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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO por Zilda Carolina Vargas Gitahy Orientadora: Profª. DIVA NEREIDA MARQUES MACHADO MARANHÃO julho de 2005

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

por

Zilda Carolina Vargas Gitahy

Orientadora:

Profª. DIVA NEREIDA MARQUES MACHADO MARANHÃO

julho de 2005

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PROJETO A VEZ DO MESTRE PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

Trabalho apresentado como requisito final do Curso de Pós-graduação em Orientação Educacional, sob a orientação a Prof.ª Diva Nereida Marques Machado Maranhão

Aluna:

Zilda Carolina Vargas Gitahy

julho de 2005

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AGRADECIMENTO

Agradeço a DEUS, que me permitiu

chegar a esse momento tão significativo

em minha vida profissional; à Profª. DIVA

NEREIDA, cuja orientação foi essencial

para a realização deste trabalho.

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DEDICATÓRIA

Este trabalho é especialmente dedicado aos alunos

das escolas em que trabalhei ao longo de minha vida

profissional; foi com eles que, muito mais do que ensinei,

aprendi.

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RESUMO

O presente trabalho versa sobre questões ligadas á aquisição da

modalidade escrita da língua, principalmente através do processo regular de

escolarização. Apresenta, inicialmente, breve panorama das hipóteses

filosóficas e científicas levantadas sobre a origem da linguagem humana,

associadas umas à imitação de ruídos, outras à evolução e desenvolvimento

do cérebro humano, como se pode observar da comparação com a evolução

da criança e com aspectos biológicos da debilidade mental, outras ainda aos

gritos, além de outras hipóteses, partindo algumas da Pré-história em direção

aos tempos históricos e percorrendo outras o caminho inverso. Acompanha o

documentado desenvolvimento da escrita, examinando os sistemas primitivos,

ligados ao figurativo, ainda que estilizado, e flagrando como momento

privilegiado a criação de sinais escritos ligados ao som das palavras e a

conseqüente criação do alfabeto, entre os gregos, que atribuíam a invenção

aos fenícios. Examina, ainda, os diferentes sistemas de escrita. A pesquisa

analisa os conceitos de alfabetização, seu surgimento histórico, associado à

vitória dos ideais liberais e burgueses com a Revolução Francesa, bem como

passa em revista os principais métodos de alfabetização. Por último, examina o

conceito recentemente introduzido de letramento, concentrando maior atenção

nesse processo enquanto desenvolvido no sistema escolar. A pesquisa dedica

especial atenção á contribuição fundamental de Emília Ferreiro, embora esta

cientista tenha restrições quanto ao uso do termo em oposição à idéia de

alfabetização. Com base nos conceitos então apreciados, a pesquisa se põe a

explicitar as principais teorias contemporâneas sobre o processo de

aprendizagem da leitura e da escrita.

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METODOLOGIA

A presente pesquisa teve caráter eminentemente bibliográfico, limitando-

se ao exame das contribuições oferecidas pelos mestres nas diversas áreas

que envolvem o exame do tema proposto (alfabetização e letramento), tais

como a Lingüística, a História e as ciências da Educação.

A rigor, o trabalho procurou pôr em diálogo autores distanciados no

tempo e no espaço, que se manifestaram sobre o tema específico e sobre os

temas transversais.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 07

CAPÍTULO I – A ESCRITA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 10

CAPÍTULO II – A ALFABETIZAÇÃO 36

CAPÍTULO III – O LETRAMENTO 53

CONCLUSÃO 84

BIBLIOGRAFIA 87

ANEXOS 89

ÍNDICE 97

FOLHA DE AVALIAÇÃO 99

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho procura, fundamentalmente, explicitar as relações

entre o processo de alfabetização, já tradicionalmente conhecido em nossa

cultura, com o processo de letramento, conceito de introdução mais recente

entre as disciplinas que tratam da Educação.

É bem verdade que a idéia de alfabetização não é assim tão recente e

as exigências de que uma pessoa alfabetizada seja capaz de articular a

decifração do código escrito com suas experiências existenciais não são tão

recentes assim.

A idéia de alfabetização só foi colocada como uma necessidade social e

como um processo específico com a Revolução Francesa, que trouxe à cena

política uma nova classe social, a burguesia, que defendia os ideais do

Liberalismo e propugnava nova ordem de relações econômicas, baseadas na

acumulação capitalista, tendo como força motriz a indústria. As largas faixas de

comércio que a acumulação capitalista exigia, a criação crescente de mercados

consumidores, a incorporação de um verdadeiro exército industrial constituído

pelo proletariado trouxeram consigo a exigência de setores mais largos da

sociedade dominassem a língua escrita. E isso coincidia com os ideais

presentes no discurso liberal: liberdade, igualdade, fraternidade.

Antes da Revolução Francesa, o processo de se ensinar alguém a ler ou

a escrever, que eram vistos de forma dissociada, mais se assemelhava a uma

iniciação profissional, de vez que tais conhecimentos eram exigidos de uma

categoria especial de pessoas, não necessariamente os sábios, mas os

escribas, os copistas, que se esmeraram, ao longo dos séculos em aproximar a

caligrafia de uma arte.

A partir do advento, portanto, da sociedade industrial, a alfabetização

passou a se constituir um anseio coletivo e mesmo uma exigência da crescente

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complexidade social. O reconhecimento de que a situação de analfabeto (e o

próprio conceito de analfabeto) constituía um fator de prejuízo para largas

faixas da população só se tornou universalizado após a Segunda Guerra

Mundial, com a criação da ONU e da Unesco, que procurou disseminar pelo

mundo programas de alfabetização, especialmente de adultos.

Tem-se observado, porém, um certo fracasso nesses programas, que

não conseguem impedir que o alfabetizado regresse ao estágio de analfabeto.

Têm sido elaboradas as mais diferentes propostas de enfrentamento da

questão, a mais conhecida vindo a ser a alfabetização funcional, inicialmente

voltada exclusivamente para o mundo do trabalho e depois articulada com

outras necessidades pessoais e sociais do alfabetizando, aproximando-se da

idéia de educação permanente.

As descobertas mais recentes nas áreas da Psicologia e da Lingüística

trouxeram o eixo das discussões para a própria essência do ato de alfabetizar,

condenando sua utilização como uma técnica prévia que permitiria à pessoa

ingressar mais tarde no mundo da escrita. Passa-se a buscar um processo em

que a aquisição das técnicas de codificação e de decodificação do código

gráfico estejam articuladas a uma permanente contextualização, de modo que

o conhecimento assim adquirido seja significativo, única hipótese de que ele se

torne operativo.

É em decorrência dessas descobertas que se formulou o conceito de

letramento, conceito ainda um tanto dúbio e até combatido, que, em poucas

palavras, incluiria na leitura do texto significativo a própria leitura do mundo.

Antes, porém, de examinar o que há de específico nos conceitos de

alfabetização e de letramento, a pesquisa voltou-se para considerar as

diferentes hipóteses sobre a origem da linguagem. Trata-se mesmo de

hipóteses, pois até hoje, do ponto de vista rigorosamente científico, nada pôde

ser afirmado sobre tal origem.

Assim, o presente trabalho se organizou em três capítulos. No primeiro,

A escrita numa perspectiva histórica, procura-se fazer um levantamento das

teorias sobre a origem da linguagem e depois se acompanha, de forma

naturalmente resumida, a história propriamente da escrita, partindo de suas

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relações com a pintura, no que se convencionou denominar escrita pictórica e

avançando para formas cada vez mais estilizadas e estandardizadas de

representação gráfica, que passa pela escrita ideogramática, pela escrita

silabária, até chegar ao alfabeto fonético, criação grega, que estes atribuíam

aos fenícios.

O segundo capítulo debruça-se especificamente sobre o tema da

alfabetização, procurando surpreender o processo evolutivo que vai da

consideração da escrita como uma forma de arte até à consideração de que o

domínio da escrita é um direito pessoal e uma necessidade social. Traça, a

seguir uma breve história da alfabetização, examinando as primeiras propostas

que se fizeram para dar conta de um novo fenômeno, o da escolarização em

massa, das escolas, com suas turmas e seus mestres. Por fim, traça breve

panorama da sucessão dos métodos de alfabetização, tema que já foi objeto

de muita polêmica.

O terceiro capítulo é dedicado ao conceito de letramento, de introdução

recente em nossas letras pedagógicas. Fala de sua introdução em nosso meio,

busca aproximar os conceitos de um fenômeno que mais de perto interessou à

pesquisa, qual seja o da escolaridade, analisa as principais contribuições que o

desenvolvimento do conceito veio recebendo, dando especial destaque às

idéias de Emília Ferreiro. O último capítulo abre também uma discussão,

sempre atual e sempre necessária, sobre as razões que tornam difícil para

número expressivo de crianças o domínio do mundo da escrita.

Cumpre dizer uma palavra sobre o método adotado na pesquisa. Trata-

se quase exclusivamente de uma pesquisa bibliográfica. Não se utilizaram

instrumentos próprios da pesquisa de campo. Em todo o trabalho, buscou-se

principalmente deixar que os principais pesquisadores dialogassem, fazendo-

se ouvir principalmente as suas vozes.

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CAPÍTULO I

A ESCRITA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

1.1. Linguagem, civilização e escrita

Importa preceder o presente estudo, sobre aspectos relacionados à

alfabetização e ao letramento, de algumas considerações sobre as origens da

língua escrita, de modo a se poder flagrar o desenvolvimento que este

instrumento da civilização observou ao longo dos séculos, numa história que já

se conta na casa dos milênios.

De rigor, não é possível apontar o momento exato do nascimento da

escrita, nem atribuir os louros dessa invenção a um povo determinado. Discute-

se mesmo se é possível falar-se de invenção no que concerne ao

aparecimento da escrita. Esta invenção, como muitas outras fundamentais da

espécie humana, como a roda, as formas de navegação, etc., de forma mais

precisa, poderia ser considerada um aprimoramento do que já existia antes, do

que já era conhecido e praticado.1 Ao longo dos séculos e no seio das mais

variadas civilizações, a escrita foi passando por sucessivas reformas, cujos

autores é impossível identificar.

O que se pode afirmar é que a escrita deve ter surgido inicialmente num

momento histórico caracterizado pelo desenvolvimento do que hoje

denominamos civilização, que inclui simultaneamente o desenvolvimento das

artes, da agricultura, do comércio, da manufatura, dos transportes e das formas

de governo. José Juvêncio Barbosa assinala que o desenvolvimento de uma

civilização, no sentido que cientificamente se atribui a esse termo, não seria

possível sem a escrita e que, por outro lado, ou seja, a partir de determinado

1 BARBOSA, José Juvêncio. Alfabetização e leitura. São Paulo: Cortez, 1994, p. 34.

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momento histórico, a sociedade, em processo de criação de civilização, não

poderia funcionar se não existisse a escrita.2

Donde, de forma até certo ponto tautológica, se pode concluir que a

escrita só pode existir em uma civilização e que, ao mesmo tempo, uma

civilização não pode existir sem a escrita. É, aliás, a observação que o autor

referido transcreve de J. J. Gelb.3

Tautologia semelhante se costuma fazer, em horizonte mais amplo,

entre a própria espécie humana e o fenômeno mais geral da linguagem verbal.

Assim, é costume dizer-se que só é possível caracterizar-se a espécie humana

a partir da existência da linguagem verbal, do mesmo modo que só se pode

falar de linguagem verbal a partir da existência da espécie humana.

O lingüista Georges Mounin4 adverte quanto a essas formulações

tautológicas, baseadas praticamente todas na observação de uma tendência

fundamental e inata, observada em todos os seres que vivem em comunidade,

para se aproximarem, simpatizarem, trabalharem em conjunto, se

compreenderem reciprocamente. Tais formulações, observa o autor, não

ajudam em nada a reconstituir os modos de evolução de todas as formas

específicas de comunicação, pois elas explicam desde as fricções das antenas

das formigas, o rangido dos vôos dos gafanhotos e os mugidos das boiadas,

até os resmungos dos gorilas e os versos de um poeta. Para o referido autor,

não é possível satisfazer-se com essas tautologias, tão repetidas desde os

tempos de Goethe e Renan, passando por figuras não menos importantes

como Humboldt e lingüistas respeitados com Vendryès.

É claro que a primeira das dificuldades que se oferecem a uma história

da linguagem verbal consiste no fato de que seu aparecimento,

necessariamente oral, precedeu em muito à criação de qualquer forma de

registro. A linguagem oral é anterior à escrita em milhares de anos. Por isso as

2 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit. p. 34 3 Idem, ibidem, p. 35 4 MOUNIN, Georges. História da Lingüística – das origens ao século XX. Trad. F. J. Hopffer Rêgo. Porto: Edições Despertar, 1970, p.25.

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teorias sobre a origem da linguagem escaparam ao rigor das exigências da

ciência, ficando no domínio da especulação.

Em razão desse caráter especulativo, chegou-se ao ponto de se afastar

liminarmente qualquer tentativa de elucidar a origem da linguagem humana. O

referido Georges Mounin dá notícia de que a Societé de Linguistique de Paris,

já em seu primeiro estatuto, determinava que não seriam aceitas quaisquer

comunicações concernentes à origem da linguagem. Mesmo quando essa

sociedade reformulou seus estatutos, em 1878, manteve a interdição quanto a

esse tema, com o propósito de se precaver contra discussões apaixonadas,

incompatíveis com a objetividade das ciências.5

Apesar dessa atitude de descrença e das dificuldades indiscutíveis, é

possível, se não fixar a origem da linguagem verbal, pelo menos acompanhar

de alguma forma seu desenvolvimento através dos séculos. Tal propósito,

porém, não anima a uma investigação extremamente remota. Observe-se que

o lapso de tempo entre o aparecimento da linguagem e o aparecimento da

escrita pode ter chegado a mais de um milhão de anos.6

1.2. Hipóteses sobre a origem da linguagem

Muitas das tentativas de se reconstruir a história da linguagem

repousavam numa análise e comparação das chamadas línguas antigas, das

chamadas línguas dos selvagens e da linguagem infantil, numa orientação

mais voltada para a antropologia e a psicologia do que para a lingüística. Tal

sistemática foi severamente criticada pelos lingüistas, a começar por Vendryès,

segundo dá conta o referido Georges Mounin.7

Entretanto, em tempos mais recentes e em obra voltada para a formação

de fonoaudiólogos, o lingüista Venâncio Mol8 retoma o procedimento para

5 MOUNIN, Georges. Op. cit. p. 21 6 CABRAL, Leonor Scliar. Introdução à Lingüística. Porto Alegre: Globo, 1973 7 MOUNIN, Georges. Op. cit. p. 21 8 MOL, Venâncio. Lingüística em Logopedia. Rio de Janeiro: Edições Gernasa, 1971, p. 15

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fornecer uma explicação da origem e do desenvolvimento da linguagem

humana.

Observa o autor que tanto os primatas como os idiotas e os indivíduos

até seis meses de idade têm um ponto similar em comum, qual seja a utilização

de sons articulados ou inarticulados com o propósito de satisfazer seus

instintos, como o choro, o riso, os gestos, etc. Para ele, tal uso de sons não

caracteriza ainda a linguagem.

A partir dessa constatação inicial, o autor vai associando, de forma

bastante criativa, os diferentes estágios do homem primitivo (homem das

cavernas), aos estágios da evolução do indivíduo, numa retomada da tese de

que o indivíduo, em sua história, reproduz a própria história da humanidade.

Configurando sua proposta em um esquema gráfico, o autor elabora sugestivo

quadro em que vai distribuindo em colunas os períodos paleolíticos, os

períodos geológicos, as formas de vida, o período cultural, as características do

pensamento, as características da linguagem, as características mentais, o

quociente intelectual e a idade mental.9

Seu esquema não compara apenas a linguagem primitiva (do homem

das cavernas) com a linguagem infantil. Faz também uma associação com a

linguagem (e estágios de pensamento) dos deficientes mentais. Como se viu

acima, sugere o autor que os primatas (o pliopiteco), os idiotas (pessoas com

Q. I. inferior a 40) e bebês até seis meses de idade, valem-se dos sons com a

finalidade de satisfazer seus instintos, exprimindo um pensamento primitivo,

instintivo ou sensório-motor, numa sucessão de sons inarticulados.

Num estágio seguinte, associa o proconsul e o driopiteco (cerca de 20

milhões de anos) aos chamados imbecis (Q. I. inferior a 50) e a crianças de 6 a

10 meses de idade. Observe-se que as figuras hominídias citadas não podem

ser ainda consideradas seres humanos, estando mais para o chimpanzé, de

modo que não existe ainda nenhuma ordem de manifestação cultural. Para o

autor, nesse período a comunicação já se esboça, através de gritos e de

imitação. Esta observação associa o pensamento do autor às teorias

9 MOL, Venâncio. Op. cit. p. 22.

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onomatopaicas, que explicam o surgimento da linguagem humana pela

imitação de sons da natureza ou dos animais (onomatopéias).

Numa fase posterior, no período geológico denominado Mioceno, há

cerca de 14 milhões de anos, o autor localiza hominídios mais próximos do

homem (o oreopiteco e o ramapiteco) e os associa aos débeis mentais

profundos (Q. I. inferior a 60) e às crianças de 10 a 12 meses de idade. Não

indica, porém, nenhuma fase na evolução da linguagem, observando mesmo

que, nessa fase, a evolução se limita aos aspectos biológicos.10

O período seguinte (período evolutivo biológico, porque os períodos

paleontológicos e geológicos continuam os mesmos, respectivamente o

cenozóico e o plioceno) é o do surgimento do parantropo, ancestral do homem,

já muito evoluído, ao qual o autor associa o débil mental superior (Q. I. de 60 a

64) e crianças de 1 a 2 anos. Nesta fase ou estágio, observa-se uma

intencionalidade na linguagem, que se utiliza de sons articulados para

expressar o pensamento primitivo. Entende o autor que a intencionalidade

determina a existência de entonação e de silabação.

Avançando em seu esquema evolutivo, o autor examina o

Australopiteco, o Pitecantropo e o Homo, do período denominado pleistoceno,

de há 2 milhões de anos. A esses associa os débeis mentais superficiais (Q. I.

de 65 a 79) e as crianças de 2 a 3 anos. Aqueles ancestrais humanos já vivem

em pleno paleolítico inferior (Idade da Pedra), em que o pensamento já não é o

primitivo, mas o arcaico ou pré-mágico11, que se caracteriza por ser

determinado pela emoção. Tem-se aqui a linguagem falada, composta de

frases curtas, voltadas para o eu.

O conhecido homem de Neandertal (de há cem mil anos) configura o

estágio seguinte, que corresponderia ao deficiente mental conhecido como

inteligente inferior (Q. I. de 80 a 84) e é associado à criança de 3 a 5 anos, em

que predomina o pensamento mágico, caracterizado por ter por base a

crendice, as lendas, as religiões fantásticas. Tem-se a linguagem falada, em

que aparecem narrativas, com noções de tempo e de lugar.

10 MOL, Venâncio. Op. cit. p. 17 11 Idem, ibidem, p. 17

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Como penúltima fase evolutiva, teria aparecido o Homem de Cro-

Magnon, que teria como correspondente o inteligente inferior, mas de Q. I.

entre 85 e 89, e que o autor associa à criança de 5 a 7 anos, caracterizados

pelo pensamento egocêntrico. Seria o período das gravações, pinturas

rupestres e dos rudimentos da linguagem escrita e dataria de 50 mil anos.

Por fim, o Homo Sapiens, associado ao inteligente normal e ao gênio (Q.

I. de 90 em diante) e ao indivíduo a partir dos 7 anos. Tal período se teria

iniciado há 20 mil anos e seria o período da civilização, com o desenvolvimento

do pensamento lógico e o surgimento da escrita.

Algumas objeções podem ser feitas a esse esquema engenhoso. A

primeira delas é que se prende a um rígido esquema evolucionista, de base

biológica, hoje severamente criticado nos meios científicos. Em segundo lugar,

não deixa de ser apenas uma hipótese a correspondência entre o estágio

evolutivo do homem, o nível intelectual do deficiente mental e a prontidão da

criança dita normal. Por fim, a teoria proposta e seu esquema, ainda que

explique o desenvolvimento da linguagem humana, não tem a capacidade de

esclarecer a sua origem.

Nesse sentido, o já citado Mounin refere pensamento de Tovar, segundo

o qual, do ponto de vista do lingüista, a contemplação dos milênios da pré-

história faz parecer insolúvel o problema da origem da linguagem.12

O mesmo Mounin, na obra referenciada, procura apresentar um painel

inteligível sobre as teses referentes á origem da linguagem; constata que as

muitas teorias da mesma classe se contradizem e que podem ser agrupadas

em teses biológicas, antropológicas, filosóficas, teleológicas e lingüísticas.13

Esclarece o autor que as teses biológicas se dividiam em dois grupos. O

primeiro considera que a linguagem nasceu lentamente da evolução dos

movimentos e dos sons espontaneamente expressivos; é a conhecida pooh-

phoo theory. O outro grupo de teses de um modo geral concorda que a

linguagem é produto da imitação dos gritos ou ruídos naturais, a bow-bow

12 MOUNIN, Georges. Op. cit. p. 22. 13 Idem, ibidem, p. 23.

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theory, também conhecida como teoria da origem onomatopaica da

linguagem.14

Da mesma forma, as teorias antropológicas apresentam divergências. O

primeiro grupo apontado pelo autor, o da ding-dong theory atribuía a origem da

linguagem às correlações simbólicas entre o valor impressivo de um produção

sonora e o seu sentido. Para o segundo grupo, o da yo-heho theory, a origem

da linguagem era atribuída às emissões sonoras acompanhando um esforço

muscular. Outro grupo de teorias antropológicas atribuía a origem da

linguagem ao desenvolvimento do primeiro galreio infantil. Esclarece Aurélio

Buarque de Hollanda que galrear é o fato de a criança emitir vozes sem

articular palavras.15 Admitiu-se ainda a origem da linguagem no canto e nos

gestos expressivos.

Considera o autor que ora se acompanha que tais teses tentaram

apoiar-se no estudo da aquisição da linguagem pela criança, ou sobre as

formas lingüísticas observadas entre povos primitivos, ou ainda sobre a

patologia da linguagem.16 Como se viu páginas acima, o lingüista Venâncio Mol

faz exatamente uma combinação dessas três bases de apoio para formular seu

esquema e sua teoria.

Mounin referencia ainda as teses filosóficas que têm oscilado entre a

consideração da linguagem como inata ao ser humano, como adquirida, como

resultado de uma invenção voluntária, mas fortuita ou como resultado de uma

descoberta acidental.17 Faz ainda breve alusão às teses teleológicas que, de

um modo geral, consideram a linguagem como um dom de um deus.

Em relação às teses lingüísticas, o autor aponta duas diferentes

direções. A primeira parte da Lingüística em direção à Pré-história. A segunda

desenvolve movimento contrário, partindo da Pré-história para a Lingüística.

A primeira corrente caracteriza a lingüística histórica, que teve como

propósito mais específico reconstituir, pelo uso de processos cada vez mais

rigorosos de reconstrução, estádios de língua muito mais remotos que os

14 MOUNIN, Georges. Op. cit. p. 23 15 FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p. 672 16 MOUNIN, Georges. Op. cit. p. 23 17 Idem, ibidem, p. 24

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primeiros textos conhecidos. A realização mais completa desse propósito

consistiu na reconstrução do indo-europeu comum, que teria sido falado no 3º

milênio antes de Cristo. Trata-se, sem dúvida, de um estágio hipotético, mas,

segundo Mounin, bastante verossímil. A reconstrução baseou-se no exame do

sânscrito védico, do grego homérico, do latim e de outras línguas antigas,

usando processo semelhante ao que foi utilizado para a reconstituição do latim

vulgar, do qual restaram pouquíssimos documentos, mas cujo estabelecimento

foi possível pela comparação das várias línguas derivadas do latim.

Os lingüistas que reconstruíram o indo-europeu, entendendo que a

humanidade teria aparecido no 4º milênio antes de Cristo, que era a concepção

da época, julgaram (e com razão, de seu ponto de vista) que, tendo fixado

uma língua falada 3 mil anos antes de Cristo, teriam chegado muito perto da

origem da linguagem. Ainda em 1876, Whitney punha um certo freio nesse

extremado otimismo, como transcreve Georges Mounin:

Mostram-nos descobertas recentes que a antiguidade da raça humana sobre a terra deve ser muito maior que o que se tem geralmente suposto. Aqui se abrem vistas de grande interesse, sobre as quais tão só podemos relancear um olhar; mas a brevidade relativa do período coberto por vestígios humanos deve tornar-nos modestos quanto à pretensão de poder alguma vez compreender muitas coisas sobre os veros primeiros começos, a origem recuada das raças.18

Um outro problema é que nem sempre as reconstruções lingüísticas,

como a operada em relação ao indo-europeu, relativas a períodos pré-

históricos, podem ser relacionadas com vestígios arqueológicos ou

antropológicos. Em razão disso, fica-se sem ter condição de precisar com rigor

a época em que a língua reconstruída teria tido curso de fato. Mounin assevera

que as tentativas para localizar o berço dos povos que teriam falado o indo-

europeu permanecem conjecturais e frágeis, sendo bastante raros os casos em

que é possível estabelecer-se, sem restos de dúvida, a correlação de objetos

encontrados nas escavações com aspectos da língua reconstituída, como se

fez em relação às línguas hititas.19

18 MOUNIN, Georges, Op. cit. p. 27 19 Idem, ibidem, p. 29

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Uma outra linha de procedimento, dentro do mesmo sentido de partir da

lingüística para a pré-história, foi a presunção de que os topônimos, isto é,

nomes de lugar, poderiam conter “fósseis” lingüísticos, a partir da observação

de que os sucessivos ocupantes de um território adotam muitas vezes os

nomes pelos quais os lugares já vinham sendo designados quando de sua

chegada, como se fez, por exemplo em relação aos vestígios anteriores aos

celtas (iberos, lígures, etc.), ou como se buscou fazer com vestígios até

anteriores ao indo-europeu. De qualquer modo, é de se constatar que as

denominações de certos lugares e acidentes, como o de grandes rios,

persistem através dos séculos, mas ignora-se tudo das línguas que as

produziram.20

O mesmo Mounin refere outras teorias nessa linha que parte da

Lingüística para a Pré-história. Uma delas, já suficientemente criticada pelos

especialistas, é a teoria de Marr, que associa os estágios de língua (teoria

estadial) ao sistemas econômicos das sociedades (matriarcal, patriarcal,

escravagista, feudal, capitalista, socialista):

Armado com esta teoria, das mais discutíveis, concluía presumindo que a origem da linguagem falada era a seguinte: num mundo em que o homem ainda não falava, a não ser por gestos, cada tribo original dispunha de uma só palavra, grito de chamamento à reunião, nome, conjuntamente marca étnica e totêmica. À medida que as tribos se amalgamavam, os seus feiticeiros, únicos a possuírem o privilégio de articulação da palavra sagrada, desenvolviam, pouco a pouco, uma língua falada por adição destas palavras tribais. Tal teoria pretensamente paleontológica, mais fantasista ainda que a precedente [a teoria da origem das línguas nos topônimos], conduzia a ressuscitar a língua primitiva constituída por quatro palavras: sal, ber, jan, ros: era o jafético; e toda a construção de Marr era ainda mais irrisória que as quimeras comparatistas leibinizianas que dois séculos antes tinham criado esta designação de jafético.21

Em sentido contrário, elaboraram-se teorias em que se partia da Pré-

história para a Lingüística, isto é, em vez de recuar no tempo, em direção a

20 MOUNIN, Georges, Op. cit., p. 30, citando Lebel. 21 Idem, ibidem, p. 31

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uma origem da linguagem, propõe-se descer a corrente do tempo,

acompanhando a evolução dos vertebrados e, assim, forçosamente, encontrar

em dada altura, o momento da aparição da linguagem.

O principal representante desta corrente é Leroi-Gourhan, paleontólogo,

etnólogo e pré-historiador. Seguiu a evolução que a Biologia tem apontado, a

partir dos primeiros peixes, entre captura móvel dos alimentos e simetria

bilateral: entre vida terrestre e libertação da cabeça em relação ao esqueleto;

entre mecânica da mandíbula, condicionada pelo regime alimentar, e estrutura

do crânio; entre posição vertical, libertação parcial ou total dos membros

anteriores durante a locomoção, face curta e volume do crânio. Pela teoria, é

esta longa cadeia biológica que condiciona a aparição das possibilidades de

linguagem. Uma das conseqüências da aplicação desses conhecimentos da

Paleontologia e da Biologia é recuar-se no tempo o ponto de origem da

linguagem, alongando de forma extraordinária o tempo de evolução dos

fenômenos propriamente humanos, que a ciência contemporânea, como já se

enunciou, avalia em cerca de 1 milhão de anos.22

Leroi-Gourhan examina aspectos aparentemente desconectados como o

desenvolvimento do córtex cerebral, a ausência de área de linguagem no

cérebro dos grandes símios (gorilas e chimpanzés), o uso de utensílios pré-

históricos (como se configura no australopiteco), a constatação de que as

áreas cerebrais da motricidade tecnológica e as da linguagem são

interdependentes e conclui que, a partir do momento em que se torna

necessário escolher entre vários comportamentos fabris, tal opção entre

cadeias operatórias constitutivas do aprendizado implica sempre uma

transmissão por meio de linguagem.

Georges Mounin, no mesmo passo citado, vê uma virtude nesse método,

também incapaz de dar conta de modo conclusivo da questão da origem da

linguagem: é o mérito de substituir demasiadas hipóteses filosóficas, quase

sempre gratuitas, por dados objetivos, tais como a configuração do cérebro e o

uso de utensílios, os quais, com o instrumental de ciências específicas como a

paleontologia e a arqueologia, são observáveis.

22 MOUNIN, Georges. Op. cit. p. 33

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De qualquer forma, com maior ou menor base científica, encontra-se,

nesta questão, em pleno domínio das hipóteses. Seria de se indagar a razão

pela qual aquelas ciências (paleontologia e arqueologia) conseguem traçar um

quadro cientificamente aceitável da existência humana em momentos

extremamente recuados da Pré-história, ao passo que a Lingüística não

consegue oferecer senão hipóteses. A paleontologia e a arqueologia trabalham

com vestígios conservados (fósseis, utensílios, túmulos) que permitem uma

reconstrução com apreciável grau de segurança, mas a linguagem verbal não

deixa registros, não existindo pontos sobre os quais se inicie com segurança

uma reconstrução.

Por isso, trabalha-se com maior segurança na determinação da origem e

evolução da língua escrita, como se verá na seção seguinte.

1.3. Para uma história da escrita

Com a escrita, inicia-se um novo processo de acumulação e transmissão

do saber, as quais configuram o aspecto mais importante da diferenciação do

ser humano em relação ao restante mundo animal, a existência de uma

herança cultural que as gerações anteriores legam às gerações seguintes. Não

se está dizendo que, antes da escrita, era impossível a acumulação e a

transmissão de saber. Se tal fosse, nem teria sido possível chegar à escrita.

Povos ágrafos acumularam e transmitiram os mais variados saberes. Ainda

hoje, a tradição oral e a memorização são importantes instrumentos de

transmissão da herança cultural.

A escrita, porém, permite o registro desses saberes de forma menos

perecível que a transmissão oral. Uma vez instituída em uma cultura, vincula-

se visceralmente à civilização que se está construindo. Vai também passando

por sucessivas transformações ao longo do avanço da civilização. Tais

transformações não são apenas de forma, como também de função. Se

inicialmente a escrita prestava-se apenas a ser um suporte da memória

auditiva, aos poucos vai-se desprendendo do universo oral e passa a

representar novas configurações de significados.

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Costuma-se admitir que a escrita surge precisamente quando as

sociedades humanas estabelecem o processo de civilização, como já se

observou páginas acima. Sua importância é de tal ordem, que ela é

considerada o limite entre a Pré-história e a História, instaurando-se esta

quando o registro gráfico passa a ser utilizado.

1.3.1. Sistemas de escrita

Num brevíssimo painel da história da escrita, José Juvêncio Barbosa

enuncia a concepção de que a escrita teve origem na pintura.23 Mas a pintura

ainda não era escrita, porque não configurava a representação de signos. A

pintura era, inicialmente, dirigida por um impulso estético e, só à medida que os

desenhos passam a transmitir, a comunicar fatos e idéias, os aspectos

artísticos deixam de ser os mais relevantes.24

É bem verdade que essa concepção estética da pintura dos povos

primitivos é discutível. Ernst Fischer, tratando das possíveis origens da arte,

examina as pinturas primitivas e conclui que sua função não é estética, mas

tem um conteúdo e um objetivo de ordem mágica, o que, aliás, configuraria

toda a vida espiritual daqueles períodos remotos.25

Apesar dessa objeção, é possível concordar com José Juvêncio

Barbosa, em que, em dado momento, a pintura e o desenho passam a ser

utilizados como símbolos, como um instrumento auxiliar para a identificação de

pessoa ou objeto.26 Tais desenhos e pinturas passam a ser mais simplificados,

sem a preocupação com detalhes, por assim dizer estandardizados,

estereotipados e já começam a configurar uma escrita, ainda não associada a

um idioma ou fala, destinando-se apenas ao registro, à descrição de objeto e

não à representação de um enunciado verbal.27

23 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 34 24 Idem, ibidem, p. 34 25 FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Trad. B. Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 37 26 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 34 27 Idem, ibidem, p. 35

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O autor que ora se acompanha enumera algumas etapas desse

processo de formação da escrita. Evoluindo do desenho estereotipado, a

representação alcança a chamada escrita mnemônica ou representativa, em

que um mesmo desenho representa sempre o mesmo objeto ou ser, pelo

menos para aquele grupo que compreende aquele sistema de representação.

A seguir a escrita avança para a logografia, em que um desenho, além do

significado original da coisa por ele representada, assume significados

associados. Nestas duas fases, a representação gráfica ainda não está

associada a qualquer idioma ou fala, isto é, encontra-se desvinculada do uso

oral.28

A etapa mais importante dessa cadeia evolutiva vem a ser a chamada

escrita ideográfica, que foi a forma original da escrita suméria, povo ao qual se

tem atribuído a invenção da escrita. Pelo menos é sumério o mais antigo

registro de que se dispõe de língua escrita, uma pequena lápide encontrada

nos alicerces de um templo em Al Ubaid, representando o nome do rei que

mandou erguer a edificação. A escrita ideográfica é composta de sinais que,

em vez de representarem o som, representam a idéia do significado.

É ainda entre os sumérios que ocorre o salto para o que viria a ser uma

escrita alfabética. Trata-se da criação da escrita cuneiforme, em que a

excessiva estilização do ideograma levou a associação do desenho não a uma

idéia, mas a um som.

José Juvêncio Barbosa atribui a criação da escrita cuneiforme às

exigências da vida econômica dos sumérios, povo dedicado à agricultura e ao

comércio, em que se tornou indispensável o registro exato das mercadorias

transportados do campo para a cidade e vice-versa.29 Para evitar confusões

que a escrita logográfica e a ideográfica poderiam oferecer, os sinais, em forma

de cunha (daí cuneiforme) foram usados para representar os sons dos nomes,

criando-se assim um sistema de escrita complexo que demandava uma certa

análise fonética, isto é, do material sonoro que compunha os nomes.

28 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 35 29 Idem, ibidem, p. 35

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Conclui o autor que a fonetização da escrita abriu novos e

extraordinários horizontes para os registro escrito, tornando possível expressar

quaisquer idéias, mesmo as mais abstratas30

Sem estabelecer distinção entre a escrita logográfica e a ideográfica,

Mary Kato procura distinguir as etapas evolutivas da história da escrita,

identificando uma fase inicial de inexistência de escrita, uma fase precursora

(que denomina semasiográfica), que se inaugura com o sistema pictográfico e

evolui para recursos de identificação mnemônica, e, finalmente, a fase

fonográfica, que divide em três etapas sucessivas: a lexical-silábica, a silábica

e a alfabética.31

Distingue a autora quatro sistemas de escrita: o pictograma, o

logograma (que não dissocia do ideograma), o silabário e o alfabeto. Entende,

assim, que o sistema pictográfico se caracteriza pelo uso de desenho de

características veristas, isto é, o mais próximo possível da imagem do objeto.

Tal sistema teria a função de expressar idéias visualmente e era radicalmente

separado da fala, configurando-se dois sistemas, um visual (o desenho) e outro

auditivo (a fala), sem relação direta de um com o outro. Aos poucos, porém, os

desenhos começam a ser associados à fala, criando um simbolismo de

segunda ordem.32

É esta associação, bem como a crescente estilização e o também

crescente convencionalismo, que transformam o sistema pictográfico no

ideogramático, isto é, o uso de logogramas ou ideogramas para a

representação da fala. Tal estilização, num primeiro momento, consistiu em

retificar as linhas arredondados dos pictogramas. O surgimento da escrita

cursiva, bem posterior, estabelecendo uma ordem das palavras e um sentido

de leitura, contribui para a convencionalização dos pictogramas. Aspecto

importante é que o sistema ideogramático já não é icônico, mas simbólico.33

30 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 36 31 KATO, Mary A.. No mundo da escrita – uma perspectiva psicolingüística. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987, p. 13 32 Idem, ibidem, p. 13 33 Idem, ibidem, p. 14

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Entende-se por ícone o sinal que se constitui de uma figura. Assim, uma

fotografia é um ícone, bem como o desenho de uma criança com livros numa

placa de trânsito. No ícone o elemento físico do sinal (cores e formas de uma

fotografia, linhas de um desenho, por exemplo) relacionam com o elemento

mental (seu significado) pela semelhança. Já no símbolo, a relação entre o

elemento físico do sinal (aquele percebido sensorialmente) e o elemento

mental (significado) é estabelecida convencionalmente, sem nenhuma relação

necessária nem física entre esses dois aspectos do sinal.

A passagem, portanto, do pictograma ao ideograma, foi a introdução, na

escrita, da convencionalidade que já se observava na fala: os sinais da escrita

pictórica, motivados pela forma do objeto (icônicos) passam a convencionais.

Em razão disso, não podem mais ser dissociados da fala. O ideograma,

portanto, tem estatuto lingüístico de palavra, sendo assim, de certo modo, uma

representação fonética.34

Graças à estilização e ao convencionalismo, os ideogramas passam a

representar não objetos, mas palavras, como ocorre com os algarismos (por

exemplo: 4 = quatro). Alguns não decorrem de figuras do mundo físico, mas de

formas geométricas; alguns, de tão convencionais, passam a se comportar

como sílabas, o que configura uma escrita ao mesmo tempo léxica e silábica,

ou lexicográfico-silábica, como denomina Mary Kato.35 São a porta para o

sistema silábico.

Este decorre do esvaziamento da carga semântica dos ideogramas, que

passam a representar, não idéias, mas sílabas, segmentos de palavras. Já se

comportava assim a escrita hieroglífica dos egípcios. Mas foram os fenícios

que simplificaram o complicado sistema lexical-silábico dos egípicios,

reduzindo os símbolos a 24 (vinte e quatro), em que figuram apenas as

consoantes.

34 KATO, Mary A.. No mundo da escrita – uma perspectiva psicolingüística. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987, p. 14 35 Idem, ibidem, p. 15

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É do sistema silábico que surge o sistema alfabético. Os gregos

tomaram emprestada a escrita fenícia para organizar a base de sua escrita. Os

fenícios, esporadicamente, usavam sinais para representar vogais; os gregos

sistematizaram o uso das vogais, criando o alfabeto, cujo marco inicial costuma

ser fixado no século X a.C. Afirma Mary Kato, com base no já referido Gelb,

que, depois da invenção desse sistema, nenhuma inovação significativa

ocorreu na história da escrita. Surgiram novos alfabetos, como o latino,

utilizado por quase todo o mundo ocidental, inclusive no Brasil, mas todos

mantêm a mesma base e análise fonética do alfabeto grego.36

Desses sistemas, que se sucederam, ao longo do tempo, podem ser

apontados como exemplos do pictográfico, desenvolvido em escritas léxico-

silábicas, o sumério (que se desenvolveu na escrita cuneiforme), o egípcio e o

hitita (hieróglifos), e o chinês, este ainda hoje utilizado, embora

substancialmente simplificado e, gradativamente, sendo substituído pelo

sistema alfabético. Exemplifica na atualidade o sistema silabário, o sistema

japonês; além deste, podem ser citados o árabe e o hebraico.

1.3.2. A escrita egípcia

Não há dúvida de que os egípcios deram extraordinária importância aos

problemas da linguagem, entretanto, tal preocupação não se encontra

expressa em seus textos, pelo menos nos conhecidos, dos quais alguns

poucos tratam da linguagem, atribuindo sua criação ao deus Thot, a íbis.

A prova da importância por eles concedida à linguagem encontra-se nas

esporádicas referências ao deus e nas mais freqüentes referências aos

escribas, pessoas importantes da sociedade faraônica, constantemente

representadas nos hieróglifos, principalmente os inscritos nas estátuas. Para os

egípcios a linguagem era um objeto divinizado, rodeado de veneração; a

escrita era um ofício sagrado exclusivo de uma casta de escribas que

ocupavam os lugares mais altos da sociedade egípcia. Foi essa casta que

desenhou, gravou e pintou um grande número de hieróglifos (signos da escrita

36 KATO, Mary A. Op. cit., p. 16

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egípcia), através dos quais a arqueologia, a etnologia e a lingüística

reconstituem a história da língua do antigo Egito.

A decifração dos hieróglifos é atribuída a Champollion, embora, antes

dele, vários sábios tenham tentado inutilmente descobrir as regras em que se

apoiava a escrita egípcia. Champollion tomou como ponto de partida uma

pedra descoberta pelos soldados de Napoleão, conhecida como Pedra da

Roseta. Seu trabalho foi “facilitado” pelo fato de a pedra conter inscrições em 3

tipos de escrita: hieróglifos, escrita demótica e escrita grega, o que lhe permitiu

a comparação. Sobretudo, pôde dispor de uma chave extremamente segura

para a decifração: os nomes de Ptolomeu e de Cleópatra deixavam-se

distinguir nos três textos porque estavam isolados dos outros. Apesar dessas

“facilidades”, o trabalho de Champollion foi realmente magnífico.

Em suas pesquisas, Champollion descobriu que o alfabeto hieroglífico

tem base fonética e foi usado por todas as classes da nação egípcia durante

muito tempo. Infere-se, portanto, que os egípcios distinguiam os sons e se

encaminhavam para uma escrita fonética.37 Júlia Kristeva, porém, esclarece

que os signos hieroglíficos estão longe de constituir um alfabeto e são

utilizados de três maneiras diferentes: (a) designando, ao mesmo tempo, a

palavra e o conceito, um signo-palavra, ou, como se viu, linhas acima, um

logograma; (b) veiculando apenas sons, o que se poderia chamar de

fonograma; (c) evocando uma noção sem se referir a uma palavra precisa e

sem ser pronunciável, como um determinativo, evitando a confusão com

palavras que têm a mesma consoante.38

Embora se observe grande estabilidade na escrita egípcia, sofreu ela

algumas modificações, principalmente na época greco-romana, em que se

simplificou e se diversificou. Uma diversificação é a chamada escrita demótica

(popular), destinada, em princípio, à administração, e que rapidamente se

tornou uma escrita de uso comum.

É interessante observar que a escrita hieroglífica deixou de ser usada no

início da era cristã, ao passo que a escrita demótica ainda permaneceu até por

37 KRISTEVA, Julia. História da Linguagem. Trad. de Maria Margarida Barahona. Lisboa: Edições 70, 1969, p. 99 38 Idem, ibidem, p. 100.

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volta do século V. A principal causa para o desaparecimento da escrita

hieroglífica no início da era cristã está relacionada ao caráter sagrado dos

hieróglifos, aliás, a própria palavra revela esse caráter, na medida que

hieróglifo significa escrita sagrada. Era o sistema de escrita da classe

sacerdotal e de uso ritual. O cristianismo substituiu a religião egípcia, que,

desaparecendo, levou com ela a sua escrita. A escrita demótica tinha um

caráter laico, voltada que era para a administração e para o uso comum, não

sendo, por isso, abalada por razões religiosas. Foi uma escrita que se fonetizou

e se tornou excessivamente difícil e menos eficaz que o alfabeto grego, cuja

simplicidade já seduzia os egípcios,39 talvez a maior razão de sua extinção.

Uma última palavra sobre a escrita egípcia diz respeito à sua natureza.

Nela o papel da voz é extremamente reduzido, sobressaindo em importância as

relações lógicas. Era, portanto, um escrita que constituía mais uma reflexão

sobre os modos de significar do que um sistema de transcrição do vocalismo. A

escrita era distinta da fala, razão pela qual apresentava um papel social menor,

não presente nas trocas sociais, embora fosse objeto de particular veneração.

1.3.3. A escrita chinesa

À diferença da escrita egípcia, na escrita chinesa não se observa uma

evolução para o alfabetismo, conservando-se, através de cerca de 3 mil anos,

como uma escrita ideográfica. A própria língua chinesa é especialmente distinta

das línguas ocidentais. Sobre o caráter particular dessa língua, assim se

expressa Júlia Kristeva40:

O funcionamento da língua chinesa está tão estreitamente ligado à escrita chinesa, e ao mesmo tempo a fala vocal é tão distinta dela, que, embora a lingüística moderna pretenda separar o falado do escrito, dificilmente se pode compreender um sem o outro. Trata-se, com efeito, de um exemplar único na história, em que fonetismo e escrita formam dois registros geralmente independentes, emergindo a língua no cruzamento dos dois. De tal modo que o conhecimento da linguagem na China é um conhecimento da escrita: quase não existe uma

39 KRISTEVA, Júlia. Op. cit., p. 101 40 Idem, ibidem, p. 109

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lingüística chinesa enquanto reflexão sobre a fala vocal; há teorias sobre os emblemas gráficos e classificações desses emblemas.

É bem verdade que o rigor dessa afirmação deve ser atenuado, na

medida em que se tem observado na sociedade chinesa contemporânea um

esforço para a introdução de escrita alfabética, principalmente em razão da

dificuldade de universalização da língua escrita no seu primitivo sistema

ideográfico; aos governantes chineses tem parecido mais fácil universalizar a

escrita pela via da alfabetização.

Outra observação é a de que, apesar de vincular-se ao sistema de

escrita por ideogramas, como se viu acima, da mesma forma que a escrita

hieroglífica dos egípcios, não se observa na escrita chinesa qualquer

manifestação de escrita hieroglífica, com desenhos realistas de objetos

reconhecíveis.41

Uma última observação diz respeito à ausência de qualquer relação com

os sons; não existe a menor análise fonética na representação gráfica. Este

fato, de certo modo, está relacionado às características próprias, quase

exclusivas da língua chinesa: só tem vocábulos monossilábicos, não utiliza

afixos e só a ordem dos signos tem valor morfológico e sintático.42

Examinando tais aspectos da língua chinesa, a referida Júlia Kristeva

transcreve trecho de Demiéville, que, apesar de longo, cumpre reproduzir:

As partes do discurso não existem em chinês do ponto de vista semântico: não há nenhuma palavra chinesa que designe sempre e necessariamente uma coisa, um processo ou uma qualidade. Também não existem, sob certas reservas, do ponto de vista morfológico. Só existem do ponto de vista funcional. Se podemos dizer que, neste ou naquele contexto sintático, esta ou aquela palavra é utilizada como substantivo, quer como verbo ou como adjetivo, é exclusivamente nesse sentido de que ela funciona como sujeito, atributo ou regime, como predicado ou como determinante. Isto parece muito simples; mas, na realidade, temos uma enorme dificuldade em abstrair do ponto de vista semântico. O fato de uma mesma e única palavra, com uma mesma e única forma, tanto poder significar ume estado do ser ou uma modalidade do devir, como uma

41 MOUNIN, Georges. Op. cit., p. 61 42 Idem, ibidem, p. 62

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qualidade, uma circunstância e tudo o mais, abala em nós convicções herdadas de Aristóteles e dos retóricos greco-latinos através dos séculos da escolástica e que, se assim posso dizer, nasceram conosco. Isto para nós é qualquer coisa de escandaloso, de revoltante; por isso vemos constantemente as partes do discurso, depois das evicções de princípio, entrarem na gramática chinesa por qualquer porta travessa, quer se trate de autores ocidentais mesmo os mais recentes ou de especialistas chineses contemporâneos, pois estes começaram o estudo gramatical da sua língua sob uma impulsão partida do Ocidente, e talvez ainda tenham mais dificuldade do que nós em se libertarem, nesse estudo, do empecilho das categorias européias. Raros são os sábios que mostraram suficiente firmeza de julgamento para afirmarem em todas as ocasiões que as partes do discurso (...) são em chinês uma miragem que temos que abandonar de uma vez para sempre. A polivalência gramatical das palavras é um fato absoluto em chinês.43

Os caracteres da escrita chinesa (ideogramas) transcrevem palavras

inteiras, que são vocábulos monossilábicos, como se viu acima, mas que não

são sílabas, na lição de Georges Mounin,44 e neles muito menos é possível a

decomposição em constituintes menores, os fonemas. Em chinês a

compreensão de um enunciado escrito pode ser separada de sua leitura, de

modo que os mesmos caracteres representam diferentes produções fônicas,

diferentes vocábulos (e não palavras), em diferentes regiões da China, que

utilizam variedades dialetais bastante diferenciadas. Em razão disso, entende-

se que os caracteres da escrita chinesa funcionam como uma espécie de

esperanto gráfico, apresentando palavras escritas da mesma forma, com o

mesmo significado nas várias regiões do país, mas com produções fonéticas

diferentes. Comportam-se como os algarismos arábicos que se usam no Brasil

e em praticamente todos os países de escrita alfabética: associam-se a

produções fonéticas diferentes (4 - quatro, quatre, four...), mas têm o mesmo

significado.

43 KRISTEVA, Júlia. Op. cit., p. 110 44 MOUNIN, Georges. Op. cit., p. 62

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A mais antiga escrita chinesa era pictográfica, isto é, nela era possível

descortinar elementos figurativos identificáveis, embora já fossem registrados

de forma extremamente esquemática, estilizada e convencional: plantas,

animais, movimentos do corpo, instrumentos etc. Numa segunda fase,

juntaram-se a esses pictogramas símbolos indiretos ou indicativos, formados

por substituição. Ainda em momento posterior, as combinações de dois ou

vários pictogramas deram origem a signos complexos, que são normalmente

denominados complexos lógicos ou complexos léxicos. Por fim, surgiu uma

quarta categoria de ideogramas, os símbolos mutuamente interpretativos.

Em sua forma clássica (por volta do século XIII da era cristã) a escrita

chinesa apresentava 6 classes de caracteres: formas figuradas (pictogramas),

designações de situações (símbolos indiretos), encontros de idéias (complexos

associativos), significações transferíveis (símbolos que se interpretam

mutuamente), empréstimos (caracteres fônicos tomados por empréstimo) e

imagem e som (determinativos fonéticos). A língua chinesa, porém, foi

passando por um processo de simplificação que se reproduziu em seus

sistema de escrita.

1.3.4. O papel dos sumérios e acádios

O que hoje se conhece como Suméria e Acádia (dos povos sumérios e

acádios) era a região da Mesopotâmia na época em que era habitada por

povos que tradicionalmente foram conhecidos como caldeus e assírios, da

Babilônia e de Nínive. É a chamada civilização mesopotâmica, que elaborou

um sistema de escrita de características bastante particulares e que acabou

evoluindo para o que hoje se conhece como alfabeto.

Trata-se da escrita cuneiforme. Decorre esse nome, que significa em

forma de cunha, do fato de que os signos utilizados eram organizados em

grupos de cunhas, gravadas em argila, cuja matéria influenciou

indubitavelmente a forma dos signos (cunhas).45 Utilizavam aqueles povos

cerca de 550 caracteres cuneiformes, dos quais cerca de 250 a 300 tinham

45 KRISTEVA, Júlia. Op. cit., p. 103

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curso mais geral. Alguns deles funcionavam como logogramas (representavam

uma idéia) e outros tinham um valor fonético, representando inclusive vogais.46

Esse sistema, porém, permitia o surgimento de vários polífonos, o que

gerava confusão, remediada pelo uso de signos mudos, que tinham um papel

de determinativos ou de complementos fonéticos. Trata-se de uma acuidade

que revela uma reflexão demorada sobre a língua. Para permitir o ensino da

língua, os assírios e caldeus valeram-se de silabários, de léxicos, formando o

que se chama “ciência das listas” sumero-acádia, com catálogos de nomes de

deuses, de ofícios, de gado grosso, de gado miúdo, de objetos determinados,

de todos os animais.47

Não se conhece uma fase puramente pictórica da escrita suméria, mas

documentos mais antigos manifestam uma escrita ideográfica, com caracteres

de desenhos mais ou menos reconhecíveis. Entretanto, a grande contribuição

da civilização suméria e acádia, o seu papel decisivo na história da escrita,

consiste na utilização de sinais para representarem sons, isto é, os

fonogramas, constituídos geralmente por um só caráter cuneiforme, capaz de

traduzir uma sílaba complexa, uma sílaba fechada (terminada por consoante),

uma sílaba aberta (terminada por vogal) e até uma sílaba exclusivamente

vocálica.48

Um acidente de ordem histórica contribuiu para tornar mais explícita a

reflexão sumério-acádia sobre a escrita fonética. A partir do segundo milênio

antes de Cristo, a escrita suméria foi utilizada para transcrever a língua acádia.

Ocorre que a língua acádia era do grupo semítico, possuindo palavras até

trissilábicas, ao passo que a língua suméria não era semítica e era constituída

apenas de monossílabos49, como a chinesa. Tal fato contribuiu para o

afastamento do caráter originariamente ideográfico da escrita suméria, que

assumiu claramente natureza fonética.

46 KRISTEVA, Júlia. Op. cit., p. 103 47 MOUNIN, Georges. Op. cit., p. 53 48 Idem, ibidem, p. 56 49 Idem, ibidem, p. 57

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Deve ter sido em razão do bilingüismo que se implantou na região que

foram compostos os silabários e léxicos, que atestam os fundamentos de uma

sistematização da linguagem.50

Assim, a escrita cuneiforme, que era na origem constituída de

pictogramas, evoluiu para um sistema fonético, a partir da fase do bilingüismo

com os acádios, obrigando a formar-se a consciência da distinção dos

fonemas na cadeia falada. Lembra, porém, Júlia Kristeva que a escrita

cuneiforme nunca se tornou uma escrita alfabética, no rigor da expressão.

1.3.5. A invenção fenícia

Costuma-se considerar que o alfabeto foi inventado pelos fenícios. Pelo

menos, a eles a tradição grega e latina atribuiu essa invenção. De um modo

geral, sem a preocupação de fixar um inventor, pode-se dizer que a escrita

fenícia foi o antepassado do alfabetismo moderno.51

Os documentos mais antigos em escrita fenícia foram encontrados em

Biblos, em Ugarit e em Ras Shamra e devem datar do segundo milênio antes

da era cristã, possivelmente entre os anos de 1500 e 1300 a.C.52. Eles

configurariam uma escrita fenícia arcaica, tendo depois aparecido uma escrita

fenícia sensivelmente diferente.53

Embora seja comum a expressão alfabeto fenício, Mounin, cuja lição tem

sido acompanhada, discorda dessa classificação, por entender que aquela

escrita não era exatamente um alfabeto, uma vez que não existem caracteres

para registrar as vogais.54 Mas não há como deixar de reconhecer que se trata

de uma escrita inteiramente revolucionária em relação às anteriores, uma vez

que é totalmente fonética, sem a presença de vestígios de pictogramas ou

mesmo de ideogramas. Embora, a ciência moderna não adote um critério

evolucionista, explicando um fato sempre em relação a um outro que lhe deu

origem, é possível observar pelo menos quatro aperfeiçoamentos introduzidos

50 KRISTEVA, Júlia. Op. cit., p. 104 51 Idem, ibidem, p. 137 52 MOUNIN, Georges. Op. cit., p. 74 53 KRISTEVA, Júlia. Op. cit., p. 138 54 MOUNIN, Georges. Op. cit., p. 75

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por esta escrita em relação às ideográficas e pictográficas: a supressão total do

uso dos ideogramas e dos pictogramas, a supressão dos determinativos como

os utilizados na escrita egípcia, na suméria e na chinesa, a renúncia aos

caracteres fonéticos complexos de várias sílabas ou vários sons, para aplicar

rigorosamente a regra de um caráter para cada som mínimo e, finalmente, a

supressão dos homófonos e dos polífonos, aplicando-se a regra de um caráter

denotar sempre o mesmo som e reciprocamente.55

Esta escrita, já quase alfabética, tem extraordinária importância para o

mundo ocidental, porque espalhou-se por todos os povos sobre os quais os

fenícios exerceram sua influência: no Oriente Médio sobre a escrita antiga

hebraica e sobre a escrita samaritana, na bacia mediterrânea, sobre a Grécia,

Chipre, Malta, Sardenha e África do Norte.

Júlia Kristeva arrisca-se a uma teoria sobre a origem dos caracteres

fenícios e sobre a ordem em que eles figuram.56 Para ela, a forma dessas

letras, que representam consoantes, evoca a imagem do objeto cujo nome

começa pelo som que a letra marca. Quanto ao ordenamento, sugere que foi a

semelhança gráfica dos caracteres que determinou a ordem que lhes foi

atribuída.

1.3.6. A inovação grega

A grande contribuição que deram os gregos para a escrita foi a

introdução de caracteres para representar as vogais. Foram, como se sabe, os

gregos que estabeleceram as bases do raciocínio moderno, criando a filosofia;

foram eles também que produziram os princípios fundamentais pelos quais a

linguagem foi pensada até os tempos modernos.

Foram também os gregos os primeiros a utilizar uma escrita

rigorosamente alfabética, embora eles próprios considerassem que haviam

herdado o sistema dos fenícios. Na realidade, os gregos tomaram dos fenícios

o alfabético consonântico (sem vogais) adequado às línguas semíticas, nas

quais a variação de timbre tem pouca relevância, e o adaptaram às

55 MOUNIN, Georges. Op. cit., p. 75 56 KRISTEVA, Júlia. Op. cit., p. 140

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características da língua grega. Nesta, os radicais não são consonânticos,

diferentemente do ocorre nas línguas semíticas. Em razão disso, os gregos

foram obrigados a introduzir marcas para as vogais. É o esclarecimento dado

por Meillet, lingüista francês do começo do século XX, transcrito por Mounin:

Mas quando se empregou o alfabeto semítico para anotar outras línguas, o cairense, o cretense pré-helênico, ou o grego, por exemplo, em que os timbres vocálicos eram mais variados e em que o conhecimento da morfologia não bastava para os fazer prever, foi necessário anotar constantemente as vogais.57

Observa Kristeva que essa análise do significante nos seus

componentes mínimos não é um fenômeno isolado na tentativa do

conhecimento grego,58 pois os filósofos materialistas anteriores a Sócrates

procuram dividir a matéria física até o infinito, buscando surpreender a

substância primordial e infinita, que denominam átomo. Tais filósofos

materialistas consideravam as letras como átomos fônicos, como elementos

materiais da mesma ordem da substância material

Deve-se compreender que a escrita fonética completa, registrando não

apenas consoantes, como também as vogais, demonstra uma concepção

analítica da substância fônica da linguagem. Assim, os gregos separam (sem

dar esses nomes) o significante do significado, ou seja, a imagem fônica

(graficamente transcrita em seus elementos) não coincide com o referente. Isto

demonstra, inclusive, que, para os gregos, a linguagem é um sistema formal

diferente do mundo exterior significado por ela.59

O alfabeto que usamos é o latino, que se pode caracterizar como uma

adaptação do alfabeto grego às especifidades da língua latina. É o alfabeto

hoje difundido em todo o mundo ocidental e presente também no Oriente, onde

vem se impondo em razão de seu caráter internacional.

57 MOUNIN, Georges. Op. cit., p. 88 58 KRISTEVA, Júlia. Op. cit., p. 150 59 Idem, ibidem, p. 151

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Herança dos romanos, notórios internacionalistas, que nos vem da

sabedoria grega, de sua preocupação com a análise e separação dos

elementos, em aplicar seu espírito a uma invenção dos fenícios. A rigor, teriam

sido os gregos que inventaram o que se conhece como alfabeto, mas eles

próprios renunciaram a essa glória, reconhecendo o papel fundamental dos

fenícios no abandono dos sistemas pictográficos e ideográficos.

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CAPÍTULO II

A ALFABETIZAÇÃO

2.1. Da escrita como arte à alfabetização

A escrita é, portanto e como visto no capítulo precedente, um marco

fundamental na história do gênero humano. É com o domínio da escrita que se

entra na era da civilização, de modo que, de certo modo, é impróprio atribuir-se

a culturas ágrafas o termo civilização, conceito, entretanto, fortemente criticado

pela ciência mais contemporânea.

As próprias civilizações, tão diferentes cada uma delas, tiveram bastante

clareza da importância da linguagem escrita ou do registro escrito da

linguagem. Praticamente todas as primeiras civilizações concederam grau

elevado de posição hierárquica no seio de suas sociedades àqueles que

dominavam a escrita. Melhor seria dizer que a escrita só teria sido permitida a

determinadas classes sociais que já gozavam de superior posição hierárquica.

Assim, em quase todas as primitivas civilizações (a suméria, a egípcia, a

hebraica, a chinesa, a hindu) somente uma classe privilegiada tinha acesso á

escrita. Esta classe era, em todas essas civilizações, inicialmente, a classe

sacerdotal. O mistério da divindade, preservado nos livros sagrados e nas

inscrições em templos e túmulos, estava reservado aos sacerdotes, bem como

o domínio do registro escrito desses mistérios e das diferentes ordenações.

Entretanto, não é de se esquecer que a origem da escrita está bastante

associada às necessidades econômicas dessas diferentes civilizações, nas

quais a vida sedentária determinada pelo domínio da agricultura, permitiu a

criação de cidades. Entre o aldeamento nômade e a aldeia comunitária já se

observam consideráveis diferenças.

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O nomadismo, por sua própria natureza, impede o estabelecimento de

edificações permanentes, não permite o desenvolvimento de estruturas estatais

sólidas. A própria religião é um fenômeno de caráter familiar, como se observa

na gênese das várias religiões. O domínio da agricultura exigiu e promoveu o

simultâneo domínio de uma série de conhecimentos (como por exemplo, os

ligados à meteorologia e à observação astronômica) e conferiu um grau de

sofisticação à organização social que a vida nômade não conhecia. Observe-

se, de passagem, contudo, que esta narração assim linearmente simplificada

está longe de corresponder integralmente ao que ocorreu em particular e de

modo concreto com cada uma das civilizações.

O fato, porém, é que a vida sedentária, dando origem aos aldeamentos

iniciais, desenvolveu-se no sentido da criação de aglomerações maiores de

população, as cidades. Todas as civilizações primitivas, que constituíram os

impérios da Antiguidade, tiveram como célula básica uma cidade em torno da

qual se desenvolveram. Não havia propriamente a noção de país como hoje se

conhece. Havia a Babilônia ou Nínive, por exemplo.

Mesmo mais tarde, a Grécia é uma invenção romana; o que os gregos

conheciam como Hélade era mais uma identificação étnica distribuída num

território de origens míticas. A pátria do grego era a sua cidade: Atenas,

Esparta, etc. O império romano também se organizou a partir de uma cidade,

Roma, embora tivesse espalhado cidades, que repetiam (ou procuravam

repetir) o modelo urbano de Roma, com o mesmo arruamento, com os mesmos

prédios oficiais. O Egito, nesse cenário, é de certa forma uma exceção, na

medida que a noção de império estava intimamente ligada ao território que

ocupava. A civilização egípcia, ao longo de sua história como império, teve

várias capitais como centro político e religioso, sem que a idéia de Império

Egípcio formado por um povo, um governo e um território, se alterasse.

A idéia de civilização, portanto, está vinculada não apenas ao domínio

do registro escrito, como também à instituição de cidades. Nestas, um fator é

de fundamental importância e distintivo: a existência de vida urbana, o que

parece uma tautologia. A vida urbana, à diferença da vida aldeã ou nômade

inclui necessariamente atividade comercial e a presença de artífices, isto é, de

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um rudimento de indústria. Isto não quer dizer que tais fatores não tenham

existido na vida nômade e na vida aldeã; significa apenas que nestas eram de

importância secundária, ao passo que nas cidades constituem a própria

estruturação do espaço urbano. Em geral, as cidades surgiram em razão de

atividades comerciais em grande vulto. Tais atividades, sobretudo à medida

que se avolumavam e se sofisticavam, exigiam alguma espécie de registro.

Como já se demonstrou no capítulo anterior, entre os sumérios e, mais tarde,

entre os fenícios, a escrita foi utilizada especialmente para o registro comercial.

A escrita, portanto, está ligada a um duplo aspecto: o religioso e o

comercial. De exclusiva da classe sacerdotal, a escrita passa a ser atribuição

de agentes governamentais, os escribas. Dessa forma, permaneceu por

séculos.

No Império Romano, essa exclusividade do domínio da escrita por uma

classe social acabou configurando duas modalidades independentes da língua

oficial, o latim. Havia um latim vivo, falado, praticado quotidianamente pelas

pessoas do povo e de todas as classes sociais, inclusive pelos estrangeiros

que tinham que conviver com o povo e com as autoridades romanas. Era o

latim vulgar, modalidade que raramente era escrita e que, por isso, deixou

parcíssimos documentos para posterior estudo pelos filólogos. Ao lado desta

língua verdadeiramente viva, havia uma outra, artificial, somente usada de

forma oral nos discursos do Senado Romano e que era sobretudo escrita, o

latim clássico. Era uma língua altamente elaborada (aquela que os estudantes,

séculos mais tarde, padeciam para aprender, na suposição que seu domínio

era indispensável para compreender o português), em que o complexo quadro

desinencial dos nomes era extenso e completo (no latim vulgar apresentava-se

profundamente reduzido e simplificado). As diferenças entre o latim clássico e o

latim popular (também dito vulgar) eram muito mais profundas do que as que

hoje se observam, em praticamente todas as línguas, entre os registros culto e

popular, a começar pelo fato de uma ser quase exclusivamente escrita, ao

passo que outra ser quase exclusivamente falada.

Ainda na Idade Média européia o domínio da escrita estava circunscrito

a uma classe, novamente a sacerdotal. Com raras exceções, apenas os

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religiosos sabiam ler e escrever. De resto, pelas características da vida feudal,

as necessidades de escrita eram muito pequenas. A língua escrita asilou-se

nos mosteiros, onde certos frades dedicavam-se a copiar livros antigos

(monges copistas) e a redigir outros livros. Mesmo entre os frades, nem todos

eram letrados; as monjas, em especial, geralmente não sabiam ler. Alguns

livros de História registram que o próprio imperador Carlos Magno não sabia

ler.60 Tal fato, como se pode inferir, não estigmatizava, como hoje, analfabetos,

como excluídos de uma sociedade letrada.

Observe-se, de passagem, que, durante a Idade Média européia, a

língua escrita era o latim. Falava-se o vulgar, termo que designava as línguas

românicas, então em formação, mas escrevia-se em latim. Isto quer dizer que,

durante esse período, saber ler e escrever significava também dominar a língua

latina, que já ia caindo em desuso na sociedade européia.

A generalização do uso da língua escrita e, conseqüentemente, da

leitura, só vai ocorrer no termo final da Idade Média, quando a vida feudal já se

encontra quase totalmente desestruturada, quando as cidades já monopolizam

toda a vida social, quando a burguesia mercantil começa a exercer o

predomínio econômico na sociedade, quando se vão gestando as nações

européias modernas, sob a égide, não do barão feudal, mas do monarca

absolutista.

Por essa época, chega-se ao formato atual do livro, introduz-se o papel,

e inventa-se a imprensa de tipos móveis. Além disso, é a época da proliferação

das universidades, do incremento do comércio continental e transcontinental. É

a época da explosão do Renascimento. É também a época da eclosão da

Reforma Protestante, inicialmente por obra de Martinho Lutero. Prega este e

pregam os demais reformadores que não existem intermediários entre Deus e

os fiéis, que cada fiel é um sacerdote, que cada fiel deve ler a Bíblia, pois só

ela é a palavra de Deus. Como se sabe, o primeiro livro impresso por

Gutemberg foi a Bíblia; sabe-se também que a Reforma Protestante promoveu

a distribuição da Bíblia em larga escala para os fiéis. Saber ler passa a ser uma

exigência, pelo menos para certas classes sociais.

60 ARRUDA, José Jobson de A. & PILETTI, Nelson. Toda a História. São Paulo: Ática, 1999

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A chamada Idade Moderna, com a franca ascendência da burguesia,

apesar dos privilégios da nobreza, vai assistir a um formidável desenvolvimento

da imprensa, a uma multiplicação inimaginável de leitores, ao surgimento dos

primeiros escritores profissionais. Mas é só com o fim do chamado Ancien

Régime, com a Revolução Francesa, que a idéia de universalização do domínio

da escrita passa a ser divulgada e admitida.

Os revolucionários de 1789, dentro dos princípios liberais da liberdade e

da igualdade, vão propugnar uma escola popular, universal e laica. Só então se

coloca a questão da alfabetização. Até então, aprender a ler não era

exatamente alfabetizar-se, embora o domínio do código de sinais escritos fosse

indispensável. Aprender a ler e a escrever eram incumbências de uma classe

social ou profissional e estava integrado ao corpo geral da aprendizagem

necessária como o trivium e o quadrivium da escola romana. Por outro lado,

aprender a ler, até então, não estava ligado à instituição escolar; tal

aprendizagem poderia dar-se antes ou depois da escolarização. Além disso, a

escola, propriamente, era instituição com finalidades bem diversas daquelas

que lhe atribuiu a Revolução Francesa.

Deve-se considerar, inclusive, que a visão moderna, tão aparentemente

óbvia, de que o aprendizado da escrita está associado ao da leitura, não era

generalizada. Pelo contrário, entendiam-se como processos distintos,

aprendizagens individuais, pois somente as crianças que tinham pais que

pudessem custear um preceptor eram iniciadas na difícil arte de traçar as letras

no papel.

Era de fato uma arte. Imagine-se a escrita hieroglífica dos egípcios

(como ainda hoje, a escrita ideogramática dos chineses). Durante a Idade

Média foi forte a influência dos povos bárbaros e do caligrafismo gótico. Os

textos medievais eram desenhados, as letras eram caprichosamente enfeitadas

nas chamadas iluminuras. Também evidencia o caráter elitista da escrita, a

grafia exageradamente desenhada dos séculos XVIII e XIX, de que ficaram

vestígios na escrita caprichosa dos tabeliães brasileiros até bem avançado o

século XX.

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Escrever era uma arte gráfica. Aqueles que a dominavam eram bem

pagos e respeitados no meio social. Ainda hoje, existem os calígrafos,

profissionais que vão desaparecendo no mercado, à proporção que avançam

as técnicas gráficas e de informática, mas que ainda têm seu espaço quando

se trata da elaboração à mão de documentos especiais, como diplomas

honoríficos. As escolas brasileiras do século XX mantiveram por décadas as

chamadas caligrafias verticais, que de certa forma, bastante abrandada é certo,

respiram aquele mesmo ideal estético da escrita.

Nesse sentido, observa José Juvêncio Barbosa que:

Além disso, escrever era uma atividade complicada: imagine uma criança tentando traçar caracteres cheios de arabescos com uma pena de ganso entre os dedos (a pena de ferro ou de aço só foi inventada em 1830). A escrita era então considerada uma arte – uma coreografia da pena – que implicava uma posição correta do corpo, o manejo de materiais delicados, uma dança das mãos.61

Tudo isso era obstáculo ao desenvolvimento das idéias de alfabetização

e de escolarização. São os burgueses revolucionários de 1789, no ideal de

eliminar todos os privilégios da nobreza, com a urgência de obterem para si os

traços que distinguiam a classe derrotada e até mesmo em virtude da

necessidade econômica de terem parte de seus servidores (proletários,

operários, escriturários) escolarizada para o pleno domínio de certas máquinas,

da correspondência, dos assentamentos mercantis e sabe-se lá quantas outras

ocupações, que desenvolvem os ideais de escola e da alfabetização.

Dessa forma, é possível considerar o ano de 1789 como um marco

inicial da associação, que se mostraria definitiva, entre a alfabetização e a

escola Tal, porém, não aconteceu de imediato. As boas intenções da

Revolução Francesa, como se sabe, foram rapidamente abortadas, embora a

afirmação daqueles ideais não se tenha perdido. Só um século mais tarde, é

que efetivamente vai-se observar uma associação definitiva entre alfabetização

e escola, com a promulgação das leis fundamentais dos anos de 1880; tais leis

61 Barbosa, José Juvêncio. Op. cit. p. 17

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estabeleceram as bases da escola pública obrigatória, laica e gratuita.62 É a

universalização da alfabetização e a escola como ideal político:

Nesse sentido, 1789 é apenas o marco inicial, pois é a escola de Jules Ferry (década de 1880) que concretiza o modelo escolar de alfabetização tal qual o concebemos até hoje.63

Não há como negar, porém, que é com a Revolução Francesa, que

surge a idéia de escola universal, até mesmo a idéia de escola gratuita, sob o

controle do poder público, regulamentada por uma legislação centralizadora.

Com a Revolução Francesa, produz-se um processo (pelo menos de forma

embrionária) de massificação e de uniformização do sistema escolar. Surge a

escola moderna, colocando de imediato a questão de como organizar o

trabalho de ensinar, de modo que um único professor pudesse ensinar a muitas

crianças, de maneira rápida, eficaz, segura e econômica. Coloca-se o problema

da alfabetização escolar.

2.2. Breve história da alfabetização

Como se viu, não há que se falar nem em alfabetização, nem em

escolarização antes da Idade Contemporânea. Tais conceitos não se colocam

ao longo da Antiguidade, nem da Idade Média, nem da Idade Moderna,

embora, ao fim desta, a proposta de uma educação universalizada partindo de

um largo processo de alfabetização tenha sido defendida pelos liberais, pelos

enciclopedistas e pela burguesia.

Até a Revolução Francesa, escrever era sobretudo uma arte, uma arte

gráfica, como se viu, exercida inicialmente pelos escribas e, mais tarde, pelos

calígrafos, que resistiram bravamente aos esforços de simplificação da escrita

empreendidos principalmente no século XIX.

É, portanto, com a Revolução Francesa que se coloca na prática e para

as grandes massas a questão da alfabetização e o ideal de educação

universalizada e gratuita, além de separada da religião.

62 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit. p. 16 63 Idem, ibidem, p. 16

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É possível, contudo, bosquejar alguns experimentos anteriores em

termos de generalização da educação e de esforços de alfabetização. Como se

viu, a Reforma Protestante apoiou-se em larga medida na possibilidade de o

próprio fiel ler a Bíblia e de produzir sua própria interpretação (talvez um dos

fatores que caracterizaram a Igreja Reformada pela intensa fragmentação em

denominações e seitas). Nos países protestantes, empreendeu-se, àquela

época, um esforço de universalização da leitura, uma das razões pelas quais,

séculos mais tarde, os revolucionários franceses vão buscar na Alemanha, na

Holanda e na Inglaterra subsídios para desenvolver seu programa de

escolarização.

Também a Igreja Católica se envolveu em esforço gigantesco para

generalizar a leitura e a escrita. É do processo da Contra-Reforma que surgem

as instituições escolares religiosas, a princípio jesuítas. Os grandes colégios

católicos (masculinos e femininos) que se espalharam por todo o Brasil e que,

durante muito tempo, representaram um padrão elevado de qualidade

educacional, são herdeiros desse esforço protagonizado pela Contra-Reforma.

No empreendimento colonial, principalmente na América, é que mais de

perto se fez ver o trabalho da Contra-Reforma e dos colégios católicos. Houve

o propósito intencional de se promover a catequese dos povos aborígenes. A

História do Brasil exemplifica a afirmação na figura ímpar de José de Anchieta,

dedicado especialmente à evangelização dos curumins, as crianças indígenas,

num esforço em que conjugou a pedagogia com a literatura e a arte dramática.

Mas não foi apenas a figura de Anchieta. Recorde-se o esforço de

alfabetização conduzido também por jesuítas nas reduções, como os Sete

Povos das Missões, em que se organizou uma verdadeira república mariana,

de cunho já considerado comunista, dirigido pelos padres e no qual se

evidenciou um gigantesco trabalho de educação, inclusive “profissionalizante”,

na medida em que preparou um sem número de artesãos, responsáveis pelas

belíssimas igrejas então construídas e das quais hoje só restam ruínas.

Em ambos os exemplos, o da Reforma Protestante e o da Contra-

Reforma católica, o empreendimento de escolarização e de alfabetização

estava vinculado à religião: aprendia-se a ler para melhor servir a Deus. O

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propósito de criar-se uma educação secular e laica só é levado a efeito pela

Revolução Francesa, no final do século XVIII.

Como se referiu na abertura do presente capítulo, um problema que os

governantes burgueses da França se colocaram foi o de encontrar um sistema

capaz de dar conta da tarefa, até então desconhecida, de se conferir a um

único mestre o encargo de ensinar a muitas crianças, de maneira rápida e

eficaz.

Informa José Juvêncio Barbosa64 que os governantes franceses foram

buscar orientação nas experiências levadas a efeito no exterior. Assim,

realizaram viagens aos países europeus, que já tinham experiência com

alfabetização desde a Reforma Protestante, como a Alemanha, a Holanda e a

Inglaterra. Do primeiro colheram a orientação da importância a ser dada à

formação do professor. Na Holanda tomaram conhecimento de técnicas

revolucionárias como, por exemplo, o uso do quadro de giz, a famosa lousa.

Para o citado José Juvêncio Barbosa, a principal contribuição que os

franceses receberam proveio da Inglaterra,65 onde, já desde 1798 André Bell,

que era anglicano (religião oficial da Inglaterra), narrara uma experiência

realizada com crianças hindus, em Madras, na qual se utilizou um ensino

através de monitores, processo que propunha para a Inglaterra, através do

qual, as crianças mais adiantadas ajudavam o professor na tarefa de ensinar

aos companheiros menos avançados nos estudos. Instalou-se, em 1803 uma

querela, quando Lancaster, que era quacre, expôs uma experiência que obteve

muito sucesso. Embora a experiência e proposta de Bell fossem idênticas

quanto aos procedimentos e métodos, não lograram êxito e caíram no

esquecimento, naquele interstício de 5 (cinco) anos. Bell reagiu e reclamou a

prioridade da descoberta. Instalou-se o que José Juvêncio Barbosa denomina

uma querela, explicando-a em termos religiosos, de vez que os seguidores de

cada uma daquelas religiões (anglicanos e quacres) tomaram partido de seus

respectivos irmãos em fé.66 A questão foi resolvida com o tempo, que

determinou a denominação do procedimento como Método Lancaster-Bell.

64 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 17 65 Idem, ibidem, p. 17 66 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 17

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Foi essa experiência que os republicanos franceses procuraram aplicar

na França, naquilo que se chamou ensino mutual, pelo qual o professor

trabalhava sua classe com o auxílio de monitores. Observa o citado Juvêncio

Barbosa que o método de ensino mutual coincide com o início das práticas

pedagógicas coletivas e com a deflagração da ideologia do mérito, pois, para

ser escolhido como monitor, o aluno devia se revelar o melhor, distinguindo-se

dos demais pelo esforço e pela dedicação.

Também é por essa época e nesse empreendimento que se abandona a

discussão sobre qual ensino deve ser prioritário, se o da escrita ou o da leitura.

Os teóricos franceses (P. Delaunay, Cherrier e J. B. de La Salle67) já no século

XVIII defendiam a tese de que se deveriam juntar as duas aprendizagens,

embora alguns defendessem o início pela escrita, ensinando a criança a traçar

a letra pronunciando seu nome, ou justificando com a argumentação de que a

história da escrita é anterior à leitura, de modo que, se o ensino da escrita

fosse eficiente, a criança, natural e conseqüentemente, aprenderia a ler.

Observa o sempre referenciado José Juvêncio Barbosa que, apesar

dessas idéias vicejarem desde o século XVIII, só no século XIX é que a prática

da escrita e a prática da leitura começam a ser efetivamente associadas. Por

essa época, a escrita, finalmente, deixa de ser uma arte, o que, como se viu

acima, provocou protesto dos calígrafos. O desenho das letras passa a ser

simplificado e se ensinam as crianças as letras manuscritas e as de imprensa,

ao mesmo tempo, como se observa ainda hoje num sem número de cartilhas.

Surge, ainda no começo do século XIX, o método fonético, pelo qual as

crianças traçam as letras, mas não dizem o seu nome e sim o seu som. O

método foi desenvolvido por Scholz, que fora discípulo de J. B. Graser, que

ensinava primeiro as letras, depois as sílabas e, por fim, as palavras.68

67 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 19 68 Idem, ibidem, p. 18

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Os avanços vão se tornando cada vez mais rápidos. Segundo as

informações de José Juvêncio Barbosa, já a partir de 1815, a Sociedade para a

Instrução e Elementar da França cuida da propagação do ensino mutual e

introduz algumas inovações, como a referida associação entre o ensino da

escrita e o da leitura. Publica-se, em 1818, um guia do ensino mutual, com

orientações para o professor, populariza-se o uso do quadro de giz e adota-se

o mobiliário escolar, bem como começa a surgir uma arquitetura escolar

especializada. Entre 1810 e 1833, criam-se centenas de escolas normais na

França, massificando a formação do professor.69

O sistema francês praticamente se espalha por todo o mundo ocidental e

é o que se observa tardiamente no Brasil. Só tardiamente, porque o ideal de

escolarização universal e laica é associado aos republicanos, enquanto o

Brasil, ao longo de todo o século XIX (praticamente todo) é uma monarquia,

que se caracterizou pelo extremo descaso com a educação popular.

Não é muito diferente a atitude da Primeira República. Os avanços em

educação são lentíssimos e a literatura brasileira do período dá bem uma idéia

de como eram nossas escolas e de que métodos então se valiam. O estado da

escolarização no Brasil só começa a mudar na segunda metade do século XX.

Um pouco antes, em 1946, a UNESCO, criada pelo ONU, então também

recentemente criada, incorpora em seus objetivos a luta contra o

analfabetismo, o que causou impacto quase imediato no Brasil. Já em 1947, é

lançada a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos, voltada

principalmente para o meio rural e inaugurando uma nova consciência: a de

que o País tem o sério problema do analfabetismo, que é preciso superar. É o

primeiro movimento de alfabetização fora da moldura escolar, ao qual se

seguiram tantos outros.

Antes, porém, durante o Governo Vargas, intensificou-se a multiplicação

de escolas pelo Brasil. É a época em que as classes isoladas, como foi hábito

nos sistemas escolares oficias até 1930, foram agrupadas, formando-se o que

se denominou Grupo Escolar, denominação que perdurou por décadas. O

69 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 19

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crescimento é contínuo até a década de 1940, em que o ano de 1946 marca o

período de maior expansão:

(...) 1946 inaugura um período que apresenta os maiores índices de expansão da escola básica regular, visando preparar os novos quadros capazes de desempenhar as funções exigidas por uma sociedade que se moderniza; é também o início de um período de numerosas iniciativas em prol da educação de adolescentes e adultos, com o objetivo de qualificar a população para o exercício do voto.70

Recorde-se que então o voto não era permitido aos analfabetos. A

referida Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos é uma primeira

iniciativa no sentido de integrar esses vastos contingentes ao eleitorado.

Seguiu-se a ela um Seminário Interamericano de Educação de Adultos, em

1949, e a Campanha de Educação Rural.

Fora do âmbito da educação de adultos, desenvolvia-se o ideal da

Escola Nova, que exerceu forte influência sobre as concepções de

alfabetização de crianças. Mas também influenciou as técnicas de

alfabetização de adultos, influência que se refletiu fundamentalmente na

Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, a que imprimiu uma

feição mais técnica e científica nas ações, destinadas que foram às diferentes

faixas etárias.71

A década de 60 experimenta forte crescimento dos sistemas públicos de

educação, com a ampliação das diferentes redes escolares. Também o sistema

privado passou por significativo incremento no mesmo período. Ao lado disso,

é o período em que mais numerosas foram as ações com vistas à erradicação

do analfabetismo, com movimentos fortemente caracterizados por conteúdo

político, o que se explica pelo momento, de forte politização da sociedade, que

se viu radicalmente dividida entre progressistas (posições políticas de

esquerda) e conservadores (posições políticas de direita), com a vitória destes

últimos, em 1964, através do golpe militar.

70 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 26 71 Idem, ibidem, p. 27

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A própria Igreja manifestava em seus clérigos e fiéis a divisão que se

observava na sociedade. O segmento progressista participou ativamente dos

movimentos de alfabetização, dos quais o principal foi o Movimento de

Educação de Base. Organismos ligados à corrente política do governo Goulart

também participaram, como a União Nacional de Estudantes, através do

movimento dos Centros de Cultura Popular (CPC). Outro movimento

significativo do período foi a Campanha “de pé no chão também se aprende a

ler”72, deflagrada no estado do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof.

Moacir de Góes. São movimentos que associam a tarefa de alfabetização a

atividades educativas, como teatro na rua, jornal, artes plásticas, artesanato,

canto, música popular, construção de praças e centros de cultura. Todos esses

movimentos, como é sabido e como anota José Juvêncio Barbosa, são

reprimidos e desmantelados a partir do golpe militar de 1964.

Entretanto, o próprio regime militar também voltou suas atenções para a

alfabetização. Seu esforço mais coordenado nesse sentido, foi a criação,

implantação e desenvolvimento do Movimento Brasileiro de Alfabetização

(MOBRAL), que adotou método próprio de alfabetização e depois deu início a

um programa de continuação dos estudos, mas já nos fins do seu

funcionamento, que ocorreu em 1985.

Também nos estertores do regime militar, no início dos anos 80,

lançaram-se o Programa Nacional de Ações Sócio-Educativas para o Meio

Rural (PRONASEC) e o Programa de Ações Sócio-Educativas e Culturais

(PRODASEC), voltado para as zonas urbanas. Nesta ordem de ações, já

depois da redemocratização, é de se assinalar o Programa Alfabetização

Solidária.

2.3. A sucessão dos métodos de alfabetização

A questão da alfabetização impôs logo a questão dos métodos. Num

primeiro momento, era preciso organizar um sistema que pudesse dar conta

72 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 27

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das novas exigências, que caracterizavam a nova sociedade que se formava

sob a hegemonia da burguesia, a partir da Revolução Francesa.

Tratava-se de toda uma nova ordem econômica, política, social e cultural

a que se implantava a partir da era republicana. Já há algum tempo, a

economia de base rural, profundamente agrícola (que dava sustentação à

aristocracia), baseada no trabalho da terra, vinha sendo substituída por uma

economia urbana, já industrial e dominada pelo comércio de produtos

manufaturados. Politicamente, a feição mais visível da nova sociedade, a

burguesia havia acabado de desbancar a nobreza na condução do Estado, que

a partir de então se define como republicano e burguês, pondo em prática o

ideal do liberalismo, de democracia e liberdades políticas, no qual se inclui o

direito à educação e o propósito das classes dirigentes de implantar uma

escola universal e laica.

Da lição segura de José Juvêncio Barbosa73, infere-se uma nova ordem

social, caracterizada pela consolidação de uma nova estrutura familiar. Não

mais a grande família semipatriarcal, que inclui parentes de diversos graus,

além de diferentes agregados. Tem-se agora a chamada família nuclear,

baseada no triângulo formado por pai, mãe e filhos. Tal família, ensina o autor,

é ciosa de sua privacidade, tem sua união fundada no casamento, que agora é

civil e não religioso; cuida ela própria da educação dos filhos, o que enfraquece

os laços externos e solidifica um estilo doméstico de vida, que ainda hoje,

apesar de enfraquecido e questionado, se observa.

Ainda seguindo a lição do mesmo autor74, observa-se uma nova ordem

cultural, que já se via formatando desde a invenção da imprensa por

Gutemberg, no século XV, mas que se consolida pela multiplicação dos meios

de difusão cultural, especialmente pela imprensa, que tem agora um largo

público leitor.

É a época do surgimento dos romances (a narrativa literária burguesa

por excelência), dos folhetins, que prendem a atenção dos leitores por

semanas, leitores em que agora se incluem, em número crescente, as

73 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 44 74 Idem, ibidem, p. 45

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mulheres. É também a época, como se viu anteriormente, da implantação de

um sistema escolar que valoriza o domínio da leitura e da escrita.

A rigor, só a partir dessa época se podia falar em método de

alfabetização, de vez que o processo de ensino da escrita e da leitura pouco

tinha a ver com o que se pode entender por alfabetização, como se julga que

restou esclarecido páginas acima.

Entretanto, de certo modo, qualquer aprendizagem da leitura e da escrita

num sistema alfabético implica alguma forma de alfabetização. Isto quer dizer

que sempre teria havido um método de alfabetização, ainda que implícito e

inconsciente. Afinal, quando se quer chegar a algum lugar, deve-se utilizar

algum caminho; um método nada mais é do que um caminho. É por isso que o

autor que no presente passo se vem acompanhando identifica, em termos

metodológicos, três grandes períodos históricos, que remontam a muito antes

da universalização da escola da alfabetização.

Para José Juvêncio Barbosa, o primeiro método, denominado sintético,

surge na Antiguidade e avança até meados do século XVIII com absoluta

exclusividade. O segundo método surge precisamente pelo século XVIII e

predomina até o século XX. Por fim, o momento atual que configuraria um

método sintético-analítico, denominação que o autor recusa por não acreditar

que tal método exista como proposta teórica, preferindo denominá-lo método

sintético-silábico.75

Esclarece o autor que o método sintético, o mais antigo, que perdurou

por séculos, realiza uma análise puramente racional dos elementos da língua

escrita, de modo que a instrução caminha do simples para o complexo, isto é,

das letras, para a sílabas, para as palavras, para as frases e, finalmente, para o

texto completo76. Tal método semelha uma escada em que é impossível galgar

o degrau seguinte sem ter dominado o degrau anterior.

75 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit. p. 46 76 Idem, ibidem, p. 47

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O autor apresenta três considerações críticas em relação a esse

método, que ainda não foi integralmente abandonado. A primeira delas é que

pressupõe uma aprendizagem anterior à leitura, qual seja a aprendizagem de

uma técnica, a alfabetização. A segunda crítica é a de que, em razão disso,

ocorria uma confusão entre a análise da língua e o ato de ler, uma vez que

para a análise valia-se da língua escrita, mas para a leitura tinha que tomar

como referencial de base a língua oral. Por fim, observa que toda a

organização e ordenação da matéria obedecia a uma lógica adulta e não a uma

lógica do pensamento infantil. O chamado método fonético não deixa de ser um

aperfeiçoamento do método sintético.

O método analítico também tem existência mais que centenária. Foi

formulado inicialmente por Radonvilliers77, mas só veio a ser sistematizado no

século XX. Fundamentalmente, o método consistia em se propor à criança uma

unidade significativa, a palavra, de forma gradativa, de modo que, aos poucos,

a criança, sem a necessidade de ajuda, iria reconhecendo diretamente as

palavras escritas. Passava-se então à fase seguinte, que permitiria à criança

ler frases e, conseqüentemente, estar apta a ler propriamente. Só em momento

posterior, bem depois do domínio das palavras, é que se iniciaria a análise dos

elementos da palavra.

Sem comentar o método sintético-analítico, cuja existência nega, o autor

que se acompanha expõe o chamado método ideo-visual, formulado por Ovide

Decroly, em 1936. A primeira característica básica desse método é apresentar

uma fase inicial baseada no reconhecimento global de frases significativas para

a criança, fase que o método recomenda durar o maior tempo possível

Outra característica do método ideo-visual é ter como objetivo fazer com

que a criança compreenda o sentido do texto lido, conferindo, portanto, uma

ênfase à compreensão da leitura e não à codificação. Uma terceira

característica do método ídeo-visual é recair sua ênfase no uso da escrita,

conferindo-lhe uma função de comunicação. Esse método, contudo, que em

muito se aproxima das atuais formulações, só muito raramente foi aplicado no

Brasil.

77 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 49

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Em nosso país, a questão dos métodos chegou a ganhar realce, indo

parar até nas páginas dos jornais. De um modo geral, os professores

mostraram resistência aos métodos analíticos, que chegaram a ser impostos

por lei, como aconteceu no Estado de São Paulo.78

78 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 51

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CAPÍTULO III

O LETRAMENTO

3.1. Conceito de letramento

Mais recentemente, começou a ser desenvolvido o conceito de

letramento, que procura avançar além da idéia de alfabetização, superando o

que nesta está ligado à noção de domínio de uma técnica prévia para o

desenvolvimento da aprendizagem da leitura e da escrita.

O desenvolvimento dessa concepção está intimamente ligado à

constatação dos expressivos fracassos das diferentes propostas públicas de

alfabetização. Entre tais fracassos releva recordar o fato já suficientemente

consabido de que um sem número de adultos alfabetizados apresentaram,

após a conclusão do processo de aprendizagem da leitura e da escrita, uma

regressão ao estágio anterior, isto é, voltaram a ser analfabetos. Quanto a esse

aspecto, observa José Juvêncio Barbosa79 que a própria Unesco, na discussão

dos projetos e programas por ela desenvolvidos com o propósito de promover a

erradicação do analfabetismo, tem-se mostrado preocupada, incluindo entre

suas questões mais prementes a dos problemas que dizem respeito à

regressão do alfabetizado ao analfabetismo.

Outro dos fracassos que a cada dia tem-se mostrado mais evidente diz

respeito não àqueles que foram alfabetizados fora da faixa etária própria, já na

idade adulta, mas àqueles que se submeteram à escolaridade regular, que

dominam as técnicas de decodificação dos signos escritos e de codificação

escrita dos signos orais; em outras palavras, os problemas do escolarizado que

“sabe ler”. Num índice absolutamente assustador, uma grande faixa de

79 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit. p. 28

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pessoas (inclusive jovens recém-saídos das escolas) são literalmente

incapazes de entender aquilo que está sendo lido.

Não faz muito tempo, um jornal de São Paulo publicou matéria (a que

não se teve acesso na presente pesquisa) sobre uma experiência

relativamente simples realizada nas ruas daquela capital. Perguntava-se à

pessoa se ela sabia ler e, no caso de resposta positiva, apresentava-se-lhe um

cartaz com oferecimento de emprego, no qual estavam especificadas

informações importantes, como a natureza da atividade, o endereço do

emprego e o que era necessário para postular a colocação. Formulavam-se

depois à pessoa questões simples, como de que tratava o anúncio, qual era a

natureza do emprego, em que lugar estava sendo oferecido. Um número

assustador de pessoas que diziam saber ler era incapaz de responder a

qualquer dessas perguntas.

Diante de tais situações, pergunta-se José Juvêncio Barbosa se ser

alfabetizado é sinônimo de ser leitor.80 Responde pela negativa, afirmando que

a escrita, gradativamente, se transformou num obstáculo para o homem ter

uma participação efetiva no mundo social, pois o único dispositivo que lhe foi

ensinado de acesso ao texto escrito é ineficaz. Tal dispositivo, único de que

dispõe uma larga faixa da população é a transformação do escrito no oral, que

se revela um recurso ineficiente para a busca de respostas às questões que o

mundo moderno propõe.

Em razão do reconhecimento dessa situação, a referida Unesco

apresentou a noção de alfabetização funcional, vinculada à produtividade dos

trabalhadores. Reconheceu-se que, com a introdução de novas tecnologias,

que exigem mão-de-obra infinitamente mais qualificada, ser analfabeto passou

a ser um problema.

A proposta de alfabetização funcional era voltada inicialmente para o

sistema produtivo. Por essa proposta, a alfabetização deveria proporcionar a

todos os alfabetizados elementos capazes de desenvolver habilidades que

estão vinculadas à formação e à capacitação profissional. Desse modo, a

proposta de alfabetização funcional teve o objetivo de proporcionar condições

80 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 28

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eficazes para que os alfabetizados pudessem enfrentar de forma competente

as diferentes situações que o mundo econômico propõe. Entretanto, logo se

reconheceu a presença de questões ligadas ao mundo físico, moral afetivo,

intelectual e social do indivíduo. 81 Assim, o recurso ao texto escrito seria uma

opção eficaz para a busca das respostas. Em razão disso, a alfabetização

funcional deixou de vincular-se exclusivamente aos aspectos da atividade

econômica, para associar-se à noção de educação permanente.

Informa o autor que se vem acompanhando que, com base nas idéias de

alfabetização funcional, desenvolveu-se enorme esforço em todo o mundo no

sentido de universalizar a alfabetização. Entretanto, esse esforço não produziu

muitos resultados. Pelos estudos da própria Unesco, o número absolutos de

analfabetos no mundo tende a aumentar, principalmente em razão da explosão

demográfica e da falta de eficácia da ação da escola regular.

José Juvêncio Barbosa, porém, vê um outro motivo para esse fracasso,

um fator que considera intrínseco à própria concepção de aprendizagem da

leitura com base na alfabetização.82 Tal fator seria o caráter abstrato e artificial

da concepção de alfabetização que parte da premissa de que, na etapa inicial

do processo de aquisição do código escrito, não importa o conteúdo da

linguagem, pois o importante é saber sobre a escrita.

Dessa forma a proposta de alfabetização funcional, com ênfase no

período que sucede à alfabetização, padece do defeito de entender que a

formação do leitor é etapa sucessiva à etapa de aquisição da escrita, como se

o estágio de formação do leitor fosse um prolongamento da etapa de

alfabetização.

É precisamente no combate a essa concepção que desvincula a

alfabetização (domínio das técnicas de interpretar e representar o código

escrito) da formação do leitor, que surgiu a concepção de letramento.

Trata-se, não apenas de um termo novo, mas de uma nova maneira de

entender as relações entre o mundo da escrita e o mundo social. A noção de

letramento introduz a idéia, sempre reclamada, mas quase sempre esquecida

81 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 29. 82 Idem, ibidem, p. 30

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de leitor qualificado, isto é, aquele que tem na leitura uma prática social

constante.

Tal concepção leva em conta uma contradição que se observa a cada

passo. Na mesma medida em que há pessoas alfabetizadas que não

conseguem transpor o texto lido para o mundo da vida real, como aconteceu

com as pessoas entrevistadas pelo jornal paulista a que acima se fez

referência, existem analfabetos, pessoas que nunca freqüentaram uma escola,

mas que têm contato com as letras e que fazem cálculos matemáticos no seu

quotidiano; são pessoas que não sabem ler, todavia conhecem os aspectos

principais e as funções da língua escrita.

Seriam, no dizer de Sérgio Roberto Costa83, pessoas dotadas de um

certo grau de letramento, embora não fossem pessoas alfabetizadas e não

dispusessem de nenhuma escolaridade. Num sentido tradicional, seriam

considerados simplesmente como analfabetos, uma vez que não dominariam o

sistema de sinais gráficos da língua nem seriam capazes de codificá-lo ou

descodificá-lo, isto é, não seriam capazes de escrever nem de ler. É essa a

visão tradicional, de que a alfabetização é a competência ou capacidade

individual de uso e prática da escrita.84

Por outro lado, passou-se a entender letramento, para além da

significação tradicional e dicionarizada do termo letrado (versado em letras,

erudito), como um conjunto de práticas letradas sociais, culturalmente

determinadas. É dessa forma que Magda Soares85 concebe letramento, como

um estado ou condição de um indivíduo ou grupo social que exerce, em graus

diversos, as práticas de leitura e escrita, participa de eventos que envolvem a

leitura/escrita e sofre os efeitos das práticas e eventos de letramento.

Nessa linha de raciocínio, Sérgio Roberto Costa86 entende que o

letramento vai além da alfabetização, pois esta se refere ao saber ler e

escrever apenas como domínio da tecnologia da escrita, ao passo que o

83 COSTA, Sérgio Roberto. Interação, alfabetização e letramento: uma proposta de/para alfabetizar, letrando. In. MELLO, Maria Cristina de & RIBEIRO, Amélia Escotto do Amaral (org.). Letramento: significados e tendências. Rio de Janeiro: Wak, 2004, p. 23. 84 Idem, ibidem, p. 26. 85 SOARES, Magda B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE, 1998, p. 38 86 COSTA, Sérgio Roberto. Op. cit., p. 27

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indivíduo letrado é aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a

leitura e a escrita e responde adequadamente às demandas sociais de leitura e

escrita.

O termo letramento, ao contrário de alfabetização, é de introdução

recente no vocabulário das ciências da Educação. Surgiu, entre nós, nos anos

80, citado em primeiro lugar por Mary Kato87, em obra de 1986 (No mundo da

escrita: uma perspectiva psicolingüística). Em 1995, de Leda Verdiani Tfouni88

é publicada a obra Letramento e alfabetização, em que justificou sua utilização

pela ausência de outro termo que expressasse essa situação específica de

estar exposto aos usos sociais da escrita, sem, no entanto saber ler nem

escrever.

De passagem, observe-se que o termo letramento tem sido utilizado de

forma, se não dúbia, pelo menos multívoca, na medida que, ora está associado

a um plus em relação à alfabetização, isto é, algo que vai além da

alfabetização, de que o simples alfabetizado não dispõe, ora como algo por

completo dissociado do domínio das técnicas de codificação e de

decodificação, presente em quem nem teve a oportunidade de as dominar bem

como figurando tal como um saber prévio, independente da escolarização, que

as crianças já portam por sua vivência cultural. Na concepção exposta por

Leda Versiani Tfouni, o letramento se observa, de fato, naquelas situações em

que o indivíduo, sem saber ler, está exposto às práticas de língua escrita.

É bem verdade que a idéia de letramento está visceralmente ligada ao

aspecto cultural. Leda Verdiani Tfouni busca enfatizar esse aspecto:

Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade.89

Esclarece a autora que, mesmo investigando as conseqüências

individuais da ausência da escrita, o enfoque pelo prisma do letramento

87 KATO, Mary A.. No mundo da escrita – uma perspectiva psicolingüística. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987. 88 TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995, p. 8. 89 . Idem, ibidem. p. 20

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remete sempre ao social mais amplo, ou seja, procura descobrir quais

características da estrutura social tem relação com os fatos ligados á leitura.90

Dessa forma, esclarece a autora que, em termos sociais, o letramento é

um produto do desenvolvimento do comércio, da diversificação dos meios de

produção e da complexidade crescente da agricultura. É também causa das

transformações, e não apenas reflexo, como se pode ver pelos exemplos que

apresenta do aparecimento da máquina a vapor, da imprensa, do telescópio, e

da sociedade industrial como um todo.91

3.2. O letramento escolar

Importa considerar em particular as relações entre o conceito de

letramento e o processo de educação formal desenvolvido nas redes escolares.

Se o indivíduo, mesmo sem dominar o código escrito, sem saber codificar

graficamente os signos orais e sem saber decodificar os signos gráficos, mas

vivendo em sociedade letrada, solicitado pelas demandas da vida social, é

capaz de ter uma relação até certo ponto eficaz com a língua escrita, naquilo

que, por certa ótica, se considera letramento, como entender que pessoas

alfabetizadas, tendo em sua história um complexo de relações com a língua

escrita através do sistema escolar, não demonstrem proficiência na integração

do mundo da escrita ao universo social?

Examinando essa questão, Leiva de Figueiredo Viana Leal92 articula as

concepções de educação, de letramento, de linguagem e de organização

curricular. Abordando a primeira concepção, despreza as visões mais

conservadoras do processo educativo e se concentra numa visão mais

moderna, mais comprometida com a realidade social, em que, em termos de

educação, o grande desafio não é o de educar para o desenvolvimento, mas

para a formação humana dos alunos. Esta visão de educação não vê a escola

90 Idem, ibidem, p. 21 91 Idem, ibidem, p. 22 92 LEAL, Leiva de Figueiredo Viana. Sujeito letrado, sujeito total: implicações para o letramento escolar. In: MELLO, Maria Cristina de & RIBEIRO, Amélia Escotto do Amaral (org.). Letramento: significados e tendências. Rio de Janeiro: Wak, 2004, p. 51 e seguintes.

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como um espaço em que se passam, se repassam e se medem conteúdos,

mas como uma instituição cujo propósito básico é fazer com que o aluno tenha

um projeto de vida e que deseje vivê-lo do modo mais ético e transformador

possível. É, portanto, uma visão de educação que tem como propósito levar o

indivíduo a ser sujeito, a reconhecer sua existência marcada pela

singularidade, o que o torna insubstituível. Assim vista, a educação comporta

processos de potencialização das capacidades dos sujeitos. Insiste a autora

que, à diferença do processo de alfabetização, o letramento é um evento que

pode mudar a vida das pessoas.

Para a autora, letramento é um conjunto de práticas discursivas de uso

efetivo da linguagem, a respeito da fala, da leitura e da escrita. Entretanto,

numa sociedade marcada pela exclusão, pela marginalidade, pelas absurdas

diferenças sociais, econômicas e culturais, não é possível esperar-se igual

desempenho de todos os membros do tecido social, em razão das situações

diferenciadas que são fruto desse contexto desigual.

Tais reflexões levam a autora, necessariamente, ao reconhecimento da

importância da linguagem nesse processo de inter-relacionamento dos sujeitos

e deles com o mundo, que perpassa todos os campos do saber e todas as

dimensões da vida humana, servindo de elo profundo entre o eu e o mundo.

Dessa forma, a departamentalização excessiva das grades curriculares,

fragmentando os currículos, nega a importância da linguagem em todas as

esferas do conhecimento. A noção de letramento está visceralmente ligada ao

conceito de interdisciplinaridade, pois a leitura e a escrita constituem a base em

que se dá essa relação do indivíduo com o conhecimento.

Como se vê, pressuposto fundamental para que o processo escolar

desenvolva simultaneamente o letramento do aluno é que suas práticas e

áreas de conhecimento não se apresentem fragmentadas, isoladas, mas que

se articulem, como o próprio conhecimento se configura como uma totalização

e não como uma fragmentação. Fundamental, portanto, para a instituição

escolar é o desenvolvimento de um trabalho em que se tenha como prática

constante a interdisciplinaridade.

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A autora desenvolve seu pensamento abordando cinco dimensões em

que se deve dar o processo de letramento no espaço escolar: a cultural, a

discursiva, a cognitiva, a ética e a estética.

A primeira dimensão, a cultural, engloba duas direções. Em primeiro

lugar, como é sabido, o fato de alguém saber ler e escrever facilita-lhe o

acesso ao mundo da cultura, permite-lhe um desenvolvimento cultural, que não

é a mera acumulação de saberes, mas um processo profundo de integração à

cultura, a qual se caracteriza pela diversidade de sua articulação, marca

fundamental da cultura, que não tende a excluir, mas a incluir. E vai além da

integração do indivíduo ao seu meio cultural mais imediato ou mesmo nacional.

O indivíduo verdadeiramente culto, não apenas se reconhece pertencente a

uma língua, a uma nação, a uma etnia, mas sobretudo pertencente à

humanidade, isto é, reconhece, por sobre todas as diferenças, a condição

humana.

Uma segunda direção, em sentido contrário, é o papel da própria cultura

na aquisição dos saberes ministrados pela educação formal. Para aprender, é

necessária uma base cultural. Daí decorrem duas conseqüências. A primeira é

que a alfabetização como simples técnica dissociada dos conteúdos da

linguagem está também dissociada da bagagem cultural dos alunos. A

segunda é que a falta de elementos referenciais da cultura dificulta

grandemente os alunos em seu processo de aprendizagem, como já puderam

observar todos os educadores. A autora assim explicita esse aspecto:

As lacunas culturais têm sido responsáveis pelas dificuldades das crianças na compreensão da leitura e na produção textual, pois elas necessitam de determinado conhecimento para tratar os textos que lêem e que escrevem. O letramento requer que uma base cultural seja garantida, o que faz com que os conteúdos escolares, as disciplinas ministradas ganhem importância, se direcionados para suprir as lacunas que, de um modo ou e outro, são conseqüências de outras lacunas, tais como a econômica, a política e a social.93

93 LEAL, Leiva de Figueiredo Viana. Op. cit., p. 57

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O letramento tem também uma dimensão discursiva, na medida que

permite ao indivíduo vivenciar práticas discursivas orais e escritas. Desse

modo, o aluno em processo de letramento é capaz de vir a reconhecer a força

de seu próprio discurso, bem como de contextualizar os discursos que recebe,

pois percebe que o que se fala está marcado por quem fala, onde fala e por

que fala. O indivíduo letrado usa seu discurso para alcançar suas intenções e

para produzir efeitos em seus interlocutores: informar, esclarecer, criticar,

argumentar, sensibilizar, pedir, alertar, impressionar.94

Pela dimensão cognitiva, entende-se que ensinar a ler e a escrever é um

processo de mobilizar um conjunto diferenciado de operações mentais. A

aprendizagem da língua escrita não movimenta e desenvolve apenas

capacidades lingüísticas, mas também cognitivas, responsáveis pelo processo

de produção de sentido. Para a autora, ler e escrever inserem o indivíduo no

mundo simbolicamente construído95.

Talvez fosse melhor relativizar a expressão, na medida que o ser

humano está mergulhado num universo simbolicamente construído, ao qual

não se tem acesso apenas pela escrita.

A autora expõe sua concepção de que letramento está

indissociavelmente ligado a um aspecto ético, não ficando circunscrito ao

meramente técnico, nem ao cultural. Esclarece a autora que o letramento é

uma prática social e, portanto, deve englobar os valores, os sistemas de

referência e o processo de significação, pois as ações e os conhecimentos são

socialmente produtivos.

Por fim, a autora expõe o que denomina dimensão estética, dando a

esse termo uma noção que ultrapassa os conceitos artísticos. A dimensão

estética não está associada à beleza da linguagem, mas à possibilidade de o

ser humano compreender a sua incompletude, razão pela qual o ato de ler é

sempre a possibilidade do encontro de duas subjetividades, a do leitor e a do

produtor do texto.

94 LEAL, Leiva de Figueiredo Viana. Op. cit., p. 58 95 Idem, ibidem, p. 59

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Essa visão, denominada estética, está, porém, muito mais vinculada ao

caráter ético e ao aspecto discursivo que permeiam o processo de letramento

do que a aspectos estéticos propriamente ditos.

A já referida Leda Verdiani Tfouni96, discutindo a questão do processo

de letramento no âmbito da educação formal, o que aqui se denominou

letramento escolar, procura estabelecer uma distinção entre os conceitos de

letramento e de escolaridade.

A distinção é importante para precisar o conceito de letramento, na

medida que uma leitura apressada dos conceitos poderia levar (e tem levado) a

confundir o processo de leitura do mundo que o letramento produz com os

efeitos genéricos que a escolarização produz no indivíduo.

Assim, a autora introduz o conceito de autoria como capaz de configurar

com precisão o letramento. Em sua maneira de ver, a pessoa letrada (não no

conceito tradicional, mas no aqui discutido) tem um texto próprio, com marcas

pessoais, capaz de dar conta não só das intenções do autor, como também de

patentear sua própria história. Ao contrário, o alfabetizado que não teve acesso

ao letramento tem um texto pastiche, eivado de clichês.

Para demonstrar sua visão, a autora compara três textos de autores

diferentes. O primeiro deles é um convite97 dirigido por escrito aos docentes de

um departamento da USP de Ribeirão Preto, redigido por uma universitária

dessa instituição. O segundo é um texto redigido por um secretário da mesma

universidade e publicado no Semanário98, uma publicação que a chefia do

departamento universitário utiliza para divulgar as principais notícias do período

junto aos docentes. O último é uma crônica99 escrita por um presidiário da

cadeia pública de Sertãozinho, após três meses de alfabetização.100

A tese da autora é de que não há relação direta entre escolarização e

letramento.101 Procura demonstrar sua tese pela utilização do critério da

autoria, pois o indivíduo letrado, em sua concepção, é sujeito do discurso e

96 TFOUNI, Leda Verdiani. Op. cit., p. 38 e seguintes. 97 Ver Anexo 1, texto n.º 1 98 Ver Anexo 1, texto n.º 2 99 Ver Anexo 1, texto n.º 3 100 TFOUNI, Leda Verdiani. Op. cit., respectivamente p. 39, 40, 42 101 Idem, ibidem, p. 40.

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suas marcas pessoais estão necessariamente em seu discurso escrito ou oral:

autor é aquele que estrutura seu discurso de acordo com um princípio

organizador que lhe possibilita uma posição de auto-reflexidade crítica no

processo de produção de seu discurso.

Aplicando esse critério, a autora afirma que os dois primeiros textos que

examinou, demonstram sujeitos iletrados, apesar de integrantes do mundo

universitário, ao passo que o último, escrito por um presidiário recém-

alfabetizado, pois havia apenas três meses que iniciara a alfabetização com

duas estagiárias, marcado que é pela coesão, demonstra autoria e, portanto,

um autor letrado, se bem que seus eventuais erros gramaticais ou de ortografia

tenham sido corrigidos na transcrição.

Em relação ao primeiro texto, a autora carrega a mão em crítica

destruidora:

O que atrai a atenção do leitor especializado, neste “texto”, é principalmente a representação que a “autora” parece ter sobre a escrita: a pretensão de um estilo formal e utilização de um léxico que foge à linguagem cotidiana. Porém, a intenção de ser formal transforma-se em paródia, na qual palavras de um eruditismo desgastado (...) são usadas em períodos redundantes, não apenas no eixo sintagmático (...), como também no eixo pardigmático (...). Ao lado disso, temos , no último parágrafo, a grafia fonética de um vocábulo (“dispeço”), fato que poderia até ser aceito como adequado em um texto de outra natureza, mas que aqui assume a mesma importância que o ato falho tem para o psicanalista. Guardadas as devidas proporções teóricas, esse “erro” (que nem seria propriamente erro em outro contexto) é o indício de um descompasso entre a necessidade de controle de um estilo escrito formalizado e a falta de estrutura para mantê-lo.102

O segundo texto, também de pessoa que teoricamente deveria ser

considerada letrada, mas que demonstra ausência de relação direta entre

escolarização e letramento, segundo a autora é exemplo de como uma pessoa

escolarizada pode ser iletrada. Em relação a este segundo texto, a autora faz

comentário francamente irônico:

102 TFOUNI, Leda Verdiani. Op. cit., p. 40

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Qualquer semelhança entre a escrita dessa notícia e os textos produzidos pelos existencialistas franceses, ou mesmo por autores que seguem o chamado “fluxo do inconsciente”, é, obviamente, mera coincidência, uma vez que nestes últimos existe uma intenção deliberada de criar um efeito de sentido específico, intenção esta que não está presente, nem poderia estar, no “autor” do “texto” citado. Pelo contrário, a impressão que se tem é de que ele (o “autor”) é incapaz de planejar sua escrita, não conseguindo sequer construir um rascunho mental da mensagem que pretende escrever. Ele é totalmente dominado pela afluência dos significantes, e parece que via escrevendo “sempre para a frente”, não voltando para reler o que já escreveu e eventualmente corrigir-se.103

Para a autora, nestes dois textos quem os escreveu não consegue

colocar-se como autor do próprio discurso, nele não está presente a autoria, o

que, na sua visão, é precisamente o que caracteriza o letramento. Ao contrário,

a autoria está mais do que patente no terceiro texto, marcado pela coesão,

atingida na construção de um único parágrafo, cujas orações são todas

introduzidas pela mesma expressão (nem). A autora conclui que o autor do

último texto é mais letrado do que o secretário que redigiu a notícia do

Semanário e do que a universitária que redigiu o convite.

Duas observações, porém, devem ser feitas com relação ao

procedimento da autora e às suas conclusões. A primeira delas é que o critério

de autoria não pode ser utilizado como determinante exclusivo de letramento

(ou de domínio da língua escrita). Nos registros formais, a autoria é sufocada,

intencionalmente elidida, em proveito da utilização de fórmulas mais ou menos

estereotipadas; ao contrário, nos registros informais, no literário (escrito) e no

oratório (falado, aliás, cada vez menos falado), a autoria, com as marcas

pessoais e com os rasgos de criatividade é amplamente liberada. A questão,

portanto, que se coloca em relação a esses textos não é a da autoria, a qual

não teria mesmo lugar nos dois primeiros, mas a da capacidade de expressão

pessoal.

103 TFOUNI, Leda Verdiani. Op. cit., p. 41

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A segunda observação atreve-se a sugerir que a autora laborou em

equívoco, pois a diferença observada entre os textos não é, em primeiro lugar,

de grau de letramento, mas de registro. O renomado lingüista Evanildo

Bechara104, retomando conceitos do lingüista romeno Eugênio Coseriu,

discorre sobre as variedades que uma língua apresenta, além da radical

diferença entre o uso oral e o uso escrito da língua. Assim, as línguas variam

no tempo (variação diacrônica, antigamente conhecida como evolução), no

espaço (variação dialetal, variação diatópica, dialetos), variação diastrática (as

variedades de “níveis” entre os diferentes estratos socio-culturais, a norma

culta e a norma popular) e variações diafásicas (as diferentes situações de

tensão que cercam o ato lingüístico; os registros, basicamente, formal e

informal).

Eugênio Coseriu105 explica que o que, fundamentalmente, distingue as

situações de formalidade das de informalidade, para além da tensão específica

que cerca o ato de comunicação e do nível de intimidade dos falantes, é a

questão da distribuição dos papéis de emissor e de receptor do discurso.

Assim, se os interlocutores, ao longo da situação em que é utilizada a língua

vão alternando os papéis de emissor e de receptor (isto é: se ora um fala e

outro ouve, invertendo-se os papéis ao longo da comunicação), tem-se uma

situação de informalidade. Ao contrário, se a situação de comunicação é tal,

que os papéis de emissor e receptor estão previamente definidos (alguém será

o emissor e outro – ou outros – será o receptor), tem-se uma situação de

formalidade. É por isso que, de um modo geral, a situação de escrita já é, por

natureza, mais formal que a de fala.

De forma didática, é possível distribuir os chamados registros em níveis

de crescente formalização, do mais informal até o mais formal. No discurso

falado, figurariam os seguintes registros: familiar, coloquial distenso, coloquial

104 BECHARA, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? São Paulo: Ática, 1991, p. 68 105 COSERIU, Eugênio; Teoria da linguagem e lingüística geral: cinco estudos. Trad. Agostinho Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p. 13 e segs.

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tenso, formal, oratório. No discurso escrito, ter-se-iam os seguintes registros:

coloquial, formal, literário.

O equívoco consistiria no fato de que se buscou encontrar graus de

letramento onde, fundamentalmente (mas não exclusivamente) havia graus de

formalismo, isto é, diferentes registros ou variações diafásicas. Os dois

primeiros textos são (ou pretendiam ser) formais; por isso, neles se calam as

marcas subjetivas (marcas de autoria) e poéticas. Já o terceiro texto é (ou

pretendia ser) literário, variação diafásica em que, por natureza, explode o

subjetivo (ainda que disfarçado) e o criativo, isto é, o poético.

Sérgio Roberto Costa106 busca um outro caminho para configurar o

letramento dentro do processo escolar. Para ele, o processo de letramento

deve ser mediado por gêneros discursivos e textuais, na medida em que a

interação verbal é realizada através de enunciações, na expressão de Bakhtin,

por ele citado. Por isso propõe a substituição de exercícios mecânicos de

grafemas que se juntam em sílabas ou palavras isoladas por práticas

enunciativo-discursivas de fala, leitura e escrita, ou seja, que a criança escreva

um enunciado socialmente construído na interação com o outro, em diálogos

com portadores de textos diversos, com gêneros textuais variados, mesmo que

ela não saiba ainda escrever usando o código alfabético da língua.

Entende, portanto, o autor que o conceito de letramento se liga a um

conjunto de práticas de leitura e escrita que resultam de uma concepção

específica do que ler e escrever. Para o autor, os exercícios mecânicos com

grafemas e sílabas, de atos de produção psicofisiológicos ou de uso de formas

lingüísticas abstratas, dos quais, tradicionalmente, se vale a alfabetização, não

apenas não atingem o letramento como o impedem.

Nesse ponto, cumpre retomar a questão colocada no início do presente

tópico. Se o indivíduo, mesmo sem dominar o código escrito, sem saber

codificar graficamente os signos orais e sem saber decodificar os signos

gráficos, mas vivendo em sociedade letrada, solicitado pelas demandas da vida

social, é capaz de ter uma relação até certo ponto eficaz com a língua escrita,

naquilo que, por certa ótica, se considera letramento, como entender que

106 COSTA, Sérgio Roberto. Op. cit., p. 44 e segs.

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pessoas alfabetizadas, tendo em sua história um complexo de relações com a

língua escrita através do sistema escolar, não demonstrem proficiência na

integração do mundo da escrita ao universo social?

Recorde-se, igualmente, a visão expressa por José Juvêncio Barbosa107,

exposta no início do presente capítulo, segundo a qual a escrita,

gradativamente, se transformou num obstáculo para o homem ter uma

participação efetiva no mundo social, pois o único dispositivo que lhe foi

ensinado de acesso ao texto escrito é ineficaz. Tal dispositivo, único de que

dispõe uma larga faixa da população é a transformação do escrito no oral, que

se revela um recurso ineficiente para a busca de respostas às questões que o

mundo moderno propõe.

Uma questão também pode ser levantada quanto a isso. Se a criança,

antes de entrar na escola já tem vivência com o mundo letrado (letramento) e

se analfabetos vivendo em ambiente em que a língua escrita está presente

também são letrados, por que a alfabetização tradicional se opõe ao

letramento? Não seria natural que o processo de alfabetização não estancasse

o processo (natural) de letramento?

De fato, é de se crer que não estanca; alfabetizar uma criança (ou

adulto) de forma natural não impede o seu letramento, pois esse decorre de

sua imersão no meio social que faz uso constante da língua escrita.

O que ocorre é uma separação, em que o processo e o resultado da

alfabetização se encontram completamente divorciados do processo de

letramento, correndo por vias separadas e incomunicáveis. É como se o que

aprende na escola não tivesse qualquer relação com o aprendizado social (de

resto, no mais das vezes, na realidade não tem).

107 BARBOSA, José Juvêncio. Op. cit., p. 28

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3.3. A contribuição de Emília Ferreiro

Dentre as mais significativas contribuições para o desenvolvimento no

Brasil do conceito de letramento, deve-se dar destaque especial às idéias de

Emília Ferreiro. É bem verdade que a grande educadora manifesta severas

restrições quanto ao uso desse termo hoje consagrado nos estudos de

Educação em nosso país.

Questionada108 formalmente sobre a “novidade conceitual” da palavra

“letramento”, Emilia Ferreiro explicita assim a sua rejeição ao uso do termo:

Há algum tempo, descobriram no Brasil que se poderia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica.

A rejeição da celebrada autora diz respeito exclusivamente ao uso de

um termo novo. Ou melhor: é importante observar que a oposição da referida

autora circunscreve-se estritamente ao perigo da dissociação entre o aprender

a escrever e o usar a escrita (“retrocesso” porque representa a volta da

tradicional compreensão instrumental da escrita). Como árdua defensora de

práticas pedagógicas contextualizadas e signifcativas para o sujeito, o trabalho

de Emília Ferreiro, tal como o dos estudiosos do letramento, apela para o

resgate das efetivas práticas sociais de língua escrita o que faz da oposição

entre eles um mero embate conceitual.

Numa primeira abordagem da autora sobre o processo de aprendizagem

da escrita e da leitura observa ela que tal processo se reveste de um triplo

aspecto: é ao mesmo tempo um sistema de representação alfabética da

108 COLELLO, Silvia M. Gasparian. Alfabetização e letramento: Repensando o ensino da língua escrita. disponível /www.hottopos.com/videtur29/silvia.htm)

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linguagem, as representações que as crianças têm sobre esse objeto e as

representações que os professores têm sobre o mesmo objeto.

Em sua obra Reflexões sobre a alfabetização109, reitera o conceito

fundamental em que baseia sua epistemologia e no qual os teóricos brasileiros

que desenvolveram o conceito de letramento têm-se baseado. Trata-se da

visão da escrita como um sistema de representação e não como um código de

transcrição gráfica de unidades sonoras.

Como se pode perceber, uma representação não é igual à realidade que

representa, apresentando algumas propriedades e relações próprias da

realidade e excluindo algumas das propriedades e relações da realidade.

Explicita, então a autora que o vínculo entre a representação e a realidade

pode ser analógico e arbitrário. A linguagem escrita é um sistema de

representação da realidade e nisso se difere dos chamados sistemas

alternativos de representação (codificação), como o código telegráfico, os

códigos secretos, que são baseados em uma representação já construída.

Os códigos alternativos são formados por elementos e relações que já

estão prederminados, mas na representação da realidade (como a linguagem

escrita), nem os elementos nem as relações estão predeterminados; enquanto

a criação de um código é personalizada e preponderantemente artificial, a

construção da representação costuma configurar um longo processo histórico.

Foi o que se deu com a criação da escrita pelos seres humanos. Ela foi um

processo histórico de construção de um sistema de representação, não um

processo de codificação.

É por isso que, ao aprender a escrita e o sistema de números, as

crianças como que reinventam esses dois sistemas, porque, para poderem se

servir desses elementos como elementos de um sistema, elas devem

compreender seu processo de construção e suas regras de produção. Chama,

então, a autora a atenção para a diferença que existe entre as escritas

alfabéticas e as ideográficas, já superficialmente enunciadas no presente

trabalho. As escritas alfabéticas podem ser caracterizadas como sistemas de

109 FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1993, p. 10 e segs.

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representação de diferenças de significantes, enquanto as escritas ideográficas

podem ser caracterizadas como sistemas de representação de diferenças nos

significados, embora cada um desses sistemas inclua elementos do outro,

como também, em parte, se teve a oportunidade de demonstrar.

O ponto crucial é o fato de a escrita, na visão da autora, não ser uma

codificação gráfica da fala. Essa constatação traz em si uma significativa

mudança de postura teórica e didática. Entendendo-se a língua escrita como

um código de transcrição (de unidades fonéticas em unidades gráficas), coloca-

se em primeiro plano a discriminação perceptiva nas modalidades envolvidas

(visual e autiditiva); dessa concepção derivam os programas de preparação

para a leitura e escrita, que exercitam a discriminação. Para a autora não há

dúvida de que, dissociando-se o significante do significado, destrói-se o signo

lingüístico.

Por outro lado, entendendo-se a escrita como a compreensão de um

modo de construção de um sistema de representação, a aquisição da escrita é

concebida como a apropriação de um novo objeto de conhecimento, uma

aprendizagem conceitual.110

Examinada a questão do sistema de representação, a autora passa a

explicitar as concepções da criança a respeito do sistema de escrita, aspecto

que tradicionalmente tem sido deixado de lado na alfabetização. É outra a

visão de base construtivista. Em harmonia com essa abordagem, a autora

compara as inferências do modo tradicional de se alfabetizar com a abordagem

construtivista. Quanto às primeiras escritas infantis, por exemplo, o modo

tradicional de as considerar era deter-se exclusivamente nos aspectos gráficos

como qualidade do traço, distribuição espacial das formas, orientação

predominante, orientação dos caracteres individuais); já a abordagem

construtivista busca entender o que a criança quis representar e os meios

utilizados para criar diferenciações entre as representações.111

110 FERREIRO, Emília. Op. cit., p. 16 111 Idem, ibidem, p. 18

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Tal se dá porque o construtivismo entende que a escrita infantil segue

uma linha de evolução regular, através de diversos meios culturais, de diversas

situações educativas e de diversas línguas.

Nessa evolução regular, é possível distinguir 3 grandes períodos (nos

quais há múltiplas subdivisões): no primeiro ocorre uma distinção entre o modo

de representação icônico e o não icônico; no segundo evidencia-se a

construção de formas de diferenciação e só no terceiro ocorre a fonetização da

escrita que corre do silábico ao alfabético.

Descrevendo de forma mais minuciosa esses períodos, a autora

surpreende o próprio processo de apropriação pela criança do sistema de

representação escrito. Esse processo começa com a possibilidade de distinção

entre as marcas figurativas e as não figurativas; é o primeiro período em que a

criança percebe a possibilidade de utilização da escrita como objeto substituto,

estabelecendo, a partir daí, uma distinção entre desenhar (domínio do icônico)

e escrever (domínio do não icônico)112. Reconhece que, ao desenhar, está no

domínio do icônico e, ao escrever, está no domínio do não icônico.

O período seguinte é marcado pela construção das formas de

diferenciação, no qual as crianças se valem de critérios intrafigurais (dentro das

figuras) e interfigurais (entre as figuras). Os critérios intrafigurais se expressam

quantitativamente (quantidade mínima de letras para que a escrita possa dizer

algo) e qualitativamente (variação dos caracteres, pois o texto não pode ter o

tempo todo a mesma letra). Já os Critérios interfigurais consistem na criação de

modos sistemáticos de diferenciação entre uma escrita e a seguinte; podem ser

critérios quantitativos (variar a quantidade de letras de uma escrita para outra

para obter escritas diferentes) e podem ser critérios qualitativos (variar o

repertório de letras que se utiliza de uma escrita para outra, ou a posição das

mesmas letras).

O terceiro período é o da fonetização, ocasião em que ocorre a atenção

às propriedades sonoras do significante, começando a criança a descobrir que

partes da escrita podem corresponder a outras tantas partes da palavra escrita

112 FERREIRO, Emília. Op. cit., p. 19

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(sílabas). A criança identifica partes da palavra (sílabas)113. Nesse período as

letras podem começar a adquirir valores sonoros (sílabas) relativamente

estáveis, estabelecendo correspondência com o eixo qualitativo, de modo que

as partes sonoras semelhantes entre as palavras começam a se exprimir por

letras semelhantes114.

É interessante observar que são os conflitos próprios do sistema silábico

que desestabilizam a hipótese silábica (construída pela criança), levando a

criança a um novo processo de construção; esse período marca a transição

entre os esquemas prévios em vias de serem abandonados e os esquemas

futuros em vias de serem construídos. Quando descobre que a sílaba não é

uma unidade, a criança ingressa no último passo da compreensão do sistema

socialmente estabelecido. É então que descobre problemas de ordem

quantitativa (sílabas com números diferentes de letras) e qualitativa (problemas

de ordem ortográfica)115.

O terceiro aspecto sobre o qual a autora volta a sua atenção renovadora

são as concepções sobre a língua subjacentes à prática dos professores.

Nesse exame, mais do que criticar as posturas tradicionais, tem a preocupação

de apontar caminhos coerentes com a visão anteriormente enunciada, qual

seja a de que a escrita é um outro sistema de representação e de que a criança

vai formulando suas próprias hipóteses sobre o funcionamento da escrita.

Dentro dessa concepção, apresenta os pressupostos básicos para uma

nova concepção da aprendizagem da língua escrita116. O primeiro deles é que

a criança não é uma tábua rasa, que nada traz em si e que está à espera de

que nela sejam impressos os conhecimentos. O segundo pressuposto é o de

que o fácil e o difícil não podem ser definidos a partir do adulto, mas a partir de

quem aprende. O terceiro pressuposto é que a informação só pode ser

operante se for assimilada. Por fim, lembra que os métodos não oferecem mais

do que sugestões, incitações, quando não práticas rituais ou um conjunto de

proibições.

113 FERREIRO, Emília. Op. cit., p. 25 114 Idem, ibidem, p. 26-27 115 Idem, ibidem, p. 27 116 Idem, ibidem, p. 29-30

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Adverte a autora que não há práticas pedagógicas neutras117.Assim, há

práticas que levam a criança a entender que o conhecimento é algo que os

outros possuem e só se pode obter dos outros, sem participar dessa

construção; há práticas que levam a pensar que o que existe para se conhecer

já foi estabelecido como um conjunto de coisas fechado, sagrado, imutável; há

práticas que levam a criança a ficar fora do conhecimento como espectador

passivo ou receptor mecânico.

A experiência da autora com profissionais de ensino levou-a a identificar

três dificuldades principais que precisam ser inicialmente superadas. A primeira

delas é a visão do adulto alfabetizado sobre o sistema da escrita, a segunda é

a confusão entre escrever e desenhar letras e a terceira é a redução do

conhecimento do leitor ao conhecimento das letras e de seu valor sonoro.

Não basta, porém, a utilização de novos métodos de ensino, nem novos

testes de prontidão, nem novos materiais didáticos. O que é, de fato,

importante, é mudar os pontos da discussão, superar uma visão empobrecida

da língua escrita, bem como uma visão empobrecida da criança. É preciso

abandonar conceitos tradicionalmente arraigados, como o de que da leitura

como um produto escolar ou como algo a ser ensinado e cuja aprendizagem

exige o exercício de habilidades específicas118.

Na realidade, a criança está imersa num mundo em que há a presença

de sistemas simbólicos socialmente elaborados, sem que exercite uma técnica

específica de aprendizagem, uma vez que vai descobrindo as propriedades dos

sistemas simbólicos através de um prolongado processo construtivo119. É

preciso estar atento ao fato de que existe um processo de aquisição de

linguagem que precede e excede os limites escolares.120

A partir dessa compreensão, os professores devem estar atentos às

construções originais das crianças, pois estas elaboram idéias próprias a

respeito dos sinais escritos, como a distinção entre o figurativo e o não

figurativo.

117 FERREIRO, Emília. Op. cit., p. 31 118 Idem, ibidem, p. 42 119 Idem, ibidem, p. 43 120 Idem, ibidem, p. 44

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Após essa distinção começa um trabalho cognitivo em relação ao não

figurativo, surgindo o critério da quantidade mínima de caracteres. Por fim,

surge o critério da variedade interna dos caracteres121. A criança que cresce

num meio letrado está exposta à influência de uma série de ações (interações).

O fato de poder comportar-se como leitor antes de sê-lo faz com que se

aprenda precocemente o essencial das práticas sociais ligadas à escrita.122

Para finalizar esta superficial abordagem das contribuições fundamentais

da Profª. Emília Ferreiro para o desenvolvimento no Brasil do conceito de

letramento, cumpre dar uma visão sobre algumas implicações pedagógicas que

ela extrai da concepção acima exposta. Para a autora, o papel da escola não

deve ser o de dar inicialmente todas as chaves secretas, mas o de criar

condições para que a criança as descubra por si mesma123. Além disso,

entende que o professor só será eficaz se adaptar seu ponto de vista ao ponto

de vista da criança.

Por fim, a autora enumera uma série de atitudes negativas às quais o

professor deve estar permanentemente atento, de modo a evitar. A primeira

delas é supervalorizar a capacidade da criança, que pode estar longe de ter

descoberto a natureza fonética da linguagem, mas, em sentido contrário, não

pode menosprezar os conhecimentos da criança ao trabalhar exclusivamente

com base na escrita, cópia e sonorização dos grafemas, porque a criança sabe

que a escrita é significativa.

O professor não deve tratar como ininteligível a produção da criança por

que esta não se aproxima da escrita convencional. Deve ainda, o quanto

possível, deixar de interpretar em termos de certo e errado os esforços iniciais

da criança para compreender. Outro aspecto que cumpre evitar é a a ênfase na

reprodução de traçados e a insistência na correspondência fonema-grafema;

tal ênfase e tal insistência significam desconhecer que a escrita é uma

construção mental da humanidade. O professor deve saber que os problemas

que a criança enfrenta em sua evolução não estão sujeitos a qualificativos

como simples ou complexos. É preciso que o professor esteja

121 FERREIRO, Emília. Op. cit., p. 60 122 Idem, ibidem, p. 44 123 Idem, ibidem, p. 60

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permanentemente atento ao fato de que dirigir-se apenas às crianças que

compartilham conhecimentos dos adultos é deixar de lado grande parte da

população infantil que ainda se encontra em níveis anteriores a essa

evolução124.

3.4. Como se aprende a ler e a escrever

Em sua obra mais conhecida, Mary Kato125 dedica o terceiro capítulo ao

exame dos processos de aprender a ler e a escrever. Inicialmente, procura

estabelecer uma distinção entre a habilidade que alguém possa ter numa

profissão e a capacidade de ensinar algum conhecimento vinculado àquela

atividade. Apesar de admitir que alguém possa aprender uma profissão

observando a atividade de um profissional, mostra que o fato de alguém ser um

bom engenheiro, um bom advogado ou falante de uma língua estrangeira não o

qualifica naturalmente para ser um bom professor de Matemática, de Português

ou de inglês, pois uma criança não aprende, por exemplo, Matemática

observando o que engenheiro faz, mas entendendo os princípios matemáticos

através de uma transmissão oral desse conhecimento abstrato126.

É, portanto, indispensável uma compreensão metacognitiva da natureza

do objeto e dos processos para se ter um bom desempenho didático. Mas isso

não é suficiente: é preciso entender o que e como o estudante aprende em

virtude da intervenção externa. Uma boa formação didática para um professor

de Português implicaria um conhecimento da natureza da linguagem escrita,

um conhecimento da natureza dos processos envolvidos na leitura e na escrita

e um conhecimento da natureza da aprendizagem tanto desses processos

quanto da própria língua escrita.127

124 FERREIRO, Emília. Op. cit., p. 62 125 KATO, Mary A.. No mundo da escrita – uma perspectiva psicolingüística. 2 ed. São Paulo: Ática, 1987. 126 Idem, ibidem, p. 98 127 Idem, ibidem, p. 99

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Após examinar as diferentes teorias sobre a aprendizagem da escrita

(proposta inatista de Chomsky, visão biológica de Lenneberg, teoria

evolucionista de Bickerton, tese funcionalista, tese cognitivista-funcionalista de

Bever, tese construtivista de Piaget, e tese associacionista), passa a examinar

aspectos específicos da aprendizagem da fala e da escrita.

Observa a autora que, na fase inicial da aquisição da linguagem, a

criança não dialoga: monologa. A criança monologa enquanto está fazendo

algo, porque está respondendo verbalmente às suas atividades motoras.

Assim, a fase do monólogo, da fala egocêntrica, está associada à atividade

motora, vindo a desaparecer quando na criança surge o pensamento lógico e a

fala socializada128. É bem verdade que o cada vez mais referido Vigotsky tem

compreensão diferente, pois entende que a fala é desde o início uma atividade

social, global e multifuncional.129

Apesar dessa objeção, podem-se perceber vestígios da fala egocêntrica

nas primeiras redações produzidas pelas crianças, nas quais predomina o

expressivo, isto é, a função expressiva da linguagem, que exterioriza o

emotivo, centrada no falante, no eu. Esclarece a autora que ora se acompanha

que os gêneros que se voltam para a segunda (formas de convencimento) e

para a terceira (textos voltados para um referente) pessoas do discurso só

aparecem posteriormente:

Nessa fase inicial, mesmo quando a instrução é explicitamente dirigida para a produção de um discurso de terceira pessoa (por exemplo a estória de um tomate), a criança envolve-se em um discurso expressivo, em que ela é o principal sujeito.130

Importante papel no desenvolvimento das aptidões de fala é a interação

social, principalmente com os pais. Das diferentes formas de interação com os

adultos (quando o adulto toma qualquer manifestação motora da criança -

como um bocejo, por exemplo – com um termo de conversação, quando o

adulto simula a parte da criança na conversação, quando o adulto desenvolve

tópico iniciado pela criança, quando complementa e corrige a fala da

128 KATO, Mary A.., p. 114 129 Idem, ibidem, p. 114 130 Idem, ibidem, p. 115

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criança131), a mais importante é a de complementação e correção, até porque é

um tipo de interação bastante freqüente nas situações de ensino e de

aprendizagem.

Outro aspecto significativo na aquisição da linguagem, e que deve ser

levado em conta na aquisição da linguagem escrita, é o papel do jogo e da

estória, pois, segundo Piaget, o pensamento lógico e a fala socializada devem

ser precedidos da capacidade lúdica e imaginativa da criança.132 A autora que

se vem acompanhando, no mesmo passo, ratifica essa visão com o

pensamento de Bruner e de Vigotsky. Observa, então, que a aprendizagem da

escrita envolve esse tipo de capacidade, sugerindo que a um dos fatores que

produzem a dificuldade de alfabetização poderia ser a falta de estimulação

para o jogo e para a brincadeira, em fase anterior à da alfabetização. A ficção,

em particular, desenvolve a capacidade de concentração da criança,

permitindo-lhe um afastamento do contexto imediato e particular.133

Um último aspecto, considerado pela autora como fundamental para a

aquisição e domínio da língua escrita, é o papel da consciência. Examinando o

tema, discorda da concepção behaviorista de que a aprendizagem se

caracteriza pela internalização inconsciente de hábitos. Apóia-se na visão de

Chomsky, pela qual a consciência tem um papel importante no conhecimento

lingüísitico, o que também é o pensamento de Piaget, para o qual ter

consciência de uma operação mental é saber transferir algo do plano de ação

para o plano da linguagem, de modo que, quando diminui a presença da fala

egocêntrica, a criança dá um salto qualitativo em seu desenvolvimento

cognitivo precisamente através da consciência.134

A autora procura examinar os motivos pelos quais aprender a ler e a

escrever não é tão fácil como aprender a ouvir e a falar , embora a linguagem

escrita seja parcialmente semelhante à fala (ponto em que discorda da visão

anteriormente examinada de Emília Ferreiro, para quem a escrita é um outro

sistema de representação, diferente do código oral), e embora os processos de

131 KATO, Mary A.., op. citp. 116, a partir das pesquisas de H. H. Clark e E. V. Clark 132 Idem, ibidem, p. 117 133 Idem, ibidem, p. 117 134 Idem, ibidem, p. 117

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compreensão e de produção na escrita sigam os mesmos postulados para a

fala (visão também discordante da expressa por Emília Ferreiro).135 Examina,

então três fatores que se apresentam interligados e que determinam essa

dificuldade maior.

O primeiro deles são os antecedentes sociais e dialetais da criança, que

traz para a escola sua bagagem cognitiva, na qual estão inseridos tais

antecedentes. Para a criança, desautomatizar o uso do próprio dialeto para

amoldar sua produção à norma prescrita pela escola é um processo lento e

gradual. Em vez de propor que se exija da criança, desde o início, um

comportamento, em produção, de acordo com os cânones da gramática e das

convenções ortográficas, ou de propor que se adote uma posição facilitadora

da alfabetização no dialeto da criança, a autora sugere que a iniciação na

leitura se dê através de textos autênticos, escritos na norma padrão e que a

produção escrita inclua um período inicial em que haja, por parte da escola,

uma larga tolerância em relação aos desvios de ordem dialetal.136

Um segundo aspecto é a experiência individual com a linguagem que a

criança já tem ao entrar na escola. Desprezando fatores como nível de

desenvolvimento oral ou como status social dos pais, a autora dá maior relevo

ao empenho dos pais na introdução da criança no mundo da escrita, através da

prática de leitura oral ou de respostas e perguntas sobre a escrita. O maior

problema que as crianças apresentam quanto a esse aspecto é que o tipo de

experiência oral na fase de iniciação escolar é geralmente limitado a ouvir e a

participar da conversação diária espontânea, mas na escola, os livros didáticos

supõem uma familiaridade com outros tipos de linguagem, que exigem alto

grau de afastamento do contexto imediato e particular que a criança vive.137

Um outro fator de dificuldade para a aquisição da língua escrita é a

necessidade, que a criança passa a experimentar na escola, de passar por

diferentes gêneros discursivos. Observa, porém, que uma criança que tenha

tido uma boa experiência com estórias, tanto ouvidas quanto contadas por ela

135 KATO, Mary A.., p. 121 136 Idem, ibidem, p. 123 137 Idem, ibidem, p. 127

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própria, contará, a seu favor, com uma fonte facilitadora, que lhe permitirá

considerar possibilidades diferentes do contexto particular imediato.

Nesse ponto, cumpre trazer ao esclarecimento da questão importante

observação de Sérgio Roberto Costa, segundo a qual ler é mais do que um

processo de relacionar símbolos escritos a unidades de som; ler é um processo

de construir sentidos, que envolve desde a decodificação de sílabas ou

palavras até a capacidade de ler textos propriamente. Em igual medida,

escrever é mais do que promover um registro de unidades de som; é a

capacidade de transmitir significado a um leitor, de forma adequada. Por isso,

ler e escrever apresentam sempre uma dimensão significativa.138

É esta idéia de aprendizagem significativa que Amélia Escotto do Amaral

Ribeiro procura sustentar. Em seu trabalho139 , busca especificar a dimensão

significativa da aprendizagem, identificando as três matrizes do pensamento

educacional em que se apóia essa ênfase. Em primeiro lugar, identifica os

movimentos pedagógicos renovadores do princípio do século XX, que vêem o

aluno como o verdadeiro agente e o responsável pelo seu próprio processo de

aprendizagem, invertendo a posição tradicional que considerava como agente

e responsável pela aprendizagem o mestre. A segunda matriz que identifica

está ligada ao pensamento de Bruner, que formula a hipótese de aprendizagem

por descoberta e as propostas pedagógicas que afirmam que o aluno adquire

conhecimento por seus próprios meios. A essa visão acrescenta, como terceira

matriz, as propostas pedagógicas pautadas nos métodos ativos, em que

compreender é inventar ou reconstruir a invenção, principalmente baseadas

nas pesquisas de Piaget e nas contribuições sobre curiosidade epistêmica e

atividade exploratória no domínio das teorias da motivação e o ensino não

diretivo, como formuladas por Rogers, que sugerem uma reação à dominância

da aprendizagem extrínseca.140

138 COSTA, Sérgio Roberto. Op. cit., p. 28 139 RIBEIRO, Amélia Escotto do Amaral. Das aprendizagens e das metodologias de ensino ... dilemas da gestão escolar. In: MELLO, Maria Cristina de & RIBEIRO, Amélia Escotto do Amaral (org.). Letramento: significados e tendências. Rio de Janeiro: Wak, 2004 140 Idem, ibidem, p. 108-109

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Reconhece, porém, que a expressão aprendizagem significativa é

conceitualmente imprecisa; para precisá-la são apontados três aspetos. O

primeiro deles é que a aprendizagem escolar é construção de significados, ou

seja, a aprendizagem é um processo de construção de significados; só se

aprende um conteúdo quando se lhe pode atribuir um significado, as a

atribuição de significado é questão de grau, de modo que as atividades

escolares devem o mais significativas possível141. Considera, a seguir, os

aspectos ligados ao significado e ao sentido na aprendizagem escolar; para a

autora, há um conjunto de fatores que desempenham papel na mobilização dos

conhecimentos prévios dos alunos, sem os quais não se pode compreender os

significados construídos pelos alunos, as interpretações se constróem,

modificam-se no decorrer da própria atividade de aprendizagem.142 O terceiro

aspecto articula os conceitos de ensinar, aprender, construir e compartilhar,

pois é preciso levar em conta as interpretações subjetivas que os alunos

constróem a esse respeito, que resultam dele próprio; o professor, nessa

ordem de compreensão, é visto como orientador da ação didático-

pedagógica.143 Apesar dessa aparente redução, o papel do professor vai muito

além do mero uso de metodologias facilitadoras. A grande metodologia do

professor consiste precisamente na auto-reflexão.144

De forma mais prática, um grupo de professoras da Escola Adlai

Stevenson, após desenvolver atividades sobre com o uso doe jornais e revistas

em sala de aula, chegou a algumas conclusões altamente significativas.145

141 RIBEIRO, Amélia Escotto do Amaral, p. 109 142 Idem, ibidem, p. 110 143 Idem, ibidem, p. 111 144 Idem, ibidem, p. 114 145 EQUIPE DE PROFESSORES DA ESCOLA MUNICIPAL ADLAI STEVENSON. Mídia escrita e letramento: jornais e revistas na sala de aula. In: MELLO, Maria Cristina de & RIBEIRO, Amélia Escotto do Amaral (org.). Letramento: significados e tendências. Rio de Janeiro: Wak, 2004

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Chegaram à conclusão de que ler é muito mais do que decifrar, é uma

interlocução entre sujeitos, pois os sentidos não estão predeterminados no

texto, mas são construídos a partir do texto.146 Em razão disso, identificaram

várias formas de relacionamento do estudante com o texto. A primeira delas é

a leitura como busca de informação, hipótese em que o estudante busca

responder à pergunta para quê, isto é, tem como objetivo encontrar a

informação desejada. Uma segunda forma de relacionamento é a leitura como

estudo do texto, em que o estudante busca extrair do texto todas as

possibilidades. Acrescentam ainda uma forma de relacionamento em que o

texto figura como pretexto na busca de elementos que o auxiliem na

organização de suas idéias, de seus argumentos. O estudante pode chegar a

se relacionar com o texto em busca de fruição, pelo prazer de ler, sem nenhum

tipo de compromisso. Por fim, e seria o estágio desejado, o estudante pode

buscar o livro por uma necessidade íntima que escapa ao simples âmbito

escolar e se insere em suas necessidades do dia-a-dia.147

Para finalizar estas considerações sobre as dificuldades de aprender a

ler e a escrever, examinem-se alguns mitos muito comuns entre os professores

e que podem influenciar negativamente o processo de ensino e de

aprendizagem da leitura e da escrita.

Alexandre do Amaral Ribeiro, após estudar os diferentes fatores que

dificultam a aprendizagem do uso escrito da língua, discutindo mesmo se há

possibilidade de tal conhecimento ser ensinado, resume os principais mitos

cultivados pelos professores, de forma tão solidificada que, quase sempre,

aparecem, ainda que de forma implícita no quotidiano escolar.148 Tais mitos

eventualmente são formulados de maneira diversa, sem que seu conteúdo seja

significativamente alterado.

O primeiro desses mitos é há uma resposta pronta e uma solução

universal para os problemas de aprendizagem. É bem verdade que é muito

146 EQUIPE DE PROFESSORES DA ESCOLA MUNICIPAL ADLAI STEVENSON. Op. cit., p. 133 147 Idem, ibidem, p. 133 148 RIBEIRO, Alexandre do Amaral. Descontruindo a pergunta “É possível ensinar a ler?”: anotações a partir da Psicopedagogia e da Lingüística, ou “Não adianta trocar o espelho se não for trocada a imagem”. In: MELLO, Maria Cristina de & RIBEIRO, Amélia Escotto do Amaral (org.). Letramento: significados e tendências. Rio de Janeiro: Wak, 2004, p. 89 e segs.

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comum ouvir-se dos professores o reconhecimento de que cada um aprende

de uma forma; entretanto, esse discurso freqüente não se manifesta no

comportamento cotidiano; alguns professores não conseguem lidar bem com a

ausência de livros didáticos; outros demonstram dificuldade em lidar com

instabilidades cognitivas do momento de construção do conhecimento; é

comum haver dificuldade em compreender as distinções entre o planejamento

e a execução; costuma ocorrer o que o autor denomina hiperdidatização das

relações de aprendizagem, que se manifesta num apego excessivo a formas

fixas dos conteúdos, à ordem rigorosa em que devem ser ministrados, na

suposição de que não é possível dominar o conhecimento seguinte sem o

conhecimento anterior, o que, não raro, conduz o professor à tradicional

reclamação de falta de base do aluno.149

Outro mito freqüente é o de que basta interagir com outros profissionais,

escutar/trocar relatos de experiência para obter através de exemplos de

atividade a solução para um problema de aprendizagem específico. Nem

sempre os professores estão atentos ao fato de que existe sempre a

necessidade de fazer adequações teórico-metodológicas das experiências

relatadas aos casos específicos; é comum os professores se fixarem apenas

nas necessidades e soluções práticas, deixando de atentar para a necessidade

ainda maior de transformar a troca de experiências em oportunidade de

discussão teórica.150

Outro mito, de fundamento até generoso é o de que os desafios, de

ordem econômica, vivenciados pelos alunos e seus familiares são os fatores

determinantes de seus problemas de aprendizagem. Há generalizada uma

tendência de justificação do fracasso escolar pela via da piedade: atribuição da

culpa da não aprendizagem à pobreza. Devem estar os professores

conscientes de que a escola não dá conta, sozinha, dos problemas sociais;

preparar aluno crítico não é preparar aluno reclamador, gritador, irritadiço.151

149 RIBEIRO, Alexandre do Amaral. Op. cit., p. 89-93 150 Idem, ibidem, p. 93 151 Idem, ibidem, p. 94-96

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Um quarto mito, muito próximo do segundo é o de que teorias não

servem para nada, pois toda vez que precisamos aplicá-las nunca dão certo

em sua totalidade. Trata-se de ledo equívoco: na realidade, teoriza-se o tempo

todo, pois teorizar é pensar: o tempo todo se trabalha com hipóteses, variáveis,

premissas, leis; há uma armadilha no discurso que rejeita a teoria, pois a

ausência de teoria (planejamento) é um dos fatores que dificultam o trabalho

docente. Mais grave ainda é que o próprio aluno é contagiado pela aversão à

teoria, recusando-se a ler, fazer discussões, etc.152

Por fim, um mito ardiloso; é o de que é preciso respeitar a cultura de

origem do aluno e seus interesses, utilizando-se de uma linguagem simples e

de atividades lúdicas diversificadas. Não se pode negar que é necessário haver

respeito com as diferenças, mas o discurso do respeito à cultura de origem

pode constituir numa forma de segregação, condenando-o a permanecer

indefinidamente no estágio em que se encontra, segregado do saber que a

civilização construiu; respeitar a cultura do aluno é tratá-la sem preconceito153

152 RIBEIRO, Alexandre do Amaral. Op. cit., p. 94-96 153 Idem, ibidem, p. 100-101

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CONCLUSÃO

Da exposição precedente, é possível extrair algumas conclusões.

A primeira delas é que o fenômeno da escrita está indissociavelmente

ligado ao fenômeno da civilização, da mesma forma que o uso de linguagem

está indissociavelmente ligado ao conceito de ser humano. É com a escrita que

marca o aparecimento das civilizações como hoje se concebe este termo.

Também, e de forma taulogicamente circular, a escrita só é possível de existir

no espaço de civilização.

Se a história da escrita pode ser traça com relativa segurança, tal não se

dá com a história da linguagem humana. Suas origens continuam sendo um

mistério para a ciência e as explicações, tão numerosas e presas a tantas

linhas diferentes de indagação, não conseguiram superar o terreno das

hipóteses.

Outra conclusão que se impõe é que a escrita alfabética, fonética,

constitui um aparelho superior de aquisição e de transmissão de saber. Isto

não quer dizer que outras formas de escrita, como a ideogramática e a

silabária, ainda hoje presentes em tantos povos, deixem de ser eficientes. A

adesão quase universal, porém, aos sistemas fonéticos atestam, pelo grau de

abstração que configuram uma capacidade mais ampla de expressar o

pensamento humano, de tal forma que alguns povos que tradicionalmente se

valem de outras formas de escrita, nos últimos tempos, têm simplificado seus

sistemas e mesmo procurado abandoná-los para adotarem o sistema

alfabético.

Pôde-se concluir também, da pesquisa que se empreendeu, que a

noção de alfabetizar não é contemporânea do aparecimento da escrita. É muito

posterior. Durante séculos, não só aprender a ler estava dissociado de

aprender a escrever, como o aprendizado da escrita, reservado a determinadas

categorias de cidadãos, estava mais próximo do domínio de uma arte.

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A necessidade de se promover a alfabetização trouxe até uma

conseqüência de ordem prática: a escrita foi obrigada a se simplificar. Os

ornatos, a letra caprichosa, os instrumentos delicados de escrita tiveram que

ser eliminados e substituídos.

Ao se aproximar a segunda metade do século XX, universalizou-se o

conceito de que o domínio da língua escrita era um direito fundamental do ser

humano e uma necessidade absoluta da sociedade. Assim, começaram a

surgir as campanhas de alfabetização e a instituição escola, responsável

primeira pela alfabetização se multiplicou pelo mundo.

Mas também, já por essa época, começaram a se detectar fragilidades

na simples alfabetização, compreendida como o domínio prévio de

determinadas técnicas de decifração e de codificação, necessário ao ingresso

no mundo da leitura. Havia generalizada a noção de alfabetizar-se era dominar

uma técnica neutra, independente de qualquer conteúdo ou contexto. A

evidência dos fracassos na alfabetização de adultos, dos quais número

expressivo regressava à condição de analfabeto, e a constatação de que a

escola universal e popular, com suas técnicas tradicionais, não tinha condição

de agregar ao mundo da escrita as mais largas faixas da população, os pobres,

colocou em cheque o ideal de alfabetização e suas práticas.

O próprio termo alfabetização passou a ser criticado e se propôs sua

substituição pelo conceito de letramento. Não é, contudo, uma posição

unânime entre os que defendem essa abordagem, muitos considerando

desnecessária a substituição e outros, ainda, vendo a alfabetização como parte

do processo de letramento, mais amplo e duradouro.

A noção de letramento parte de duas concepções básicas. A primeira é

a de que o domínio da língua escrita não pode ser dissociado de seu conteúdo,

ou seja, o processo de aquisição do código escrito deve ser, necessariamente,

contextualizado e significativo. A segunda concepção é a de que o código

escrito não é um código segundo, destinado a reproduzir visualmente um outro

código, o oral. Antes, trata-se de uma outra forma de representação da

realidade, por isso, a mera correspondência entre os signos orais e os signos

gráficos está absolutamente fora da realidade.

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Esta última concepção, contudo, apesar de majoritária, não é também

unânime entre os defensores do conceito de letramento. Entre a idéia de que o

código escrito apenas reproduz o código oral e a idéia de o código escrito é

uma outra forma de representação, cresce a idéia matizada de que a língua

escrita tem, em relação à língua oral, uma autonomia relativa.

De qualquer maneira, o conceito de letramento impõe ao professor, em

especial ao alfabetizador, uma retomada de consciência, de modo que seja

capaz de introduzir em seu fazer diário a preocupação com uma aprendizagem

de fato significativa para seus alunos. De outro lado exija que reconheça, caso

existam em si, e deles se dispa, o muitos mitos, gerados no próprio curso do

avanço da escolarização, que envolvem e sacrificam a prática de se ensinar a

ler e a escrever.

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ANEXOS

Anexo 1 – Textos transcritos por Leda Verdiani Tfouni Anexo 2 - Quadro esquemático apresentado por Venâncio Mol Anexo 3 – Lista de eventos culturais

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Anexo 1 – Textos transcritos por Leda Verdiani Tfouni

Texto n.º 1

“Prezados Professores:

Ao adentrarmos neste sexto mês do ano, as festividades, justificadamente, juninas se iniciam. A nossa Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras acompanha esta tradição brasileira, promovendo no dia 15 de junho, a partir das 20:hs um evento desta natureza.

Convidamos, então com grande prazer, a sua pessoa, para esta festividade, a ser realizada pelos alunos desta Faculdade.

Tradicionalmente, o Centro de Estudos Psicológicos (CEP) se encarregará da barraca de doces, visando obter dividendos para futuras promoções de eventos que interessam aos alunos que representa.

Neste sentido, gostaríamos d contar com a sua colaboração, de qualquer natureza, para com a barraca do CEP.

Em nome dos alunos da Psicologia, agradeço sua atenção e compreensão. Sem mais para o momento, me dispeço.

Atenciosamente”.

Texto n.º 2

“Reajuste dos salários – Mês de Maio = 46%

Of. GR/CIRC/72, do Magnífico Reitor, informando que o índice definitivo da inflação de abril (IPC- FIPE = 28,74%) e a estimativa para maio (1ª quadrissemana = 28,8%) e o compromisso de recuperar o salário real de maio de 1992, o reajuste dos salários a serem créditos [sic!] no dia 04 de junho foi alterado para 46%”.

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Texto n.º 3

“Nem...*

Fazer crônica não é escrever palavras bonitas nem construir frases de efeito, nem falar dos inimigos, nem elogiar amigos, nem descrever paisagem, nem contar casos querendo dar a impressão de verdadeiros, nem procurar assunto na falta de assunto, nem encher uma folha e dizer que o dólar está subindo, nem responder uma carta de amigo, nem inventar cartas subindo, nem inventar cartas para fingir que recebeu, nem tentar convencer os outros que em tudo há poesias, como eu estou querendo fazer, nem achar tudo triste, nem achar tudo alegre, nem falar da sua solidão, nem dizer o que fez ontem ou aumentar seus vícios, nem desabafar seus problemas, nem tirar conclusão de coisa alguma.

E você consegue fazer uma crônica sem nada disso? Claro!

Olha aí pra cima”.

* Nota da autora: Foram feitas correções gramaticais no texto, em função de solicitações do próprio autor, e dentro das diretrizes metodológicas propostas para o trabalho de alfabetização, que seguem o sociointeracionismo e a teoria da análise do discurso

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Anexo 2 QUADRO ESQUEMÁTICO APRESENTADO POR

VENÂNCIO MOL (Capítulo 1)

1.2. Hipóteses sobre a origem da linguagem

Período geológico

Forma de vida

Período cultural

Caract. do pens.

Carac. lingüística

Carac. mental

Q. I. Idade mental

arqueano Formas unicelulares

Pré-cambriano

Vermes algas

Cambriano Ordoviciano

siluriano devoniano carboífero permiano

Moluscos insetos corais

crustáceos anfíbios fetos

Triássico jurássico cretáceo

Répteis Aves

árvores

Eoceno 40 milhões de

anos

Primatas pliopteco

Pens. Institintivo ou

sensório

Sons inarticulados

idiota Zero a 39 Zero a 6 meses

Oligoceno 20 milhões de anos

Proconsul dripiteco

Pensamento primitivo

Sons +- inarticulados

imbelicil 40 a 44 45 a 49

6 a 8 meses 8 a 10 meses

Mioceno 14 milhões de

anos

Oreopiteco ramapiteco

Pensamento primitivo

Sons +- inarticulados

Debilidade mental

profunda

50 a 59 10 a 12 meses

Plioceno 5 milhões de

anos

parantropo Pensamento primitivo

Sons articulados

Debilidade mental

superficial

60 a 64 1 a 2 anos

Pleistoceno 2 milhões de

anos

Australopiteco Pitecantropo homo

Paleolítico inferior

Pensamento arcaico

Linguagem falada

Debilidade mental

superficial

65 a 79 2 a 3 anos

holoceno Neandertal cormagnon

Paleolítico superior

paleolítico inferior

Pensamento mágico

pensamento egocêntrico

Linguagem falada

Inteligência inferior

inteligência inferior

80 a 84

85 a 89

3 a 5 anos

5 a 7 anos

Homo sapiens

Civilização Pensamento lógico

Linguagem escrita

Inteligência normal até

gênio

90 a 150 7 anos em diante

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Anexo 3 – Lista de eventos culturais

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Anexo 3 – Lista de eventos culturais

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Anexo 3 – Lista de eventos culturais

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Anexo 3 – Lista de eventos culturais

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO 7

CAPÍTULO I – A ESCRITA NUMA PERSPECTIVA

HISTÓRICA 10

1.1. Linguagem, civilização, escrita 10

1.2. Hipóteses para a origem da linguagem 12

1.3. Para uma história da escrita 20

1.3.1. Sistemas de escrita 21

1.3.2. A escrita egípcia 25

1.3.3. A escrita chinesa 27

1.3.4. O papel dos sumérios e acádios 30

1.3.5. A invenção fenícia 32

1.3.6. A inovação grega 33

CAPÍTULO II – A ALFABETIZAÇÃO 36

2.1. Da escrita como arte à alfabetização 36

2.2. Breve história da alfabetização 42

2.3. A sucessão dos métodos de alfabetização 48

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CAPÍTULO III – O LETRAMENTO 53

3.1. Conceito de letramento 53

3.2. O letramento escolar 58

3.3. A contribuição de Emília Ferreiro 68

3.4. Como se aprende a ler e a escrever 75

CONCLUSÃO 84

BIBLIOGRAFIA 87

ANEXOS 89

Anexo 1 – Textos transcritos por Leda Verdiani Tfouni 90 Anexo 2 - Quadro esquemático apresentado por Venâncio Mol 92 Anexo 3 – Lista de eventos culturais 93

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

MONOGRAFIA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO por

Zilda Carolina Vargas Gitahy

Orientadora Profª. Diva Nereida Marques Machado Maranhão

Data da entrega: _________________________________ Avaliado por: ___________________________________Grau ___________

Rio de Janeiro, _______ de _______________ de 2005

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