire então “sentido semântico (...) ligado à vitória
dos dogmas da igreja ou, por extensão, às solenidades a eles alusivas”40. Perfilando “a
magnificência e a grandiosidade da arte barroca a fim de exprimir a glória de seu novo
triunfo”41, a Igreja vê também “a oportunidade de afirmar sua hierarquia colonizadora
nas Minas, realizando (...) verdadeira demonstração de poderio temporal e domínio
38 FREITAS, Marcus Vinícius de. A Pena e a Lança. In: Boletim CESP. V.17, nº 21, jan/ dez 1997 p. 138 39 ÁVILA.Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: perspectiva, 1971. p. 37 40 ÁVILA, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas Gerais. vol. I . p 120 41 SAMUEL, Rogel (org). Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 1985. p.140
21
religioso”42. Mas essa festa é “percebida habitualmente como um luxuoso préstito do
carnaval barroco, em uma inversão da realidade que prenunciava a crise do período de
exploração do ouro, com o peso e a pompa das liturgias de sacralização de um poder em
crise”43. E como “as festas barrocas (…) constituíram espetáculos visuais cujo objetivo
era confirmar o poder real e camuflar os conflitos”44, havia ainda no Triunfo Eucarístico
a “intenção política em aproximar grupos dissidentes ou insatisfeitos com o governo da
Capitania”45; tal interesse perpassava as intenções da festa através de simbologias
enfatizadoras da unidade e da estabilidade. O brilho da retórica do ouro existente em
cerimônias como o Triunfo Eucarístico constitui “um monumento ao luxo e à
ostentação”46 e tende a encobrir a falsa euforia da história da mineração. Portanto, a
festa registrada por Simão Ferreira funciona como um como um mecanismo de reforço,
de inversão e de neutralização frente à realidade dos fatos:
“A festa seria, como o rito, um momento especial construído pela sociedade, situação
surgida ‘sob a égide e o controle do sistema social’, e por ele programada. A
mensagem social de riqueza e opulência para todos ganharia, com a festa, enorme
clareza e força persuasória. Mas a mensagem viria como que cifrada: o barroco se
utiliza da ilusão e do paradoxo e, assim, o luxo era ostentação pura, o fausto era falso,
a riqueza começava a ser pobreza e o apogeu, decadência.”47
Considerando, portanto, o Triunfo Eucarístico como “um momento especial
construído pela sociedade, situação surgida ‘sob a égide e o controle do sistema social’,
e por ele programada”, percebemos o aspecto retórico que ganha essa festa barroca para
42 ÁVILA, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas Gerais. vol. I . p.15 43 TOLEDO, José Luiz Dutra. Triunfo Eucarístico (Vila Rica-1733):carnaval ou liturgia barroca de um
poder em crise? In: Revista do Instituto de Artes e Cultura da UFOP. Nº01, dez/ 1994. pp. 88-91. p. 88. 44 VERGUEIRO, Laura. Opulência e Miséria das Minas Gerais. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 36 45 TOLEDO, José Luiz Dutra.Op. Cit. pp. 88-91. 46 SOUZA, Eneida Maria de. Seminário sobre Poesia Mineira: período colonial. Belo Horizonte:
Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1984. p. 25 47 MELLO E SOUZA. Laura de. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira do século XVIII. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1982. p.23
22
criar uma imagem idealizada com a função de ostentar riqueza, de persuadir a
sociedade, e de afirmar os discursos político e religioso. Lembremo-nos ainda da
analogia apontada por Jaime Cortesão entre o triunfo Eucarístico e as festividades de
procissão semelhante realizada em Braga, Portugal, quatro anos antes: “elas respondem
profundamente a um anseio e estilo de vida, coletivos. Nelas revêem-se e rejubilam-se
todas as classes da nação, como num ideal realizado”48.
Sendo o Triunfo Eucarístico uma expressão do universo colonial barroco,
observemos que no século XIII “a palavra aparecia como uma das formas mnemônicas
através das quais se fixavam as modalidades do silogismo”49. Mais tarde, e não por
acaso, “barroco adviria designação de uma época da história intelectual do Ocidente em
que os jogos de instabilidade, do pormenor, da minúcia e da ostentação das formas se
aliviavam aos jogos de palavras, na poesia e na prosa e, até, na ‘arte da memória’,
conforme ela foi então entendida e praticada”50. Além da ligação da palavra com a ‘arte
da memória’ e com a instabilidade e ostentação das formas, considera-se ainda que, no
momento barroco, a cosmovisão portuguesa está intimamente determinada pela
incerteza e instabilidade fundadas numa situação de crise econômica, social e política.
Desse modo, os juízos de valor são revitalizados e há espaço para figuras estilísticas
contraditórias como os paradoxos, as antíteses e os oxímoros. O barroco foi também
expressão de uma ‘retórica da fé’. O conceito foi estendido não só a todas as artes, “mas
ainda à filosofia (...) à matemática, à física e à medicina, à política,etc.”51 Quando foi
utilizado no século XVIII, o conceito de barroco se aplicava a fenômenos “considerados
48 CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. Parte I, t.I. Instituto Rio Branco,
Ministério das Relações Exteriores. Rio de janeiro, 1952, p 87-8 apud Ávila. 49 PEREIRA, Paulo. As dobras da melancolia – o imaginário barroco português. In: AVILA, Afonso.
Barroco: teoria e análise (org.). São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte Companhia brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997. (coleção Stylus; 10) p. 160
50 Idem. 51 SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 3ªed. Coimbra: Livraria Almedina.1973. p372
23
extravagantes, confusos e bizarros.”52 A cultura barroca teve “cunho persuasório e
propagandístico”53, contudo, a descrença do homem e relativização religiosa instauram
uma visão trágica do mundo54 e, “ao mesmo tempo, a necessidade do festejo como
alienação social e afirmação política. A arte barroca é, por isso mesmo,
simultaneamente trágica e festiva. Mas é artifício, engano e desengano”55. Como “o
estilo é a expressão de uma época”56, a “crise não é da arte (barroca), mas da sociedade,
das instituições, da forma de razão e sensibilidade que a sustentam” 57; e o alegórico
barroco é expressão e positividade do caráter histórico dessa crise. A variada expressão
artística do imaginário barroco pode ser observada das artes plástico-visuais às cênico-
comportamentais, tendo ainda forjado estruturas simbólicas e figuras da alegoria que
têm uma validade quase universal.
Para ilustrar a relação do homem com o universo barroco, Paulo Pereira
considera que, alegoricamente, é possível imaginar “o homem barroco sentado, sozinho,
no meio de um jardim, rodeado ele mesmo de símbolos e alegorias, confrontado então
com a impossibilidade de esquecer.”58 Fausto Colombo59 comenta que a imagem,
entendida como sinal evocativo da realidade, teve sua lógica associada e expandida com
a dos sistemas memoriais através dos séculos. Observa que Aristóteles (no De memória
et Reminiscentia) distingue a mnéme e a anámnesis como as duas faculdades
52 HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p 444 53NASCIMENTO, Adalgisa Arantes do. Introdução ao Barroco Mineiro: cultura barroca e
manifestações do rococó em Minas Gerais – Belo Horizonte: Crisálida, 2006. p. 11 54Lembremo-nos aqui da História Trágico-Marítima: reunião de 12 relatos que contemplam 14 perdições
de naus num contexto de irrefreável ganância material e frenesi religioso, manifestação das misérias humanas em detrimento da solidariedade cristã, com enfoque em detalhes terríveis que vão da perda da riqueza à perda da dignidade humana reunidas. As crônicas foram reunidas por Bernardo Gomes de Brito e originalmente publicadas em 1736, durante o reinado de Dom João V.
55 PEREIRA, Paulo. Ob. Cit. p 161 56 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. São Paulo: Perspectiva. 2000. p 88 57 NEVES, Joel. Idéias filosóficas no barroco mineiro. BH: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1986. p.94 58 PEREIRA, Paulo. As dobras da melancolia – o imaginário barroco português. In: AVILA, Afonso.
Barroco: teoria e análise (org.). São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte Companhia brasileira de Metalurgia e Mineração, 1997. (coleção Stylus; 10) p. 166
59 COLOMBO, Fausto. Os Arquivos imperfeitos. São Paulo: perspectiva, 1991.
24
memoriais. Relaciona a primeira com a conservação do passado, a segunda com o seu
chamado ou a sua ativação. Assim, podemos considerar que o procedimento retórico
barroco passa por recorrentes estímulos às duas faculdades acima mencionadas.
Observamos que um processo de gravação, de representação através de imagens, signos,
metáforas e alegorias funciona como estimulador da mnéme e como ativador de um
processo anamnésico, fazendo com que o homem sentado no centro do jardim e rodeado
de alegorias nunca seja capaz de esquecer daquilo que é instituído como validade
universal. Essa representação alegórica inerente à cultura barroca funciona como um
suporte para a lembrança, um sinal evocativo, como uma forma de conservação e
ativação do passado através do rito religioso e da decoração dos templos, bem como da
representação do poder do Estado e da Igreja. E se o barroco busca “entregar à mente
colocando ante os olhos”60, um aspecto comum a todas suas manifestações nas Minas
Gerais do século XVIII, seja na área da criação artística ou na órbita mais ampla do
estilo de vida, é a busca deliberada da sugestão ótica para suscitar e arrebatar os
sentidos. A imagem é “uma etapa na estrada real da demonstração”61. E essa
representação imagética funciona como um suporte para a lembrança, um sinal
evocativo, uma forma de conservação e ativação da memória; e como ato de afirmação
do poder da Igreja e do Estado Português; este último, entendido então como “unidade
inteiriça que abrange o indivíduo em todos seus aspectos e manifestações”62. A crônica
de Simão Ferreira Machado é um desses atos de afirmação de poder: um
documento/monumento avalizado e utilizado pelo Rei e pelo Santo Ofício com a função
de perpetuar para a memória coletiva a imagem glorificada e estável de um império luso
unido em torno da riqueza e da fé.
60 HATZFELD, Helmut. (Apud ÁVILA, Afonso. Resíduos seiscentistas em Minas p 125) 61 SARAIVA, Antônio J. O Discurso Engenhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980. p 53 62 PRADO-JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. In: Intérpretes do Brasil. p 1389
25
Nesse sentido, dicionários atuais trazem as seguintes acepções para o termo
memória: “monumento erigido para celebrar feito ou pessoa memorável (...) exposição
escrita ou oral de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos
seqüenciados; relato, narração”63. Segundo Le Goff, o “comportamento narrativo” é,
dentre os atos de conservação da memória, o “ato mnemônico fundamental”,
caracterizado pela sua função social de comunicar informação a outrem na ausência do
acontecimento ou do objeto. Lembremo-nos ainda que “os documentos são
representações de memória e suportes de informação”64. Atendendo às suas origens
filológicas, “o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a
recordação; por exemplo, os atos escritos” 65. A escrita é, “não apenas uma extensão da
memória, mas um exercício e um marco de poder”66. Ao solicitar então a “pública
escritura (...) referindo em perpétua lembrança, e contínua narração aos presentes,
futuros toda ordem de tão magnífica solenidade”, Simão Machado ergueu não apenas
um monumento escrito67, lingüístico, mas também um lugar de memória68 com o aval
do Rei e do Santo Ofício: “querendo que se perpetue em lembrança (...) Como esta
63 HOUAISS, Antonio. pág.1890. 64 CHAGAS. Mário. Cultura, Patrimônio e Memória. In: Ciências e Letras. Porto Alegre, nº 31, p 25 65 LE GOFF, Jacques. Documento Monumento. 66 CHAGAS. Mário. Op. Cit.. p 26 67 LE GOFF, Jacques. Documento Monumento.In: História e Memória.
Segundo Le Goff, Paul Zumthor propõe a distinção entre os monumentos lingüísticos e os simples documentos ao observar que o que distingue a língua monumental da língua documental é a elevação, a verticalidade que a gramática confere a um documento, transformando-o em monumento. Zumthor descobre então que o que transforma os documentos em monumentos é a sua utilização pelo poder. Os Monumentos ligam-se ao poder de perpetuação das sociedades históricas e, a princípio, são dotados de sentidos comemorativo ou fúnebre. O termo monumentum, deriva da raiz men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa ‘fazer recordar’, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos.” Le Goff observa a relação entre monumentos, ordem social e direito ao indicar que desde o século XVIII, grandes coleções de documentos passam a ser consideradas como monumentos da identidade e do patriotismo de nações: “A história e o direito público de uma nação são apoiados por monumentos.” Por outro lado, o termo documentum, derivado de docere, ensinar, evoluiu para o significado de prova, papel justificativo, testemunho, instrumento. Assim, para a escola histórica positivista do final do séc XIX, o documento era tido como fundamento do fato histórico, prova histórica: “A sua objetividade parece opor-se à intencionalidade do monumento”.
68 O que procuraremos comprovar detalhadamente no terceiro capítulo deste estudo.
26
notícia seja o clarim de tal fama (...) e digna de eterna memória esta solenidade (...), a
julgo merecedora de que se imprima”69.
De acordo com o verbete memória do Vocabulário Português-Latino de Raphael
Bluteau, publicado pela Companhia de Jesus em Portugal no ano de 1712: “Tem a alma
racional tres potencias, entendimento, Memoria, & Vontade, mas o Entendimento guia a
Vontade, & a Võtade manda a Memoria”70. O comentário feito por Bluteau, a intenção
demonstrada por Simão Machado ao solicitar a publica escritura e o aval do Santo
Ofício confluem para uma mesma conclusão que reafirma a fala do Soldado Prático. O
referido exemplar da cristandade lusitana é, portanto, uma evidência do esforço das
sociedades históricas para impor determinada imagem de si próprias ao futuro de
maneira voluntária ou involuntária, perpetuando assim alguns traços para a memória
coletiva. A narração do evento é “a tentativa de fixação do espetáculo que passa”71 ante
os olhos do homem barroco; e sua publicação assinala a possibilidade de perpétua glória
ibérica “exposta à pública notícia dos presentes, e futuros.”72 Mas nem tudo que ali
reluz é ouro.
O português e o colono trouxeram para as Minas, “como elemento integrado à
sua psicologia, uma bem definida sensibilidade ótica (...) condicionada (...) pelo
peculiar modo de ver barroco”73. A principal característica do barroco é a provocação de
uma espécie de vertigem ao nosso olhar físico74. Uma obra barroca “imprime um fator
de irrealidade, de desequilíbrio em nosso olhar. (...) obriga a que nosso olhar se dirija
para (...) além daquilo que o quadro nos mostra. (...) Há no barroco brasileiro algo de
69 MACHADO, Simão Ferreira. O Triunfo Eucarístico. 70 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino. (1712). Tomo VIII, pág 290. 71 ÁVILA, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas Gerais. vol. I . p 106 72 MACHADO, Simão Ferreira. O Triunfo Eucarístico. 73 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso e seus antecedentes europeus. p 116 74 GULLAR, Ferreira. A vertigem do olhar. In: NOVAES, A. O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
27
carnavalização, de mistura e de luminosidade fulgurante”75. Muitas vezes comparado ao
carnaval, O Triunfo Eucarístico foi um grandioso espetáculo da cultura barroca
motivado pelas solenidades de inauguração da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar
em Ouro Preto. E para ser bem compreendida, “essa cena requer a leitura visual de um
conjunto de elementos sígnicos”76; logo, “situar mais claramente o signo verbal em
relação aos demais signos é uma tarefa de primeira ordem (...) para a compreensão do
fenômeno literário”77. E se a imagem “serve como instrumento (...) em grau talvez mais
elevado que a palavra escrita ou falada”78, “as imagens pintadas ou esculpidas nas
paredes dos santuários (...) têm pelo menos tanto a dizer quanto muitos escritos”79.
Lembra-nos ainda Simão Machado que em Vila Rica “avulta, mais que as riquezas, o
fausto dos Templos, e a preciosidade dos altares”80. Visando a possibilitar um estudo
mais amplo dos signos utilizados para a expressão do homem no universo barroco em
que ocorre o Triunfo Eucarístico procederemos no segundo capítulo à análise das
imagens descritas na narração do evento estabelecendo relações entre o registro escrito e
outros vestígios da cultura material: as obras de entalhe, escultura e pintura realizadas
para a ornamentação interna da Igreja Matriz cuja inauguração motivou a festa e o
registro escrito. E sendo as obras de arte “consideradas artefatos fabricados com um
propósito”81, reportaremos “ao estudo da sociedade e das relações sociais que a elas
estavam subjacentes”82; relacionando a festa, a crônica e a ornamentação do templo à
difusão de alegorias que afirmavam o poder e a unidade da Igreja e do Estado.
75 REIS, Ronaldo. A Imagem Colonial: iconografia da colônia. In: Educação do Olhar. Brasília: MEC,
1998. vol I pp 63-73. 76 ÁVILA, Cristina (org). Op. Cit. p 25. 77 PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura. 6ª ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. 78 OTTONELLI e PIETRO DE CORTONA. Trattado della Pittura e Scultura, uso ed abuso loro.
Composto da un theologo e da un pittore, Florencia, 1652, p 62. (apud ÁVILA, Afonso. p 102) 79 BLOCH. Apologie pour l’histoire ou métier d’historien. (1941-1942) (apud Le Goff) 80 MACHADO, Simão Ferreira. O Triunfo Eucarístico. 81 OSBORNE, Harold. Estética e teoria da arte. 3ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1978. p. 32 82 BOSCHI, Caio César. O Barroco Mineiro: artes e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 9
28
Capítulo II – Alegorias do Fausto
Com o intuito de viabilizar as interpretações iconológicas acerca dos elementos
citados na narração do evento Triunfo Eucarístico e da ornamentação interna da Igreja
Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, proceder-se-á à definição de conceitos
que serão utilizados ao longo deste capítulo, em especial, o de alegoria.
2.1– Sobre a Alegoria
Segundo João Adolfo Hansen, a “alegoria (grego allós = outro; agourein = falar)
diz b para significar a. A Retórica antiga assim a constitui, teorizando-a como
modalidade da elocução, isto é, como ornatus ou ornamento do discurso”83 Retomando
Aristóteles, Cícero, Quintiliano e outros, Lausberg assim a redefine: “A alegoria é a
metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do pensamento em
causa por outro pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo
pensamento”.84 Nesse sentido, a alegoria é um procedimento construtivo que a
antiguidade greco-latina e cristã, assim como a idade média, chamou de alegoria dos
poetas: “expressão alegórica, técnica metafórica de representar abstrações”85. Há outra
alegoria que não se confunde com a dos poetas egípcios greco-romanos e medievais
nem com a dos autores hebraicos do Velho Testamento: a alegoria dos teólogos,
também denominada de figura, figural, tipo, antítipo, tipologia, exemplo. Não é um
modo de expressão verbal retórico-poética, “mas de interpretação religiosa de coisas,
homens e eventos figurados em textos sagrados.”86 O verbo grego állegorein “tanto
significa ‘falar alegoricamente’ quanto ‘interpretar alegoricamente’”87. Portanto , há
83 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 7 84 LAUSBERG, Heinrich. Manual de retórica literária. Madrid: Gredos, 1976, t. II, pp. 283 e ss. 85 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p 7 86 Idem. p 8 87 Ibidem. p 8
29
duas alegorias ‘complementares e simetricamente inversas’: a alegoria dos poetas
(semântica de palavras, expressão construtiva e retórica, maneira de falar e escrever); e
a alegoria dos teólogos (interpretação, hermenêutica, modo de entender e decifrar;
semântica de realidades supostamente reveladas por coisas, homens e acontecimentos
nomeados por palavras, em seu sentido próprio ou figurado).88 Operada como
hermenêutica89 a alegoria é “uma técnica de interpretação que decifra significações tidas
como verdades sagradas em coisas, homens, ações e eventos das Escrituras”, as quais
“significam verdades morais, místicas, escatológicas. Por isso, a prática interpretativa
dos primeiros Padres da Igreja e da Idade Média lê coisas como figuras alegóricas – e
não as palavras que as representam – para nelas pesquisar o sentido espiritual.”90 Assim,
ao passo que a retórica greco-latina teorizou a alegoria como simbolismo lingüístico, os
padres primitivos da Igreja e da Idade Média a adaptaram, “pensando-a como
simbolismo lingüístico revelador de um simbolismo natural (...) os padres fizeram a
distinção entre sentido literal próprio (expresso por letras de palavras humanas), sentido
literal figurado (metafórico) e sentido espiritual (revelado por coisas, homens e
acontecimentos das Escrituras)”.91 A idade média distinguiu alegoria de tipologia,
“pensando a primeira por meio de categorias lingüísticas da retórica greco-latina, como
metáfora continuada ou alegoria verbal e, ainda, como sentido literal figurado”92. A
tipologia então “uma semântica de realidades, espécie particular e propriamente cristã
da alegoria: ela é alegoria factual ou allegoria in factis.”93 Segundo Hansen:
88 Idem Ibidem. pp. 8-9; 92 89 do grego hermenéia, hermeneuiein = trasporte, transferir, termos traduzidos pelos latinos por
interpretatio, interpretare, interpetação, interpretar 90 HANSEN, João Adolfo. Op Cit. p 91 91 Idem. p12 92 Ibidem. p 104 93 Idem Ibiem. p 104
30
“É nessa linha que, no século XVII, o Padre Vieira escreveu uma História do Futuro,
tomando como modelo de história as histórias da Escrituras, que para ele eram
história, numa mescla de tipologia, relação figural de realidades; e alegoria, relação
figurada de palavras. O objetivo de Vieira era teológico-político e suas alegorias
compõem o futuro de Portugal profeticamente, como realização de um projeto já
anunciado por deus no passado.”94
Nos séculos XV e XVI retorna a teoria do simbolismo, adaptação feita por Santo
Agostinho no século V d.C.: “pensa o verbo divino como uma ‘palavra’, no sentido que
a retórica chamaria de figurado ou metafórico.”95 A interpretação cristã das coisas das
Escrituras é realizada de acordo com três coordenadas: “consideração da presença de
deus nas coisas sensíveis; consideração da presença de deus nos seres espirituais, almas
e puros espíritos; consideração da presença de deus na alma humana”.96 Os teólogos
leram as marcas de Deus no mundo e nos textos segundo três graus de proximidade: “a
sombra, figuração distante e confusa de deus; o vestígio, figuração distante, mas
distinta; a imagem, figuração próxima e distinta”97. Devemos observar que os textos
abundam de exemplos, “o exemplarismo não é defeito, mas decorrência do método, que
situa cristo como premissa”98, como imagem exemplar.99
Durante o século XV em Florença, textos filosóficos e poéticos gregos e latinos
são traduzidos e simultaneamente interpretados por meio de referências variadas como
hieróglifos egípcios, astrologia, alquimia, Patrística, Escolástica, Cabala, etc. Para os
eruditos florentinos, não havia diferença essencial entre a autoridade das fontes cristãs e
não-cristãs. As releituras da tradição efetuadas pelos eruditos de Florença são
retomadas, por sua vez, nos séculos XVI e XVII por pintores e poetas classificados hoje
94 Ibidem Ibidem. p 108 95 Ibidem Ibidem. p 59 96 Ibidem Ibidem. p 92 97 Ibidem Ibidem. pp. 98 98 Ibidem Ibidem. pp. 99 99 Façamos desde já um paralelo como objeto deste estudo, uma vez que o seu título é Triunfo Eucarístico
- Exemplar da Cristandade Lusitana.
31
com a rubrica de maneirismo. “A alegoria deixa de ser pensada como a antiga
instituição retórica a pensara: tradução figurada de um sentido próprio. Deixa, também,
de funcionar como na hermenêutica medieval”100. Passa então a ser considerada o
“instrumento principal de interpretação e construção dos discursos”101. O método de
interpretação alegórica dos florentinos “desloca as escrituras” e baseia-se antiguidade
oriental e greco-romana. Os vários sentidos da interpretação medieval (histórico,
alegórico, tropológico, anagógico) são unificados como alegóricos. A interpretação
florentina busca sempre um mesmo significado: “o destino da alma humana que ‘volta’
para o mundo das essências”.102 A alegoria é então construída sobre a diferença entre o
visível e o legível articulando signos esotéricos. Não é necessariamente a tradução da
obra interpretada em formas que concretizam abstrações, não mais ornamentação do
discurso. A “alegoria é ars inveniende ou Invenção, modo de construir da imaginação
poética.”103 O fundamento último da alegoria florentina é “a crença de que, para a alma
humana consciente dos outros mundos, a realidade terrena é da natureza dos sonhos,
metáfora de uma filiação primordial.”104 A alegoria é instrumento para
“(...) por a alma humana em estado de receptividade poética da unidade invisível. (...)
Assim, a própria vida é alegoria: sonho sensível do inteligível, espelho embaçado do
inefável, teatro, pó, sombra, nada – na alegoria neoplatônica se lê, hoje, uma das
matrizes do que o século XX chama de ‘Maneirismo’ e ‘Barroco’. (...) Tanto quanto a
concepção do mundo como teatro e sonho, a doutrina do todo contido na parte torna-
se lugar comum (...) nos séculos XVI e XVII.”105
100 HANSEN, João Adolfo. Op Cit. p. 141 101 Idem. p. 139 102 Ibidem. p. 171 103 Idem Ibidem. p. 172 104 Ibidem Ibidem. p. 174 105 Ibidem Ibidem. p. 176-8
32
Os neoplatônicos florentinos do século XV teosofaram a alegoria como
expressão e interpretação de mistérios. Paralelamente à continuidade dessa tradição
mística “as traduções e o exame da Poética, recém-descoberta (1499), tornam-se cada
vez mais freqüentes no século XVI e, ainda, no XVII, quando a retórica é apropriada
pela Contra-Reforma em sua pompa e circunstância.”106 A vertente aristotélica propõe
a alegoria como simples tropo convencional, determinado por regras finitas. A alegoria
torna-se “definição ilustrada”107. Da Lógica aristotélica deriva-se então a técnica de
definição como classificação em gêneros, subgêneros, etc. Da Retórica, mantém-se a
teoria da metáfora (dá-se preferência à ‘metáfora de proporção’). O aristotelismo
permitiu uma regulação técnica da alegoria no século XVI e, extensivamente, no século
XVII:
“(...) o procedimento geral de figuração alegórica passa a funcionar baseado nos
seguintes pressupostos: a invenção do poeta ou artífice é um produto de seu
pensamento; a imitação de modelos artísticos é um instrumento da invenção; a arte é
o ato de execução por meios técnicos, adequados aos gêneros, verossimilhanças e
decoros. (...) o conceito pensado pelo poeta ou artífice passa a ser figurado por um
emblema, uma divisa, um enigma ou outra forma alegórica.”108
A tradição neoplatônica e o aristotelismo se misturam; e teóricos neoplatônicos
operam com aplicações de Aristóteles. Entre eles Cesare Ripa, autor da obra Iconologia,
publicada em 1593. Pela primeira vez se emprega o termo ‘iconologia’ para descrever e
interpretar obras do gênero emblemático relacionadas à alegoria. Propõe-se a iconologia
como “lógica das imagens (...) articulada duplamente como (...) técnica construtiva e
técnica interpretativa. Sendo uma transposição da retórica à constituição de imagens
pictóricas, a formulação de Ripa toma o discurso como modelo: as imagens da pintura
106 Ibidem Ibidem. p. 179 107 Ibidem Ibidem. p. 179 108 Ibidem Ibidem. p. 179-80
33
imitam o discurso”109. O Iconologia se tornou texto-chave na constituição do
classicismo, “pois expõe a fatura de imagens adequadas”110. Retornam as categorias da
Retórica Antiga, principalmente de conveniência, adequação ou decoro: “para coisas do
conhecimento, imagens de coisas elevadas; para coisas elevadas moralmente, coisas
esplêndidas; para coisas censuráveis, imagens de coisas vis, etc – observando-se a
transposição, para a pintura, da distribuição retórica dos estilos em sublime, médio e
humilde”111. Contrariando o mito muito difundido de uma total liberdade e exuberância
‘barrocas’, ressalta-se aqui a antiga componente retórica da alegoria, mantida nas artes
do conceito engenhoso como instrumento petrificado na produção de efeitos de
exuberância e liberdade. “Por isso, ainda, no século XVII, a invenção e o engenho
tendem mais e mais a ordenar-se como técnica, que determina as regras para a tópica,
imagens da pintura ou tropos da poesia.”112 Antonio J Saraiva, na obra O discurso
engenhoso, faz as seguintes considerações sobre o papel da imagem no encadeamento
do discurso: “A imagem (...) – a do discurso clássico – é a evocação pelas palavras de
uma percepção sensorial (...) a fim de tornar sensível à imaginação um pensamento
abstrato, ou de descrever, por comparação, um objeto concreto. Esta definição supõe
dois termos (...): o pensamento e sua imagem”113. A retórica clássica considera a
metáfora como um ‘ornato’ do discurso, e não como elemento de sua estrutura.
Contudo, “a imagem, um significante no discurso clássico, pode tornar-se, no discurso
engenhoso, um significado; e o conceito, por sua vez, um significante”.114 No discurso
engenhoso a imagem deixa de ser ‘um ornamento às margens do discurso’ e se torna
‘uma etapa na estrada real da demonstração’.
109 Ibidem Ibidem. p. 181 110 Ibidem Ibidem. p. 182 111 Ibidem Ibidem. p. 185 112 Ibidem Ibidem. p. 187 113 SARAIVA, Antonio J. O Discurso Engenhoso. pp. 32; 34; 53 114 Idem.
34
O homem é “o único animal que deixa registro atrás de si, pois é o único animal
cujos produtos ‘chamam à mente’ uma idéia que se distingue da existência material
destes.”115 Uma pintura, “sobretudo na época barroca, é um efeito de ilusão: de real só
tem a aparência.”116 Segundo Panofsky, perceber a relação de significação nas arte
visuais é “separar a idéia do conceito a ser expresso dos meios de expressão”; e
perceber a relação de construção é “separar a idéia da função a ser cumprida dos meios
de cumpri-la. (...) Os signos e estruturas do homem são registros porque (...) expressam
idéias separadas dos, no entanto, realizadas pelos, processos de assinalamento e
construção.”117 Observa ainda que os objetos ‘práticos’ (os que não exigem a
experiência estética) feitos pelo homem são classificados como: “veículos de
comunicação” (obedecem ao ‘intuito’ de transmitir um conceito); e “ferramentas ou
aparelhos” (obedecem ao intuito de preencher uma função)118. Procurando definir os
conceitos que serão utilizados neste estudo observemos que: a “Iconografia é o ramo da
história da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua
forma”119; e a Iconologia “é um método de interpretação que advém da síntese mais que
da análise”. Logo, a exata identificação dos motivos é o requisito básico para uma
correta análise iconográfica; e a exata análise das imagens, estórias e alegorias é o
requisito essencial para uma correta interpretação iconológica.120 Definidos os
conceitos, passemos à interpretação iconológica dos elementos citados na narração do
Triunfo Eucarístico comparando-os com a ornamentação interna da Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto.
115 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. p 23 116 SARAIVA, Antonio J. O Discurso Engenhoso. P44 117 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. p 24 118 Idem. p 31 119 Idem Ibidem. p 47 120 Ibidem Ibidem. p 54
35
2.2– O Triunfo Eucarístico: uma interpretação iconológica
“saiu logo a procissão manifesta nos desejos da publicidade na forma seguinte (...)
tudo representação: diga-se a história humana, ou da Escritura”121
Alguns comentários feitos por Simão Machado ao descrever as imagens
apresentadas no cortejo demonstram que o autor conhecia bem os conceitos acerca dos
usos e aplicações da alegoria no discurso; também indicam o curso que deverá tomar
esta análise. Procurar-se-á observar como a história humana, ou da Escritura, foi
representada através do evento e da crônica, analisando nesse contexto a inserção da
imagem que o Estado, a Igreja e a sociedade procuram demonstrar com o evento.
2.2.1 – Anúncio e Amanhecer de um Triunfo
Nas páginas iniciais da narração o autor comenta os acontecimentos que
precederam o cortejo no período compreendido entre o final de abril e o dia 23 de maio
de 1733 em Vila Rica. O cronista inicia o texto descrevendo o bando de mascarados que
anunciaram as solenidades pelas ruas da vila utilizando imagens que unindo o sagrado
ao profano produzem oposições de sentido típicas de uma festividade barroca: “uns
aprazível objeto das vistas nas diferenças do traje, e precioso da compostura; outros na
galantaria das figuras assunto do rito, e jocosidade: todos por diferentes modos
anunciaram ao povo a futura solenidade.”122 No dia 3 de maio duas bandeiras saíram à
pública veneração pelas ruas da vila (uma delas tinha em uma face a senhora do rosário,
em outra a custódia do Sacramento; a outra tinha também a custódia em uma face, e na
outra a imagem da Senhora do Pilar; ambas de damasco carmesim). Levadas por duas
pessoas (ricamente vestidas com numeroso, e grave concurso) e colocadas uma defronte 121 MACHADO, Simão Ferreira. Op Cit. 122 Idem. p 37
36
ao templo de Nossa Senhora do Rosário (onde estava o sacramento), outra defronte ao
templo da Senhora do Pilar (para onde havia de ser trasladado o sacramento). No dia da
Ascensão houve a bênção da nova Igreja (pelo Reverendo Vigário de vara de Vila Rica,
Feliz Simões de Paiva, “assistindo-lhe todo o clero e povo de ambas as paróquias”.
Serviram à festividade desse dia até 24 de maio, dia da trasladação: “muitas danças e
mascaras, ricamente vestidas; e continuaram aos olhos sempre vário, e agradável
espetáculo, ordinariamente de dia; aos ouvidos sonora e contenciosa harmonia de
músicas, principalmente de noite”. Procederam-lhe seis dias sucessivos de luminárias
por ordem O Senado da Câmara, sendo três gerais em toda a vila até o Padre Faria123.
Faz referencia ao morro Fiador das Minas (assim denominado “pela inexaurível cópia
de ouro”) e a Paschoal da Silva124, seu mais opulento morador. Vejamos a seguir como
o autor usa as imagens das luzes à noite para transportar para o texto emoções e
sensações que avém de um universo sensorial e que criam efeitos alegóricos para
auxiliar a descrição do estado de comprazimento da população. Refere-se ao Fiador das
Minas dizendo que “nele estas noites nas casas dos moradores as luzes, que mostravam
a os juízos o centro da opulência, por sua altura, como na região das nuvens, pareciam
aos olhos luminárias do céu.”125 Aproximando a exibição pirotécnica de uma
manifestação celestial, o autor utiliza então as seguintes imagens: “A claridade dos ares,
a serenidade do tempo, a estrondosa harmonia dos sinos, a melodia artificiosa das
músicas, o estrepito das danças, o adorno das figuras, a formosura na variedade, a
ordem na multidão”126 para dizer que estas “geralmente influíam nos corações uns
123 “(bairro assim intitulado) o ultimo idoneo para nestas noites dilatar às luzes o domínio das trevas” P40. 124 Paschoal da Silva Guimarães: rico minerador que teve saliente atuação na denominada “sediçao de
Vila Rica”, em 1720, que culminou na execução de Felipe dos Santos. 125 MACHADO, Simão Ferreira. O Triunfo Eucarístico: exemplar da cristandade lusitana. Lisboa:
Companhia de Jesus, 1734. p 41 126 Idem. p 41
37
júbilos de tão suave alegria, que a experiência a julgava alheia da natureza, o juízo
comunicada do céu”127, como um influxo de Deus nas coisas do mundo.
Para a tarde vinte e três de maio, sábado, estava destinada a solene pompa da
trasladação, mas ‘impediu uma repentina chuva os desejos do concurso’ e a solenidade
‘ficou deferida para o seguinte dia de manhã’. Houve discurso que “com pia
contemplação se persuadiu, que no impedimento deste da servira a natureza de superior
mistério: (...) quanto à chuva; julgando-a muda voz do céu (...) com que via em
competência a fé nos entendimentos, nas vontades o amor.”128 Na manhã de vinte e
quatro de maio as ruas destinadas à procissão apresentavam todo o obséquio de
festividade e magnificência. E “à medida que se intensifica a vida urbana, buscam-se
meios (...) para conferir ao conjunto urbano as condições de um cenário conveniente
para a civilização que se pretende representar”129. As janelas ornadas com sedas e
damascos eram “uma vária e agradável perspectiva para a vista e empenhada
competência de preciosidade e artifício (...) viam-se em primorosos e exquisitos lavores
entre ouro e prata, tremulando as idéias do oriente troféus à opulência do ocidente.”130.
Também nas ruas, cinco elevados arcos “eram o maior empenho da magnificência, da
vista, em vagarosa atenção, desvelo, e delícia; contencioso triunfo de ouro e
diamantes”131. O autor comenta que um dos arcos, mesmo fabricado de cera, “na vulgar
matéria, pelos empenhos da arte, fez nos juízos lugar à competência, nos olhos teatro à
vitória dos esplendores do ouro, das luzes dos diamantes”132. Havia também um altar133
para descanso do divino sacramento e deliberado ato de pública veneração. Segundo
Simão Machado, aparecia nas ruas “a verde amenidade dos campos; em variedade de 127 Ibidem. p 41 128 Ibidem Ibidem. p 43 129 REIS FILHO, Nestor Goulart. Evolução Urbana do Brasil.São Paulo: Edusp, 1968. p 111 130 MACHADO. Simão Ferreira. Op Cit. p 44 131 Idem. p 44-5 132 Ibidem. p 45 133 “foi o seu ornato pelo custo, e asseio, viva imitação dos arcos” Idem Ibidem p45
38
flores a primavera. Sentia-se nos ares, em flagrância de aromas, transplantada ao
Ocidente a odorífera Arábia do Oriente”134. A “imaginação exuberante do cronista”135
registra imagens “que fazem lembrar as fantasias brilhantes das Mil e uma noites e
outros contos orientais”136Ao se referir à presença da população no evento, o cronista
torna-se hiperbólico em suas imagens: “no populoso concurso tinha a vila a multidão
das cortes; nas galas a polícia, e gravidade: vestiu neste dia a todos do mimo das cores a
natureza; em lâminas de ouro e prata o sol as luzes dos raios.”137 Os atos festivos de
consagração da nova matriz “não poderiam diferir, portanto, na concepção daquela
comunidade de novos ricos, do requinte e desprendimento observados em outro passos
da vida social138. A imagem dessa manhã oferecida pelo texto arrebata os sentidos com
a opulência e o exotismo do oriente ostentando o comércio ultramarino e as conquistas
portuguesas; evidencia o triunfo do dogma em cinco arcos de diamantes e ouro que
representam a magnificência do Império e da Igreja; demonstra harmonia e estabilidade
pela imagem de verde e primaveril amenidade dos campos. Em contraposição à
frustrada e chuvosa tarde do dia anterior, confirma ainda os desígnios de Deus pela
muda voz dos céus que transferiu para esta perfeita manhã a trasladação do Santíssimo,
que por sua vez era publica e deliberadamente venerado pela rica sociedade mineradora.
A descrição dessa manhã procura oferecer uma imagem idealizada, inebriada e opulenta
da sociedade colonial nas minas gerais; região que fora nas décadas anteriores alvo de
ações repressivas do Estado Português com vistas a estabelecer o controle das atividades
de mineração. Lembremo-nos que o Triunfo Eucarístico é festa de inauguração da Igreja
Matriz de um bairro da então Vila Rica que, nas décadas referidas, fora um
134 Ibidem ibidem p 46 135 SALES, Fritz Teixeira de. Vila Rica do Pilar. Editora Itatiaia Limitada. Belo Horizonte, 1965. p 100-2 136 VEIGA, José Pedro Xavier da. Ephemerides Mineiras (1664-1897). Imprensa Official do Estado de
Minas Gerais. Ouro Preto, 1897. v.II, p 292-3; v. IV, p 277. Apud AVILA. Op Cit. 137 MACHADO, Simão Ferreira. Op. Cit. p 46 138 AVILA, Afonso. Resíduos seiscentistas em minas gerais. Vol I. p 35.
39
representativo arraial de portugueses que disputaram o controle do espaço com os
paulistas do arraial de Antonio Dias. Os dois arraiais foram, juntamente com outros que
se localizavam nos morros, unificados quando da criação da Vila Rica, mas as paróquias
identificam essa divisão até hoje, não tendo nunca sido unificadas. Por isso, quando da
benção da igreja realizada no dia da Ascenção, o cronista comenta que o Reverendo fora
assistido pelo clero e povo “de ambas as paróquias”. As aparências dessa manhã se
opõem aos fatos das décadas anteriores e demonstram o triunfo.
2.2.2 – A Fé, a Lei e o Rei
Antes da procissão o divino sacramento foi colocado em um braço da imagem de
Nossa Senhora em lugar do menino; indicando que a hóstia consagrada é (assim como o
menino nos braços de Maria, o homem de 33 anos pregado à cruz, ou o cordeiro sobre o
livro dos sete selos) uma representação do Cristo. Vejamos como essa construção
alegórica se relaciona com a perpetuação da memória e da ordem colonial. O Triunfo
Eucarístico é o ‘triunfo da eucaristia’; na última ceia, com a instituição do rito
eucarístico, Cristo dá, pois, matéria a ser lembrada: “Tomai e comei, isto é o meu corpo
dado por vós. Fazei isto em memória de mim.”139 A unificação proposta pela eucaristia
evidencia a permanência do rito em função da preservação da memória, é o ponto
culminante do culto cristão católico referenciado como Memorial do Senhor. A partir do
século XII o culto ao santíssimo sacramento foi objeto de manifestações públicas em
contextos de combate, defesa, triunfo e repressão. Devemos observar que a “intervenção
do sistema eclesiástico foi essencialmente repressiva”140 em Minas Gerais. Durante os
anos iniciais da ocupação das minas, surgiam arraiais efêmeros, nos quais o controle de
estabelecia pela força dos grupos que se estabeleciam no local. Constantes eram as
139 Mateus, XXVI, 29. Marcos, XIV, 25. Lucas, XII, 16-18. 140 HORNAERT, Eduardo (Org). História da Igreja no Brasil. 4ª ed. Petrópolis: vozes, 1992. p 98.
40
desavenças entre os colonizadores. A guerra dos emboabas (1709-11) e a Revolta de
Felipe dos Santos (1720)141 são exemplos de maiores proporções. Durante esse período,
com o intuito de estabelecer a ordem colonial garantindo a arrecadação dos impostos e o
controle do espaço, a coroa toma as medidas seguintes. Cria em 1711 a Capitania de
São Paulo e Minas do Ouro, desmembrada da Capitania do Rio de Janeiro e com sede
na então criada Vila do Carmo (Mariana). No mesmo ano foram criadas ainda a Vila
Rica e a Vila de Sabará. No ano de 1713 foi criada a Vila de São João Del Rei, no ano
de 1714 a vila do príncipe (Serro), em 1714 Caeté, em 1715 Pitangui, em 1718 São José
Del Rei (Tiradentes). Em 1720 a Coroa cria a Capitania de Minas do Ouro,
desmembrada de São Paulo e com capital em Vila Rica. Com a implantação das vilas,
implantava-se também e a estrutura urbana necessária ao controle das atividades de
mineração e à representação do rei pelos funcionários da coroa e pelos homens bons que
formavam o senado da câmara nessas vilas. “No centro de cada uma delas erguem-se a
câmara e cadeia, o pelourinho e a Igreja Matriz, símbolos máximos dos poderes secular
e religioso”142. Logo, em 1733, para confirmar e perpetuar as ações repressivas do
Estado em 1709-11 e 1720, a “hóstia sagrada carregada pelas mãos do sacerdote e
cercada de perto por autoridades repressivas significou simbolicamente o triunfo da
ordem colonial (...) e representou o rei distante, mas atuante”143. As três imagens (do
Cristo, do Sacramento e do Rei) são, portanto, intercambiáveis. Celebrou-se uma missa
oficiada a dois coros de música; e o sermão pregado ao púlpito da Igreja do Rosário
pelo Reverendo Doutor Jozé de Andrade e Moraes foi o último ‘ato’ a essa solenidade.
141 E lembremo-nos aqui do Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano
de 1720, texto anônimo (atribuído ao Conde d Assumar) dividido em duas partes principais: a primeira narra os episódios que envolveram o levante de vila rica e a subseqüente execução do português Filipe dos Santos; a segunda justifica e fundamenta a necessidade da execução, feita sem julgamento, em ações e escritos de personagens históricos do mundo antigo. Conforme MELLO E SOUZA, Laura de. Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Estudo crítico, estabelecimento de texto e notas. Belo horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994.
142 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 69 143 HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. 3ª ed. Petrópolis: Vozes. 1991. p 51-2.
41
2.2.3 – Três Danças, Quatro Ventos, a Fama e o Ouro Preto
Deu-se início ao cortejo com três danças. Uma dança de turcos e cristãos em
numero de trinta e duas figuras militarmente vestidos e igualmente divididos a um
Imperador, e um Alferes que eram conduzidos por dois carros ‘de excelente pintura’ em
cujos interiores havia ‘músicos de suaves vozes e vários instrumentos’. Seguiu-se outra
dança de Romeiros ricamente vestidos, “que continuamente ofereciam à vista a
gravidade do gesto, a variedade da ordem, em diferente mudanças da arte”. Por fim
outra vistosa dança composta de músicos com dois carros de madeira “de singular
pintura”: um menor “levava patente aos olhos” uma serpente; outro maior, de artifício
elevado em abóbada, ocultava um Cavalheiro que saiu de repente da abóbada já
montado à cabeça da serpente, “tudo representação: diga-se a história humana, ou da
Escritura em termos breves, e claros”144. Representados nas danças os conflitos entre
turcos e cristãos, a origem do homem e do pecado na gênese divina e a expressão.
Seguiam-se logo quatro figuras a cavalo representando os Quatro Ventos (Norte,
Sul, Leste e Oeste)145. Referindo-se às influências malévolas e benévolas às quais todos
144 Machado, Simão. Op Cit. p 48 145 “O vento oeste trazia na cabeça uma caraminhola de tiffo branco, coberta de peças de prata, ouro e
diamantes, cingida de uma peluta branca, matizada de nuvens pardas; rematada posteriormente em um laço de fita de prata, cor de rosa, coberto de uma jóia de diamantes; ao alto de um cocar de plumas brancas, cingido de arminhos: o peito coberto de penas brancas, umas levantadas, outras baixas, todas miúdas; guarnecido de renda de prata: o capilar de seda branca de flores verdes, guarnecido de galoens de prata: vestia uns manguitos de cambraia transparente, e finíssimas rendas: três fraldões de seda branca em flores verdes, e cor de rosa, guarnecidos de franjas de prata: os borzeguins cobertos de penas; nas costas duas asas, e um letreiro do seu nome: na mão esquerda uma trombeta, de que pendia um estandarte de cambraia transparente bordada a mão, guarnecidos de laços de fita de prata, cor de rosa e cor de fogo. Era o cavalo castanho escuro, mosqueado de branco: a sela de veludo cor de ouro, bordade de prata: os arreios brancos de pregaria de prata: as crines de franja de prata, paffamane de ouro, fita cor de rosa sobre chamalote branco, tudo crespo; no peitoral rabicho, e cauda de muitos laços de vária fitaria. Ao sul ornava a cabeça um bonete com cocar de plumas brancas, e azuis: o peito bordado de ouro, e peças de diamantes: o capilar de estofo de ouro azul, e branco: os fraldoens de seda também em ouro, o primeiro azul, os outros brancos, todos com franjas de ouro: os borzeguins bordados do mesmo; nas costas duas asas, e seu nome em um letreiro: na mão esquerda uma trombeta, e nesta um estandarte carmesim com franja, e borlas de ouro. O Cavalo castanho, os jaezes de veludo verde, bordados de ouro; os arreios dourados; na cabeçada um martinete de plumas azuis, e brancas; em muitas partes variedade de fitas. O norte e o leste só nas cores que lhe competiam eram destes diferentes; no preciso ornato tinham igualdade e imitação.” Idem ibidem. pp 49-53
42
estão expostos, os quatro ventos remetem à sorte, à fortuna, ao fado. Essa representação
é uma “continuidade à tradição medieval”146.
Depois dessas vinha a ‘Fama’ 147, uma divindade alegórica que trazia à mão
direita uma haste de prata rematada em cruz da qual pendia um estandarte de tela branca
com a arca do testamento (a Arca da Aliança, construída por ordem de Moisés para
guarda das tábuas da lei) pintada em uma face, na outra face uma custodia e a inscrição:
Eucharistia em Translatione victrix (Eucaristia vitoriosa na translação). Normalmente
representada com uma corneta ou clarim, a fama é entendida como anúncio de algo
(conhece-se a fama de algo antes mesmo de conhecê-lo): a notícia é o clarim da fama. E
nesse caso, com a fama vem a Lei de Deus e a vitória do Dogma. Pelos lados a seguiam
dois pajens148 caracterizados “como pinta a antiguidade a Mercúrio”. Por ministério dos
pajens, “dividiu a fama ao povo (...) poemas em elogio da solenidade”149. Não há
registros de tais poemas, nem acerca da forma pela qual foram, nas palavras de Simão
Machado, “divididos” ao povo. Ávila levanta a hipótese de que se tenha recorrido a um
“processo visualizador na apresentação de inscrições em verso”150. Notemos que a
caracterização dos pajens como Mercúrio remete à concepção clássica do mensageiro
dos deuses, mas a serviço da difusão e do elogio à crença nos dogmas cristãos. 146 NASCIMENTO, Adalgisa Arantes do. Introdução ao Barroco Mineiro: cultura barroca e
manifestações do rococó em Minas Gerais – Belo Horizonte: Crisálida, 2006. p. 11 147 “Era o seu adorno vagaroso empenho da vista, continuada novidade dos olhos, agitada esfera da
riqueza, móvel aparato da magnificência. Precedia a todas a fama (...) cingia-lhes a cabeça um precioso toucado de diamantes, dando por um lado ao vento uma haste de finíssimas plumas brancas: o peito bordado de ouro, e vária pedraria, de que sobressaia elevado num broche de diamantes: o capilar de seda branca de florões de ouro: os fraldões da mesma seda, cingidos de franjas de ouro, saíam-lhe das costas duas asas de penas brancas matizadas de folhas de ouro: nos borzeguins calçava de nacar em viva cor de marroquim: surgia da mão direita, de uma haste de prata, rematada em cruz, pendente um estandarte de tella branca; por uma face pintada a arca do testamento, por outra uma custodia sobre um letreiro de letras de ouro, que dizia: Eucharistia em Translatione victrix. Era o cavalo formoso, e manso, na cor russo pedrês: o jaezes de bordado, franjas, e borlas de ouro; na frente agitava um martinete de seda de várias cores, e plumas brancas: pelas crines, e cauda, largava ao vento laços de fita de prata e ouro de várias cores (...)”. MACHADO, Simão Ferreira. Op Cit. pp 53-5
148 (...) nas cabeças davam nos chapéus ao vento duas asas: vestiam justilhos brancos da Holanda, e que saíam nas costas duas asas: cingiam três fraldins de seda encarnada com flores de várias cores: calçavam de branco com fervilha de talares: nas mãos os caduceos columbrinos.” Idem p55-6
149 Ibidem. p 56 150 AVILA, Afonso. Resíduos seiscentistas em minas gerais. Vol I. pp 37-8
43
Seguia-se a figura do Ouro Preto151 (bairro onde se situa a matriz a que se
encaminhava a trasladação e solenidade) acompanhada por outras figuras; umas a
cavalo, outras a pé: montado em um formoso cavalo um Alemão152 rompendo com
sonoras vozes de um clarim o silêncio dos ares; atrás deste, distância de dois passos,
vinham a pé oito negros “vestidos por galante estilo”153. Em seguida um pajem e, a
cavalo, a principal figura, o Ouro Preto. Vestindo roupas e turbante com ouro e
diamantes, a figura trazia bordadas no meio do peito as armas Reais e, acima delas, a
inscrição Viva o Ouro Preto. Levava na mão direita uma salva, “dentro nela um
morrozinho, coberto de folhetas de ouro, e diamantes, que significava o Ouro Preto”154.
Aos lados da figura do Ouro Preto, outras duas a cavalo davam-lhe o lugar ao meio; e
dele diferiam apenas por terem, em lugar do turbante, ornatos de cabeça em feitio de
morros: “significando uma o Ouro Preto, outra o Ouro Fino; morros entre os quais está
fundada a vila”. Seguiam-nas dois pajens a pé em igual vestimenta.
151 “(...) tão rico que não se via nele mais que ouro e diamantes; rematado em um precioso cocar de várias
plumas: formou-lhe o peito um bordado com tal artifício que parecia de martelo; por todo ele se via em contínuos esplendores a luz de muitos diamantes brilhando, encravados em muitas peças de ouro: no meio do peito se viam bordadas as armas Reais, por cima do Imperial umas letras, que diziam: Viva o Ouro Preto. Calçava borzeguins do mesmo artifício e vista, à imitação do peito; levava na mão direita uma salva, dentro nela um morrozinho, coberto de folhetas de ouro, e diamantes, que significava o Ouro Preto. O cavalo russo na cor, era o melhor dos que vieram neste ato, por mansidão e formosura: a sela tão rica que não se sabe segunda no Brasil, sobre veludo verde bordada de ouro: o xairel, e bolças imitavam a sela na matéria e artifício; os arreios eram do mesmo, a ferragem toda de prata: para haver em tudo conformidade se bordaram da mesma sorte as crines do cavalo, que iam caídas entre fitas de tella e flores de diamantes: a cabeçada por cima de laços também de tella, levava outras de filigrana de ouro com esmeraldas de várias cores: dava a tudo o artifiio evidente propriedade em tanta variedade: elevava-se nesta fábrica um martinete de dois palmos e meio em feitio de palmeira; em cujo artifício em seda, ouro e pedraria, deu o artífice ao galante bruto a vitória e palma da melhor gala: levava as mãos e pés dourados: ultimamente em rédeas e sobre rédeas de cordões de ouro oferecia à figura a glória da Magestade. Houve opiniões que deram ao cavalo muita melhoria que à figura; mas era gosto dos olhos contra as verdades da natureza.” MACHADO, Simão Ferreira. Op Cit. pp.59-62
152 “(...) fazia com invectivas da arte, que nas vozes do instrumento fosse a melodia encanto dos ouvidos: isto deu causa a eleição que dele se fez para concorrer neste ato. Vestia à castelhana e um veludo roxo com capa do mesmo, passado todo de ouro: cobria-lhe a cabeça um chapéu agaloado do mesmo, disposto em dois ventos, formaram-lhe as presilhas dois broches de diamantes de grandeza não vulgar; sobressaía deles um cocar de plumas, que na variedade de vivas cores, não tinha menos lustre, que os diamantes. O cavalo era russo: os jaezes, de veludo carmesim bordado de ouro: os arreios, cobertos do mesmo: na cabeça ia firme um martinete de seda, e plumas brancas, e nela, e na crines, em vária ordem, dispostas fitas de ouro; na cauda outras várias cores.” Idem. pp. 57-8
153 “(...) tocavam todos charamellas, com tal ordem, que alternavam suas vozes com as vozes do clarim, suspendidas umas, enquanto soavam outras” Ibidem. p 59
154 Idem Ibidem. p 60
44
Percebe-se que esse bloco de imagens iniciais do cotejo representa a luta dos
cristãos contra os mouros na difusão da fé católica; a gênese divina, o homem e o
pecado; o fado; a fama pela defesa da Lei de Deus e pela vitória do Dogma; a riqueza do
ouro o dos diamantes como prêmio pela glória dada a Deus. Lembremos aqui que a
alegoria dos teólogos é também chamada de exemplo; e que em “decorrência do método
que situa cristo como premissa”155, é cheia de exemplarismos. Notemos no fragmento
extraído da dedicatória a nossa senhora o explícito intuito de que “tão grande solenidade
se publicasse, porque a notícia tem estímulos para o exemplo (...) dilatando mais a
veneração, e glória de vosso Santíssimo filho (...) é providência a utilidade do
exemplo”156. As três danças, os quatro ventos, a fama e o ouro preto indicam, portanto,
o caráter exemplar da experiência da nação portuguesa que, lutando para difundir a fé
católica, sujeita ao pecado e ao fado, traz no estandarte de sua fama a defesa das leis
divinas e do dogma e recebe de deus a graça das riquezas materiais recém-descobertas.
O autor declara, na dedicatória a Nossa Senhora, que “ao Supremo Rei dos Reis, Cristo
Senhor Nosso, deve o glorioso Reino de Portugal a sua instituição, e dilatado Senhorio”.
Comenta, na prévia alocutória, que Dom Afonso Henrique recebeu “da boca do Cristo
(...) a instituição do Reino unida ao Apostólico encargo da propagação da Fé (...) e
servindo aos portugueses o temor introduzido pelas armas (...) Seguiu-se à instituição da
cristandade o estabelecimento do domínio (...) persuadindo as verdades da Fé com os
exemplos da virtude”157. Fé que ensina “serem dádiva de Deus as riquezas, e todos os
bens temporais”158. Portanto, Vila Rica é, ‘mais que esfera da opulência’, ‘teatro da
religião’; e assim ‘aparece por sucesso da ventura, o prêmio da diligência’.
155 HANSEN, João Adolfo. Alegoria. p. 99 156 MACHADO, Simão Ferreira. Op Cit. na dedicatória a Nossa Senhora. p s/n. 157 Idem. pp 2-3, 8, 26-27. 158 Idem. p 14
45
2.2.4 – Os Sete Planetas e a Igreja
Vinham as figuras dos setes planetas “oferecendo aos juízos as memórias da
antiguidade”159. Precedendo a Lua160 havia duas ninfas161 (divindades dos rios, bosques
e montes), a estas dois pajens162. A lua vinha montada em um cavalo branco; trazia na
cabeça um turbante azul bordado com estrelas de pérolas e rematado em uma nuvem
cheia de estrelas de ouro dentro da qual havia uma lua cheia. No braço o arco, na mão a
seta. Seguiam à Lua mais dois pajens as estribeiras163. Seguia-se Marte 164, antes dele
três figuras165 procediam em igualdade: uma no meio tocava uma caixa de guerra, uma
pela esquerda tocando um pífano (instrumento popular e pastoril do feitio de uma flauta
sem chaves), a da direita uma trombeta. Em distancia de dois passos, montando um
cavalo rufo rodado, vinha Marte com um capacete de prata e empunhando na mão
159 MACHADO, Simão Ferreira. Op Cit. p 64 160 “Vestia roupas de seda azul e branca de florões e franjas de prata: o peito era uma campina de pérolas,
alternando em elevados lavores lugar a muitos diamantes: o capilar de tiffo azul de prata semado de estrelas de ouro: os borzeguins de seda azul com galoens de prata bordados de muitas pérolas: sustinha no ombro direito por muitos cordões de ouro uma aljava; no braço o arco, na mão a seta. O cavalo era branco e muito formoso: os jaezes e crinas bordados todos de prata, caudas em campo azul de muita fitaria.” Idem. pp 66-7
161 “(...) ornavam as cabeças com turbantes bordados de prata e muitas pérolas semeados de estrelas de ouro, rematados em plumagens de penas brancas e azuis: vestiam de seda azul e branca toda de prata coberta de galoens e franjas do mesmo: os peitos em campo azul bordados de pérolas e variedades de pedraria: os capilares da mesma seda azul semeada de estrelas de ouro: os borzeguins do mesmo modo dos ombros por cordões de ouro; lhe pendiam umas aljavas; no braço esquerdo sustinham os seus arcos: levava cada uma um cão perdigueiro preto por fitas azuis de prata em colares bordados com muitos cafcaveis de prata.” Ibidem. pp 65-6
162 “(...) levavam nas cabeças turbantes de seda azul entre brincos de ouro, rematados em plumas brancas: vestiam de seda azul com guarnição de galoens de prata: os saiotes era da mesma seda, franjados todos de prata: nas mãos levavam uns bastões.” Idem Ibidem. pp 64-5
163 “(...) em tudo semelhantes aos primeiros das ninfas.” Ibidem Ibidem. p 69 164 “(...) ornava-lhe a cabeça um capacete de prata de lavores de pedraria, rematado de um precioso cocar
de pumas brancas e encarnadas; vestia de seda branca de prata; o peito em campo da mesma seda, bordado de ouro, e peças de diamantes, com guarnições de franjoens de ouro cingidos de pedraria: o capilar da mesma seda franjado de ouro, matizado de flores de várias pedras: vestia três saiotes; o primeiro, e ultimo da mesma seda e ornato; o segundo encarnado de franjoens de prata: os borzeguins em campo de seda branca bordados de flores de ouro e pedraria: na mão direita empunhava uma espada nua de guarnições de prata e lavores de ouro; na esquerda um escudo de prata. Montava em um cavalo rufo rodado: os jaezes e arreios em artifícios de prata e ouro” Ibidem Ibidem. pp69-70
165 “(...) nas cabeças com toucas mouriscas de carmesim de prata com varia ordem de fitas de tella verde de prata; por um lado com plumas brancas: vestiam do carmesim das toucas trunfado de vermelho e branco; calçavam de branco com sapatos encarnados.” Ibidem Ibidem. p 68
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direita uma espada nua, na esquerda um escudo de prata. Dois pajens166 vinham às
estribeiras. Mercúrio 167 (mensageiro dos deuses) era precedido por duas figuras168 que
“ofereciam de longe com dois clarins sonora melodia aos ouvidos.”169 Montava em um
cavalo russo e era acompanhado por dois pajens170 às estribeiras. Montando um cavalo
castanho vinha o Sol171 levando na mão uma harpa de pintura em campo de ouro, era a
sua figura “entre todas na majestade como de Rei; os olhos e juízos o confirmaram se
via então na terra também superior às figuras dos planetas no esplendor da
166 “(...) nas cabeças com toucas de carmesim lavradas de cordões de ouro com pedraria verde; cingidas
de relevo de prata com pedraria de cristal; rematadas em plumas brancas e azuis: vestiam de carmesim de prata: os peitos em campo branco, bordados de flores de ouro, cobertas de pedraria verde: os capilares da mesma seda franjados de ouro, cada um com dois saiotes; os primeiros do mesmo carmesim de prata com franjoens do mesmo cingidos de pedraria verde; os segundos de seda verde de prata com franjoens de ouro: os borzeguins em campo branco bordados de ouro: nas mãos levavam duas escopetas de lavores de prata.” Ibidem Ibidem. p 70-1
167 “(...) compunha-lhe a cabeça uma cabeleira branca de bandas, anterior e posterior: sobre esta um chapéu pequeno coberto de seda; a copa bordada de cordões de ouro e diamantes, duas abas do mesmo com duas asas, cobertas de efpiguilha de prata com vivos de fróco encarnado; em cada uma um broche de diamante sobre laço de fita de prata cor de fogo, rematadas em uma estrela; eminente a tudo um penacho de plumas cor de nacar: o peito em campo de cetim azul bordado de cordões de ouro, canotilhos de prata e diamantes com guarnição de rendas de ouro: vestia três saiotes; o primeiro imitava o capilar , brilhando todo de luz em flores de ouro; o segundo de cetim amarelo com rendas de prata; o terceiro cor de rosa cobetos das mesmas rendas, todos em aprazível disposição guarnecidos de franjas de prata e de ouro: os borzeguins de cetim azul bordados de cordões de ouro: nas costas duas asas cobertas de espiguilhas de prata, como as do chapéu com vivos de fróco encarnado: na mão direita um caducêo dourado. Montava em um cavalo russo: os jaezes correspondiam ao fausto da figura; as crines eram de renda de prata pendentes dela, e outras de fitas de prata e de ouro.” Ibidem Ibidem. pp. 72-4
168 “(...) no ornato semelhantes aos pajens das estribeiras (...)Ibidem Ibidem. p 71 169 Ibidem Ibidem. pp 71-2 170 “(...) cabeças com perucas louras; sobre estas bonetes de seda amarela de prata, de duas abas de veudo
preta bordado de prata; nas esquerdas sobre laços de fitas de cor de fogo um broche de diamantes; de entre ele plumas brancas e azuis: peitos de cetim encarnado bordados de cordões de ouro, canotilho de prata, e remates de diamantes com guarnições de renda de ouro: capilares de seda verde de florões brancos; cada um com dois saiotes; um de veludo azul com rendas de ouro; outro de encarnado com rendas de prata: calçavam de azul bordado de prata: os sapatos amarelos com fivelas de pedraria” Ibidem Ibidem. pp 74-5
171 “(...) coroava-lhe a cabeça de luzes uma cabeleira de fio de ouro; vestia de tiffo cor de fogo: o peito todo coberto de diamantes unidos a vários lavores de ouro: do mesmo peito lhe saía um circulo de raios com artificiosa e brilhante fábica de ouro e pedraria: nas costas bilhava a mesma preciosodade com semelhante adorno: em umas mangas do mesmo tiffo vestia sobre o campo de ouro alternada luz de diamantes: no fraldao vestia também de luz trêmula e sucessva em franjas de canhotilhos de ouro: calcava borzeguins cor de fogo, e nestes também de luz porque em debuchos de canhotilho de ouro prendia a luz de muitos cristais: levava na mão uma harpa de pintura em campo de ouro. Vinha em um cavalo de cor castanho: fazia-lhe os jaezes uma rede de cordões de ouro que eram prisões de luz guarnecidos todos de cristais finos: eram as crines todas de galoens de ouro; os arreios cobertos do mesmo com vara ordem de cristais; saía-lhe na frete uma ponta de Unicórnio; temulava na cabeçada um martinete de plumas brancas e cor de fogo nascidas de pedraria.” Ibidem Ibidem. p 77-80
47
magnificência.”172 Precediam-lhe duas figuras: “uma estrela da Alva, outra a da
Tarde”173; as quais traziam às costas, respectivamente, letreiros com os nomes Lúcifer e
Vésper (tais estrelas são referencias a Vênus; a primeira quando visto pela manha, a
segunda quando à tarde). Vinham às estribeiras seis pajens174, três a cada lado. Seguia-
se Júpiter175, levava na mão direita um cetro com raios de ouro, no braço esquerdo um
escudo dourado. Na cabeça, Simão Machado descreve uma caraminhola rematada na
parte posterior com um cocar. Vinha em um carro triunfante176 que era puxado por duas
águias coroadas de ouro e apresentava pinturas nas rodas anteriores com o signo de
pifcis, e nas posteriores o signo se sagitario. Como pajens vinham aos lados dois
satélites177. Vinha Vênus178 num carro triunfante179 em forma de concha; trazia no braço
172 Ibidem Ibidem. pp 75-6 173 (...) ambas em igualdade, diferentes só nas cores. A vespertina na cabeça com um toucado de fitas de
tella de ouro de cor parda, artificiado de cordões de ouro, e pedras de varias cores: vestia roupas de seda de ouro parda com franjões de ouro; peito do mesmo com lavores de pedraria rematado em franjas de ouro; borzeguins guarnecidos de fitas de ouro também pardas; nas costas um letreiro do seu nome: Vésper. A da Alva na cabeça também toucado de fitas de tella branca de prata do mesmo artifício da outra: vestia de sedas brancas de prata; nelas no peito, e borzeguins sobre cor branca com prata e pedraria, o mesmo artifício, e qualidade da outra; nas costas o nome: Lúcifer.” Ibidem Ibidem. pp 76-7
174 “(...) mulatinhos de gentil disposição, todos da mesma estatura e semelhantes no traje. Na cabeça com barretes à mourisca de seda nacar e verde guenecidos de rendas de prata, rematados em plumachos brancos e encarnados; vestiam todos de seda nácar com frnjas de prata: calçavam de branco com sapatos encarnados: nas mãos levavam bastões de prata dourados.” Ibidem Ibidem. p 80
175 “(...) cobria-lhe a cabeça uma caraminhola coberta toda de peças de ouro e diamantes rematada ao alto por um estrela formada com os raios de uma redonda jóia de diamantes, rematada na parte posterior com um cocar de plumas brancas e azuis nascido de outra grande jóia de diamantes: o peito e petrina em cor nácar lavrado de ouro e diamantes co guarnição de franjas de prata: o capilar de tiffo de ouro azul claro com franjas de ouro: vestia três saiotes; dois do mesmo tiffo, o primeiro e terceiro; o do meio de tiffo de prata também azul, todos guarnecidos de franjas de ouro sobre calções de seda azul com ramos cor de ouro: calçava borzeguins de marroquim vermelho guarnecidos de franjas de prata e várias peças de diamantes: levava na mão direita um cetro de ouro com raios do mesmo, no braço esquerdo um escudo dourado com seu caráter.” Ibidem Ibidem. pp 81-3
176 “coberto de seda nacar com galoens de prata” 177 “(...) nas cabeças com capacetes de ouro rematados em uma pequena pluma de azul e branco: os peitos
em campo azul bordados em flores de ouro e pedraria azul: os capilares de seda azul de florões de ouro com franjas de prata: cada um com dois saiotes; os primeiros da seda dos capilares; os segundos da seda nácar de prata; todos com franjas de ouro: calçavam de azul bordado de prata com sapatos encarnados: nas mãos levavam uns bastões de prata.” Ibidem Ibidem. p 83
178 “(...) representava no rosto, e realçava no ornato aquela formosura que pelo seu nome se encarece: no ornato fez o desvelo da arte obséquios à natureza, mais em satisfação de dívida, que em forma de benefício: tal era a gentileza do rosto, com tanto preço artificiosa a compostura. Ornava-lhe a cabeça um toucado de pérolas com delicado artifício de ouro e pedraria: vestia toda de verde e cor de rosa; sendo as roupas em campo destas cores uma seara de pérolas e floresta de diamantes: o peito em campo verde todo era de florões também de pérolas cujo centro faziam flores de diamantes brilhando em esmalte verde: esta cor por arte dividida lhe formava toda a gala da preciosidade do mar, e da maior
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esquerdo um escudo bordado de ouro apresentando pintura de um coração abrasado em
fogo, na mão direita um ramalhete de flores. Pelos lados a seguiam dois pajens
representando em suas figuras dois cupidos180. Montando um cavalo castanho e
representando rosto de homem velho de fúnebre aspecto com barbas e cabelos naturais,
Saturno181 era a última entre as figuras dos planetas; mas “ainda que por suas
influências lúgubre; nas idéias da fantasia, como luminoso planeta, vistoso na gala a
figura”182. Levava na mão esquerda um pequeno escudo dourado com caracter
astronômico; na direita uma foice de prata. Precediam-lhe duas estrelas vestidas como
soldados romanos183.
Os eruditos florentinos184 já haviam apontado os seres da natureza como
“objetos da influência de demônios e anjos, passíveis de análise numérica mágica ou de
contemplação Angélica”, agrupando-os por classes segundo um esquema de níveis
ascensionais do mais imperfeito e material para o mais perfeito e espiritual: Lua (1º
nível, o mais baixo, das pedras e metais); Mercúrio (2º nível, o das plantas, frutos,
riqueza da terra: trazia no braço esquerdo um escudo bordado de ouro, nele pintado um coração abrasado em fogo: na mão direita um ramalhete de flores” Ibidem Ibidem. pp 83-5
179 (...) em cuja fábrica concorreram em igual propriedade a arte fabril e as cores da pintura: acrescia nesta um ornato de ouro e aljôfares deixando livre aos olhos a naturalidade unida com a riqueza: cingiam aos extremos quadrangulares do carro sedas verdes de florões de ouro com franjas, e borlas do mesmo: um artifício oculto dava ao carro nas rodas movimento.” Ibidem Ibidem. pp85-6
180 “(...) levavam nas cabeças turbantes de fitaria verde e cor de rosa brincados de cordões de ouro entre fios de aljôfar rematados com plumas brancas, verdes e cor de rosa; vestiam uns justilhos de seda cor de rosa como a dos turbantes com vario artifício de cordões de ouro: os fraldins da mesma seda cobertos com franjas de ouro: saíam das costas duas asas de penas brancas e cor de rosa: calçavam de verde lavrado de ouro com sapatos cor de rosa: nas mãos levavam arcos e setas.” Ibidem Ibidem. p 85-7
181 “Cingia-lhe a cabeça uma caraminhola de caffas brancas com vario artifício de cordões de ouro e peças de diamantes rematado em cocar de plumas brancas e azuis: o peito em campo azul escuro bordado de ouro, e peças de diamantes; nos ombros de viam umas carrancas, da boca, das quais saía pequena manga: o capilar de golfo de ouro azul escuro com franjas de prata: vestia três saiotes da seda do capilar com franjas de ouro: calçava borzeguins de azul com lavores de prata: levava na mão esquerda um pequeno escudo dourado com caracter astronômico: na direita uma fouce de prata. Vinha em um cavalo castanho: os jaezes de veludo verde bordado de prata: os arreios cobertos do mesmo: as crines de fitas de tella branca e azul de prata: na cabeçada um martinete de plumas azuis e brancas; na cauda fitaria de tella azul de prata (...)”Ibidem Ibidem. pp 86-7
182 Ibidem Ibidem. p 87 183 “(...) nas cabeças com capacetes de prata rematados no alto com uma Estrela; pelo lado esquerdo com
plumas azuis e brancas: vestiam de chamalote branco de prata, guarnecido de galões e franjas de ouro: calçavam borzeguins de carmesim bordados de prata: nas mãos cada um com meia lança enfeitada de tella azul de prata.” Ibidem Ibidem. pp 87-8
184 Conforme observa HANSEN, João Adolfo. Op Cit. pp 165-8
49
animais); Vênus (3º nível, o dos pós sutis, odores, perfumes, sabores); Apolo (4º nível, o
das palavras, sons, cantos); Marte (5º nível, o das violentas concepções da imaginação);
Júpiter (6º nível, o dos debates da inteligência); Saturno (7º nível, o das influências mais
ocultas, simples, livres do movimento). A interpretação alegórica da mitologia greco-
latina “submetida a cálculos astrológicos descobre símbolos poéticos”. Como o homem,
a hierarquia dos astros deuses teria corpo e alma, sendo visíveis e invisíveis:
Hierarquia Celeste Graus do Céu Hierarquia poética (invisível) (visível) Trindade Empíreo Apolo
Serafins Primeiro Móvel Calíope (voz resultante)
Querubins Estrelas Fixas Urânia (dignidade)
Tronos Saturno Polímnia (memória)
Dominações Júpiter Terpsícore (saúde)
Virtudes Marte Clio (desejo de glória)
Potestades Sol Melpômene (temperança)
Principados Vênus Erato (amor)
Arcanjos Mercúrio Euterpe (deleite)
Anjos Lua Tália (humor vegetativo)
* Tabela adaptada de: HANSEN, João Adolfo. Alegoria. Numa mistura teosófica, os deuses da mitologia greco-romana “têm, portanto,
dupla significação: como Mente, são os princípios superiores da Criação; como Alma,
são demônios planetários da astrologia.”185 No triunfo eucarístico os planetas são
dispostos da seguinte forma: Lua (pedras e metais, anjos, humor vegetativo); Marte
(violentas concepções da imaginação, virtudes, desejo de glória); Mercúrio (plantas,
frutos, animais, arcanjos, deleite); Sol, como Rei e em lugar que seria de Apolo186
(palavras, sons, cantos, trindade, potestades, temperança); Júpiter (debates da
inteligência, dominações, saúde); Vênus (pós sutis, odores, perfumes, sabores,
185 Idem. 186 “O Sol, em grego Hélios (...) Os gregos e os romanos chamaram-lhe muitas vezes Febo e Apolo” In: P.
COMMELIN. Nova Mitologia Grega e Romana. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1983. p 84
50
principados, amor); Saturno (influências mais ocultas, simples, livres do movimento,
tronos, memória). Terminada a descrição dos planetas, Simão Machado faz a seguinte
consideração acerca da intenção que se teve ao apresentar tais figuras durante o evento:
“(...) estas majestosas figuras dos planetas pela memória da divindade, que neles
adorava o fingimento da antiga Idolatria, eram glorioso triunfo do Eucarístico
Sacramento; que como no feliz século da Redenção humana foi alcançado pelo
mesmo Senhor Sacramentado; se via agora na memória e figurava renovado para a
pública veneração da Cristandade e maior glória do mesmo Senhor.”187
A alegoria a ser apresentada após as figuras dos planetas complementa a idéia de
contraposição e de sobreposição da idolatria pagã pelo cristianismo apontada pelo autor
em seu comentário acima transcrito. A Eucaristia é mais uma vez afirmada como
Memorial do Senhor. E a Igreja, triunfante, se faz representar pela figura da Matriz de
Nossa Senhora do Pilar:
“(...) onde o Soberano Senhor encoberto nos Acidentes do Sacramento como
verdadeiro Deus com reverente culto será sempre venerado, e os dias desta solenidade
havia ser adorado, punha o fim a toda esta ordem de figuras. Ultima de todas se
oferecia à vista; e porque as antecedentes não lhe davam lugar à superioridade no
ornato, via-se nela igualdade no ornato, e imitação.”188
A figura da Igreja Matriz 189 vinha num formoso cavalo branco. No braço
esquerdo um escudo de campo de ouro representava em pintura a Igreja Matriz e trazia
a inscrição Haec est domus domini firmiter aedificata (Esta é a casa do Senhor
187 MACHADO, Simão. Op. Cit. p 90 188 Idem. p 91 189 “Cingia na cabeça uma caraminhola de azul bordado de relevo de flores de cordões de ouro em varia
ordem elevadas e sobrepostas circularmente varias flores de diamantes; rematada em um vistosíssimo cocar de finíssimas plumas brancas: o peito em campo azul de chamalote bordado de cordões de ouro e jóias de diamantes com uma maior no meio; dela sobressaíam tremulamente três grandes flores de diamantes; guarnecido de franjas de ouro cingidas de um cordão de pedraria: vestia um tiffo de ouro branco e azul, guarnecidas as roupas de franjões de ouro e vária pedraria: calçava borzeguins de chamalote branco bordados de cordões de ouro e estrelas de cristal fino: no braço esquerdo embraçava um escudo de campo de ouro, nele pintada a Igreja Matriz com esta letra. Haec est domus domini firmiter aedificata. Na mão direita sustentava em uma haste de prata dourada um estandarte de tella branca; pintada em uma face a Senhora do pilar com esta letra: Egodilecto meo. Na outra a custodia da Eucaristia com esta outra letra. Et ad me conversio Ejus. Vinha em um formosíssimo cavalo branco em cujos jaezes de veludo azul e arreios ranços so tinha parte o ouro em bordados, franjas, borlas, galões, rendas e fitaria com artifício e preço competente à figura” Ibidem. pp 91-3
51
firmemente edificada). Na mão direita uma haste de prata dourada sustenta um
estandarte de tela branca pintada em uma face a Senhora do pilar com a inscrição Ego
dilecto meo (Eu dileto aos meus). O substantivo feminino “dileção” do latim dilectio,
dilectionis, vem o termo dilecção registrado a partir de 1680. Significa: afeição, “amor
espiritual que se dirige a algo que se escolheu ou preferiu (filho, irmão) (...) preferência
sigilosa ou inconsciente por alguém ou alguma coisa (...) título que o Papa concede a
determinados príncipes da Igreja”190. Na outra face do estandarte a custodia da
Eucaristia com a inscrição Et ad me conversio Ejus (e àqueles a mim convertidos). A
imagem da Igreja Matriz traz a firmeza de Deus como escudo e anuncia pelo estandarte
as predileções de Deus, do Vaticano e do Estado aos cristãos. Quatro pajens191 lhe
seguiam às estribeiras, dois a cada lado.
Numa “verdadeira parada de paganismo ao lado dos símbolos do
cristianismo”192, percebe-se que o encadeamento dos dois blocos alegóricos se dá de
maneira a contrastante e com o intuito de estabelecer oposição entre o primeiro e o
segundo (planetas versus Igreja). Tal oposição demonstrada de maneira a sobrepor a
crença cristã católica à crença nos astros e no paganismo apresenta um encadeamento
ascendente (do nível baixo para o alto) evidenciando também, pela ordem de
apresentação dos dois blocos alegóricos, qual discurso se sobrepõe ao outro, qual é a
última palavra dada, quais idéias são aceitas por fim.
190 HOUAISS, Antonio. pág.1041 191 “(...) vestiam todos de um tiffo branco de ouro. Nas cabeças turbantes do mesmo tiffo com círculos de
cordões de ouro rematados ao alto em um florão de que saía um penacho de plumas brancas: os peitos do mesmo tiffo cobertos de cordões e galões de ouro; estofados de maneira que fechavam no meio com uma jóia de diamantes; cingidos de franjas de ouro: vestiam três saiotes do mesmo tiffo também com franjas de ouro: os borzeguins de cetim branco bordados de cordões de ouro: nas mãos levavam suas insígnias significativas da figura que acompanhavam.” MACHADO, Simão. Op cit. p 93-4
192 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 9ª ed. Livraria José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1958. 1º t., p 346.
52
2.2.5 – Irmandades e Sociedade
Logo após a figura da Igreja Matriz seguiam-se varias Irmandades193 guiadas
de suas cruzes de prata, com seus Juízes e andores conduzindo seus santos padroeiros:
“em tudo se via nelas uma ordem e asseio competente à gravidade de tão solene ato”194.
Precedia a todas um gaiteiro195 seguido por um lado de um ‘moleque’ tocando tambor.
Dois passos atrás vinham em cavalos brancos quatro negros196 tocando trombetas das
quais pendiam estandartes de seda branca com uma custódia pintada. Seguia-se o guião
da irmandade do Santíssimo197 levado por um irmão e mais dois outros pelos lados com
duas tochas. As irmandades se agruparam ao cotejo na seguinte ordem: Irmandade dos
Pardos da Capela do Senhor São José198; Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos199; Irmandade de Santo Antonio de Lisboa200; Irmandade das Almas e São
Miguel201; Irmandade da Senhora do Rosário intitulada a do Terço dos Brancos202;
193 (...) nas imagens era muito vistoso o ornato em sedas de ouro e prata; em varias e custosas peças de
ouro e diamantes: nos andores em sedas galões e franjas de ouro; e variedade e galantaria de diferentes flores de diversas matérias e alternadas cores.” Idem. p 98
194 Ibidem. p 95 195 “(...) que por singular fábrica do instrumento e boa agilidade da arte fazia uma agradável consonância.
Vestia à Castelhana de seda encarnada e por um lado o seguia um moleque vestido da mesma seda tocando um tambor.” Idem Ibidem. p 95
196 “(...) cobertos de chapéus agaloados de prata com plumas brancas; vestidos todos de berne; calçados de encarnado. Vinham em cavalos brancos de jaezes de berne (...)”Ibidem Ibidem. p 96
197 “(...) de damasco carmesim franjado de ouro; nele em uma primorosa tarja bordada uma custódia.” Ibidem Ibidem. p 96
198 “(...) em larga distância numerosa coberta de opas de seda branca. No meio dela ia o andor do seu Padroeiro ornado de seda encarnada, galões e franjas de ouro, várias flores de seda, e fio de ouro e prata.” Ibidem Ibidem. p 97
199 “(...) numerosa de muitos Irmãos, todos de opas de seda branca. No meio dela iam três andores: o primeiro de Santo Antonio Calatagirona: o segundo de São Benedito: o terceiro da Senhora do Rosário” Ibidem Ibidem. p 97-8
200 “(...) de muitos irmãos; quase todos sobre diversas e preciosas galas vestiam opas de chamalote branco. No meio dela se viam três andores: o primeiro de santo Antonio, cujo ornato era de cera branca com muitas galantarias de flores e lavores sobre papeis encarnados, verdes, azuis e mistura de lata com fitas e galões do mesmo: julava a vista que supria e equivalia o galante e delicado artifício ao maior ornato da preciosidade: o seguindo de São Vicente Ferreira; era de talha dourada com muita galantaria e variedade de flores de seda, fio de prata e de ouro: o terceiro de são Gonçalo de Amarante; era feito de um carro ornado de sedas de custo, galões e franja de ouro, e variedade de flores.” Ibidem Ibidem. p 98-100
201 “(...) muito numerosa de irmãos, e aos olhos de agradável vista: mais que os mementos e lúgubres sufrágios, punha na consideração dos juízos a glória das Almas, porque sobre custosas galas vestia opas de chamalote verde. No meio era levado o glorioso São Miguel ornado de uma capacete de prata com vistosíssimo penacho de plumas; estofado de novo, e ornado de muitas peças de ouro. Ia em um
53
Irmandade da Senhora da Conceição203; Irmandade da Senhora do Pilar (padroeira do
novo Templo)204; e a Irmandade do Divino Sacramento205.
Para compreender a lógica pela qual se ordenaram as irmandades faz-se
necessário levar em consideração que há diferentes tipos de associações religiosas
formadas pelo clero (sacerdotes com formação eclesiástica) e pelos leigos (homens
comuns). As ordens primeiras (clero masculino, jesuítas, franciscanos, beneditinos,
carmelitas) e segundas (clero feminino, freiras) formam o clero regular (que vive
conforme a regra, ou conjunto de normas da ordem e que faz voto de castidade e de
clausura). O clero secular ou diocesano (não faz voto de clausura, ministra os
sacramentos aos leigos, e exerce influencia direta sobre os grupos sociais) é formado
por bispos, cônegos, vigários gerais, párocos e outros sacerdotes. No Brasil litorâneo as
ordens primeiras se destacaram na evangelização e alfabetização das populações. Ali
andor custosamente ornado de seda verde de ouro, galões e franjas do mesmo, e vário ornato de flores. Seguia-se um nomeroso séqüito de Nobres moradores da Vila e seu distrito, que tinham servido à República no nobre Senado da Câmara. Diferentes na variedade e competência de preciosas galas, faziam por união e ordem a forma de uma nobilíssima Irmandade. Quatro deles empenhados na devoção, venturosos no obséquio, conduzim o andor do padroeiro do Senado da Câmara. O glorioso mártir São Sebastião coroado de um resplendor de ouro, estofado de novo; mostrando aos olhos seu martírio em muitas setas de prata; ornado o apanhado das roupas um preciosíssimo broche de diamantes em que se rematava um intrincado e dilatado artifício de cordões de ouro. O andor era em feitio de carro triunfante; coberto de seda carmesim de ramos de ouro; guarnecido de vária forma de galões, franjas e borlas de ouro.” Ibidem Ibidem. p 100-2
202 “(...) abundantíssima de Irmãos, todos geralmente sobre galas com opas de nobreza branca. No meio se via a Senhora com manto de tella branca sobre um andor de talha dourada com muita miudeza; rematada em muitos e bem figurados Serafins que sustentavam o Trono da Senhora.” Ibidem. p 103
203 “(...) numerosa de irmãos vestidos de galas com opas de nobreza branca. No meio era levada a Senhora, cuja imagem pelo primor da arte com suavíssima eficácia excita os corações a reverente devoção ; coroada com uma coroa toda de ouro; coberta de preciosas peças de ouro e diamantes; com manto de brocado carmesim de singular bordadura de prata e pedraria. O andor vinha coberto de tella branca de ramos de ouro com muitos galões e franjas também de ouro.” Ibidem Ibidem. pp 103-4
204 “(...) nobilíssima (...) de grandioso número de Irmãos: a propriedade que tinham em tão solene ato lhe deu uniformidade no preço, e brilhante asseio das galas: vestiam sobre elas opas de chamalote branco; os oficiais de chamalote branco de prata. No meio dela se via a imagem da senhora, estofada de novo com laborioso primor ; com pedras finas embutidas nas mesmas roupas; estas cobertas de ouro até os extremos do pilar. O andor era coberto de custosas sedas de ouro e prata em artificiosos lavores , e guarnição de galões e franjas de ouro.” Ibidem Ibidem. pp 104-5
205 “(...) opulentíssima e esplêndidíssima (...) dilatada em numeroso séqüito de honrados e Cristianíssimos Irmãos. Precedia nela uma custosa cruz de prata com amngas de muito custo de sedas e franjas de ouro; pelos lados dois ceroferários de prata de singulares lavores. A legitima propriedade que principalmente tinham neste ato e solenidade lhe dividiu com liberal dispêndio diferente e preciosa gravidade de galas: sobre elas se viam em uns as opas de berne, em outros de veludo lavrado; nos oficiais de carmesim de ramos de prata; em todos sobre o lustre da prata e ouro das galas, brilhava o encarnado da opas com luzes de devoção e singularíssima Cristandade.” Ibidem ibidem. pp 105-7
54
mesmo se desenvolveram mais modestamente ordens segundas. Na Capitania de Minas
Gerais foi proibida a existência de ordens primeiras e segundas; e o clero secular apenas
podia entrar com a devida autorização da coroa. Os leigos se agruparam em associações
religiosas que foram chamadas de irmandades e ordens terceiras. O homem comum
(leigo) se reunia com os que tinham a mesma devoção formando, conforme critério
racial, profissional e/ou econômico, uma irmandade ou confraria; a qual se filiava a uma
igreja matriz e contratava um sacerdote secular para realizar os cultos e rituais
específicos do grupo. Os irmãos elaboravam conforme legislação específica o estatuto,
ou livro de compromisso, que deveria ser confirmado pela Coroa Portuguesa. Nele
registravam os seus direitos e deveres dos irmãos206. A partir de 1740 surgiram nas
principais vilas da capitania as Ordens Terceiras207 de São Francisco da Penitência e de
Nossa Senhora do Carmo. Eram compostas por devotos casados ou solteiros,
geralmente com posses, que desejavam seguir a regra franciscana e carmelita como
irmãos professos, mas sem deixar a vida mundana por não fazerem os votos de
castidade e de clausura. À medida que as irmandades cresciam em número de irmãos e
em recursos financeiros, tendiam a erigir suas próprias capelas destinadas
exclusivamente à freqüência dos irmãos para seus cultos particulares. Por isso, o grande
mecenato artístico em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX foi obra das irmandades e
206 Tinham como deveres: pagar a taxa de entrada e anuidade; pagar esmolas adicionais em caso de ser
eleito para cargos administrativos dentro da irmandade; rezar pelos irmãos; acompanhar os atos solenes e funerais. Como direito: receber missas em sufrágio pela própria alma; enterro com solene acompanhamento pela irmandade e seu capelão; sepultura em solo sagrado (campas dentro do templo até 1831 ou no adro e jardins do entorno); ser assistido em caso de doença, viuvez, e desgraça pessoal (prisão na cadeia, falência). Mas apenas as irmandades mais abastadas tinham condições econômicas para praticar a assistência mútua.
207 Diferiram das irmandades pelos seguintes motivos: eram inspecionados periodicamente por autoridades do clero regular; a admissão dos irmãos era mais seletiva; as esmolas de mesa eram mais altas; seguiam o calendário festivo das ordens primeiras e segundas; possuem iconografia específica baseada nos programas e modelos das ordens européias às quais eram filiadas; jejuavam em determinadas datas do ano; preparavam-se semanalmente através do noviciado; findo o noviciado faziam o rito da profissão quando recebiam o hábito da ordem para ser usado publicamente apenas em cerimônias solenes, transformando-se doravante em irmãos professos. Por tais distinções os terceiros achavam-se superiores às irmandades e colocavam-se em condição de maior destaque e evidência durante os cultos e rituais religiosos.
55
ordens terceiras. As funções religiosas dessas capelas eram submetidas ao controle
paroquial da igreja matriz à qual se filiava a irmandade. Filiada a uma diocese, uma
Igreja Matriz é a sede de uma paróquia (centro administrativo da igreja católica para
finalidades de registros de nascimento, batismo, casamento, óbito e para finalidade de
controle do serviço religioso prestado às capelas a ela filiadas). Assemelhando-se a uma
espécie de condomínio religioso, as Matrizes congregavam as irmandades, as quais
arcavam com as despesas de construção e ornamentação do templo e ocupavam os
altares se fazendo representar como grupos que formam aquela sociedade. “Cada
irmandade era instituída sob invocação de um santo protetor, acompanhado de outros
que compunham os retábulos e o calendário de festas das respectivas igrejas. Este foi
um dos caminhos do estabelecimento do culto aos santos em Minas Gerais.”208 Na
Igreja Matriz do Pilar foram registradas: em 1712 as irmandades do Santíssimo
Sacramento (brancos ricos, ocuparam o sacrário do altar mor), de Nossa Senhora do
Pilar (brancos ricos, ocuparam o trono do altar mor), e de São Miguel e Almas (brancos
ricos, ocuparam o 3º altar do lado da epístola); em 1715 a Irmandades de Nossa Senhora
do Rosário (africanos, mulatos e brancos pobres, ocuparam o 2º altar do lado do
evangelho) e a do Senhor dos Passos (militares, ocuparam o 1º altar do lado da
epístola); a irmandade de Nossa Senhora da Conceição (brancos ricos) desapareceu
ainda na primeira metade do século XVIII e ocupava o 1º altar do lado do evangelho,
mesmo altar de Nossa Senhora das Dores (brancos ricos); a Irmandade de Santana
surgiu na 1ª metade séc XVIII e ocupou o 2º altar do lado da epístola; a Irmandade de
Santo Antonio (brancos ricos, ocuparam o 3º altar do lado do evangelho); e a Irmandade
de São José (pardos, artífices e artesãos em geral).
208 CUNHA, Maria José Assunção da. Iconografia Cristã. Ouro Preto: UFOP/IAC, 1993. pp 14
56
O cortejo é o momento máximo dentro das festividades de inauguração da Igreja
Matriz de Nossa Senhora do Pilar, as quais ocasionaram a trasladação do Santíssimo
Sacramento. Enquanto momento constituído sob a égide do sistema colonial, é um ritual
para a Igreja e uma demonstração de poder por parte do Estado Português, o qual
abrangia o indivíduo em todos seus aspectos e manifestações da vida em sociedade. O
ritual religioso, portanto, se funde à função política de demonstrar os lugares sociais dos
indivíduos nessa organização. Nesse sentido, Foulcault observa que o ritual:
“(...) define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo
do diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e
formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as
circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa,
enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais
se dirigem, os limites de seu valor de coerção. Os discursos religiosos, judiciários,
terapêuticos e, em parte também, políticos não podem ser dissociados dessa prática de
um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades
singulares e papéis preestabelecidos.”209
Logo, o encadeamento e ordenação das irmandades são uma forma de expressar,
pelo ritual, a constituição da sociedade mineradora colonial. Vejamos como o autor
(através dos comentários que faz acerca das roupas, dos atributos, das imagens dos
santos, dos andores e das pessoas que compõem as irmandades que participaram do
cortejo) demonstra a importância e/ou o devido lugar social de cada uma irmandades.
A Irmandade dos Pardos da Capela do Senhor São José vestia opas de seda
branca e levaram o andor do Padroeiro. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos vestia opas de seda branca e levava três andores de Santo Antonio Calatagirona,
São Benedito e a Senhora do Rosário. A Irmandade de Santo Antonio de Lisboa, ‘sobre
209 FOUCAULT. Michel. A Ordem do Discurso. 10ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 38-9
57
diversas e preciosas galas’ vestia opas de chamalote branco e levava três belos andores
com Santo Antonio, São Vicente Ferreira e São Gonçalo de Amarante. A Irmandade das
Almas e São Miguel, “aos olhos de agradável vista: mais que os mementos e lúgubres
sufrágios, punha na consideração dos juízos a glória das Almas, porque sobre custosas
galas vestia opas de chamalote verde.” Levavam em um andor ‘custosamente’ ornado a
imagem de São Miguel, estofado de novo e ornado de muitas peças de ouro, capacete de
prata com ‘vistosíssimo’ penacho de plumas. Nobres que haviam servido ao Senado da
Câmara, “diferentes na variedade e competência de preciosas galas, faziam por união e
ordem a forma de uma nobilíssima Irmandade”. Carregavam um andor em feitio de
carro triunfante com o padroeiro do Senado da Câmara, São Sebastião, coroado de um
resplendor de ouro, estofado de novo, com muitas setas de prata, um preciosíssimo
broche de diamantes em que se rematava um intrincado e dilatado artifício de cordões
de ouro. A Irmandade da Senhora do Rosário, intitulada a do Terço dos Brancos, ‘sobre
galas com opas de nobreza branca’, levava a imagem da senhora do Rosário com manto
de tela branca em andor de talha dourada com muita miudeza e rematado em muitos e
bem figurados Serafins que sustentavam o Trono da Senhora. A Irmandade da Senhora
da Conceição vestia galas com opas de nobreza branca e levava andor com imagem da
Senhora da Conceição ornada com coroa de ouro, coberta de preciosas peças de ouro e
diamantes e com manto de brocado carmesim de singular bordadura de prata e pedraria.
Comenta Simão machado que a imagem, ‘pelo primor da arte com suavíssima eficácia
excita os corações a reverente devoção’. A Irmandade da Senhora do Pilar:
‘nobilíssima’, com uniformidade no preço e brilhante asseio das galas sobre as quais
vestiam opas de chamalote branco (os oficiais de chamalote branco de prata), levavam
andor com imagem da Senhora do Pilar estofada de novo com laborioso primor e pedras
finas embutidas nas roupas que eram cobertas de ouro até os extremos do pilar. A
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Irmandade do Divino Sacramento: ‘opulentíssima e esplêndidíssima’, ‘honrados e
Cristianíssimos Irmãos’ que levavam ‘uma custosa cruz de prata com mangas de muito
custo de sedas e franjas de ouro’, dois ceroferários de prata de singulares lavores;
dividiu com liberal dispêndio diferente e preciosa gravidade de galas sobre as quais se
viam em uns as opas de berne, em outros de veludo lavrado, e nos oficiais de carmesim
de ramos de prata. Sobre ‘o lustre da prata e ouro das galas, brilhava o encarnado da
opas com luzes de devoção e singularíssima Cristandade’. Cobria seu Provedor a
Irmandade, conhecendo-se nele o honorífico cargo pela vara de prata.
Deve-se ainda ressaltar que “as cores tinham significados definitivos para a
leitura da escrita alegórica do festival barroco ouro-pretano”210. O vermelho é
“relacionado com o simbolismo de potencias ativas da natureza – o sol, o sangue, o
fogo, o poder supremo (...) a dignidade social era anunciada por essa cor. (...) o branco
adequava-se às atividades sagradas dos iniciados – a cor da inocência e da pureza, dos
libertos, bem-aventurados e dos que viviam a dor do luto”211 A túnica branca era usada
pelos aspirantes da cavalaria, daí o nome de ‘candidatos’. O azul é a cor cósmica da
sabedoria universal e da serenidade perfeita, convém à majestade soberana. “O verde
anuncia a renovação da vida ou a putrefação da morte, ou a renascença espiritual ou a
decadência material”212. Códigos da heráldica213 também indicam os seguintes
significados para as cores: vermelho (valor, atrevimento, ousadia, fogo, rubi,); azul
(justiça, formosura, serenidade, safira, ar, majestade, lealdade, fortaleza, boa fama,
nobreza de nascimento); verde (esperança, liberdade, abundância, honra, cortesia,
amizade, esmeralda, obriga-se a quem possuir essas cores em suas armas a defender os
210 TOLEDO, José Luiz Dutra. Triunfo Eucarístico (Vila Rica-1733):carnaval ou liturgia barroca de um
poder em crise? In: Revista do IAC/ UFOP. Nº 01, dez/ 1994. pp. 88-91. p 90 211 ALLEAU, René. A Ciência dos Símbolos. Paris: Payot, 1976; Lisboa: Edições 70, 1982. p 154 212 Idem. Apud TOLEDO, José Luiz Dutra. Op Cit.. 213 SANTOS, Waldemar Baroni. Tratado de Heráldica. 4ª ed. São Paulo: edição do autor, Diário popular,
1970. p 28 Apud TOLEDO, José Luiz Dutra. Op Cit..
59
lavradores e os órfãos oprimidos); negro (prudência, dor, aflição, sabedoria, ciência,
honestidade, firmesa, obediência, morte, silêncio, segredo nas empresas, abnegação,
humildade, modéstia, simplicidade, desilusão, tristeza, obriga-se àqueles que possuem
tal cor em seus brasões a socorrer as viúvas, os literatos, os pobres e os eclesiásticos);
púrpura (devoção, temperança, soberania, tranqüilidade, riquezas, dignidade,
autoridade, ametista); sanguíneo (justiça, liberdade, abundância, boa linhagem,
honorabilidade e dignidade).
Observados acima os principais comentários feito por Simão Machado acerca
dos grupos, nota-se que o ritual religioso e a solenidade política que envolviam a festa
fazem demonstrar os valores da sociedade e a hierarquia que se institui como um fator
advindo da organização colonial urbana durante o ciclo do ouro. Os grupos sociais,
reunidos em irmandades, definem cada um seu espaço, demonstram as relações de
poder e ordenadamente se organizam, ascendentemente, colocando-se os mais nobres
em evidência, mais próximos do sagrado e do poder representados pelo Santíssimo
Sacramento que vem, logo após as irmandades, acompanhado por autoridades civis e
eclesiásticas.
2.2.6 – O Sacramento e os Homens Bons
O clero das duas Paróquias da Vila214 seguia debaixo de uma cruz levada por um
Sacerdote vestido de Dalmática. Quatro Sacerdotes levavam em um andor215 seu
patriarca São Pedro. Seguiam-se de ambos os lados oito sacerdotes vestidos de ricas
casulas, manípulos e estolas; oito com Dalmáticas, oito com capa de asperge, quatro
com turíbulos; depois desses, um Sacerdote, que levava bem ornado o pedestal para
214 “com custosas sobrepelizes, e velas de livra.” MACHADO, Simão Ferreira. Op cit. p 107 215 “colocado em um andor de custoso ornato de sedas de prata, e ouro; galões, franjas e borlas também de
ouro” Idem. p107
60
descanso da custódia em que ia o Sacramento. Seguiam-se a ele quatro anjos vestidos à
trágica216 e que levavam nas mãos bandejas de prata cheias de muitas e diversas flores
odoríferas que iam lançando pelas ruas. Seguia-se o Divino e Eucarístico Sacramento
debaixo de um precioso palio217 em mãos do Reverendo Vigário da Matriz218, que vinha
entre dois sacerdotes219. Atrás dele vinha o Governador da Capitania, o Conde das
Galvêas, com toda nobreza militar e literária da Vila; e com o Nobre Senado da câmara.
Seguia-se a Companhia de Dragões governada pelo seu Tenente e os soldados das duas
tropas: “todos em boa ordem; e com a mesma deram três cargas de mosqueteiras depois
de recolhida a Procissão”220. Após a estrada do cortejo no templo e as subseqüentes
cargas de mosqueteiras, Simão machado comenta que “estava o novo templo nos
altares, e em todo seu âmbito coberto de sedas, ouro e prata, com aquele precioso
artifício, e descentíssimo ornato competente a todo o mais aparato, e magnificência da
solenidade”221. Foi o Divino Sacramento colocado e exposto em um Trono. Celebrou-se
uma missa cantada com musica a dois coros. O Evangelho foi pregado pelo Doutor
Manoel Freire Batalha; “e de tarde fez o mesmo em presença do Conde Governador, de
toda a Nobreza, e Senado da Câmara.”222 Observemos aqui a reafirmação da ação de
defesa do Sacramento e, por conseqüência, dos interesses da igreja (representada pelo
clero), do Estado (representado pela figura do Governador, pela presença do exército, e
pela associação do sacramento com o cristo e com o rei distante mas atuante, imagem
apontada no item 2.2.2 deste estudo), e da Sociedade (representada pela nobreza).
216 “no ornato das cabeças, peitos, capilares, saiotes, e borzeguins, a preciosidade de ouro, prata e
diamantes das figuras antecedentes”. Ibidem. p 109 217 “O palio era de tela carmesim com ramos, e franjas de ouro; de seis varas de prata, que levavam seis
irmãos.” Idem Ibidem. p110 218 “ricamente vestido com alva, estola, capa de asperge e véu de ombros”. Ibidem Ibidem. p110 219 “também vestidos de ricas alvas, de dalmáticas de tela branca” Ibidem Ibidem. p 110 220 Ibidem Ibidem. p 110 221 Ibidem Ibidem. p 111 222 Ibidem Ibidem. p 111
61
2.2.7 – Missas, Guardas e uma Noite de Artificiosos Castelos
O dia do Cortejo foi o primeiro dia de um Tríduo. No segundo dia se cantou a
Missa com a mesma solenidade e música; à tarde o Evangelho foi pregado pelo Doutor
Jose de Andrade e Moraes223. No terceiro dia se oficiou outra Missa do mesmo modo.
Pregou de manhã e à tarde o Reverendo padre Diogo Soares da Companhia de Jesus224.
Tudo com a participação do Senhor Conde, de toda a Nobreza, do Senado da Câmara, e
do povo. Notemos que durante esses três dias que compõem o Tríduo realizado para a
trasladação do Sacramento, “mandou o senhor conde por de guarda à igreja uma
companhia de soldados das Ordenanças da Vila”225. E para assistir a todos os atos desta
solenidade, o conde se mudou para o Ouro Preto durante os dias de festa e se alojou em
“umas grandiosas casas, que lhe tinham prevenidas a Irmandade do Santíssimo”226. Na
noite do dia seguinte aos do Tríduo, “ardeu um artificioso fogo feito em um plano perto
da Igreja Matriz”, e “fabricado por idéia” do Reverendo Padre Diogo Soares da
Companhia de Jesus na forma seguinte:
“Uma planta em quadro chamada Jardim, de oitenta e cinco palmos cada face; nos
quatro cantos quatro Castelos triangulares de ressalto sacado para fora de quinze
palmos cada face; que com oitenta e cinco de cada ângulo do quadro faziam cento e
quinze cada face do Jardim; em cada Castelo, por remate, uma figura humana
guarnecida de fogo; dentro do primeiro quadro outro de sessenta palmos cada face;
nos canto quatro árvores de candeias: dentro deste se fez terceiro quadro de trinta
palmos cada face; no meio uma fonte: as faces de todos os ter quadros guarnecidas de
rodinhas, candeias, morteiros, e girândolas: todo o circuito desta fábrica guarnecido
de linhagem pintada de pedra”227.
223 “com a aquela energia, e naturalidade de difícil imitação, o que lhe dá sempre unido o aplauso à
admiração; em ambos os atos com assistência dos mesmos senhores, e populoso concurso”. Ibidem ibidem. p 112
224 “cujo estilo, e erudição deu novo lustre à festividade, e à su esclarecida religião singular glória: assistiram”. Ibidem ibidem. p 112
225 Ibidem ibidem. p 113 226 Ibidem ibidem. p 113 227 Ibidem ibidem. p 114-5
62
Houve mais toda a noite “copioso fogo de espadas” de várias formas, montantes
e diversidade de foguetes: “o que fez grande a abundância do liberal dispêndio”228. O
espetáculo foi assistido pelo Senhor Conde, pela Nobreza, “e não obstante o dilatado
tempo da noite, inumerável multidão de todo gênero, que cobria os montes”229.
Notemos que a presença maciça e destacada das autoridades civis, militares e
eclesiásticas reunidas em torno do sacramento colocado em um trono durante as missas
evidencia mais uma vez a defesa do sacramento e a sua correspondência com a figura
do rei. No que diz respeito ao fogo, pode-se atribuir à artificiosa fábrica do Reverendo
Padre Diogo Soares da Companhia de Jesus a condição de máquina, fábrica ou
engenho. É uma construção que, enquanto espécie de monumento barroco, constitui
uma “metáfora ou alegoria plástica”230 com “princípios teológico-políticos”. E assim
como nos fogos que precederam o tríduo (analisados no item 2.2.1 deste estudo), a cena
noturna em que é descrita a fábrica do artificioso fogo cria uma atmosfera de ensueño
barroco. Após os ritos sagrados, observemos que começam a novamente se intensificar
as comemorações profanas, as quais dão brilho à atmosfera de sonho criada pelo festejo
e servem mais uma vez para afirmar os locais sociais e colocar em evidência as
autoridades; conferindo uma aparência de harmonia, riqueza, comprazimento de
sentidos e regozijo material e espiritual à Vila Rica e à Capitania das Minas. Vejamos, a
seguir, como a imagem da Vila Rica continua a ser construída num contexto de ordem e
harmonia de uma população abastada que se reúne em torno de uma vida social
movimentada e opulenta durante as cavalhadas, comédias, touros, serenatas e banquetes
que se seguiram.
228 Ibidem ibidem. p 115 229 Ibidem ibidem. p 115-6 230 HANSEN, João Adolfo. Teatro da memória: monumento barroco e retórica. In: Revista do IFAC.
Universidade Federal de Ouro Preto. Nº 2, dezembro de 1995. pp 40-54
63
2.2.8 – Panis et Circensis
Após o Tríduo e a noite de artificiosos castelos, seguiram-se alternadamente três
dias de cavalhadas à tarde; três de Comédias à noite; três de touros à tarde:
“O curro das cavalhadas e touros se fez muito espaçoso, e em quadro na praia de um
rio que corre perto da igreja matriz: no meio dele se pos um mastro com uma bandeira
branca, de cada parte pintada uma custódia; cercado de palanques bem armados de
sedas e damascos. No meio de uma face do curro destinaram os Irmãos do Santíssimo
um palanque para o Senhor Conde, pelo sitio e custoso ornato, como convinha à
pessoa de tão grande Senhor. Concorreram nas cavalhadas muitos e destríssimos
cavaleiros ricamente vestidos, e montados em briosos cavalos bem ajaezados, e deles
os mais peitos ou venturosos levavam argolinhas de ouro. (...) O Tablado das
Comédias se fez junto da Igreja custoso na fábrica, no ornato, e aparência de vário
bastidores: viram-se nele insignes representantes e gravíssimas figuras: foram as
Comédias: El Secreto a vozes; El Príncipe prodigioso; El Amo criado. (...) Os três
dias de touros foram divididos a dois insignes Cavalheiros: um dos primeiros dias a
cada um; o terceiro a ambos juntos: foi o primeiro do Alferes de Dragões João Vieira
Carneiro, por excelente perícia, e fama conhecido, e aplaudido: o segundo de
Francisco da Silva Machado, e também o último por impedimento do companheiro.
Este em ambos os dias (ainda que por achaque grave, débil de uma perna) obrou com
tal perícia e galhardia ministrando empenho à arte, e seu valor o bravo ímpeto dos
touros, principalmente mais bravos no terceiro dia, que sempre os olhos estiveram
vendo triunfos de seu braço, os ouvidos ouvindo as vozes de clarins, e ecos de
clamores, elogios de aplauso. Entrevieram com destríssimas sortes muitos, e bem
ornados capinhas, que ganhando o louvor à custa do perigo, dobravam a fúria aos
touros em benefício dos cavalheiros. Foi tal nestes dias a disposição e ordem de tudo;
na situação do curro, e fábrica dos palanques, na multidão, e variedade do concurso,
na perícia, e galas dos Cavalheiros,e em todo o mais aparato, que se viram esses atos
representados com a policia e gravidade das cortes.”231
Todos esses e aos demais atos dos dias seguintes foram assistidos pelo Senhor
Conde e por toda a Nobreza secular e eclesiástica. Em todas as noites desses e dos
seguintes dias foram feitas ao Conde “excelentes serenatas, de boas músicas, e bem
231 MACHADO, Simão Ferreira. Op. Cit. p 117-20
64
vestidas figuras nas casas onde estava no Ouro Preto”232. Nas mesmas casas, “em todos
os dias deu o dito Senhor explendidíssimo banquete a todas as pessoas nobres, e de
distinção, seculares, e Eclesiásticas com aquela liberalidade de ânimo, que por toda a
parte publica a fama”233. Essas são imagens de regozijo da nobreza e do clero em
banquetes e serenatas; do povo em cavalhadas, comédias e touros: são o pão e o circo.
2.2.9 – Dogma e Poder
Nas cinco últimas páginas da narração, Simão Machado faz suas considerações
finais acerca dos eventos que narra e das imagens que constrói para melhor servir ao
discurso alegórico que o cronista procura transpor das imagens e alegorias do cortejo e
das festividades para as palavras impressas na pública escritura. Simão comenta que:
“Deste modo celebraram tão grande solenidade os moradores da Paróquia do Ouro
Preto desta Vila; ficando sempre inteligível aos juízos para o verdadeiro conceito da
magnificência, a grande diferença que vai do conhecimento da vista à compreensão
das palavras, ou na voz da fama, ou na maior individuação da Escritura, e mais sendo
muitas miúdas particularidades necessárias para o agradável concurso, e ornato ao
referido aparato de toda a ordem da solenidade, que devem ser suposição do discurso,
não prolixidade da escritura”234.
Chama-nos a atenção o seguinte comentário: “ficando sempre inteligível aos
juízos para o verdadeiro conceito da magnificência, a grande diferença que vai do
conhecimento da vista à compreensão das palavras”. Nesse fragmento o autor aponta
para o uso da alegoria dos teólogos como hermenêutica, como “técnica de interpretação
que decifra significações tidas como verdades sagradas em coisas, homens, ações e
eventos das Escrituras” 235, as quais ‘significam verdades morais, místicas,
232 Idem. p 120 233 Ibidem. p 121 234 Idem ibidem. p 121-2 235 HANSEN, João Adolfo. Op.Cit. pp. 8-9; 92
65
escatológicas’. Lembremos que os padres primitivos da Igreja e da Idade Média já
haviam pensado a alegoria como “simbolismo lingüístico revelador de um simbolismo
natural”, fazendo distinção entre “sentido literal próprio (expresso por letras de palavras
humanas), sentido literal figurado (metafórico), e sentido espiritual (revelado por
coisas, homens e acontecimentos das Escrituras)”.236 E no que diz respeito ao texto, o
cronista faz o seguinte comentário: “e mais sendo muitas miúdas particularidades
necessárias para o agradável concurso, e ornato ao referido aparato de toda a ordem da
solenidade, que devem ser suposição do discurso, não prolixidade da escritura”.
Evidencia aqui que conhece os usos e funções da alegoria dos poetas enquanto ornato de
linguagem, mas também a pensa como parte constituinte do discurso. Demonstra que a
alegoria é um processo de construção e interpretação.
Em seguida o autor salienta que a festividade barroca realizada em Vila Rica não
tinha precedentes na América em magnitude e suntuosidade. Diz que “não há lembrança
que visse no Brasil, em consta que se fizesse na América ato de maior grandeza, sendo
tantos, e tão magníficos que no espaço de duzentos anos com admiração do Mundo todo
tem executado seus generosos habitadores”237. Percebe-se que autor procura demonstrar
a imagem de habitantes generosos, ricos, devotos e ordeiros. Essa imagem “manifesta a
grande piedade, e religião, com que os seus moradores resplandecem”238; remete à fama
portuguesa e ao exemplarismo da cristandade lusitana ao comentar que os moradores
das Minas, “entre as demais nações com singular vantagem se fazem conhecidos”239; e
procura desmentir “a maledicência daqueles, que os pretendem infamar de
ambiciosos”240. Completa Simão dizendo que “se por essas admiráveis ações excedem
236 Idem. p12 237 Ibidem ibidem. p 122 238 Ibidem ibidem. p 123 239 Ibidem ibidem. p 123 240 Ibidem ibidem. p 123
66
os Portugueses a todas as nações do Mundo, agora se vem gloriosamente excedidos dos
sempre memoráveis habitantes da Paróquia do Ouro Preto”241. Com esse comentário o
cronista exalta a condição cristã e exemplar da Paróquia do Ouro Preto “não só pelo
Católico zelo e excessivos dispêndios com que (para maior culto e veneração do
verdadeiro Deus, e exaltação da sua santa Fé) edificaram suntuosos Templos, e erigiram
Altares”242, mas também “pela majestosa pompa e magnífico aparato, com que (em
glorioso triunfo) trasladaram o Sacramento Eucarístico”243. Essas circunstâncias
“fizeram superiores a todas as nações do mundo os moradores do Ouro Preto, que só
com pasmos e admirações se podem dignamente aplaudir” 244. Observe-se que a
construção e a dispendiosa ornamentação dos templos é incentivada como uma forma de
demonstrar ‘zelo católico no culto a Deus e na exaltação da Fé’. Considera então tais
moradores como “fidelíssimos Católicos” que, mesmo “vivendo tão apartados da
comunicação dos povos (...), se empregam com tanto desvelo, e com inimitável
generosidade ao festejar a Divina Majestade Sacramentada, para maior exaltação da Fé,
e veneração dos Católicos”245. Hiperbolicamente, o autor comenta ainda que as
solenidades foram uma “ação tão singular que nem a antiguidade via primeira, nem a
posteridade verá segunda para glória desta nobilíssima Vila por sua seguríssima
Cristandade”246. E declara, no último período da narração, que o exemplo dado pelas
solenidades ocorridas em Vila Rica faz “assim mais conhecida, e dilatada na terra do
Soberano Senhor Sacramentado a devida veneração, e eterna glória”247.
241 Ibidem ibidem. p 123 242 Ibidem ibidem. p 124 243 Ibidem ibidem. p 124 244 Ibidem ibidem. p 125 245 Ibidem ibidem. p 125 246 Ibidem ibidem. p 125 247 Ibidem ibidem. p 125
67
Torna-se então perceptível o fato de que a alegoria foi utilizada com finalidade
edificante em O Triunfo Eucarístico. Tem fundo moral, ético, religioso, social e
político. Tenta produzir uma espécie de catarses ao inebriar os espectadores com
tamanha quantidade de elementos e seus respectivos significados. A alegoria é, no
contexto do evento, uma forma de entregar à mente dos indivíduos colocando ante seus
olhos, trazendo aos seus juízos a memória que se deseja que tais indivíduos tenham
consigo. Ao começar a descrever o cortejo Simão Machado comenta que “saiu logo a
procissão manifesta nos desejos da publicidade na forma seguinte”248. A partir desse
momento o cronista começa a encadear as imagens, sequenciando-as na medida que
aparecem, minuciosamente obedecendo à ordem estabelecida pelo próprio cortejo.
Notemos que o comentário do autor torna evidente que a forma como a procissão foi
manifesta obedeceu aos desejos da publicidade, ou seja, foi submetida a prévia
organização com o intuito de expressar uma mensagem que, mesmo alegoricamente
cifrada, deveria articular as imagens oferecidas ao público promovendo a construção,
por parte desse último, de um sentido pré-estabelecido. Logo, o sentido ou significado
do cortejo não é depreendido a partir de alegorias separadas. É o conjunto das alegorias
que, articuladamente interpretadas, produzirá a síntese que se constitui como
mensagem. Portanto, em conformidade com o fato de que uma interpretação
iconológica advém mais da síntese do que da análise dos elementos, há uma mensagem
cifrada e alegórica pela articulação e síntese das imagens apresentadas no texto de
Simão Machado. Notemos que o próprio autor nos fornece essa síntese no título
impresso na folha de rosto do opúsculo:
248 Ibidem ibidem. p 47
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“TRIUMPHO EUCHARÍSTICO, EXEMPLAR DA CHRISTANDADE LUSITANA
em publica exaltação da Fé na solemne trasladação DO DIVINISSIMO
SACRAMENTO da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, para um novo Templo DA
NOSSA SENHORA DO PILAR EM VILA RICA CORTE DA CAPITANIA DAS
MINAS.” 249
Adotando o título como síntese dos principais conceitos utilizados para criar a
mensagem alegoricamente cifrada que foi posta a publica notícia por Simão Machado
conforme os desejos da publicidade, apontamos neste sub-capítulo a imagem do triunfo
(item 2.2.1); a imagem da eucaristia (2.2); a imagem exemplar da cristandade lusitana
recebendo a riqueza das minas como prêmio pela difusão da fé católica (1.2 e 2.2.3); a
imagem da pública exaltação da fé pela negação do paganismo e do esoterismo em
função da crença e afirmação dos dogmas cristãos (2.2.4); a imagem da Igreja Católica
representada pelo novo templo do Pilar (2.2.4); a imagem da solene trasladação
realizada pela sociedade reunida em suas irmandades submetidas à ordem colonial
(2.2.5); a imagem do Sacramento guardado pela autoridade da Igreja e do Estado
(2.2.6); e a imagem da Vila Rica, a Corte da Capitania das Minas (2.2.7, 2.2.8 e 2.2.9).
Pela escolha dos termos que foram tipografados em letras maiúsculas, o título também
revela quais conceitos são mais acentuados na composição dessa alegoria do fausto.
Procurando então estabelecer uma síntese das imagens apresentadas no texto de Simão
machado, pode-se considerar que, articulados, esses conceitos significam a seguinte
equação: dogma é poder. E como premissa: a glória de Deus é a glória do Estado.
Vejamos a seguir como essa equação essa premissa se tornam também evidentes nas
alegorias apresentadas pela ornamentação da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar.
249 Ibidem ibidem. Folha de rosto.
69
2.3 – A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar: imagem e discurso
Visando a uma melhor interpretação iconológica da matriz do pilar e das
relações discursivas existentes entre a ornamentação interna do tempo e as alegorias
apresentadas na festa de sua inauguração, procederemos a seguir, a algumas
considerações acerca dos aspectos estéticos e técnicos concernentes ao ciclo barroco-
rococó em Minas Gerais.
2.3.1 – O Ciclo Barroco-Rococó em Minas Gerais: uma tipologia
O barroco foi um período estilístico e filosófico da História da sociedade
ocidental ocorrido desde meados do século XVI até ao século XVIII250. Um momento
marcado por acontecimentos históricos como a chegada dos europeus à América, a
mudança do comércio mundial, a solidificação da Inquisição e do poder do Clero, o
Absolutismo Político, a subordinação de Portugal à Espanha durante a União Ibérica, e
o ataque holandês às colônias portuguesas. Uma intensa agitação social e o esforço
permanente em busca do restabelecimento da vida econômica, política e cultural 250 Com o desaparecimento do rei D. Sebastiao em Alcácer-Quibir na África no ano de 1578, ocorre a
regência do Cardeal D. Henrique (tio do desaparecido rei) até 1580; ano marcado pela morte de Camões e pelo fim da autonomia política de Portugal, quando Filipe II de Espanha, herdeiro mais próximo da coroa, anexou o reino português aos seus domínios na chamada União Ibérica. O capitólio político passou a ser Madrid, tendo Portugal perdido, além do seu foco político, a importância do foco cultural. No século que se seguiu (século XVII), a influência predominante passou a ser a espanhola que se tornou marcante na cultura portuguesa e durante este mesmo período, brotam aos olhos da Espanha uma riquíssima geração de escritores, como Gôngora, Quevedo, Miguel de Cervantes, Félix Lope de Vega e Calderón de la Barca além de muitos outros. Em 1640 Portugal inicia a empreitada na reconquista da posição no cenário europeu, libertando-se do domínio espanhol após D. João IV, da dinastia de Bragança, subir ao trono. Até 1668, muitas lutas ocorreram, contra a Espanha, na defesa da independência e contra os holandeses, em busca de recuperar as colônias da África Ocidental e parte do Brasil. Marquês de Pombal, ministro do rei Dom José, subiu ao poder em 1750, com propostas renovadoras, que inauguraram uma nova fase na história cultural portuguesa. Em 1756, a Arcádia Lusitana demarcou o início de novas concepções literárias. No Brasil, o período foi marcado por novas diretrizes na política de colonização, e estabeleceram-se engenhos de cana-de-açúcar na Bahia. Salvador, como capital do Brasil, transformou-se em um núcleo populacional importante, e como consequência, um centro cultural que, mesmo timidamente, fez surgir grandes figuras, como Gregório de Matos. O Barroco Brasileiro teve início em 1601, tendo como obra significativa, Prosopopéia, de Bento Teixeira.
70
marcaram esse momento. Surgida em Roma, a arte barroca foi usada como forma de
expressão da mensagem religiosa da Contra-Reforma com o ideal de reafirmar os
dogmas recusados pelo protestantismo, as doutrinas, o culto aos anjos e santos, e o
papel devocional da imagem. Tais ideais definidos pelas elites diocesanas reunidas em
concílio na cidade italiana de Trento (1545-1563) apontavam o uso da imagem como
forma de representar o sagrado. A contra-reforma não foi a causa determinante do
barroco, mas sim elemento fundamental que estruturou sua ideologia. Logo, a música, a
literatura, o teatro e todas as belas artes serviram de expressão ao Barroco nos territórios
onde ele floresceu: Espanha, França, Itália, Portugal, países católicos do centro da
Europa, e América Latina. Para a Igreja, a fé deveria ser atingida através dos sentidos e
da emoção, não apenas pelo raciocínio. O catolicismo barroco também produziu "autos
sacramentais", peças teatrais de argumento teológico e, procurando comover
intensamente o espectador e envolvê-lo através dos sentidos, o templo se torna um
espaço cênico, um teatro sacro. Também os chefes de Estado demonstraram seu poder
construindo magníficos palácios barrocos. O barroco assumiu diversas características251
ao longo de seu tempo e, mais que um estilo artístico, foi um estilo de vida. A
exuberância e o exagero da arte barroca foram posteriormente considerados como mau
gosto e, ainda no século XVIII, o termo barroco passou a ter sentido pejorativo:
designando uma arte extravagante, confusa e marcada pela presença constante da
dualidade (antropocentrismo versus teocentrismo, céu versus inferno, religião versus
251 Algumas de suas características gerais são: teocentrismo (Deus como centro do Universo); forte
presença de temas religiosos; austeridade; emoção acima da razão; arrebatamento dos sentidos; o religioso e o profano se misturam; fusionismo (aproximação de idéias contraditórias); uso da alegoria nas artes (signos, ícones, imagens, metáforas, símbolos); teatralidade e dramaticidade (aspecto cênico e sentimentalismo intenso); horror ao vazio (ornamentação excessiva, extravagância); grandiosidade (luxo e ostentação); movimento (efeitos curvilíneos e retorcidos, desequilíbrio, instabilidade); importância da obra enquanto conjunto (arquitetura, escultura e pintura); contrastes de luz e sombra, ilusionismo e profundidade (na pintura); uso de paradoxos, antíteses, metáforas e alegorias (na literatura); obra aberta (possibilita diferentes interpretações e pontos de vista).
71
ciência). Em meio à duvida e à instabilidade do período, o barroco expressa ainda a
tentativa angustiante de conciliar forças opostas.
O estilo chegou ao Brasil pelas mãos dos colonizadores e se espalhou pelas
regiões do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, atingindo o auge de seu esplendor a
após a descoberta de ouro e diamantes na região de Minas Gerais. Vencendo algumas
limitações técnicas e materiais, o contexto urbano das vilas coloniais mineiras deu ao
Barroco a fisionomia a uma arte local e brasileira que utilizou materiais típicos como o
cedro e a pedra-sabão adaptando-os às necessidades das obras. E filtrando influências
brasileiras e européias, o ciclo barroco-rococó mineiro ganhou expressão particular no
contexto mundial através da obra de artistas como Antônio Francisco Lisboa (o
Aleijadinho) e Manoel da Costa Ataíde.
No que diz respeito à arquitetura religiosa, a fragilidade estrutural e a
simplicidade externa dos edifícios das primeiras décadas do século XVIII em Minas
Gerais advém do uso de materiais como o barro e a madeira em técnicas construtivas
como o adobe, a taipa de mão e a taipa de pilão assentados sobre pedral de
embasamento. As fachadas dos templos são traçadas a partir de elementos
geometricamente estáticos e simples252. Em meados do século XVIII a utilização da
pedra na arquitetura em cantaria dá formas mais soltas e pesadas aos frontispícios dos
templos; bem como maior ornamentação externa pelo aplique de vergas, portadas e
medalhões esculpidos em pedra. Com o Rococó a arquitetura religiosa explora mais
ainda o uso da pedra na ornamentação externa. Os traços arquitetônicos tendem a um
252 um retângulo como base; dois quadrados sobrepostos por pirâmides como torres; um triângulo
entremeando as torres como frontão (que tem como centro um círculo como óculo). Os vazados da fachada são distribuídos em porta central, portas-sacadas, óculo do coro, seteiras nas escadarias das torres. Tal configuração atribui às fachadas dos primeiros templos alguns aspectos maneiristas.
72
maior movimento procurando fugir às formas estáticas253. Com o advento do
neoclássico no século XIX, o traço das fachadas tendeu novamente à contensão das
formas254. A planta baixa dos edifícios obedece a um padrão que sofreu poucas
alterações e muitas adaptações por acréscimos ao longo do tempo255. Mas há variações.
Apesar de todas as classificações existentes, há ainda capelas de diversos traços
arquitetônicos que passaram por diversos acréscimos e modificações. Casos diversos em
diversos materiais e técnicas ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX 256. Pode-se dizer
que a gramática arquitetônica dava certa liberdade de uso e adaptação das obras às
253 As torres são recuadas em relação ao frontão e tendem a assumir formas arredondadas e cilíndricas
arrematadas por delineadas cúpulas em pedra com aba de telhado cuneiforme ou sacadilhas (Aleijadinho) e encimadas por pináculos ou grimpas. O frontão, entre as torres, se forma como triângulo interrompido e ondulado elaborado a partir de imensas volutas e rocalhas e encimado por acrotério. O frontispício passa a ser ricamente ornado com portadas e medalhões escultóricos e as vergas das portas-sacadas ganham sobrevergas com rocalhas em pedra. Entre as armas e brasões das irmandades que se fazem representar nas cartelas dos medalhões, há rocalhas, flores, folhas, anjos, guirlandas e uma variedade de elementos. Algumas vezes os medalhões de portada se estendem por quase todo o frontispício da igreja, iniciando-se nas vergas da porta e findando-se no frontão. Cimalhas, vergas, ombreiras, portadas e outros elementos ornamentais substituem a rusticidade das construções em taipa e adobe pela beleza e solidez da pedra de cantaria.
254 As torres são aquadradadas com quinas cortadas em diagonal promovendo uma movimentação menos leve e mais sóbria. O frontão se alinha à fachada e às torres, movimenta-se menos e suas formas são planificadas em apliques e contornos. A portada tende também a uma maior simplicidade eliminando grandes medalhões escultóricos e adotando cartelas mais modestas.
255 Num primeiro momento as matrizes conservaram a capela mor (ladeada por corredores laterais ou pela sacristia de um lado e capela do santíssimo do outro), o arco cruzeiro, a nave (que poderia ser apenas a central com camarotes acima dos altares ou dividida em central e duas laterais; sendo estas encimadas por camarotes), o coro, o nártex com o tapavento e o acesso à escadaria do coro e torre sineira (no caso das matrizes também o batistério fica no nártex à esquerda de que entra). A existência dos camarotes superiores à nave não permite a incidência direta de luz no interior da igreja, tornando o ambiente mais sombrio na nave em contraste com a maior luminosidade ocasionada pelo óculos existentes nas paredes laterais da capela mor. Numa segunda fase das construções, os camarotes laterais superiores da nave são suprimidos e passam a haver óculos diretamente nas paredes laterais externas da nave proporcionando maior claridade no interior dos templos. Corredores laterais à nave contíguos à capela mor pela sacristia e pela capela do santíssimo passam a ser adaptados por acréscimo de parede com meia água de telhado às laterais externas das paredes da nave, facilitando também o acesso aos púlpitos. Os alares da nave são assentados nas paredes internas e, normalmente, entremeados pelo púlpito. Num terceiro momento das construções, os corredores laterais à nave tendem a ser menos utilizados, simplificando assim a planta dos edifícios.
256 Há capelas com fachada chanfrada em três planos com uma porta central (ou três) no nível átrio, três porta-sacadas no nível do coro, óculo central e uma torre sineira quadrada arrematada com telhado piramidal em quatro águas e grimpa. Internamente, nártex, nave, arco cruzeiro, capela mor com corredores laterais ou sacristia e capela do santíssimo. Há também capelas com torre única à esquerda ou à direita; casos em que a capela é um quadrado com vazados de porta central e portas-sacadas, encimado por frontão triangular e, no adro, um campanário isolado. Casos em que sineiras são adaptadas às laterais do frontão por acréscimo de torre. Casos em que a sacristia a capela mor e a capela do santíssimo se integram, que há um só púlpito ou um só corredor lateral à nave. Casos de frontispícios planos e quadrados com frontão triangular integrando torre única central.
73
necessidades, aos recursos materiais e financeiros que envolviam o processo de
construção dos edifícios.
Os artesãos e artífices que trabalham nessas construções agrupavam-se segundo
suas especializações257. A parte intelectual do projeto se distinguia da parte material,
sendo comum o arquiteto conceber o edifício e o mestre-de-obras realizar a construção a
partir dos riscos fornecidos. No século XVII, engenheiros militares eram
freqüentemente chamados para projetar riscos de igrejas brasileiras. Em meados do
século XVIII, além dos técnicos especializados vindos de Portugal, outros vão se
formando nos próprios canteiros de obras, suprindo a carência de profissionais locais. A
partir da aprovação do risco, abria-se concorrência em toda a região para o início dos
trabalhos. A proposta mais vantajosa era aceita, e seu proponente nomeado arrematante.
Raramente os serviços eram arrematados por um único profissional e abrangiam a
totalidade das obras. Eram comuns várias concorrências específicas para a parte
construtiva, para a ornamentação em madeira, e para os trabalhos de pintura.
A talha, a imaginária e a escultura são elementos fundamentais da ornamentação
barroca responsável pela configuração plástica e dimensão monumental dos templos
religiosos de Minas Gerais. A talha é o elemento típico da ornamentação interna nas
capelas e igrejas barrocas. Os retábulos (estrutura ornamental em madeira que reveste a
parte posterior do altar) apresentam três estilos artísticos distintos, que expressam a
evolução do barroco na Europa, notadamente em Portugal, e pontualmente em minas
Gerais: o estilo Nacional Português, o estilo Joanino, e o estilo Rococó.
257 Pedreiros, canteiros (entalhadores de pedra), rebocadores, carapinas (serviços de carpintaria fina e
marcenaria), escultores (ornamentação em pedra), entalhadores (decoração interna dos templos em madeira), santeiros, estatuários ou imaginários (confecção de imagens), pintores e douradores (pintura e douramento da ornamentação), arquitetos, mestres de risco (ou a planta) e de traço (ou desenho).
74
O retábulo Nacional Português é denominado 1ª fase (1710 a 1730)258. O
retábulo Joanino (2ª fase, de 1730 a 1760)259, gosto comum durante o reinado de Dom
João V, sofre influência da cenografia teatral e de tratados de arte italianos; e o retábulo
Rococó ou Dom José I (3ª fase, a partir de 1760)260 advém de ornamentação originada
na França. Após a morte de Dom João V no ano de 1750, sobe ao trono Dom José I, que
assume as tendências do rococó para a ornamentação de jardins, palácios e templos. O
rococó foi então um estilo artístico imerso na cultura barroca; contudo, mais leve,
amplo, iluminado e estável que as manifestações da 1ª e 2ª fases.
258 apresenta colunas torsas (ou retorcidas) profusamente ornamentadas com motivos fitomorfos (folhas
de acanto, cachos de uva) e zoomorfos (aves, geralmente pelicanos). Essas colunas são encimadas por capitéis compósitos ou coríntios, que sustentam entablamentos decorados com perolados. Sobre os entablamentos o coroamento formado por arquivoltas concêntricas das mesmas colunas torsas. Douramento profuso e policromia em azul e vermelho. Algumas vezes há nichos nas laterais de camarim do altar, tendo também o camarim pouca profundidade, podendo se sobressair em relação às colunas que fazem a lateral do próprio a imagem que normalmente é sustentada por um vaso de cântaro. Há casos (como na Sé de Mariana) nos quais o camarim é composto por uma tela.
259 apresenta excesso de motivos ornamentais com predominância de elementos escultóricos, coroamento com sanefas e falsos cortinados com anjos, revestimento com policromia em branco, dourado e marmorizado. Há duas ocorrências distintas e sincrônicas, uma no Porto e outra em Lisboa. Sendo mais comum no Brasil a variação Dom João V de Lisboa, na qual os retábulos se sustentam por colunas torsas ou por colunas salomônicas de capitéis coríntios ou compósitos. Os entablamentos apresentam frisos, dentilhados, perolados, arquitrave, cornija e sustentam arcos interrompidos. O arremate superior é composto por dosséis salientes e cortinetes em lambrequíns (os dosséis também aparecem na decoração dos sacrários e nichos), o dossel sobre o camarim normalmente é assentado sobre quartelões ricamente decorados por grupos e/ou figuras antropomórficas isoladas. Presença também dos elementos fitomórficos, conchóides e geométricos (curvas, contracurvas, angras e outros), presença de dourado, faiscado e marmorizado. O camarim é mais profundo que na fase anterior e a imagem do santo é colocada sobre um trono em degraus ou em base entalhada. Possui também forte douramento. Ornamentação com elementos atropomorfos (querubins, serafins, putis, anjos anunciantes e atlantes), zoomorfos (pelicanos, fênix, águias) e fitomorfos (flores e guirlandas). A variação Dom João V do Porto é caracterizada por ter apenas um quartelão e um nicho ao lado do camarim. O quartelão (que ocupa as laterais do camarim) formado por curvas, volutas e angras, é encimado por capitéis coríntios ou compósitos sobrepostos por um entablamento decorado por perolados e frisos. O entablamento sustenta segmentos de arcos nos quais há anjos anunciantes. O retábulo se prolonga mais ainda verticalmente numa repetição formal dos segmentos de arcos e coroamento por cortinete em lambrequim. A tribuna do altar ganha maior profundidade e degraus formam o trono da imagem central. O camarim é sobreposto por um contido dossel com rendilhados. Profuso douramento.
260 Os retábulos são estruturados a partir de colunas de fuste liso ou estriado (quando estriado pode ter o terço inferior retorcido) encimadas capitéis coríntios ou compósitos que são sobrepostos por entablamentos entalhados em retículas, com perolados, dentilhados e policronia em faiscados e marmorizados. Remate superior do camarim feito em arco pleno com coroamento encimado por grande composição escultórica em rocallhas, curvas e volutas, ou em arbaleta. Ornamentação com forte presença de rocalhas e profusão de elementos fitomorfos (cravos, girassóis, crisântemos) baseados no estilo rococó francês (rocalhas, conchas, laços, guirlandas e flores). Revestimento com fundos brancos, marmorizado, policromia em tons pastéis, pintura de temas em medalhões de rocalhas e douramento discreto nas partes principais da decoração. Com exceção à obra do Aleijadinho, são utilizados poucos elementos antropomorfos (anjos).
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A trajetória evolutiva da pintura religiosa em Minas Gerais demonstrou
tendências sincrônicas aos retábulos. Sincronicamente ao nacional português há painéis
de madeira com temas bíblicos emoldurados e afixados isoladamente nos tetos (forros
em caixotão artesoado) e paredes (painéis parietais) das igrejas. Os elementos
decorativos trazem freqüentemente motivos chineses (chinesices) ou formas que
reproduzem objetos da natureza, como grutas, penhascos, árvores, folhas e caracóis
(grutescos). O emolduramento recebe policromia em marmorizados e faiscados.
Sincrônico à talha joanina, o Ilusionismo Dom João V261 e a Perspectiva Barroca262.
Com a Trama Rococó263 a pintura passa a ocupar todo o forro com grandes cenas
ilusionistas em perspectiva que se integram à estrutura arquitetônica ampliando
monumentalmente a noção de espaço interno. Foi também comum a pintura de ex-
votos, obra encomendada pelo devoto em sinal de agradecimento por graça alcançada;
que tinha a função não apenas de registrar uma graça, sendo também um atestado de Fé
e cristandade, uma notícia que traria estímulos exemplares do culto aos santos.
261 Perspectiva originada dos livros de cenografia teatral. É composta de uma densa e pesada trama
arquitetônica com painel central contento o tema ou por figuras em sacadas e parapeitos de cúpulas. Cria a ilusão de prolongamento da estrutura arquitetônica, embora esse efeito proporcione peso e densidade ao forro. São utilizados tons fortes e escurecidos com sombreamento
262 O contorno clássico dos elementos por uma linha margem dá lugar ao forte contraste de cores para que sejam diferenciadas e delimitadas as imagens. A cena parece ser iluminada por uma das diagonais superiores, e os contrastes de luz e sombra dão a noção de movimento e volumetria. O método favorito empregado pelo barroco para ilustrar a profundidade espacial é o uso dos primeiros planos super dimensionados em figuras trazidas para muito perto do espectador e a redução no tamanho dos motivos no plano de fundo. Outras características são a tendência de substituir o absoluto pelo relativo, a maior rigidez pela maior liberdade, predileção pela forma aberta que parecem apontar para além delas próprias, ser capazes de continuação. Uma tentativa de suscitar no observador o sentimento de inesgotabilidade e infinidade de representação.
263 As estruturas arquitetônicas representadas na pintura se integram à verdadeira cimalha do edifício com colunas e parapeitos em que se debruçam personagens bíblicos, anjos, santos e doutores da Igreja circundando a cena central; a qual é inserida num medalhão de rocalhas que, ligado às colunas da pintura, sugere ao observador a ilusão de que o teto se abre para uma visão celestial, rompendo assim o espaço arquitetônico do templo. Esse efeito chamado trompe l'oeil foi desenvolvido em Roma pelo padre italiano Andre Pozzo na decoração do forro da Igreja de Santo Inácio. Em Ouro Preto, Manuel da Costa Ataíde se aproximou do ilusionismo de Pozzo com a pintura do forro da Igreja de São Francisco de Assis. Utilização de rocalhas, gruilandas, vasos, flores, conchas, mascarões e figuras humanas e angélicas integrando o parapeito e as colunas ao tema central. Predominam cores como azul e vermelho em tons pastéis. No século XIX, simplificou-se a trama arquitetônica em favor de apenas um parapeito contínuo e uma cena religiosa centrada em um medalhão composto por rocalhas ou nuvens.
76
Com o fim da tradição barroco-rococó instaurou-se o neoclássico. A evolução
dos trabalhos em alvenaria de pedra dá maiores proporções aos templos. A
ornamentação interna em talha é restrita aos retábulos que são simplificados em formas
lineares e arcos plenos com revestimento de fundo branco e pouca policromia e
douramento. A pintura em forros e painéis parietais é pouco utilizada.
No referente à Imaginária , após o concílio de Trento (1545/1563) no Intuito de
reformar a fé católica a Igreja da contra-reforma reafirmou através do culto das imagens
os dogmas negados pelo protestantismo. “A iconografia cristã, segundo a tradição, é a
representação, através de interpretações plásticas, de Deus, cristo, Maria, e dos santos
mas também das verdades reveladas aos homens sobre os desígnios de Deus,
consignados nos Livros Sagrados. 264 Há quatro categorias para “classificar as imagens
sacras a partir de sua inserção nos locais de origem” 265: retabulares; processionais; de
culto doméstico; e conjuntos cenográficos. A imaginária retabular complementa a
decoração interior dos templos. Cada altar possui seu santo padroeiro colocado em
posição central e outras imagens que compõem o espaço de devoção religiosa. Na
imaginária os códigos de figurações simbólicas são expressos por gestos, atitudes, tipo
de indumentária e, sobretudo, pelos atributos, pequenos objetos relacionados à vida dos
santos e que podem ser subdivididos em dois grupos: atributos coletivos266 e atributos
pessoais267. As imagens devocionais acompanham a riqueza do período, são recobertas
por ouro, prata e recebem além dos atributos, adornos (colares, brincos) em metais
nobres (ouro, prata). A imagem religiosa é empregada não só como uma simples
escultura, mas religiosamente é a representação de um Santo, de um exemplo e ponto de
264 CUNHA, Maria José Assunção da. Iconografia Cristã. Ouro Preto: UFOP/IAC, 1993. pp 13 265GUTIERREZ, Angela. O Livro de Sant’Ana. Belo Horizonte: Inst Cultural Flávio Gutierrez, 2001. p 14 266 símbolo que juntamente com a indumentária fornecem elementos de reconhecimento dos santos, mas
comuns a muitos deles, são incapazes de por si próprios individualizarem-se. 267 símbolos que caracterizam fatos ou situações particulares da vida ou morte de cada santo que somados
à indumentária e aos atributos possibilitaram a identificação das imagens.
77
mediação entre o ser humano e Deus. A expressão, a túnica, a indumentária, o atributo
constituem fontes de informação para o reconhecimento das imagens religiosas. Nas
imagens eruditas, variações estilísticas não modificaram o esquema simbólico formal; a
imagem popular apresentou lúdicas variações, pois o santeiro na maioria das vezes
trabalhava por sua intuição. Ao sentido devocional da imagem soma-se o sentido
estético268 que lhe dá a condição de obra de arte. Outro aspecto a ser levado em
consideração é a fatura, que se vincula ao tipo de suporte utilizado na confecção da
Imagem (barro, madeira, marfim, osso, pedra, etc...). Grande parte dessa produção é
realizada em madeira269 e as etapas de produção da peça são as seguintes: entalhe270,
aparelho271, douramento272, estofamento273, encamação274, e ornamentação275. Além da
268 As primeiras imagens chegadas à região mineira foram geralmente trazidas pelos bandeirantes e
tinham influência maneirista do século XVII. Sua composição é definida por formas contidas e atitudes sóbrias. A indumentária privilegia linhas retas, modelatura estática, acentuando a simplicidade e a rigidez da figura. A fisionomia é severa e parada, não revela expressividade. A partir da quarta década do século XVIII, a escultura, já apresenta os princípios da estética barroca que se caracteriza por formas exuberantes, pelos movimentos contrários que se ordenam em torno de um ou vários eixos, seguindo as leis da rítmica e não mais da geometria. Os tratamentos fisionômicos enfatizam-se na expressão espiritual do êxtase do patético, ou demonstram sofrimento e tensão dramática. Nas últimas décadas dos setecentos, inicia-se o domínio rococó, estilo que valoriza o requinte, a delicadeza e a elegância. As imagens com atitudes graciosas, galantes e sutilmente sensuais são trabalhadas em policromia suave e leve apresentando, algumas vezes, trajes do século XVIII. Em Minas, à tendência da imaginária Rococó é assimilada dramatização barroca, o que não ocorre, porém, nos oratórios desse período, que já ganham, decorações e policromia em tons alegres com predominância de motivos florais, rendilhados e rocalhas de estrutura escorregadia e assimétrica. A partir dos meados do século XIX evidencia-se em minas Gerais a influência neoclássica; e a imaginária acompanha a nova corrente estilística. Passam as imagens a representar ar mais sóbrio, racional, com postura estática, harmonizando-se pelo equilíbrio. A figura se organiza de forma simétrica seguindo os planos clássicos. A expressão fisionômica comunica uma suave expressividade e uma beleza serena.
269 Contudo, de uma “variante da pedra sabão, a branca, foram feitas as imagens dos assim chamados oratórios Dom João V”. In ETZEL, Eduardo. Imagem Sacra Brasileira.. p 40
270 Fase na qual o suporte ganha forma escultórica e em seguida é lixado para a correção de arestas. No caso das imagens de olhos de vidro que só se identificaram no Brasil por volta dos setecentos um corte longitudinal separa a cabeça da face possibilitando a edocação dos olhos, posteriormente as duas partes são unidas e coladas, ficando a função encoberta pelas etapas seguintes.
271 Preparação para o douramento e pintura. A imagem é completamente revestida por camadas sucessivas de gesso e cola, e, após isso, se previsto o douramento, óxido de ferro dissolvido em cola (bolo armênico em mordente) para dar fixação ao ouro.
272 Aplicação de ouro geralmente em filetes sobre o aparelho. A douração pode ser total ou parcial. 273 Pintura sobre a douração e/ou sobre o aparelho para compor a indumentária. 274 Pintura sobre camadas do aparelho, reservada às partes não vestidas da imagem (rosto e membros). 275 Os desenhos são obtidos pela retirada de tinta do panejamento por meio de um estilete de modo a
tornar aparente, nas partes desejadas, o revestimento em ouro (esgrafiado). Há ainda técnicas de decoração utilizadas durante o aparelhamento e o douramento ao criar no aparelho desenhos em auto-relevo (postilhamento) ou em baixo-relevo (punção).
78
imaginária tradicional, existem ainda os curiosos santos de roca e de pau oco276. As
imagens de roca277 são verdadeiros “santos manequins” de estrutura simplificada,
articulada, coberta por vestes, acessórios naturais, perucas de cabelo natural e com
estatura próxima da humana. Originariamente usado no teatro cristão da Idade Média,
esse tipo de imaginária foi introduzido e popularizado na colônia. Quanto ao tema, a
imaginária mineira “circunscreve-se em três ciclos principais: dos santos (hagiológico),
de Jesus Cristo (cristológico), e de Nossa Senhora (mariológico)”278.
É importante ressaltar que há muitas ocorrências que mesclam elementos das
tendências acima descritas para a arquitetura, a escultura, a talha, a pintura e a
imaginária produzidas durante o ciclo barroco-rococó em Minas Gerais. Isso demonstra
que o “dinamismo é uma palavra-chave para a compreensão da arte barroca”279. A obra
barroca “se relacionada à arquitetura, à escultura e à pintura; como metáfora ou alegoria
plástica (...) é um teatro de princípios teológico-políticos (...) como se pode ver nos
altares (...) da Igreja do Pilar, de Ouro Preto”280. Verificaremos a seguir como a
ornamentação interna desse templo demonstra a estética do ciclo barroco-rococó em
Minas Gerais, e como as alegorias representadas nessas obras expressam os valores e
ideais do estado, da igreja e da sociedade.
276 Imagens de porte médio esculpidas em madeira que, tendo as costas abertas em um vão para evitar que
rachaduras por variação climática, tinham esse espaço utilizado para o contrabando de ouro. 277 Luxuosamente vestidas com mantos de fios de ouro e pedras cravejadas, com avantajadas coroas
trabalhadas em metais nobres, desfilavam em andares floridos como atores. Tenta-se reproduzir a anatomia humana e alguns aspectos como articulação e policromia dão caráter plástico à imagem de roca. Sua composição estrutural apresenta o seguinte esquema: imagens cujo corpo é composto por tiras gradeadas imita o contorno atômico; imagens com o tórax simplificado e o restante do corpo em ripas gradeadas; imagens de corpo inteiro mas de anatomia simplificada; imagens de corpo inteiro com vestes esboçadas. A designação genérica de “Santo de Roca” deve-se ao fato de sua indumentária ser de panos reais tecidos no instrumento de reino nobre (a roca) ou pelos gradeados se familiarizarem com uma espécie de rede para pesca.
278 ALVES, Célio Macedo. Um Estudo Iconográfico. In: COELHO, Beatriz (org). Devoção e Arte: Imaginária Religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Edusp, 2005. pp 69-121. p 69.
279 MAGALHÃES, Roberto Carvalho de. O Grande Livro da Arte. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p 466 280 HANSEN, João Adolfo. Teatro da memória: monumento barroco e retórica. In: Revista do IFAC.
Universidade Federal de Ouro Preto. Nº 2, dezembro de 1995. pp 40-54
79
2.3.2 – Teatro Sacro: alegorias de um discurso teológico-político.
Levando-se em consideração que o barroco foi um fenômeno urbano no qual a
igreja se tornou um teatro sacro, que os atos litúrgicos assumiram aspecto espetaculoso
e os rituais e festas afirmavam a hierarquia social, que a devoção e importância de um
povoado se media pela suntuosidade ornamental de sua igreja matriz, que a opulência
do ouro era considerada uma dádiva divina e, que a glória de deus era a glória do
estado; percebe-se que a crença no dogma se relaciona com a manutenção do poder.
Fundem-se num só discurso princípios da teologia e da política veiculados pela imagem
e pela alegoria através das linguagens escrita, plástica e teatral. O processo de
construção dessa alegoria do fausto (o templo) se identifica com as intenções que
permeiam a festa barroca e a pública escritura utilizada como registro dos exemplares e
memoráveis acontecimentos do Triunfo Eucarístico.
Procurar-se-á apontar as imagens e alegorias existentes na ornamentação do
templo do Pilar que foram utilizadas para a difusão de um discurso teológico-político
através da pompa e ostensividade da arte barroca joanina apontando semelhanças
discursivas entre a festa, o texto e o templo. Afinal, se “Dom João V foi o rei da euforia
do ouro (...) e o Conde das Galvêas o embaixador de sua pompa (...), o autor do Triunfo
Eucarístico foi o cronista da embriaguez mineradora, produtos os três de um mesmo
instante de êxtase do povo luso”281.
281 ÁVILA, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas Gerais. vol. I, p 105
80
A classificação geral dos retábulos utilizados para a ornamentação interna dos
templos durante o ciclo barroco-rococó em Minas Gerais denomina como segunda fase
o estilo joanino, ou Dom João V. Devemos aqui pontuar o fato de que os trabalhos de
construção e ornamentação do templo foram realizados no período compreendido entre
1728 e 1848282, contudo, a Igreja matriz de nossa Senhora do Pilar apresenta
características internas predominantemente joaninas devido ao período de execução dos
trabalhos de talha e da utilização de mão de obra especializada essencialmente
portuguesa no que diz respeito aos arrematantes, mestres de obra e entalhadores. O
período joanino é o mais carregado e esplendoroso momento do ciclo barroco-rococó
em Minas Gerais. A arte que se produziu nesse momento é tão inebriada, ostensiva e
representativa em aspectos religiosos e políticos quanto as solenidades do Triunfo
Eucarístico e quanto a pública escritura utilizada para registrar o evento.
282 Houve uma antiga capela de Nossa Senhora do Pilar feita em madeira e taipa no local do atual templo;
o qual foi construído sob administração da Irmandade do Santíssimo Sacramento com projeto atribuído ao sargento-mor e engenheiro Pedro Gomes Chaves, sendo João Fernandes de Oliveira o arrematante da obra principal. A construção em adobes e taipa foi iniciada pela nave a partir de 1728-30. Foi demolida a antiga capela que servia como capela-mor provisória da atual em 1731 (ocasião em que o Santíssimo Sacramento e Imagens foram trasladados para a Capela do Rosário dos pretos). A estrutura arquitetônica do novo templo foi concluída em 1733 (ano do Triunfo Eucarístico). Entre 1735-7 a ornamentação da nave foi realizada integrando seis altares e dois púlpitos laterais em talha dourada. Os altares Santo Antônio e NS Dores (1º e 3º do Evangelho) antecedem aos outros quatro da nave e talvez sejam da capela primitiva, mas com os coroamentos refeitos por Antônio Francisco Pombal. Não há documentação a respeito desses altares laterais e púlpitos, os quais foram construídos por confrarias particulares. Todo esse conjunto deve se situar no período compreendido entre 1730 e 1740. A reconstrução e talha da capela-mor entre 1741-54 foi um período conturbado pela falência do arrematante Antônio Francisco Pombal em 1744 e morte do entalhador Francisco Xavier de Brito em 1751, ano em que foi concluído o arco-cruzeiro. Reconstrução da abóbada da capela mor em 1770. Os trabalhos de pintura,marmorização e douramento perduraram até 1774 e são atribuídos a João de Carvalhais e a Bernardo Pires. Em 1781 foi feito reparo urgente em uma torre. Em 1818 uma parede ameaça ruir e em 1825 houve substituição da parede de taipa do lado da Epístola por alvenaria de pedra. Em 1848 foram terminados o frontispício e a torre do Evangelho. A fachada da igreja ganha a configuração atual com aspecto neoclássico. O imóvel foi objeto de tombamento individual pelo IPHAN, conforme Processo nº 75-T Inscrição nº 246 - Livro de Belas Artes, Fl. 42, em data de 8 de setembro de 1939. Entre 1952-65 houve obras de restauração realizadas pelo IPHAN (recuperação dos trabalhos de douramento e pintura). O Museu de Arte Sacra foi instalado em espaço adaptado no porão sob a sacristia no ano 2000 e reúne peças de escultura, prataria e alfaias pertencentes à paróquia. Dados coligidos a partir de: Fundação João Pinheiro. Dossiê de Restauração. Plano de Conservação, Valorização e Desenvolvimento de Ouro Preto e Mariana. 1973/1975; BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v I e II; e BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais; e de informações fornecidas pela paróquia.
81
Quanto aos aspectos técnicos, a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar
apresenta estrutura arquitetônica caracterizada pela justaposição de duas formas
quadrangulares: a primeira correspondente à nave ou corpo da igreja; a segunda à
capela-mor e sacristia (com consistório no segundo pavimento), cujo acesso é feito por
corredores laterais encimados pelas tribunas da capela mor. A forma poligonal da nave
advém de uma estrutura postiça de madeira com pesados esteios que suportam a
armação dos retábulos e das tribunas prolongando-se até a cobertura. Essa forma
confere à nave um aspecto elíptico que cria maior efeito de movimento para o conjunto
da ornamentação interna. Entre essa estrutura de madeira e as paredes de alvenaria
encontram-se, no primeiro pavimento, passagens irregulares que se comunicam pela
parte posterior com os corredores que levam à sacristia e permitem também o acesso aos
púlpitos. Os retábulos e púlpitos apresentam características do joanino inicial, são
profusamente dourados e excessivamente ornados. O forro da nave é composto por
quinze painéis representando personagens e temas do Antigo Testamento, os quais se
integram à estrutura arquitetônica da cimalha por caixotões curvilíneos e retilíneos com
molduras em marmorizados e faiscados. As paredes são totalmente revestidas por
madeira entalhada, policromada e dourada. A talha da capela-mor inaugura em Minas o
estilo de Francisco Xavier de Brito, já num momento considerado como estilo joanino
evoluído. O trabalho demonstra nítida preocupação arquitetônica e a trama estrutural do
retábulo é organizada em função da tribuna central. Apliques e painéis de talha integram
o retábulo-mor aos painéis parietais de pintura a óleo283. Um painel circular no centro da
abóbada representa a Última Ceia. Integradas à talha das sobrevergas das tribunas da
capela-mor, figuras representam as Virtudes.
283 quatro painéis com os quatro evangelistas (registro parietal superior, nível das tribunas laterais); um
painel representando coluna com trigo e outro com arvore ceifada envolvida por ramos de uva (registro parietal intermediário); e quatro painéis para as estações do ano (registro parietal inferior)
82
No que diz respeito ao conceito de teatro sacro, notemos que a estrutura
arquitetônica do templo se integrada à talha, à pintura e à imaginária; confere ao edifício
um aspecto interno verdadeiramente teatral. Além do fato de a montagem da estrutura
dos altares obedecer a técnicas muito semelhantes às técnicas de cenografia teatral,
notemos que a utilização de recursos como a marmorização (pintura sobre madeira para
cria efeito de mármore) cria uma ambientação ainda mais cênica. Percebemos também o
douramento cria o efeito ostensivo de riqueza e esplendor, mas é um artifício de fina
camada de ouro sobre madeira. Às ilusões não se conferia o caráter de falsidade, pois já
lhes era dado o caráter de representação. Complementam a cena litúrgica os diversos e
luxuosos objetos de cerimoniais284 que ‘davam ao culto aspecto mais digno e elevado’.
Também os retábulos joaninos muito se assemelham às estruturas utilizadas como
ornato para as bocas de cena dos palcos, encimados por dossel que se abre em
cortinados para deixar entrever o camarim no qual se entronizam imagens do sagrado. O
ritual se confunde com o espetáculo. A cena determina os atos de uma sociedade que
afirma suas relações nesse espaço. Os espaços determinados pelo projeto arquitetônico
definem usos e classes: a nave é destinada aos fiéis, que reunidos em irmandades se
posicionavam em frente ao altar de seu padroeiro. Como nos camarotes de um teatro, os
mais nobres ocupavam as tribunas superiores da nave, enquanto o povo se posicionava
no piso térreo. E como por coxias de um palco, o sacerdote saía da capela mor, passava
pelos corredores irregulares que eram camuflados pela ornamentação da nave e aparecia
no púlpito como num ato de lúdica interpretação durante um espetáculo. A fala
284 Prataria, imagens e alfaias pertencentes à paróquia e hoje reunidos no Museu de Arte Sacra: turíbulos,
navetas, âmbulas, cálices, patenas, galhetas, sacras, salvas, caldeiras e asperges, espivitadeira, varas e cruzes processionais, custódias, ostensórios, palmas, castiçais e tocheiros, recipientes para os santos óleos, esquife, pedras de penitencia, paramentos, e a mesa de Eça utilizada nas exéquias (de corpo ausente) de D João V. Num dos corredores laterais à capela mor podem hoje ser observados curiosos quadros representando: um mulato como demônio; a morte (esqueleto acompanhado por atributos macabros como ampulheta, pira, foice, tíbias cruzadas); a ressurreição do cristo; e a fama (figura feminina).
83
eloqüente do sacerdote era iluminada pelo Divino Espírito Santo que, representado no
abaixa-voz do púlpito, pairava sobre sua cabeça como pairara antes sobre a do Cristo no
Rio Jordão. O espaço anterior à nave (entre a porta central da igreja, o tapa-vento e o
arco que sustenta a sacada do coro) é dividido em dois pavimentos: o segundo é o
espaço do coro e dos músicos; o primeiro é denominado nártex e consiste no espaço no
qual deveriam permanecer os catecúmenos (ainda em preparação para o batismo) e no
qual se instala o batistério (normalmente no lado do evangelho). O arco cruzeiro divide
os espaços da nave e da capela-mor, a qual é destinada ao clero e aos irmãos do
Santíssimo Sacramento. A irmandade do Pilar se posicionaria no espaço compreendido
entre o arco-cruzeiro e a mesa de comunhão (nome que se dá à parte central da cercada
que divide a nave da igreja em dois espaços, local onde é ministrado o sacramento). É
mister observar que tais posições definem uma hierarquia social. O uso dos espaços no
interior do templo demonstra ascendência social e espiritual. No que diz respeito à
ascendência social, observemos que as tribunas superiores à nave colocam em evidência
os nobres, que vêem o povo de cima. Quanto à ascendência espiritual, notemos que, ao
entrar pela porta do templo, classificam-se os não batizados (no nartex), os fiéis (na
nave), o clero e os ministros da eucaristia (irmos do Santíssimo) na capela-mor. O fiel
comum, não iniciado na prática do auxílio dos rituais, apenas adentraria a capela mor
nas circunstancias dos sacramentos da vida adulta: o casamento ou a ordenação clerical.
Ainda se faz importante ressaltar o sentido simbólico que tem o espaço destinado aos
fiéis leigos, a nave. O termo nave significa nau, embarcação. Remete à transcendência
do material para o espiritual na medida em que representa a igreja como condução do
homem ao paraíso após a morte e o juízo final. Durante o ritual, a profusa utilização de
música, de incenso, de iluminação a velas que tremulavam com o vento conferindo
maior movimento às formas da ornamentação, das litanias em latim, do efeito cênico
84
proporcionado pela ornamentação do templo e pela pompa da liturgia, criam o mais
envolvente arrebatamento dos sentidos: a visão vê os portais do paraíso, os anjos e
santos; o olfato sente a pureza do incenso; os ouvidos percebem os coros dos anjos; o
paladar comunga a paixão do cristo, a redenção dos pecados, a ressurreição da carne, a
vida eterna ao lado de deus pai todo poderoso; as mãos rendem graças e súplicas a deus,
o tato conta o rosário. Também a morte se fazia presente durante os rituais pelo cheiro
dos corpos em putrefação nas igrejas onde ocorriam velórios e sepultamentos em
campas internas que ocupavam todo o piso da nave e da capela-mor. A riqueza, a
exuberância e o impacto dessa cena tendem a envolver o homem barroco, procura nele
despertar a mais profunda emoção para que a fé seja instituída juntamente com a ordem
que se estabelece no rito. Esse espaço cênico produz uma impressão naqueles que se
encontram ali inseridos; e há uma clara demonstração dos extratos que compõem a
sociedade e um evidente destaque para aqueles aos quais a sociedade confere destaque
por sua formação religiosa, ou por seus títulos de nobreza. “’É nesse teatro que as
pessoas encenam, então, o papel que cada uma delas assume dentro da rígida e
hierarquizada sociedade colonial”285. Pontuaremos a seguir o significado de algumas
alegorias existentes na ornamentação do templo.
Observemos que o altar-mor é estruturado por colunas salomônicas (que
remetem às colunas do templo de Salomão, representadas no baldaquino do vaticano e
indicam virilidade e força). O coroamento do altar afirma o dogma da Santíssima
Trindade, representado por meio de uma alegoria composta por três figuras dispostas na
forma de um triangulo eqüilátero formado em sua base pelas imagens do cristo (à
esquerda) e de Deus pai (à direita), e tendo ao vértice superior a imagem centralizada de
uma pomba com raios de luz (representando o espírito santo). Cristo é representado
285 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 72
85
como homem jovem com os estigmas da paixão e sustendo a cruz do martírio; Deus Pai
é representado como homem velho de barbas longas (indicando experiência e
sabedoria), com triangulo sobre a cabeça (remetendo à perfeição dessa forma
geométrica) e um cetro à mão esquerda (representado sua majestade celestial)286. A
porta do sacrário (no qual ficam guarnecidas as hóstias consagradas depositadas em uma
âmbula) apresenta-se como um pequeno painel de talha no qual é representado o tema
da Ressurreição do Cristo (com imagem do cristo envolvido pelo perizônio ascendendo
do sepulcro com a cruz nas mãos, ao lado do sepulcro, madalena vê a tumba vazia). No
topo do trono do camarim há uma imagem do Cristo Ressurreto, na base do trono,
acima do sacrário, a imagem da Senhora do Pilar. O retábulo é profusamente ornado
com anjos de diversos tipos, dentre os quais podemos destacar: anunciantes (anjos de
corpo inteiro com aspecto jovem e vestimenta que se posicionam no coroamento do
altar sobre o dossel e sobre os arcos interrompidos apontando para o trono do altar ou
para a alegoria da trindade); putis (ou no singular, puto, não tem asas, são criancinhas de
colo); adoradores (anjos vestidos de aparência adulta ajoelhados e com as mãos postas
em prece); querubins (cabeças de anjos com um par de asas cada, representam maior
pureza por apresentarem menor porção de matéria); atlantes (anjos de feição adulta com
vestimenta e posicionados sob as colunas do altar como se sustentasse seu peso sobre as
costas, remetem a Atlas). A talha do altar mor parece se alastrar pelas paredes na
capela-mor integrando o entablamento do altar à estrutura das verdadeiras cimalhas
laterais, e integrando a ornamentação do retábulo à das paredes laterais; nas quais se
encontram painéis de talha287 e de pintura.
286 Por vezes a figura de Deus Pai, o Criador, é também representada com a orbi em uma das mãos
(remetendo à criação divina). 287 Os painéis de talha já apresentam algumas rocalhas (elementos do rococó, posteriores à ornamentação
joanina do templo mas intergrados harmonicamente ao conjunto).
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Os painéis de pintura existentes nas paredes da capela-mor são dispostos,
conforme as regras do decoro, em nível ascendente de acordo com o teor dos temas. Os
elementos mundanos abaixo: as quatro estações (primavera, verão, outono e inverno)
representam a passagem do tempo e a vanicidade da vida terrena. Os painéis que
representam os quatro evangelistas288 (João, Lucas, Marcos e Mateus) são posicionados
entre das tribunas da capela mor. Os evangelistas remetem à difusão da palavra do
Senhor (que também é a palavra da salvação) e são exemplos da salvação pela Fé.
Devemos ainda lembrar que João remete também à escatologia (aos fins últimos do ser
humano como a morte, o juízo, o purgatório, o inferno e o paraíso), uma vez que é
também autor do livro do Apocalipse (ou livro dos sete selos). No mesmo nível em que
se encontram os painéis dos evangelistas há dois outros painéis. Um deles representa
ramos de trigo sobre uma coluna: remete à eucaristia por trazer o trigo, do qual é feito o
pão, que representa o corpo de cristo; e à força e à segurança pelo sacramento, por trazer
a coluna. O outro painel representa uma árvore ceifada (que remete à morte) envolvida
por ramos de uva (remetendo ao vinho e, logo, a sangue de cristo). Nesses painéis o
corpo e o sangue de cristo se constituem como a força e a segurança da crença no
sacramento se sobrepondo à morte; o dogma do triunfa pela eucaristia. No nível mais
alto da capela mor, um painel circular aplicado no centro do forro (em abóbada de
aresta) representa a Última Ceia, momento em que Cristo instituiu o rito eucarístico.
288 Os atributos de São João Evangelista “são a águia, o livro dos evangelhos e a pena, a caldeira de óleo e
a palma do paraíso. (...) A águia simboliza a ascensão aos céus”. São Lucas, patrono dos médicos e pintores, “tem como atributos o boi, com ou sem asas, o livro dos Evangelhos e um quando com a imagem da Virgem. O boi simboliza o sacrifício de Cristo”, e o quadro remete à tradição de que ele “foi o primeiro pintor da Virgem”. São Marcos “tem como atributos o livro, a pena, o leão alado e o livro dos evangelhos. O leão simboliza Cristo na ressurreição”. São Mateus tem como atributos “um anjo ou um homem alado, o livro dos evangelhos, uma pena e uma lança”; “exercia a profissão de cobrador de impostos (...) quando Cristo o convidou para se apóstolo. (...) é invocado contra o pecado capital da avareza” Conforme CUNHA, Maria José Assunção da. Iconografia Cristã. Ouro Preto: UFOP/IAC, 1993. p 47
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O arco-cruzeiro é encimado por uma tarja ladeada por dois anjos anunciantes
(um a cada lado) que sustentam acima dela (da tarja) uma coroa (a qual representa a
majestade celestial de Maria e sua coroação pelos anjos). A tarja tem ao centro uma
cartela com a imagem de Nossa Senhora do Pilar sustendo na mão esquerda o Menino
Jesus e na Mão direita uma custódia com o Santíssimo Sacramento. A iconografia dessa
tarja representa o brasão da Irmandade de Nossa Senhora do Pilar, a qual que é a
padroeira do templo e recebe destaque pelo posicionamento de suas armas no topo do
arco; e remete também à irmandade do Santíssimo Sacramento pela presença da
custódia com a eucaristia. E devemos aqui lembrar que a “Irmandade do Santíssimo
Sacramento, que congregava os ‘homens bons’ das principais vilas, foi uma das mais
poderosas daquele período”289. A Invocação à Maria se divide em: mistérios da vida de
Maria290; graças e privilégios291; necessidades dos homens292; lugares293; e
circunstâncias diversas294. A devoção a Nossa Senhora do Pilar é uma invocação que
remete ao local de sua aparição, “teve origem na Espanha e, depois da Restauração, se
difundiu em Portugal”295. Segundo a tradição, “São Tiago Menor, após o martírio de
Santo Estevão, esmorecido pelas perseguições aos cristãos, foi pregar o Evangelho na
Espanha. A Virgem apareceu-lhe sobre um pilar, cercada de anjos, confortou-o e pediu-
lhe que edificasse uma igreja a ela dedicada”296.
289 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 72 290 Nossa Senhora da Angústia ou das Dores, da Anunciação, da Assunção ou da Glória, do Bom parto ou
do Bom Sucesso, da Imaculada Conceição, do Desterro ou da Fuga para o Egito, da Expectação do parto ou do Ó, da Piedade, da purificação (da Luz, da Candelária ou das Candeias), da Soledade, da Visitação.
291 Nossa Senhora dos Anjos ou da Porciúncula, Madre de Deus, Mãe dos Homens. 292 Nossa Senhora da Ajuda ou do Amparo, da Boa Morte, da Boa Viagem ou dos Navegantes, das
Mercês, das Necessidades, dos Remédios, da Paz. 293 Nossa Senhora de Belém, do Carmo, da Lapa, do Montserrate, de Nazaré, da Penha de França, do
Pilar, de Fátima, de Lourdes. 294 Nossa Senhora Divina Pastora, das Neves, do Rosário ou de Pompéia, do Terço. 295 CUNHA, Maria José Assunção da. Iconografia Cristã. Ouro Preto: UFOP/IAC, 1993. p 30 296 Idem. p 30
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As hagiografias (histórias sobre a vida dos santos) “estão entre as narrativas da
cultura ibérica mais difundidas no Brasil, oficialmente ou através da religiosidade leiga.
Sobrelevam aspectos de devoção (...) e terão sido os únicos livros que, durante séculos,
muita gente leu”297. Nesse sentido, os retábulos da nave trazem as representações de
Nosso Senhor dos Passos, Sant’Ana, e São Miguel (no lado da epístola); e de Nossa
Senhora das Dores, Nossa Senhora do Rosário, e Santo Antônio (no lado do evangelho).
O Senhor dos Passos representa o Cristo carregando a cruz às costas quando da sua
subida para o martírio no monte calvário. Insere-se no tema cristológico da Paixão,
muito acentuado no culto religioso durante o século XVIII. No que diz respeito à
utilização e fatura das imagens do Senhor dos Passos em Minas Gerais, notemos que
“trata-se de figuras processionais, por isso mesmo de roca e articuladas, que saem em
cima de andores”298. Presentes em Minas desde o princípio do século XVIII, as
irmandades do Senhor dos Passos “eram associações estritamente masculinas e restritas
aos brancos”299, ricos, e muitas vezes aos militares. Juntamente com o Senado da
Câmara, eram responsáveis pelas obras de construção e ornamentação das capelas dos
passos300. O culto a Santana “tem uma ligação estreita com a formação de Minas Gerais.
Chegou com os bandeirantes, em seus oratórios ambulantes, e logo se instalou nas
297 Ibidem. p 11 298 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 84 299 Idem. p 84 300 Conjunto de pequenas capelas com representações da via sacra e inseridas na malha urbana da vila de
acordo com o trajeto das procissões, levava para o urbanismo colonial a teatralidade do ritual religioso. A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos foi constituída em Vila Rica aos 20/5/1715. Em 1717 a Procissão dos Passos já era realizada no domingo de ramos. As capelas dos passos foram construídas a partir de 1728 com pagamentos entre 1728-34 a Manoel Francisco Lisboa pela fatura dos Passos da rua. Em 1786 a irmandade decidiu reconstruir as capelas em local mais conveniente. Foi o 1º passo reconstruído entre 1788-92 em obra arrematada por Antônio de Barros. Estrutura autônoma e isolada. Encontro do Cristo com Verônica representado em painel pintado por Athaíde (tela levada para o Museu de Ate Sacra do Pilar). Também o Capitão-mor José Bento Soares recebeu pagamentos em 1843 pela obra do Passo de Antônio Dias (na rua Bernardo de Vasconcelos, antiga rua Direita de Antônio Dias). Dados coligidos a partir de: Fundação João Pinheiro. Dossiê de Restauração. Plano de Conservação, Valorização e Desenvolvimento de Ouro Preto e Mariana. 1973/1975. / Simões, Josanne Guerra & Furtado, Júnia Ferreira. Ouro Preto Revisitada: roteiro histórico de seus monumentos esquecidos. 1981 / BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v II / e www.iphan.gov.br
89
igrejas matrizes. (...) O culto à mãe da virgem é bem antigo.”301 Na Igreja Oriental, em
Constantinopla, foram edificados em sua honra dois templos nos anos 550 e 705. Na
Igreja Ocidental “o culto a Santana ganharia relevo desde meados do século VIII,
segundo consta no livro pontifical do tempo de São Leão III, por mando do qual pintou-
se na basílica de São Pedro a história de São Joaquim e Santana”302. O Culto a Santana é
associado “à caridade e à cura de doenças (...) coube às confrarias de Santana a
construção de casas destinadas a servir como hospitais e asilos para os pobres, no
momento em que as misericórdias não haviam se fixado na região do ouro”303. Quanto
ao modelo iconográfico304, Santana Mestra é representada assentada em uma cadeira,
tendo a seu lado esquerdo a Nossa Senhora menina, cujo olhar fixa-se atentamente no
livro apoiado no colo da mãe. Associadas à devoção a Santana estão as devoções a São
Joaquim e São José, que formam com Maria e Cristo a Sagrada Família. Por sua vez, a
devoção a São Miguel e Almas está “vinculada às irmandades para resgate das almas do
purgatório (...) sua importância se igualava às irmandades do santíssimo”305. A sua
representação em Minas Gerais está inserida numa “tradição iconográfica que resulta na
forma de mesclar duas cenas em uma só: a pesagem das almas [psicostasia] e a peleja
contra o demônio”306. Por referência à psicostasia traz geralmente segura na mão
esquerda uma balança; e pela alusão ao Apocalipse (12:7-8) aparece vestido como
guerreiro “portando uma lança (às vezes trocada por uma espada), com a qual desfere o
golpe mortal contra o demônio, que vem pisoteado a seus pés”307. Por uma “mudança de
sentimento por parte dos Irmãos das Almas, que começam a deixar-se sensibilizar pelo
301 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 74 302 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 74 303 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 74 304 Santana Mestra é a variante mais recorrente em Minas Gerais. A outra variante, a Santana Guia
(apresenta a Santa de pé trazendo Maria menina ao colo ou guiada pela mão) é pouco comum em Minas Gerais, mas recorrente no nordeste brasileiro. Conforme ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 75
305 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 73 306 Idem. 307 Ibidem.
90
tema relacionado à Paixão de Cristo”308 a partir do final do século XVIII, pode-se
perceber a presença da imagem do Cristo Crucificado ocupando o trono principal do
retábulo, deslocando a imagem de São Miguel para a borda do camarim na altura do
sacrário. A devoção a Nossa Senhora das Dores se insere nos ciclos que procuram
lembrar os sofrimentos da Virgem e é um dos mais recentes temas mariológicos, “sendo
que somente no início do século XVIII o culto veio a obter certa singularidade (...)
como pública e específica desde que o Papa Benedito XIII, em 22 de agosto de 1727.
ordenou aos católicos rezar sobre as sete Dores de Nossa Senhora”309. Em Portugal o
culto foi instituído em 1761 na cidade de Braga pela Congregação do Oratório Divino.
É representada de pé, “com vestimenta roxa, tendo seu peito trespassado por sete
punhais às vezes substituídos por apenas um punhal ou por um diadema com sete
estrelas”310. A imagem da Senhora das Dores é entronizada no retábulo anteriormente
ocupado311 pela Irmandade de Nossa Senhora da Conceição312. Temos aqui um caso de
re-ocupação do retábulo ou de substituição da devoção por parte do grupo. Posicionada
acima do sacrário desse retábulo há também uma imagem do “Menino Deus
abençoando o mundo”313 (criança nua representando Jesus sobre a orbi), a qual se insere
no ciclo cristológico por representar Jesus com imagem de sua infância. No que diz
respeito a Nossa Senhora do Rosário (e os santos negros São Benedito, Santa Efigênia,
Santo Elesbão e Santo Antonio do Noto), o culto chega às minas “ao mesmo tempo em
308 Idem Ibidem. p 74 309 Ibidem Ibidem. p 81 – A saber: “1ª A profecia de Simeão: uma espada de dor trespassará sua alma”; 2ª
a fuga para o Egito; 3ª Perda do Menino Jesus no Templo; 4ª Encontro da Virgem com Jesus a caminho do calvário; 5ª Morte de Jesus; 6ª Quando recebe o corpo de Jesus morto (a Piedade); 7ª a Soledade de Nossa Senhora após o enterro de Jesus.” ALVES, Célio. p 92
310 Ibidem ibidem. p 81 311 Conforme apontado em NASCIMENTO, Adalgisa Arantes do. Introdução ao Barroco Mineiro:
cultura barroca e manifestações do rococó em Minas Gerais – Belo Horizonte: Crisálida, 2006. p 14 312 a qual desapareceu ainda na primeira metade do século XVIII, mas que deixou sua existência
registrada no cortejo do Triunfo Eucarístico 313 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 84
91
que os santos ‘bandeirantes’ (Nossa Senhora da Conceição, Santana e São José)”314. Sua
devoção “está associada à ocupação da África pelos portugueses e foi introduzida no
Congo pelos dominicanos (...) no ano de 1570”315. O culto migrou para o Brasil através
dos navios negreiros como um “verdadeiro símbolo da redução dos africanos à religião
católica”316. Considerado uma forma superior de culto a Nossa Senhora, o Rosário “foi
instituído sob a inspiração da Virgem Maria, por São Domingos de Gusmão (...). Seu
surgimento está ligado a um fato histórico concreto: a investida dos cristãos contra os
hereges de Albi, na França”317. As bases da devoção foram lançadas pelo dominicano
Álamo de Rupe por volta de 1470. O também dominicano Papa Pio V “atribuiu às
virtudes milagrosas do Rosário a vitória das forças cristãs sobre os turcos, na famosa
batalha de Lepanto, ocorrida em 7 de outubro de 1571”318. Após o século XV o rosário
assume sua forma atual de meditação319. Santo Antônio de Lisboa aparece
contemplativo carregando o Menino Jesus, “cena inspirada em uma visão milagrosa, em
que o menino Jesus aparece ao santo, roçando-lhe carinhosamente o rosto e, às vezes
entregando-lhe um ramo de açucenas, símbolo da pureza e castidade”320. Vivenciou sua
vocação religiosa fora de Portugal e faleceu em Pádua no ano de 1231, o sucesso da
devoção de implantou em Lisboa e cresceu no século XV após a chegada de uma
relíquia do Santo. São a ele atribuídos os poderes de “proteger as casas e as famílias, de
advogar causas justas e menos justas junto à Virgem e ao Menino Jesus; de interceder
pelas almas do purgatório (...) de protetor do amor e do casamento”321. Deve-se ainda
314 Idem. 315 Ibidem. 316 HORNAERT, Eduardo (Org). História da Igreja no Brasil. p 384 317 ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 70 318 Idem. 319 “com os quinze mistérios (cinco gozosos, cinco dolorosos e cinco gloriosos; os quinze Padre-nossos,
as 150 Ave-Marias e as Litanias). (...) o Papa Joao Paulo II instituiu os denominados ‘mistérios Luminosos’, elevando paa vinte o número dos mistérios” ALVES, Célio Macedo. Op. Cit. p 70; 91.
320 Ibidem. p 73 321 Idem Ibidem. p 73
92
apontar o fato de que a religiosidade leiga atribuiu ao culto dedicado aos santos e à
Virgem Maria características bastante peculiares. O santo “compartilha ‘humanamente’
dos temores, aspirações e alegrias dos fiéis. Em troca, recebe imagens, jóias, altares e
festas. (...) Santo e ouro, eis a mistura explosiva que forma as Minas Gerais”322.
As alegorias nos sacrários dos altares da nave remetem à eucaristia pela
representação do trigo e da uva. Representa-se também o cordeiro deitado sobre o livro
dos sete selos (Apocalipse) remetendo à segunda vinda de Cristo (durante o juízo final).
A referência à primeira vinda do cristo (para a redenção dos pecados da humanidade),
pode ser observada no painel central do forro da nave, no qual o cordeiro é representado
deitado sobre a cruz (símbolo do martírio do Cristo) 323. Ainda na nave, sustentados por
hastes que se integram à ornamentação, projetam-se acima dos retábulos laterais até o
nível das tribunas seis pássaros de cujos bicos pendem lustres324. Por sua morfologia
indefinida, a tais aves já foram atribuídos os sentidos de fênix, pelicano, e/ou águia.
Observemos aqui a semelhança dessa imagem com alguns dos atributos de São João
Evangelista: “a águia, o livro dos evangelhos e a pena, a caldeira de óleo e a palma do
paraíso. (...) A águia simboliza a ascensão aos céus”325. A João são atribuídos o Quarto
Evangelho, o Apocalipse e três Cartas. Notemos que muitas vezes a caldeira de óleo tem
formato de lampadário e é trazida pelo bico da águia nas representações do evangelista,
imagem similar à dos pássaros que sustentam os lustres da nave, remetendo à
iconografia do evangelista e a seus textos no que diz respeito à palavra da salvação
(evangelho) e à escatologia (apocalipse) indicando o juízo (luz) e a ascensão aos céus
(águia). 322 Ibidem ibidem. p 69-70 323 Os demais painéis do forro da nave representam cenas do Antigo Testamento (Sodoma e Gomorra,
mulher tentando seduzir José, Judite com a cabeça de Holofernes, Sacrifício de Isac,) e os doutores da igreja (Jerônimo, Gregório, Ambrósio e Agostinho).
324 Que iluminavam a nave provocando um lúdico efeito cênico de contraste e movimento pela luz das velas incidindo sobre a talha e as imagens.
325 CUNHA, Maria José Assunção da. Iconografia Cristã. Ouro Preto: UFOP/IAC, 1993. p 47
93
Voltando à capela-mor, observemos que, no mesmo nível em que se encontra a
alegoria da Trindade (coroamento do altar mor), há dez figuras esculpidas em madeira
posicionadas sobre as vergas das tribunas das paredes laterais. Duas delas são anjos
posicionados um a cada lado, próximos ao arco cruzeiro, sustendo palmas (a palma do
paraíso representa o martírio do cristo e de sua vitória sobre a morte pela ressurreição).
As demais oito figuras são representações de Virtudes, distribuídas colocando-se quatro
a cada lado. As quatro figuras posicionadas nas sobrevergas do lado do evangelho
trazem cada qual seu atributo: uma cruz; uma âncora; três crianças; uma serpente. As
quatro figuras do lado da epístola trazem: uma espada; uma coluna; uma trombeta; e um
espelho. O termo Virtude , registrado em língua portuguesa a partir do século XIII,
deriva do termo latino “virtus, utis, ‘força corpórea; ânimo, valor, bravura, coragem;
força de alma, energia; boas qualidades morais; mérito”. Sinonímia de austeridade,
castidade, condão e faculdade e antonímia de ardil, vício, indecência e lubricidade”326;
o termo virtude tem as seguintes acepções: “qualidade daquele que se conforma com o
considerado correto e desejável (...) do ponto de vista da moral, da religião, do
comportamento social, do dever, da eficácia, etc. (...) conformidade com o Bem, com a
excelência moral ou de conduta”327. Indica “hábito adquirido ou tendência inata para as
boas ações (...) capacidade de atingir os objetivos ou os efeitos de sua atividade,
finalidade, utilização, etc com eficácia, bom rendimento, mérito, propriedade”328. Para o
platonismo e o aristotelismo é uma “propriedade inerente à particularidade de um
determinado ser, como característica própria e definidora, cuja realização consuma a
excelência ou perfeição deste ser”329. Aplicada à condição humana, “tal definição indica
que cada indivíduo possui uma virtude própria, condizente com sua natureza inata e seu
326 HOUAISS, Antonio. p 2.869-70 327 Idem. 328 Ibidem. 329 Idem ibidem.
94
papel social”330. No aristotelismo, o termo designa ainda “disposição de comportamento
adquirida por meio da vontade e do hábito, e se caracteriza por buscar o equilíbrio, a
justa medida na experiência dos afetos, em oposição a paixões extremas e
descontroladas”331. No epicurismo, empirismo e utilitarismo, é a “capacidade prudencial
e estratégica de conduzir a ação de tal forma a intensificar os prazeres e minimizar as
dores”332. No cristianismo agostinista, é definida como a “disposição para o amor,
compreendida como a essência e finalidade suprema do espírito humano.”333 A
iconologia a considera uma “representação simbólica na arte cristã”334. Em diversas
descrições medievais significa “o segundo dos cinco coros (ordens) da hierarquia dos
anjos, o qual também inclui as Dominações e as Potências”335. No platonismo as quatro
virtudes fundamentais (prudência, justiça, fortaleza e temperança) que devem orientar a
organização perfeita do Estado e da alma humana são chamadas virtudes cardeais; e
foram “incorporadas nas doutrinas teológicas cristãs e prescritas ao comportamento dos
fiéis por representarem o eixo da vida moral”336. Segundo a teologia escolástica do
catolicismo, as três graças espirituais (fé, esperança e caridade) que dirigem a alma a
Deus por Cristo são chamadas virtudes teologais ou teológicas. Entende-se por virtude
infusa “cada uma das virtudes que a alma recebe no momento do batismo
(nomeadamente, as virtudes teologais e as cardeais)” 337. Considera-se ainda que “a
memória, a inteligência e a hereditariedade fazem parte da Virtude”338. As imagens
esculpidas sobre as vergas das tribunas da capela mor da Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Pilar de Ouro Preto representam as virtudes teologais e cardinais pelo
330 Ibidem ibidem. 331 Ibidem ibidem. 332 Ibidem ibidem. 333 Ibidem ibidem. 334 Ibidem ibidem. 335 Ibidem ibidem. 336 Ibidem ibidem. 337 Ibidem ibidem. 338 CAMINO, Rizzardo da. Dicionário maçônico (1918). São Paulo: Madras, 2004. p 404
95
significado de seus atributos. As virtudes teologais são representadas pela cruz (Fé),
pela âncora (esperança), e pelas três crianças acolhidas (caridade). As virtudes cardinais
são representadas pela serpente (prudência), pela espada (justiça), pela coluna
(fortaleza), e pela trombeta associada ao espelho (temperança). A trombeta, instrumento
de sopro de grandes proporções, representa aquilo “que propala, divulga,
anunciador”339; também indica alarme, “sinal para advertir sobre ameaça de guerra ou
ataque”340; remete à fama e à virtude cardeal da prudência. O espelho pode ser
interpretado como “parcela representativa de alguma coisa, amostra (...) modelo a ser
seguido; exemplo (...) plano de boca de uma peça de artilharia (...) sinonímia de
modelo” 341; remete ao exemplarismo da cristandade lusitana. Tomando esses dois
últimos atributos (a trombeta e o espelho) e articulando-os, observemos que a
Temperança é a “virtude de quem é moderado, comedido” e dotado de “parcimônia (...)
proporção, sobriedade”342; ao passo que o temperamento é o “conjunto de traços
psicológicos e morais que determinam a índole de um indivíduo; modo de ser (...)
distanciamento de qualquer excesso (...) modo de agir (...) mistura equilibrada de
coisas”343. Ambos os termos (temperança e temperamento) derivam do anteposto latino
temper344, o qual também inclui em sua cognição vernácula os termos obtemperação
(obediência, submissão) e tempera (sinonímia de austeridade e índole). Pela têmpera
(ou mistura) dos conceitos (espelho e trombeta) se forma a alegoria da temperança
trazendo o espelho como representação do modelo exemplar cristão de difusão da Fé
mesmo que sob o temor das armas. Fundidos a prudência, a fama, o exemplo e o
modelo, instaura-se entre as virtudes a definição da índole cristã e austera que
339 HOUAISS, Antonio. p 2.775 340 Idem. 341 Ibidem. p 1.227 342 Idem ibidem. p 2689-90 343 Ibidem ibidem. 344 Ibidem ibidem.
96
caracteriza o Estado Português. Portanto, nesse caso a temperança resulta do significado
alegórico que articula a obtemperação ao dogma, a organização perfeita do Estado e da
alma humana pelos eixos da vida moral, e as graças espirituais que dirigem a alma a
Deus por Cristo. Devemos ainda lembrar que, na teosófica mistura dos eruditos
florentinos, a hierarquia celestial das Virtudes correspondia à hierarquia poética de Clio,
e significava o ‘desejo de glória’345.
As imagens e alegorias apresentadas no templo evidenciam ideais da contra-
refoma afirmando os dogmas, as doutrinas, o papel intercessor dos anjos e dos santos, e
o papel devocional da imagem. Observamos também o acentuado aspecto de defesa dos
sacramentos; a predileção pelo tema cristológico (nascimento, infância, vida pública,
paixão, morte e ressurreição) e pela exaltação da Virgem Maria; a ênfase ao culto aos
santos e figuras angélicas; a exaltação das virtudes para o alcance da glória. Notamos
que as alegorias interpretadas fundem princípios políticos e teológicos num discurso
absolutista e contra reformista. Podemos então atribuir também a essa alegoria do fausto
(o templo) uma finalidade edificante. E observando-se as relações existentes entre as
imagens que compõem essa alegoria e as imagens de O triunfo Eucarístico apresentadas
na crônica de Simão Machado, pode-se concluir que a festa, a pública escritura e o
templo apresentam um só discurso que visava afirmar o poder e a unidade do Estado, da
Igreja e da Sociedade demonstrando uma imagem de harmonia, riqueza e devoção que
tentou representar o êxtase e o êxito do Estado português na descoberta das minas de
ouro e diamantes como prêmio pela propagação da Fé. Não apenas indícios do período
colonial, a Igreja e a crônica que registra a festa de sua inauguração são signos de um
discurso teológico-político.
345 Conforme HANSEN, João Adolfo. Alegoria. pp 165-8
97
Considerações Finais
Segundo Álvaro Julio da Costa Pimpão, “a história, no que respeita aos
acontecimentos próximos ao autor, mal documentados, tendia ser uma narrativa do
observado; as escrituras, a que os cronistas se referem, eram ainda, e, principalmente,
memórias” 346. O autor se refere ao século XVI e relaciona o conceito de história aos
conceitos de observação (o que remete também ao universo visual), de escritura e de
memória. Nesse sentido, já apontamos a fala do soldado prático, que confirma que
“todas as antiguidades e (...) todas as mais cousas (...) podem servir pêra que os
cronistas aproveitarem pêra suas escripturas” 347; e que remete para o conceito atual de
lugar de memória ao comentar que na torre do tombo haveriam os “feitos de ficar
perpetuamente em memória”348. Perceba-se que a fala do soldado prático demonstra que
a torre seria, como um museu ou arquivo, um espaço para reunir tudo aquilo que
pudesse ser utilizado pelos cronistas em suas escrituras. O termo memória pode
designar “monumento erigido para celebrar feito ou pessoa memorável (...) exposição
escrita ou oral de um acontecimento (...), relato, narração”349. Pontuamos que o
‘comportamento narrativo é o ato mnemônico fundamental’, que “os documentos são
representações de memória e suportes de informação”350, e que “o monumento é tudo
aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação; por exemplo, os atos
escritos” 351. Destaquemos que O Triunfo Eucarístico assume vários sentidos: festa
barroca, crônica, pública escritura, documento/monumento, alegoria do fausto, exemplo.
Agora, observando mais uma vez as inscrições da folha de rosto do opúsculo, notemos
346 ZURARA, Gomes Eanes de. Crônica dos Feitos da Guiné.(prefácio, seleção e notas de Álvaro Júlio
da Costa Pimpão). Livraria Clássica Editora: Lisboa, 1942. p. 7 347 COUTO. Diogo do. O Soldado Prático. p 93 348 Idem. 349 HOUAISS, Antonio. pág.1890. 350 CHAGAS. Mário. Cultura, Patrimônio e Memória. In: Ciências e Letras. Porto Alegre, nº 31, p 25 351 LE GOFF, Jacques. Documento Monumento.
98
que o Exemplar da Cristandade Lusitana intitulado O Triunfo Eucarístico foi
“DEDICADO À SOBERANA SENHORA DO ROSARIO PELOS IRMÃOS PRETOS
DA SUA IRMANDADE, e á instancia dos mesmos exposto á publica noticia Por
SIMAN FERREIRA MACHADO (...) com todas as licenças necessárias.” O registro
assume também um tom de ex-voto; o que também se faz perceptível na prévia
alocutória quando Simão Machado, num “contexto português de religiosidade e de ação
colonizadora”352, comenta que “se mostrou aos portugueses a América coroada de ouro
(...)dos mais finos diamantes de todo o mundo (...): assim aparece por sucesso da
ventura, o prêmio da diligência”353. E na dedicatória à Soberana Senhora, os irmãos do
rosário evidenciam mais uma vez tal aspecto votivo ao declarar numa interlocução
direta destinada à soberana senhora que “nasceu o desejo, de que tão grande solenidade
se publicasse, porque a notícia tem estímulos para o exemplo”. A pública escritura
dilata, segundo os irmãos do rosário, “mais a veneração, e glória de vosso Santíssimo
Filho”, e desse modo “também dilata este motivo de vosso agrado”. E assim como um
ex-voto, um templo, um altar, uma imagem em madeira, um oratório, uma festa e
quaisquer outras formas encontradas pela religiosidade laica em Minas Gerais durante o
período colonial, o Triunfo Eucarístico (uma pública escritura) se institui também como
uma espécie de ‘agrado’ à Soberana Senhora à qual a publicação da obra é dedicada.
Completa-se a função votiva dessa pública escritura quando se considera que o
empenho em publicar o registro das festividades é uma forma de agradecimento por
uma glória alcançada pelo intermédio da Virgem: “desta nossa nova glória por vós
recebida, além do nosso reconhecimento, e estimação, era agradecimento, ou sinal dele
esta especial diligência, em que mais que a glória de Autores, estimamos o nome de
agradecidos veneradores vossos”. A intenção votiva demonstrada pelos irmãos do 352 ÁVILA, Afonso. Resíduos Seiscentistas em Minas Gerais. v I. p 12 353 MACHADO, Simão Ferreira. Op Cit.
99
rosário na dedicatória também indica a intenção de utilizar-se do registro escrito para
perpetuar a memória acerca do evento: “esta consideração nos obriga a solicitar esta
pública escritura (...) referindo em perpétua lembrança, e contínua narração aos
presentes, futuros toda ordem de tão magnífica solenidade”. Essa pública escritura foi
então avalizada pelo santo ofício com as seguintes palavras: “querendo que se perpetue
em lembrança (...) e digna de eterna memória esta solenidade (...), a julgo merecedora
de que se imprima”354. Note-se portanto que, em O Triunfo Eucarístico, a escrita, e
nesse caso também a publicação do registro, não constituem apenas ‘uma extensão da
memória’, mas também “um exercício e um marco de poder” 355. E se “o Entendimento
guia a Vontade, & a Võtade manda a Memoria”356, esse objeto que se imprimiu em
signo da riqueza e da fé com a clara intenção de perpetuar em lembrança e eterna
memória a solenidade pode ter assumido, para aqueles que produziram o registro,
também a função de um lugar de memória.
354 MACHADO, Simão Ferreira. Op Cit. 355 CHAGAS. Mário. Op. Cit.. p 26 356 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino. (1712). Tomo VIII, pág 290.
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110
ANEXO – A narração das festividades do Triunfo Eucarístico corresponde às páginas
37 a 125 do documento original; o texto foi transcrito com atualizações ortográficas,
mas mantendo a pontuação e a paragrafação dadas pelo autor. Não foram transcritos os
elementos pré-textuais. As quebras de página do documento original são indicadas na
transcrição (Ex:/P37/) em local correspondente ao início da página do original.
TRANSCRIÇÃO:
/P37/ Deu princípio aos festivos dias um bando por manifesto de vários
máscaras; uns aprazível objeto das vistas nas diferenças do traje, e precioso da
compostura; outros na galantaria das figuras assunto do rito, e jocosidade: todos por
diferentes modos anunciaram ao povo a futura /P38/ solenidade desde fins de abril até
três de maio.
Neste dia saíram duas bandeiras à pública veneração pelas ruas da vila: uma
delas tinha em uma face a senhora do rosário, em outra a custódia do Sacramento: a
outra tinha também a custódia em uma face, e na outra a imagem da Senhora do Pilar;
ambas de damasco carmesim. Foram levadas por duas pessoas ricamente vestidas com
numeroso, e grave concurso, ate se colocarem, uma defronte ao templo de nossa senhora
do rosário, onde estava o sacramento, outra defronte ao templo da Senhora do Pilar,
/P39/ dele padroeira, para onde havia ser a trasladação.
Em dia da Ascensão se benzeu a nova igreja, cuja função fez por comissão de
sua Ilustríssima o Reverendo Vigário de vara de Vila Rica, Feliz Simões de Paiva;
assistindo-lhe todo o clero de ambas as paróquias, vários religiosos e a maior parte dos
povos da vila, e de seus arredores, que já tinham concorrido. Serviram à festividade
deste dia muitas danças, e máscaras, ricamente vestidas; e continuaram aos olhos
111
sempre vário, e agradável espetáculo, ordinariamente de dia; aos ouvidos sonora e
contenciosa harmonia /P40/ de músicas, principalmente de noite, até vinte e quatro de
maio, dia da trasladação.
Procederam-lhe seis dias sucessivos de luminárias entre os moradores de Ouro
Preto por ordem do Senado da Câmara, três gerais em toda a vila ate o Padre Faria
(bairro assim intitulado) o ultimo idôneo para nestas noites dilatar às luzes o domínio
das trevas. Fica eminente à vila um altíssimo morro, a quem deu o nome de Paschoal da
Silva o mais opulento morador dele, e das Minas: a este morro, pela inexaurível cópia
de ouro, chama o vulgo, /P41/ Fiador das Minas; nele estas noites nas casas dos
moradores as luzes, que mostravam a os juízos o centro da opulência, por sua altura,
como na região das nuvens, pareciam aos olhos luminárias do céu. A claridade dos ares,
a serenidade do tempo, a estrondosa harmonia dos sinos, a melodia artificiosa das
músicas, o estrepito das danças, o adorno das figuras, a formosura na variedade, a
ordem na multidão, geralmente influíam nos corações uns júbilos de tão suave alegria,
que a experiência a julgava alheia da natureza, o juízo comunicada do céu. /P42/
Para a tarde vinte e três de maio, que se cumpriam em um sábado, estava
destinada a solene pompa da trasladação: ate as horas competentes esteve o tempo tão
sereno, como amanhecera: todo o aparato esperava junto na Igreja do Rosário o
progresso da procissão, que havia conduzir o divino sacramento: impediu uma repentina
chuva os desejos do concurso, e frustrou neste dia o desvelo de muitos; dando nova
causa a dispêndios, e trabalho em toda a prevenção da solenidade, que ficou deferida
para o seguinte dia de manhã.
/P43/ Houve discurso, que com pia contemplação se persuadiu, que no
impedimento deste da servira a natureza de superior mistério: quanto a dia; porque no
próprio do senhor se visse a sua glória cedendo a mãe de deus a esta propriedade a
112
honra, que se destinava ao seu dia: quanto à chuva; julgando-a muda voz do céu,
antecipada expressão do agrado, com que via em competência a fé nos entendimentos,
nas vontades o amor.
Amanheceu o seguinte dia vinte e quatro de maio, e nas ruas destinadas à
procissão prevenido todo o obséquio de /P44/ festividade e magnificência: nas janelas
correu por conta das sedas e damascos uma vária e agradável perspectiva para a vista,
empenhada competência de preciosidade e artifício: viam-se em primorosos e
[exquisitos] lavores entre ouro e prata, tremulando as idéias do oriente troféus à
opulência do ocidente. Estavam nas ruas em distância competente cinco elevados arcos,
em cujo artifício ajudou a preciosidade do ornato a arte, e competência dos artífices,
eram o maior empenho da magnificência, da vista, em vagarosa atenção, desvelo, e
delícia; /P45/ contencioso triunfo de ouro e diamantes. Um destes fabricado de cera, na
vulgar matéria, pelos empenhos da arte, fez nos juízos lugar à competência, nos olhos
teatro à vitória dos esplendores do ouro, das luzes dos diamantes. Alem destes arcos
estava prevenido um altar para descanso do divino sacramento, e deliberado ato de
pública veneração: foi o seu ornato pelo custo, e asseio, viva imitação dos arcos,
empenhado dispêndio do autor. Aparecia nas ruas a verde amenidade dos campos; em
variedade de flores a primavera. Sentia-se nos ares, em /P46/ flagrância de aromas,
transplantada ao Ocidente a odorífera Arábia do Oriente. No populoso concurso tinha a
vila a multidão das cortes; nas galas a polícia, e gravidade: vestiu neste dia a todos do
mimo das cores a natureza; em lâminas de ouro e prata o sol as luzes dos raios.
Antes de sair a procissão, esteve o divino sacramento colocado em um braço da
Senhora, em lugar do menino: celebrou-se uma missa oficiada a dois coros de música,
em cujos ministros a riqueza dos paramentos dava gosto aos olhos, devoção aos /P47/
corações: no púlpito o Reverendo Doutor Jozé de Andrade, e Moraes, com um
113
doutíssimo sermão fez o ultimo ato a esta solenidade na igreja do rosário, saiu logo a
procissão manifesta nos desejos da publicidade na forma seguinte.
Precedida uma dança de turcos e cristãos em numero de trinta e duas figuras
militarmente vestidos; uns, e outros, em igualdade divididos a um Imperador, e um
Alferes; a estes conduziam dois carros de excelente pintura, e dentro acompanhavam
músicos de suaves vozes, a vários instrumentos.
/P48/ Seguia-se outra dança de Romeiros ricamente vestidos, que
continuamente ofereciam à vista a gravidade do gesto, a variedade da ordem, em
diferentes mudanças da arte.
Depois desta se dilatava outra vistosa dança, composta de músicos, em cuja
figura era o ornato todo telas e preciosas sedas de ouro e prata: pertencia-lhe dois carros
de madeira de singular pintura; um menor, que levava patente aos olhos uma serpente;
outro maior, de artifício elevado em abóbada, que ocultava um Cavalheiro: este,
abrindo-se a abóbada, saiu de repente, e já montado, /P49/ a cabeça da serpente, tudo
representação: diga-se a história humana, ou da Escritura em termos breves, e claros.
Seguiam-se logo quatro figuras a cavalo, representando os quatro ventos, Norte,
Sul, leste, Oeste, vestidos à trágica. O vento oeste trazia na cabeça uma caraminhola de
tecido branco, coberta de peças de prata, ouro e diamantes, cingida de uma pelota
branca, matizada de nuvens pardas; rematada posteriormente em um laço de fita de
prata, cor de rosa, coberto de uma jóia de diamantes; /P50/ ao alto de um cocar de
plumas brancas, cingido de arminhos: o peito coberto de penas brancas, umas
levantadas, outras baixas, todas miúdas; guarnecido de renda de prata: o capilar de seda
branca de flores verdes, guarnecido de galões de prata: vestia uns manguitos de
cambraia transparente, e finíssimas rendas: três fraldões de seda branca em flores
verdes, e cor de rosa, guarnecidos de franjas de prata: os borzeguins cobertos de penas;
114
nas costas duas asas, e um letreiro do seu nome: na mão esquerda uma trombeta, de que
pendia um /P51/ estandarte de cambraia transparente bordada a mão, guarnecidos de
laços de fita de prata, cor de rosa e cor de fogo.
Era o calo castanho escuro, mosqueado de branco: a sela de veludo cor de ouro,
bordado de prata: os arreios brancos de pregaria de prata: as crinas de franja de prata,
passamane de ouro, fita cor de rosa sobre chamalote branco, tudo crespo; no peitoral
rabicho, e cauda de muitos laços de vária fitaria.
Ao sul ornava a cabeça um bonete com cocar de plumas brancas, e azuis: o peito
bordado de ouro, e /P52/ peças de diamantes: o capilar de estofo de ouro azul, e branco:
os fraldões de seda também em ouro, o primeiro azul, os outros brancos, todos com
franjas de ouro: os borzeguins bordados do mesmo; nas costas duas asas, e seu nome em
um letreiro: na mão esquerda uma trombeta, e nesta um estandarte carmesim com
franja, e borlas de ouro.
O Cavalo castanho, os jaezes de veludo verde, bordados de ouro; os arreios
dourados; na cabeçada um martinete de plumas azuis, e brancas; em muitas partes
variedade de fitas.
/P53/ O norte e o leste só nas cores que lhe competiam eram destes diferentes;
no preciso ornato tinham igualdade e imitação.
Depois destes vinham as figuras mais majestosas de toda a procissão; todas a
cavalo, vestidas à trágica.
Era o seu adorno vagaroso empenho da vista, continuada novidade dos olhos,
agitada esfera da riqueza, móvel aparato da magnificência.
Precedia a todas a fama, cingia-lhes a cabeça um precioso toucado de diamantes,
dando por um lado ao vento uma haste de /P54/ finíssimas plumas brancas: o peito
bordado de ouro, e vária pedraria, de que sobressaia elevado num broche de diamantes:
115
o capilar de seda branca de florões de ouro: os fraldões da mesma seda, cingidos de
franjas de ouro, saíam-lhe das costas duas asas de penas brancas matizadas de folhas de
ouro: nos borzeguins calçava de nácar em viva cor de marroquim: sutinha da mão
direita, de uma haste de prata, rematada em cruz, pendente um estandarte de tela branca;
por uma face pintada a arca do testamento, por outra uma custodia sobre um letreiro
/P55/ de letras de ouro, que dizia: Eucharistia em Translatione victrix.
Era o cavalo formoso, e manso, na cor russo pedrês: o jaezes de bordado,
franjas, e borlas de ouro; na frente agitava um martinete de seda de várias cores, e
plumas brancas: pelas crinas, e cauda, largava ao vento laços de fita de prata e ouro de
várias cores.
Pelos lados a seguiam a pé dois pajens, como pinta a antiguidade a Mercúrio:
nas cabeças davam nos chapéus ao vento duas asas: vestiam justilhos brancos da
Holanda, e que saíam nas costas duas asas: cingiam três fraldins de /P56/ seda
encarnada com flores de várias cores: calçavam de branco com [fervilha de talares]: nas
mãos os caduceos columbrinos.
Por ministério destes dividiu a fama ao povo vários e elegantíssimos poemas em
elogio da solenidade.
Seguia-se a figura do Ouro Preto, bairro onde esta situada a matriz, e novo
templo, a que se encaminhava a trasladação, e solenidade.
Faziam-lhe companhia outras figuras, diferentes no nome, não inferiores no
ornato; umas a cavalo, outras a pé por sua ordem, a saber.
/P57/ Precedia montado em um formoso cavalo um Alemão, rompendo com
sonoras vozes de um clarim o silêncio dos ares: fazia com invectivas da arte, que nas
vozes do instrumento fosse a melodia encanto dos ouvidos: isto deu causa a eleição que
dele se fez para concorrer neste ato.
116
Vestia à castelhana e um veludo roxo com capa do mesmo, passado todo de
ouro: cobria-lhe a cabeça um chapéu agaloado do mesmo, disposto em dois ventos,
formaram-lhe as presilhas dois broches de diamantes de grandeza não vulgar; sobressaía
deles um cocar de plumas, /P58/ que na variedade de vivas cores, não tinha menos
lustre, que os diamantes.
O cavalo era russo: os jaezes, de veludo carmesim bordado de ouro: os arreios,
cobertos do mesmo: na cabeça ia firme um martinete de seda, e plumas brancas, e nela,
e na crinas, em vária ordem, dispostas fitas de ouro; na cauda outras várias cores.
Atrás deste, distância de dois passos, vinham a pé oito negros, vestidos por
galante estilo: tocavam todos [charamellas], com tal ordem, que alternavam suas vozes
/P59/ com as vozes do clarim, suspendidas umas, enquanto soavam outras.
Seguia-se mais atrás dois passos o pajem da principal figura, o Ouro Preto: vinha
a pé, e esta só diferença tinha, porque o precioso ornato era o mesmo, que da figura.
Vinha logo esta em distância de dois passos: vestia de roupas de ouro: levava na
cabeça um turbante, feitos de fitas de tela, tão rico que não se via nele mais que oro e
diamantes; rematado em um precioso cocar de várias plumas: formou-lhe o peito um
bordado /P60/ com tal artifício que parecia de martelo; por todo ele se via em contínuos
esplendores a luz de muitos diamantes brilhando, encravados em muitas peças de ouro:
no meio do peito se viam bordadas as armas Reais, por cima do Imperial umas letras,
que diziam: Viva o Ouro Preto. Calçava uns borzeguins do mesmo artifício e vista, à
imitação do peito; levava na mão direita uma salva, dentro nela um morrozinho, coberto
de folhetas de ouro, e diamantes, que significava o Ouro Preto.
O cavalo russo na cor, /P61/ era o melhor dos que vieram neste ato, por
mansidão e formosura: a sela tão rica que não se sabe segunda no Brasil, sobre veludo
verde bordada de ouro: o xairel, e bolsas imitavam a sela na matéria e artifício; os
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arreios eram do mesmo, a ferragem toda de prata: para haver em tudo conformidade se
bordaram da mesma sorte as crinas do cavalo, que iam caídas entre fitas de tela e flores
de diamantes: a cabeçada por cima de laços também de tela, /P62/ levava outras de
filigrana de ouro com esmeraldas de várias cores: dava a tudo o artifício evidente
propriedade em tanta variedade: elevava-se nesta fábrica um martinete de dois palmos e
meio em feitio de palmeira; em cujo artifício em seda, ouro e pedraria, deu o artífice ao
galante bruto a vitória e palma da melhor gala: levava as mãos e pés dourados:
ultimamente em rédeas e sobre rédeas de cordões de ouro oferecia à figura a glória da
Majestade.
Houve opiniões que deram ao cavalo muita melhoria que à figura; mas era gosto
/P63/ dos olhos contra as verdades da natureza.
Seguiam esta figura pelos lados outra duas a cavalo dando-lhe o lugar ao meio:
vestiam do mesmo modo na grandeza do aparato: só tinham diferença no ornato da
cabeça, quanto à forma; porque levando a do meio um turbante, estas levam cada uma
cada uma, o feitio de um morro; significando uma o Ouro Preto, outra o Ouro Fino;
morros entre os quais está fundada a vila.
Os cavalos também não tinham muita diferença. Acompanhavam estas figuras
dois pajens a pé vestidos também à trágica, estrivando com a figura do meio: na cabeça
levavam a mesma divisa de uns morrozinhos: vestiam da mesma forma que as figuras.
Depois destas vinham as figuras dos setes planetas por sua ordem, oferecendo
aos juízos as memórias da antiguidade, aos olhos uma variedade Majestosa.
Precedia a Lua; a esta duas ninfas; a estas dois pajens: estes levavam nas cabeças
turbantes de seda azul entre brincos de ouro, rematados em plumas brancas: vestiam
/P65/ de seda azul com guarnição de galões de prata: os saiotes eram da mesma seda,
franjados todos de prata: nas mãos levavam uns bastões.
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Seguiam-se logo as Ninfas: ornavam as cabeças com turbantes bordados de prata
e muitas pérolas semeados de estrelas de ouro, rematados em plumagens de penas
brancas e azuis: vestiam de seda azul e branca toda de prata coberta de galões e franjas
do mesmo: os peitos em campo azul bordados de pérolas e variedades de pedraria: os
capilares da mesma seda azul semeada de estrelas de ouro: os borzeguins /P66/ do
mesmo modo dos ombros por cordões de ouro; lhe pendiam umas aljavas; no braço
esquerdo sustinham os seus arcos: levava cada uma um cão perdigueiro preto por fitas
azuis de prata em colares bordados com muitos cascavéis de prata.
Vinha logo a Lua: trazia na cabaça um turbante azul bordado com estrelas de
pérolas, rematado em uma nuvem cheia de estrelas de ouro e dentro da qual havia uma
lua cheia. Vestia roupas de seda azul e branca de florões e franjas de prata: o peito era
uma /P67/ campina de pérolas, alternando em elevados lavores lugar a muitos
diamantes: o capilar de tecido azul de prata semeado de estrelas de ouro: os borzeguins
de seda azul com galões de prata bordados de muitas pérolas: sustinha no ombro direito
por muitos cordões de ouro uma aljava; no braço o arco, na mão a seta.
O cavalo era branco e muito formoso: os jaezes e crinas bordados todos de prata,
caudas em campo azul de muita fitaria.
Seguiam dois pajens as estribeiras, em tudo semelhantes /P68/ aos primeiros das
ninfas.
Seguia-se Marte: antes dele três figuras nas cabeças com toucas mouriscas de
carmesim de prata, com varia ordem de fitas de tela verde de prata; por um lado com
plumas brancas: vestiam do carmesim das toucas trunfado de vermelho e branco;
calçavam de branco com sapatos encarnados.
Procediam em igualdade; um no meio, duas pelos lados: a do meio tocava ma
caixa de guerra; a da mão esquerda um pífano, a da direita uma trombeta.
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Vinha Marte em distancia /P69/ de dois passos: aramava-lhe a cabeça um
capacete de prata de lavores de pedraria, rematado de um precioso cocar de pumas
brancas e encarnadas; vestia de seda branca de prata; o peito em campo da mesma seda,
bordado de ouro, e peças de diamantes, com guarnições de franjões de ouro cingidos de
pedraria: o capilar da mesma seda franjado de ouro, matizado de flores de várias pedras:
vestia três saiotes; o primeiro, e ultimo da mesma seda e ornato; o segundo encarnado
de franjões de prata: os borzeguins em campo de seda branca bordados de flores /P70/
de ouro e pedraria: na mão direita empunhava uma espada nua de guarnições de prata e
lavores de ouro; na esquerda um escudo de prata.
Montava em um cavalo rufo rodado: os jaezes e arreios em artifícios de prata e
ouro, competiam à figura e imitação dos outros.
Dois pajens vinham às estribeiras: nas cabeças com toucas de carmesim lavradas
de cordões de ouro com pedraria verde; cingidas de relevo de prata com pedraria de
cristal; rematadas em plumas brancas e azuis: vestiam de carmesim de prata: os peitos
/P71/ em campo branco, bordados de flores de ouro, cobertas de pedraria verde: os
capilares da mesma seda franjados de ouro, cada um com dois saiotes; os primeiros do
mesmo carmesim de prata com franjões do mesmo cingidos de pedraria verde; os
segundos de seda verde de prata com franjões de ouro: os borzeguins em campo branco
bordados de ouro: nas mãos levavam duas escopetas de lavores de prata.
Seguia-se Mercúrio: precediam-lhe duas figuras no ornato semelhantes aos
pajens das estribeiras: estas no dilatado âmbito dos ares ofereciam de longe /P72/ com
dois clarins sonora melodia aos ouvidos.
Vinha em pouca distância Mercúrio: compunha-lhe a cabeça uma cabeleira
branca de bandas, anterior e posterior: sobre esta um chapéu pequeno coberto de seda; a
copa bordada de cordões de ouro e diamantes, duas abas do mesmo com duas asas,
120
cobertas de espiguilha de prata com vivos de fróco encarnado; em cada uma um broche
de diamante sobre laço de fita de prata cor de fogo, rematadas em uma estrela; eminente
a tudo um penacho de plumas cor de nácar: o peito em campo de cetim /P73/ azul
bordado de cordões de ouro, canhotilhos de prata e diamantes com guarnição de rendas
de ouro: vestia três saiotes; o primeiro imitava o capilar, brilhando todo de luz em flores
de ouro; o segundo de cetim amarelo com rendas de prata; o terceiro cor de rosa
cobertos das mesmas rendas, todos em aprazível disposição guarnecidos de franjas de
prata e de ouro: os borzeguins de cetim azul bordados de cordões de ouro: nas costas
duas asas cobertas de espiguilhas de prata, como as do chapéu /P74/ com vivos de fróco
encarnado: na mão direita um caducêo dourado.
Montava em um cavalo russo: os jaezes correspondiam ao fausto da figura; as
crinas eram de renda de prata pendentes dela, e outras partes em varia forma de fitas de
prata e de ouro.
Dois pajens às estribeiras: nas cabeças com perucas louras; sobre estas bonetes
de seda amarela de prata, de duas abas de veludo preta bordado de prata; nas esquerdas
sobre laços de fitas de cor de fogo um broche de diamantes; de entre ele plumas brancas
e azuis: peitos de cetim encarnado /P75/ bordados de cordões de ouro, canhotilho de
prata, e remates de diamantes com guarnições de renda de ouro: capilares de seda verde
de florões brancos; cada um com dois saiotes; um de veludo azul com rendas de ouro;
outro de encarnado com rendas de prata: calçavam de azul bordado de prata: os sapatos
amarelos com fivelas de pedraria.
Via-se logo o Sol: era a sua figura entre todas na majestade como de Rei; tão
superior era o ornato e artifício dele, que lhe mereceu este nome; os olhos e juízos o
confirmaram: como no Céu Superior /P76/ nas luzes entre os astros, se via então na terra
também superior às figuras dos planetas no esplendor da magnificência.
121
Precediam-lhe duas figuras; uma estrela da Alva, outra a da Tarde; ambas em
igualdade, diferentes só nas cores.
A vespertina na cabeça com um toucado de fitas de tela de ouro de cor parda,
artificiado de cordões de ouro, e pedras de varias cores: vestia roupas de seda de ouro
parda com franjões de ouro; peito do mesmo com lavores de pedraria rematado em
franjas de ouro; /P77/ borzeguins guarnecidos de fitas de ouro também pardas; nas
costas um letreiro do seu nome: Vésper.
A da Alva na cabeça também toucado de fitas de tela branca de prata do mesmo
artifício da outra: vestia de sedas brancas de prata; nelas no peito, e borzeguins sobre
cor branca com prata e pedraria, o mesmo artifício, e qualidade da outra; nas costas o
nome: Lúcifer.
Vinha o Sol em poça distancia: coroava-lhe a cabeça de luzes uma cabeleira de
fio de ouro; vestia de tecido cor de fogo: o peito todo coberto de diamantes unidos a
vários /P78/ lavores de ouro: do mesmo peito lhe saía um circulo de raios com
artificiosa e brilhante fábrica de ouro e pedraria: nas costas brilhava a mesma
preciosidade com semelhante adorno: em umas mangas do mesmo tecido vestia sobre o
campo de ouro alternada luz de diamantes: no fraldão vestia também de luz trêmula e
sucessiva em franjas de canhotilhos de ouro: calcava borzeguins cor de fogo, e nestes
também de luz porque em debuchos de canhotilho de ouro prendia a luz de muitos
cristais: levava na mão uma harpa de pintura em campo de ouro. /P79/ Vinha em um
cavalo de co castanho: fazia-lhe os jaezes uma rede de cordões de ouro que eram prisões
de luz guarnecidos todos de cristais finos: eram as crinas todas de galões de ouro; os
arreios cobertos do mesmo com vara ordem de cristais; saía-lhe na frete uma ponta de
Unicórnio; tremulava na cabeçada um martinete de plumas brancas e cor de fogo
nascidas de um montão de pedraria.
122
Vinham às estribeiras seis pajens, três a cada lado; mulatinhos de gentil
disposição, todos da mesma estatura e semelhantes no traje. /P80/ Na cabeça com
barretes à mourisca de seda nácar e verde guarnecidos de rendas de prata, rematados em
plumachos brancos e encarnados; vestiam todos de seda nácar com franjas de prata:
calçavam de branco com sapatos encarnados: nas mãos levavam bastões de prata
dourados.
Seguia-se Júpiter: cobria-lhe a cabeça uma caraminhola coberta toda de peças de
ouro e diamantes rematada ao alto por um estrela formada com os raios de uma redonda
jóia de diamantes, rematada na parte posterior com um cocar /P81/ de plumas brancas e
azuis nascido de outra grande jóia de diamantes: o peito e petrina em cor nácar lavrado
de ouro e diamantes co guarnição de franjas de prata: o capilar de tecido de ouro azul
claro com franjas de ouro: vestia três saiotes; dois do mesmo tecido, o primeiro e
terceiro; o do meio de tecido de prata também azul, todos guarnecidos de franjas de
ouro sobre calções de seda azul com ramos cor de ouro: calçava borzeguins de
marroquim vermelho guarnecidos de franjas de prata e várias peças de diamantes:
levava na mão direita um cetro de /P82/ ouro com raios do mesmo, no braço esquerdo
um escudo dourado com seu caráter.
Vinha em um carro triunfante, coberto d seda nacas com galões de prata; e nos
gomos dos lados com espiguilha do mesmo: nas rodas anteriores se via pintado o signo
de pifcis; nas posteriores o signo se sagitário: puxavam por ele duas águias coroadas de
ouro, das quais as rédeas levava a figura na mão esquerda.
Por pajens vinham aos lados dois satélites: nas cabeças com capacetes de ouro
rematados em uma pequena pluma de azul e branco: os peitos em campo azul bordados
em flores de ouro e pedraria azul: os capilares de seda azul de florões de ouro com
franjas de prata: cada um com dois saiotes; os primeiros da seda dos capilares; os
123
segundos da seda nácar de prata; todos com franjas de ouro: calçavam de azul bordado
de prata com sapatos encarnados: nas mãos levavam uns bastões de prata.
Seguia-se Vênus: representava no rosto, e realçava no ornato aquela formosura
que pelo seu nome se encarece: no ornato fez o desvelo da arte /P84/ obséquios à
natureza, mais em satisfação de dívida, que em forma de benefício: tal era a gentileza do
rosto, com tanto preço artificiosa a compostura.
Ornava-lhe a cabeça um toucado de pérolas com delicado artifício de ouro e
pedraria: vestia toda de verde e cor de rosa; sendo as roupas em campo destas cores uma
seara de pérolas e floresta de diamantes: o peito em campo verde todo era de florões
também de pérolas cujo centro faziam flores de diamantes brilhando em esmalte verde:
esta cor por arte dividida lhe formava toda a gala da preciosidade /P85/ do mar, e da
maior riqueza da terra: trazia no braço esquerdo um escudo bordado de ouro, nele
pintado um coração abrasado em fogo: na mão direita um ramalhete de flores: em parte
cobria uma nuvem por um lado.
Vinha em um carro triunfante no estilo de uma concha; em cuja fábrica
concorreram em igual propriedade a arte fabril e as cores da pintura: acrescia nesta um
ornato de ouro e aljôfares deixando livre aos olhos a naturalidade unida com a riqueza:
cingiam aos extremos quadrangulares do carro sedas verdes /P86/ de florões de ouro
com franjas, e borlas do mesmo: um artifício oculto dava ao carro nas rodas movimento.
Pelos lados a seguiam dois pajens representando em suas figuras dois cupidos:
levavam nas cabeças turbantes de fitaria verde e cor de rosa brincados de cordões de
ouro entre fios de aljôfar rematados com plumas brancas, verdes e cor de rosa; vestiam
uns justilhos de seda cor de rosa como a dos turbantes com vario artifício de cordões de
ouro: os fraldins da mesma seda cobertos com franjas de ouro: saíam das costas duas
124
asas /P87/ de penas brancas e cor de rosa: calçavam de verde lavrado de ouro com
sapatos cor de rosa: nas mãos levavam arcos e setas.
Saturno fechava o número a estas figuras dos planetas, no ultimo lugar; ainda
que por suas influências lúgubre; nas idéias da fantasia, como luminoso planeta, vistoso
na gala a figura.
Precediam-lhe duas estrelas vestidas como soldados romanos: nas cabeças com
capacetes de prata rematados no alto com uma Estrela; pelo lado esquerdo com plumas
azuis e brancas: vestiam de chamalote branco de prata, /P88/ guarnecido de galões e
franjas de ouro: calçavam borzeguins de carmesim bordados de prata: nas mãos cada
um com meia lança enfeitada de tela azul de prata.
Logo se seguia Saturno: representava no rosto homem velho de fúnebre aspecto,
com barbas e cabelos naturais.
Cingia-lhe a cabeça uma caraminhola de [caffas] brancas com vario artifício de
cordões de ouro e peças de diamantes rematado em cocar de plumas brancas e azuis: o
peito em campo azul escuro bordado de ouro, e peças de diamantes; nos ombros de
viam umas carrancas, da boca, /P89/ das quais saía pequena manga: o capilar de golfo
de ouro azul escuro com franjas de prata: vestia três saiotes da seda do capilar com
franjas de ouro: calçava borzeguins de azul com lavores de prata: levava na mão
esquerda um pequeno escudo dourado com caracter astronômico: na direita uma foice
de prata.
Vinha em um cavalo castanho: os jaezes de veludo verde bordado de prata: os
arreios cobertos do mesmo: as crinas de fitas de tela branca e azul de prata: na cabeçada
um martinete de plumas azuis e brancas; na cauda fitaria de tela azul de prata. /P90/
Todas estas majestosas figuras dos planetas pela memória da divindade, que
neles adorava o fingimento da antiga Idolatria, eram glorioso triunfo do Eucarístico
125
Sacramento; que como no feliz século da Redenção humana foi alcançado pelo mesmo
Senhor Sacramentado; se via agora na memória e figurava renovado para a pública
veneração da Cristandade e maior glória do mesmo Senhor.
A figura da Igreja matriz onde o Soberano Senhor encoberto nos Acidentes do
Sacramento como verdadeiro Deus com reverente culto será sempre /P91/ venerado, e
os dias desta solenidade havia ser adorado, punha o fim a toda esta ordem de figuras.
Ultima de todas se oferecia à vista; e porque as antecedente não lhe davam lugar
à superioridade no ornato, via-se nela igualdade no ornato, e imitação.
Cingia na cabaça uma caraminhola de azul bordado de relevo de flores de
cordões de ouro em varia ordem elevadas e sobrepostas circularmente varias flores de
diamantes; rematada em um vistosíssimo cocar de finíssimas plumas brancas: o peito
em campo azul de chamalote bordado /P92/ de cordões de ouro e jóias de diamantes
com uma maior no meio; dela sobressaíam tremulamente três grandes flores de
diamantes; guarnecido de franjas de ouro cingidas de um cordão de pedraria: vestia um
tecido de ouro branco e azul, guarnecidas as roupas de franjões de ouro e vária pedraria:
calçava borzeguins de chamalote branco bordados de cordões de ouro e estrelas de
cristal fino: no braço esquerdo embraçava um escudo de campo de ouro, nele pintada a
Igreja Matriz com esta letra. Haec est domus domini firmiter aedificata. Na mão direita
/P93/ sustentava em uma haste de prata dourada um estandarte de tella branca; pintada
em uma face a Senhora do pilar com esta letra: Egodilecto meo. Na outra a custodia da
Eucaristia com esta outra letra. Et ad me conversio Ejus.
Vinha em um formosíssimo cavalo branco em cujos jaezes de veludo azul e
arreios brancos, só tinha parte o ouro em bordados, franjas, borlas, galões, rendas e
fitaria com artifício e preço competente à figura, e imitação das antecedentes.
126
Quatro pajens lhe seguiam as estribeiras, dois a cada lado: vestiam todos de um
tecido branco de ouro.
/P94/ Nas cabeças turbantes do mesmo tecido com círculos de cordões de ouro
rematados ao alto em um florão de que saía um penacho de plumas brancas: os peitos do
mesmo tecido cobertos de cordões e galões de ouro; estofados de maneira que fechavam
no meio com uma jóia de diamantes; cingidos de franjas de ouro: vestiam três saiotes do
mesmo tecido também com franjas de ouro: os borzeguins de cetim branco bordados de
cordões de ouro: nas mãos levavam suas insígnias significativas da figura que
acompanhavam. Seguiam-se logo depois varias /P95/ Irmandades guiadas de suas
cruzes de prata com mangas de custosas sedas de ouro, e prata cobertas dos seus Juízes
com varas de prata as quais em andores de precioso ornato conduziam os Santos seus
padroeiros: em tudo se via nelas uma ordem e asseio competente à gravidade de tão
solene ato.
Precedia a todas um gaiteiro que por singular fábrica do instrumento e boa
agilidade da arte fazia uma agradável consonância.
Vestia à Castelhana de seda encarnada e por um lado a seguia um moleque
vestido da mesma seda tocando um tambor. /P96/ Mais atrás distancia de dois passos
vinham quatro negros cobertos de chapéus agaloados de prata com plumas brancas;
vestidos todos de berne; calçados de encarnado.
Vinham em cavalos brancos de jaezes de berne tocando trombetas, de que
pendiam estandartes de seda branca com uma custódia pintada.
Seguiam-se o guião da irmandade do Santíssimo; de damasco carmesim franjado
de ouro; nele em uma primorosa tarja bordada uma custódia.
Levava-o um irmão vestido de custosa gala; /P97/ dois pelos lados com duas
tochas pegavam em as borlas; ambos do mesmo modo e gravemente vestidos.
127
Logo imediata se via a Irmandade dos Pardos da Capela do Senhor São José, em
larga distância numerosa coberta de opas de seda branca.
No meio dela ia o andor do seu Padroeiro ornado de seda encarnada, galões e
franjas de ouro, várias flores de seda, e fio de ouro e prata.
Seguia-se a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, numerosa de
muitos Irmãos, todos de opas de seda branca.
/P98/ No meio dela iam três andores: o primeiro de Santo Antonio Calatagirona:
o segundo de São Benedito: o terceiro da Senhora do Rosário: nas imagens era muito
vistoso o ornato em sedas de ouro e prata; em varias e custosas peças de ouro e
diamantes: nos andores em sedas galões e franjas de ouro; e variedade e galantaria de
diferentes flores de diversas matérias e alternadas cores.
Seguia-se a esta a Irmandade de Santo Antonio de Lisboa de muitos irmãos;
quase todos sobre diversas e preciosas galas vestiam opas /P99/ de chamalote branco.
No meio dela se viam três andores : o primeiro de santo Antonio, cujo ornato era
de cera branca com muitas galantarias de flores e lavores sobre papeis encarnados,
verdes, azuis e mistura de lata com fitas e galões do mesmo: julgava a vista que supria e
equivalia o galante e delicado artifício ao maior ornato da preciosidade: o seguindo de
São Vicente Ferreira ; era de talha dourada com muita galantaria e variedade de flores
de seda, fio de prata e de ouro: o terceiro de são Gonçalo de Amarante; era feito de um
carro /P100/ ornado de sedas de custo, galões e franja de ouro, e variedade de flores.
Depois desta vinha a Irmandade das Almas, e São Miguel, muito numerosa de
irmãos, e aos olhos de agradável vista: mais que os mementos e lúgubres sufrágios,
punha na consideração dos juízos a glória das Almas, porque sobre custosas galas vestia
opas de chamalote verde.
128
No meio era levado o glorioso São Miguel ornado de uma capacete de prata com
vistosíssimo penacho de plumas; estofado de novo, e ornado de muitas peças de ouro.
/P101/ Ia em um andor custosamente ornado de seda verde de ouro, galões e franjas do
mesmo, e vário ornato de flores.
Seguia-se um numeroso séqüito de Nobres moradores da Vila e seu distrito, que
tinham servido à República no nobre Senado da Câmara.
Diferentes na variedade e competência de preciosas galas, faziam por união e
ordem a forma de uma nobilíssima Irmandade.
Quatro deles empenhados na devoção, venturosos no obséquio, conduziam o
andor do padroeiro do Senado da Câmara.
/P102/ O glorioso mártir São Sebastião coroado de um resplendor de ouro,
estofado de novo; mostrando aos olhos seu martírio em muitas setas de prata; ornado o
apanhado das roupas um preciosíssimo broche de diamantes em que se rematava um
intrincado e dilatado artifício de cordões de ouro.
O andor era em feitio de carro triunfante; coberto de seda carmesim de ramos de
ouro; guarnecido de vária forma de galões, franjas e borlas de ouro.
Seguia-se a Irmandade da Senhora do Rosário Intitulada a do Terço dos Brancos
/P103/ abundantíssima de Irmãos, todos geralmente sobre galas com opas de nobreza
branca.
No meio se via a Senhora com manto de tela branca sobre um andor de talha
dourada com muita miudeza; rematada em muitos e bem figurados Serafins que
sustentavam o Trono da Senhora.
Seguia-se a esta a Irmandade da Senhora da Conceição; numerosa de irmãos
vestidos de galas com opas de nobreza branca.
129
No meio era levada a Senhora, cuja imagem pelo primor da arte com suavíssima
/P104/ eficácia excita os corações a reverente devoção ; coroada com uma coroa toda de
ouro; coberta de preciosas peças de ouro e diamantes; com manto de brocado carmesim
de singular bordadura de prata e pedraria.
O andor vinha coberto de tela branca de ramos de ouro com muitos galões e
franjas também de ouro.
Depois desta a nobilíssima Irmandade da Senhora do Pilar, padroeira do novo
Templo, de grandioso número de Irmãos: a propriedade que tinham em tão solene ato
lhe deu uniformidade no preço, e brilhante asseio /P105/ das galas: vestiam sobre elas
opas de chamalote branco; os oficiais de chamalote branco de prata.
No meio dela se via a imagem da senhora, estofada de novo com laborioso
primor ; com pedras finas embutidas nas mesmas roupas; estas cobertas de ouro até os
extremos do pilar.
O andor era coberto de custosas sedas de ouro e prata em artificiosos lavores , e
guarnição de galões e franjas de ouro.
Seguia-se ultimamente a opulentíssima e esplêndidíssima Irmandade do Divino
Sacramento, dilatada em numeroso séqüito /P106/ de honrados e Cristianíssimos
Irmãos.
Precedia nela uma custosa cruz de prata com mangas de muito custo de sedas e
franjas de ouro; pelos lados dois ceroferários de prata de singulares lavores.
A legitima propriedade que principalmente tinham neste ato e solenidade lhe
dividiu com liberal dispêndio diferente e preciosa gravidade de galas: sobre elas se iam
em uns as opas de berne, em outros de veludo lavrado; nos oficiais de carmesim de
ramos de prata; em todos sobre o lustre da prata e ouro das galas, brilhava /P107/ o
encarnado da opas com luzes de devoção e singularíssima Cristandade.
130
Cobria seu Provedor a Irmandade, conhecendo-se nele o honorifico cargo pela
vara de prata; e pela voz da fama, e públicos elogios a principal origem desta
solenidade.
Seguia-se debaixo de uma cruz, que levava um sacerdote vestido de dalmática, o
numero clero das duas Paróquias da Vila, e suas anexas, todas com custosas
sobrepelizes, e velas de livra.
Levavam quatro Sacerdotes o seu patriarca São Pedro /P108/ colocado em um
andor de custoso ornato de sedas de prata, e ouro; galões, franjas e borlas também de
ouro.
Seguiam-se de ambos os lados oito sacerdotes vestidos de ricas casulas,
manípulos e estolas; depois destes oito com boas Dalmáticas; logo oito de cada parte
com capa de asperge; seguiam-se quatro com turíbulos; depois um Sacerdote, que
levava bem ornado o pedestal para descanso da custódia, em que ia o Divino
Sacramento.
Seguia-se mais quatro anjos vestidos à trágica, imitando /P109/ no ornato das
cabeças, peitos, capilares, saiotes, e borzeguins, a preciosidade de ouro, prata e
diamantes das figuras antecedentes.
Levavam nas mãos umas bandejas de prata cheias de muitas, e diversas flores
odoríferas, que iam lançando pelas ruas.
Seguia-se o Divino, e Eucarístico Sacramento, debaixo de um precioso palio em
mãos do Reverendo Vigário da Matriz, revestido com uma rica alva, estola, capa de
asperge, e véu de ombros, tudo de muito preço entre dois sacerdotes também revestidos
de ricas alvas, de dalmáticas /P110/ de tela branca.
O palio era de tela carmesim com ramos, e franjas de ouro; de seis varas de
prata, que levavam seis irmãos.
131
Detrás dele vinha o Conde das Galvêas, Governador destas Minas, com toda
nobreza militar, e literária da Vila, e de outras partes, e o Nobre Senado da câmara.
Seguia-se logo a Companhia de Dragões governada pelo seu Tenente, e os
soldados das duas tropas, todos em boa ordem; e com a mesma deram três cargas de
mosqueteiras depois de recolhida a Procissão.
/P111/ Estava o novo templo nos altares, e em todo seu âmbito coberto de
sedas, ouro e prata, com aquele precioso artifício, e decentíssimo ornato competente a
todo o mais aparato, e magnificência da solenidade.
Foi o Divino Sacramento colocado, e exposto em um Trono, e celebrou uma
missa cantada com musica a dois coros: pregou o Evangelho o Doutor Manoel Freire
Batalha; e de tarde fez o mesmo em presença do Conde Governador, de toda a Nobreza,
e Senado da Câmara.
/P112/ No seguinte dia se cantou a Missa com a mesma solenidade, e música:
pregou o Evangelho, e de tarde o Doutor Jose de Andrade e Moraes com a aquela
energia, e naturalidade de difícil imitação, o que lhe dá sempre unido o aplauso à
admiração; em ambos os atos com assistência dos mesmos senhores, e populoso
concurso.
No terceiro dia, e ultimo dia se oficiou outra Missa do mesmo modo: pregou de
manhã, e de tarde o Reverendo padre Diogo Soares da Companhia de JESUS, cujo
estilo e erudição deu novo lustre à festividade, e à sua esclarecida religião singular
glória: assistiram /P113/ do mesmo modo o Senhor Conde, toda a Nobreza, e Senado da
Câmara, e numeroso concurso.
Todos estes três dias mandou o senhor conde por de guarda à igreja uma
companhia de soldados das Ordenanças da Vila; e o mesmo senhor, por assistir a todos
132
os atos desta solenidade se mudo para o Ouro Preto para umas grandiosas casas, que lhe
tinham prevenidas a Irmandade do Santíssimo.
Na noite do dia seguinte aos do Tríduo, ardeu um artificioso fogo feito em um
plano perto da Igreja Matriz /P114/ fabricado por idéia do Reverendo Padre Diogo
Soares Da Companhia de JESUS na forma seguinte.
Uma planta em quadro chamada Jardim, de oitenta e cinco palmos cada face;
nos quatro cantos quatro Castelos triangulares de ressalto sacado para fora de quinze
palmos cada face; que com oitenta e cinco de cada ângulo do quadro faziam cento e
quinze cada face do Jardim; em cada Castelo, por remate, uma figura humana
guarnecida de fogo; dentro do primeiro quadro outro de sessenta palmos cada face; nos
canto quatro /P115/ árvores de candeias: dentro deste se fez terceiro quadro de trinta
palmos cada face; no meio uma fonte: as faces de todos os ter quadros guarnecidas de
rodinhas, candeias, morteiros, e girândolas: todo o circuito desta fábrica guarnecido de
linhagem pintada de pedra.
Houve mais toda a noite copioso fogo de espadas de várias formas, montantes e
diversidade de foguetes; o que fez grande a abundância do liberal dispêndio.
Teve também este espetáculo a assistência do Senhor Conde, e de toda a
Nobreza; e não obstante o dilatado /P116/ tempo da noite, inumerável multidão de todo
gênero, que cobria os montes.
Seguiram-se alternadamente três dias de cavalhadas de tarde; três de Comédias
de noite; três de touros de tarde.
O curro das cavalhadas e touros se fez muito espaçoso e em quadro na praia de
um rio que corre perto da igreja matriz: no meio dele se pôs um mastro com uma
bandeira branca, de cada parte pintada uma custódia; cercado de palanques bem
armados de sedas e damascos.
133
No meio de uma face do /P117/ curro destinaram os Irmãos do Santíssimo um
palanque para o Senhor Conde, pelo sitio e custoso ornato, como convinha à pessoa de
tão grande Senhor.
Concorreram nas cavalhadas muitos e destríssimos cavaleiros ricamente
vestidos, e montados em briosos cavalos bem ajaezados, e deles os mais peitos ou
venturosos levavam argolinhas de ouro.
O Tablado das Comédias se fez junto da Igreja custoso na fábrica, no ornato, e
aparência de vários bastidores: viram-se nele insignes representantes e gravíssimas
figuras: /P118/ foram as Comédias: El Secreto a vozes; El Príncipe prodigioso; El Amo
criado.
Os três dias de touros foram divididos a dois insignes Cavalheiros: um dos
primeiros dias a cada um; o terceiro a ambos juntos: foi o primeiro do Alferes de
Dragões João Vieira Carneiro, por excelente perícia, e fama conhecido, e aplaudido: o
segundo de Francisco da Silva Machado, e também o último por impedimento do
companheiro.
Este em ambos os dias (ainda que por achaque grave, débil de uma perna) obrou
com tal perícia e galhardia /P119/ ministrando empenho à arte, e seu valor o bravo
ímpeto dos touros, principalmente mais bravos no terceiro dia, que sempre os olhos
estiveram vendo triunfos de seu braço, os ouvidos ouvindo as vozes de clarins, e ecos de
clamores, elogios de aplauso.
Entrevieram com destríssimas sortes muitos, e bem ornados capinhas, que
ganhando o louvor à custa do perigo, dobravam a fúria aos touros em benefício dos
cavalheiros.
Foi tal nestes dias a disposição e ordem de tudo; na situação do curro, e fábrica
/P120/ dos palanques, na multidão, e variedade do concurso, na perícia, e galas dos
134
Cavalheiros,e em todo o mais aparato, que se viram esses atos representados com a
polícia e gravidade das cortes.
A todos e aos mais atos dos outros dias, fez assistência o Senhor Conde, e toda a
Nobreza secular e eclesiástica.
Em todas as noites destes dias se continuaram ao mesmo Senhor excelentes
serenatas de boas músicas, e bem vestidas figuras nas casas onde estava no Ouro Preto.
Nas mesmas em todos os dias /P121/ deu o dito Senhor explendidíssimo
banquete a todas as pessoas nobres, e de distinção, seculares, e Eclesiásticas com aquela
liberalidade de ânimo, que por toda a parte publica a fama.
Deste modo celebraram tão grande solenidade os moradores da Paróquia do
Ouro Preto desta Vila; ficando sempre inteligível aos juízos para o verdadeiro conceito
da magnificência, a grande diferença que vai do conhecimento da vista à compreensão
das palavras, ou na voz da fama, ou na maior individuação da Escritura, e mais sendo
muitas miúdas /P122/ particularidades necessárias para o agradável concurso, e ornato
ao referido aparato de toda a ordem da solenidade, que devem ser suposição do
discurso, não prolixidade da escritura.
Não há lembrança que visse no Brasil, em consta que se fizesse na América ato
de maior grandeza, sendo tantos, e tão magníficos que no espaço de duzentos anos com
admiração do Mundo todo tem executado seus generosos habitadores.
Se a brevidade desta relação o permitisse, poderíamos individuar os festivos
aplausos que em diversos tempos /P123/ nesta parte da América se tem visto; e então
ficaria manifesta a grande piedade, e religião, com que os seus moradores
resplandecem; e entre as demais nações com singular vantagem se fazem conhecidos;
desmentindo a maledicência daqueles, que os pretendem infamar de ambiciosos.
135
E se por essas admiráveis ações excedem os Portugueses a todas as nações do
Mundo, agora se vem gloriosamente excedidos dos sempre memoráveis habitantes da
Paróquia do Ouro Preto, não só pelo Católico zelo e excessivos dispêndios com que
(para maior culto e veneração do /P124/ verdadeiro Deus, e exaltação da sua santa Fé)
edificaram suntuosos Templos, e erigiram Altares, guarnecendo-os de custosas fábricas,
e adornando-os de primorosos e riquíssimos ornamentos, mas também pela majestosa
pompa e magnífico aparato, com que (em glorioso triunfo) trasladaram o Sacramento
Eucarístico da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para o novo Templo da Senhora do
Pilar.
Nessas duas mencionadas circunstâncias se fizeram superiores a todas as nações
do mundo os moradores do Ouro Preto, que só com pasmos e admirações se podem
dignamente /P125/ aplaudir; pois esses fidelíssimos Católicos, vivendo tão apartados da
comunicação dos povos, e no mais recôndito do sertão, se empregam com tanto desvelo,
e com inimitável generosidade ao festejar a Divina Majestade Sacramentada, para maior
exaltação da Fé, e veneração dos Católicos, ação tão singular que nem a antiguidade via
primeira, nem a posteridade verá segunda para glória desta nobilíssima Vila por sua
seguríssima Cristandade; fazendo assim mais conhecida, e dilatada na terra do Soberano
Senhor Sacramentado a devida veneração, e eterna glória.
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