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A PERSUASÃO Estratégias para uma comunicação influente (tese de mestrado em Ciências da Comunicação)  Américo de Sousa,Universidade da Beira Interior  Março/2000 Extraido de http://bocc.ubi.pt/pag/sousa-americo-persuasao-0.html Índice e Introdução INTRODUÇÃO I PARTE: RETÓRICA: DISCURSO OU DIÁLOGO? 1. O despertar da oratória 2. A técnica retórica de Aristóteles 2.1. Os meios de persuasão 2.2. As premissas de cada tipo de oratória a) Na oratória deliberativa b) Na oratória forense c) Na oratória de exibição 2.3. Premissas comuns aos três tipos de oratória a) Indução e dedução b) Persuasão pelo carácter c) As paixões do auditório d) O discurso: estilo e ordem 3. A retórica clássica: retórica das figuras II PARTE: A NOVA RETÓRICA 1. Crítica do racionalismo clássico 2. Por uma lógica do preferível: demonstração versus argumentação 3. A adesão como critério da comunicação persuasiva 3.1. O duplo efeito da adesão 3.2. Persuasão e convencimento: do auditório particular ao auditório universal 4. Estratégias de persuasão e técnicas argumentativas 4.1 A escolha das premissas 4.2. As figuras de retórica na criação do efeito de presença 4.3. Técnicas e estruturas argumentativas 5. Amplitude da argumentação e força dos argumentos 6. A ordem dos argumentos no discurso 1/128

Américo de Sousa - A Persuasão - Estratégias Para Uma Comunicaçao Influente

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  • A PERSUASOEstratgias para uma comunicao influente

    (tese de mestrado em Cincias da Comunicao)

    Amrico de Sousa,Universidade da Beira Interior

    Maro/2000

    Extraido de http://bocc.ubi.pt/pag/sousa-americo-persuasao-0.html

    ndice e Introduo

    INTRODUO

    I PARTE: RETRICA: DISCURSO OU DILOGO?

    1. O despertar da oratria2. A tcnica retrica de Aristteles

    2.1. Os meios de persuaso2.2. As premissas de cada tipo de oratria

    a) Na oratria deliberativab) Na oratria forensec) Na oratria de exibio

    2.3. Premissas comuns aos trs tipos de oratriaa) Induo e deduob) Persuaso pelo carcterc) As paixes do auditriod) O discurso: estilo e ordem

    3. A retrica clssica: retrica das figuras

    II PARTE: A NOVA RETRICA

    1. Crtica do racionalismo clssico2. Por uma lgica do prefervel: demonstrao versus argumentao3. A adeso como critrio da comunicao persuasiva

    3.1. O duplo efeito da adeso3.2. Persuaso e convencimento: do auditrio particular ao auditrio universal

    4. Estratgias de persuaso e tcnicas argumentativas4.1 A escolha das premissas4.2. As figuras de retrica na criao do efeito de presena4.3. Tcnicas e estruturas argumentativas

    5. Amplitude da argumentao e fora dos argumentos6. A ordem dos argumentos no discurso

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  • III PARTE: RETRICA, PERSUASO E HIPNOSE

    1. Os usos da retrica1.1. A revalorizao da subjectividade1.2. Liberdade ou manipulao?

    2. Da persuaso retrica persuaso hipntica2.1. A emoo na retrica2.2. Persuaso e retrica2.3. Critrios, tipologias e mecanismos da persuaso2.4. O modelo hipntico da persuaso

    CONCLUSO

    BIBLIOGRAFIA

    INTRODUO

    O estudo da persuaso pressupe uma viagem pelos territrios tericos que a sustentam: a

    retrica, a argumentao e a seduo. A retrica, porque originariamente concebida como a

    faculdade de considerar para cada caso o que pode ser mais convincente1; a argumentao,

    na medida em que visa provocar ou aumentar a adeso de um auditrio s teses que se

    apresentam ao seu assentimento2 e, finalmente, a seduo, porque a resposta do auditrio

    pode tambm nascer dos efeitos de estilo, que produzem sentimentos de prazer ou de

    adeso 3. este contexto terico de solidria vizinhana e interdependncia funcional que

    Roland Barthes alarga ainda mais quando prope que "a retrica deve ser sempre lida no jogo

    estrutural das suas vizinhas (Gramtica, Lgica, Potica, Filosofia)4. O mesmo se diga de

    Chaim Perelman ao defender que, para bem situar e definir a retrica, igualmente necessrio

    precisar as suas relaes com a Dialctica5. J se antev por isso a extrema dificuldade que

    aguarda quem ouse meter ombros a uma rigorosa delimitao de fronteiras entre os diferentes

    domnios tericos presentes num processo de comunicao persuasiva. Mas se, desde

    Aristteles, a retrica tem por objectivo produzir em algum uma crena firme que leve

    anuncia da vontade e correspondente aco, ento, no mbito deste estudo, far todo o

    sentido admitir uma aproximao conceptual entre a retrica e a persuaso. Alis, num

    momento em que a evoluo histrica da retrica vem sendo analisada em funo de trs

    importantes perodos, cronologicamente denominados de Retrica Antiga, Retrica Clssica e

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  • Nova Retrica, deve notar-se que, em qualquer delas, foi a persuaso que permaneceu como

    seu principal elemento distintivo, independentemente das particulares tcnicas e procedimentos

    discursivos nelas utilizados. Podemos por isso considerar a retrica como o principal

    instrumento de comunicao persuasiva, tanto mais que tendo surgido na antiguidade como

    tcnica de persuaso, ainda dessa forma que continua a ser encarada por Perelman e pela

    generalidade dos autores contemporneos. A retrica parece, pois, estar para o acto (de

    comunicar) assim como a persuaso est para o efeito (da comunicao).

    Como objectivo geral deste trabalho, propusemo-nos investigar os diferentes modos pelos

    quais a persuaso se manifesta no processo comunicacional, quais as estratgias, tcnicas e

    procedimentos mais adequados a uma comunicao influente (ou deliberada) e at que ponto,

    a retrica - enquanto instrumento de persuaso crtica - pode favorecer a afirmao das

    subjectividades numa sociedade pluralista. A hiptese de que partimos e que intentamos

    confirmar neste nosso estudo, a de que a persuaso, ao promover o confronto de opinies e

    a afirmao de subjectividades, potencia o exerccio da prpria cidadania. Para a sua

    formulao muito pesou a constatao de que nos diferentes planos do nosso quotidiano, so

    numerosas as situaes de comunicao que tm como objectivo conseguir que uma pessoa,

    um auditrio ou um pblico, adoptem um certo comportamento ou partilhem determinada

    opinio. E estando a persuaso assim to estreitamente ligada ao acto de convencer, ocorria

    perguntar: no poder ela funcionar como alternativa ao sempre possvel uso do poder ou at

    da violncia fsica, para se conseguir de outrem um comportamento por si inicialmente no

    desejado? Ser que ao traduzir-se pela renncia ao uso da fora, a persuaso retrica pode

    contribuir decisivamente para assegurar uma ligao social partilhada em vez de

    autoritariamente imposta? Foi com a expectativa de poder vir a responder a este conjunto de

    questes que iniciamos a nossa pesquisa e reflexo.

    Por razes de ordem sequencial inerentes ao desenvolvimento terico mas tambm pela

    necessidade de limitar a extenso do prprio trabalho, decidimos, por um lado, circunscrever o

    objecto de estudo persuaso discursiva e por outro, preterir a abordagem da persuaso de

    massas, tanto mais que os efeitos exponenciais e a respectiva insero scio-poltica em que

    radica, justificam uma investigao mais profunda do que aquela que lhe poderamos reservar

    no mbito desta dissertao. Ainda assim, julgamos que algumas das consideraes que

    fazemos na parte final do trabalho, deixam antever como o conhecimento retrico pode

    contribuir para uma reaco mais crtica dos seus destinatrios. Temos tambm a esperana

    de que tal delimitao nos tenha permitido no s aprofundar o alcance e as particularidades

    que a persuaso pode imprimir aos processos comunicacionais como, de algum modo, realar

    a sua importncia no contexto da reflexividade contempornea.

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  • Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 52

    Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 29Meyer, M., Questes de retrica: linguagem, razo e seduo, Lisboa: Edies 70, 1998, p. 20

    Cit. in Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 21

    Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 21

    Primeira Parte

    RETRICA: DISCURSO OU DILOGO?

    1- O despertar da oratriaDesde sempre os gregos foram inveterados amantes da palavra, apreciando a eloquncia

    natural mais do que qualquer outro povo antigo. A comprov-lo esto os brilhantes discursos que

    enchem as pginas da Ilada e as fervorosas palavras que os comandantes militares dirigiam s

    suas tropas antes de entrar em combate. Os prprios soldados cados na guerra eram logo

    honrados com solenes discursos fnebres. Mas foi com o advento da democracia que esse

    interesse pela eloquncia e oratria cresceu de uma maneira explosiva. Compreende-se porqu:

    o povo - onde no se incluam, nem as mulheres, nem os escravos, nem os forasteiros - passou a

    poder reunir-se em assembleia geral para tratar e decidir de todo o tipo de questes. Assembleia

    geral que era ao mesmo tempo o supremo rgo legislativo, executivo e judicial. Nela se

    concentravam os mais altos poderes. Podia declarar a guerra ou a paz, alterar as leis, outorgar a

    algum as mximas honras mas tambm mand-lo para o exlio ou conden-lo morte. Tratava-

    se de reunies pblicas e livres, pois todos os cidados podiam assistir, participar e votar.

    Logicamente, os que melhor falavam eram tambm os mais influentes. Logo, quem aspirasse a

    ter alguma influncia nessas assembleias, forosamente teria de possuir assinalveis dotes

    oratrios. Alm do mais, os conflitos entre cidados dirimiam-se perante tribunais constitudos por

    jurados eleitos por sorteio. Aquele que com suas palavras persuasivas lograsse prender a ateno

    dos jurados e convenc-los da sua posio, sairia vencedor do pleito. A oratria passou assim a

    ser fundamental, j no apenas para aqueles que aspiravam poltica - que era a ambio ou

    carreira mais normal para os cidados livres daquele tempo - mas tambm para os cidados em

    geral que, dedicados aos seus negcios e ocupaes agrcolas ou artesanais, com alguma

    frequncia se viam envoltos em acusaes e julgamentos no mbito de infraces ou delitos,

    contratos, impostos, etc.

    Nem toda a gente porm era capaz de falar em pblico com brilho e eficcia. Os menos

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  • hbeis na oratria tinham de pedir a ajuda dos mais preparados. Da ao florescimento de uma

    classe profissional de especialistas na arte de bem falar e escrever, foi um passo. Esses

    especialistas, ora transmitiam ensinamentos de retrica, ora representavam pessoalmente os

    seus clientes nos pleitos ou cediam-lhes discursos j feitos que aqueles pronunciariam como se

    fossem escritos por eles prprios. Com o passar do tempo a experincia oratria foi sendo reunida

    em mximas e preceitos tendentes obteno do xito no tribunal ou na assembleia. A oratria

    tornava-se desse modo uma tcnica e por meados do sc. V a. C. surgiam na Siclia os primeiros

    tratados de retrica, atribudos a Krax e Tsias, embora confinados praticamente oratria

    forense e dando especial relevo aos truques a que o advogado poderia recorrer para vencer em

    juzo.

    O verdadeiro fundador da tcnica retrica, porm, foi um outro siciliano, Grgias Leontinos

    que surgiu em Atenas, no ano de 427 a. C., como embaixador da sua cidade natal e que desde

    logo causou a maior sensao, devido aos brilhantes e floreados discursos com que se dirigia aos

    Atenienses, a solicitar a sua ajuda. Muitos deles, fascinados pela sua oratria, tornaram-se seus

    discpulos, fazendo de Grgias o primeiro professor de retrica de que h conhecimento. Para

    Grgias, a oratria deveria excitar o auditrio at o deixar completamente persuadido. No lhe

    interessava uma eventual verdade objectiva, mas to somente o convencimento dos ouvintes.

    Para o efeito, o orador deveria ter em conta a oportunidade do lugar e do momento, para alm de

    saber adaptar-se ao carcter dos que o escutassem. Mas sobretudo, teria de usar uma linguagem

    brilhante e potica, cheia de efeitos, figuras e ritmos. Ele foi, pode dizer-se, o introdutor de uma

    oratria de exibio ou de aparato, sem obedincia a qualquer finalidade poltica ou forense e

    orientada fundamentalmente para fazer realar o prprio orador. Neste aspecto, em nada se

    afastava de muitos outros sofistas do seu tempo.

    Aristteles estudou os tratados de retrica deixados por Grgias e seus seguidores,

    chegando mesmo a resumi-los numa s obra em que procedeu compilao das tcnicas

    retricas. Considerou, porm, tais tratados pouco satisfatrios, por no irem alm do recurso aos

    truques legais e s maneiras mais absurdas de suscitar a compaixo dos jurados. Faltava uma

    apresentao sria e mais abrangente das regras e dos mtodos da retrica, especialmente, os

    mais tcnicos e eficazes, aqueles que se baseiam na argumentao.

    Quando Aristteles chegou a Atenas, Iscrates era o mais famoso e influente Mestre de

    retrica e possua uma escola mais bem sucedida que a Academia de Plato, com a qual de resto

    rivalizava, na formao dos futuros homens polticos da cidade. Logo por altura da fundao da

    sua escola, Iscrates escreveu uma obra com o muito elucidativo ttulo de Contra os sofistas, na

    qual acusava estes ltimos de perderem o seu tempo e fazerem perder o dos demais com

    subtilezas intelectuais sem qualquer relevncia para a vida, para a poltica ou para a aco.

    Igualmente condenava os retricos formalistas por inculcarem nos seus alunos a falsa ideia de

    que a aplicao mecnica de um receiturio de regras ou truques pode levar ao xito.

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  • Demarcando-se do que at a tinha sido a orientao dominante dos grandes mestres da retrica,

    Iscrates proclama a necessidade de uma formao integral, que partindo de um carcter

    adequado, inclua o estudo tanto da temtica poltica como da tcnica retrica em toda a sua

    dimenso. S assim se poderia formar cidados virtuosos e preparados para o xito poltico e

    social. Assinale-se que era a esta formao integral, onde a retrica assumia um papel de relevo,

    que Iscrates chamava de Filosofia. Os demais filsofos, incluindo Plato, no passariam de

    sofistas pouco srios.

    Contra essa concepo se pronunciou Plato por achar que o ensino de Iscrates, para

    alm de frvolo e superficial, era dirigido unicamente ao xito social, ficando margem de todo o

    questionamento filosfico ou cientfico sobre a natureza da realidade. Estava em causa a

    educao superior ateniense e, segundo Plato, a hegemonia da retrica, que visa a persuaso e

    no a verdade, era um perigo que urgia atacar decididamente. No seu dilogo Grgias, podemos

    ver como ele confronta a retrica e a filosofia, defendendo claramente uma espcie de

    tecnocracia moral, em que os verdadeiros especialistas (os filsofos) conduzam os cidados

    quilo que o seu interesse, isto , a serem cada vez melhores. Condena a democracia onde os

    polticos oradores bajulam o povo e seguem servilmente os seus caprichos, o que s pode tornar

    os cidados cada vez piores. E esgrime os seus contundentes argumentos contra a retrica,

    negando-lhe o carcter de uma verdadeira tcnica, por no se basear em conhecimento algum.

    Para ele, a retrica no passa de uma mera rotina concebida para agradar ou adular. apenas

    um artifcio de persuaso. No da persuaso do bom ou do verdadeiro, mas sim da persuaso de

    qualquer coisa. Lembra que graas retrica que o injusto se livra do castigo, quando segundo

    ele, valeria mais ser castigado, pois a injustia o maior mal da alma. Plato conclui que a

    retrica no tem mesmo qualquer utilidade a no ser que se recorra a ela justamente para o

    contrrio: para que o faltoso ou delinquente seja o primeiro acusador de si mesmo e de seus

    familiares, servindo-se da retrica para esse fim, para tornar patentes os seus delitos e se livrar

    desse modo do maior dos males, a injustia.

    Iscrates, por certo, no comungava de to exaltado moralismo, pois a sua retrica estava

    orientada basicamente para a defesa de qualquer postura, para ganhar os pleitos, para persuadir

    a assembleia. Foi, porm, o mais moralista e comedido de todos os retricos, em grande parte,

    devido s suas reais preocupaes polticas, mas tambm por estar convencido que o virtuoso

    acaba sempre por ter mais xito do que o depravado. Por isso se insurgia, tal como Plato, contra

    os sofistas mais cnicos e amorais. Compreende-se assim que Plato, com o decorrer dos

    tempos, tenha temperado a veemncia das suas iniciais crticas retrica, chegando mesmo a

    elogiar Iscrates, embora sem reconhecer oratria outro mrito que no fosse o meramente

    literrio. Na sua obra Fedro viria inclusivamente a admitir a possibilidade de uma retrica distinta,

    verdadeira e boa, que se confundiria quase com a filosofia platnica.

    Idntica mutao de pensamento parece ser de assinalar a Aristteles, que depois de ter

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  • inicialmente enfrentado Iscrates para defender a supremacia das teses platnicas - cujo xito lhe

    valeu o convite para dirigir o primeiro curso de retrica na Academia - acabou por ir abandonando

    pouco a pouco as posies exacerbadamente moralistas destas ltimas, em favor da

    incorporao de cada vez mais elementos da tcnica oratria. Com isso, pode dizer-se que a sua

    concepo final da retrica, muito precisa e realista, se situa, pelo menos, to prximo de

    Iscrates como de Plato.

    Aristteles insurge-se contra os retricos que o precederam, acusando-os de se terem

    contentado com o compilar de algumas receitas e um sem nmero de subterfgios ou evasivas

    aplicveis oratria, que visam apenas a compaixo dos juzes. E isto, quando h outros tipos de

    oratria para alm da forense, tornando-se necessrio proceder sua distino. Alm do mais, os

    especialistas da oratria tinham at ali passado ao lado do recurso tcnico mais importante a que

    pode deitar mo o orador: a argumentao, em especial, o entinema. So essas lacunas que

    Aristteles se prope suprir. Haveria que estudar as razes porque os oradores que pronunciam

    os seus discursos, umas vezes tm xito e outras no. Sistematizar e explicitar essas razes a

    grande tarefa da tcnica, no caso, da tcnica retrica.

    Ao assumir essa posio, Aristteles vai afastar-se de toda a concepo negativista da

    retrica, reconhecendo-lhe finalmente a dignidade de fundamento e de uso que at a tanto fora

    questionada, especialmente por Plato e seus seguidores. Agora a tcnica retrica considerada

    til para todos os cidados e at para os filsofos, pois perante os auditrios populares que

    formam as assembleias e os tribunais, de nada servem as demonstraes puramente cientficas,

    sendo imprescindvel recorrer retrica, para obter o entendimento e convencer os restantes co-

    participantes. De contrrio, corre-se o risco de ser vencido e ver a verdade e a justia

    escamoteadas. Definitivamente, o saber defender-se com a palavra, passou a ser uma parte

    essencial da educao e cultura geral grega. E Aristteles explica porqu: "se vergonhoso que

    algum no possa servir-se de seu prprio corpo [para se defender], seria absurdo que no o

    fosse no que respeita razo, que mais prpria do homem do que o uso do corpo i. certo que

    uma das maiores acusaes que Plato fizera retrica tinha sido a de que esta poderia trazer

    graves consequncias quando algum dela se servisse para fazer o mal, mas Aristteles riposta

    categoricamente, lembrando que "se certo que aquele que usa injustamente desta capacidade

    para expor razes poderia causar graves danos, no menos certo que isso ocorre com todos os

    bens, excepo da virtude, sobretudo com os mais teis, como o vigor, a sade, a riqueza ou a

    capacidade militar, pois com eles tanto pode obter-se os maiores benefcios, se usados com

    justia, como os maiores custos, se injustamente utilizadosii.

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  • 2- A tcnica retrica de Aristteles

    2.1- Os meios de persuasoA tcnica retrica de Aristteles consiste nos principais meios ou recursos persuasivos de

    que se vale o orador para convencer o auditrio. Esses meios de persuaso podem classificar-se

    antes de mais em tcnicos e no-tcnicos. Os meios de persuaso no-tcnicos so os que

    existem independentemente do orador: leis, tratados, testemunhos, documentos, etc. Os meios de

    persuaso tcnicos so aqueles que o prprio orador inventa para incorporar a sua prpria

    argumentao ou discurso e que se repartem por trs grupos, tantos quantas as instncias da

    relao retrica: ethos, o carcter do orador; pathos, a emoo do auditrio e logos, a

    argumentao. Impe-se, contudo, precisar um pouco melhor cada uma destas instncias. Em

    primeiro lugar, o ethos. Sem dvida que o carcter do orador fundamental, pois uma pessoa

    ntegra ganha mais facilmente a confiana do auditrio, despertando nele maior predisposio

    para ser persuadido. Mas trata-se aqui da impresso que o orador d de si mesmo, mediante o

    seu discurso e no do seu carcter real ou a opinio que previamente sobre ele tm os ouvintes,

    pois estes dois ltimos aspectos, no so tcnicos. Quanto ao pathos, tem de se reconhecer que

    a emoo que o orador consiga produzir nos seus ouvintes pode ser determinante na deciso de

    serem a favor ou contra a causa defendida. Se o orador suscita nos juizes sentimentos de alegria

    ou tristeza, amor ou dio, compaixo ou irritao, estes podero decidir num sentido ou no outro.

    Foi alis este o ponto mais estudado nos anteriores tratadistas da retrica. Por ltimo, o logos,

    constituindo o discurso argumentativo a parte mais importante da oratria, aquela a que se

    aplicam as principais regras e princpios da tcnica retrica. E os recursos argumentativos so

    fundamentalmente dois: o entinema e o exemplo 3. O entinema o tipo de deduo prprio da

    oratria. Parece um silogismo mas no , pois s do ponto de vista formal mantm semelhanas

    com o silogismo cientfico ou demonstrao. A grande diferena reside nas suas premissas que,

    contrariamente ao que acontece no silogismo cientfico, no so nem necessrias, nem

    universais, nem verdadeiras. O entinema parte de premissas apenas verosmeis, que se verificam

    em muitos casos e so aceites pela maioria das pessoas, particularmente, pela maioria dos

    respectivos auditrios. Quanto ao exemplo, ele o tipo de induo caracterstico da oratria e

    consiste em citar oportunamente um caso particular, para persuadir o auditrio de que assim em

    geral.

    Aristteles concebe trs gneros de oratria: a deliberativa, a forense e a de exibio 4. A

    oratria deliberativa a que tem lugar na assembleia e visa persuadir a que se adopte a poltica

    que o orador considera mais adequada. a mais importante, a mais prestigiada, prpria de

    homens pblicos e aquela para a qual preferentemente se orientava o ensino de Iscrates e

    Aristteles. A oratria forense, como o seu nome indica, a utilizada perante os juzes ou jurados

    do tribunal, para os persuadir a pronunciarem-se a favor ou contra o acusado. Embora til, no

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  • muito valorizada. Finalmente, a oratria de exibio, tambm chamada de epidctica, a que tem

    lugar na praa ou outro local similar, perante o pblico em geral, que o orador procura

    impressionar exibindo os seus dotes de oratria, normalmente fazendo o elogio de algum ou de

    algo, ainda que isso seja um mero pretexto para o orador brilhar.

    Cada um destes trs gneros de oratria, possui uma especial relao com o tempo,

    conforme o efeito da persuaso se manifeste no passado, no presente ou no futuro. Na oratria

    deliberativa, por exemplo, est em causa o futuro, pois os membros da assembleia so chamados

    a deliberar sobre o modo como as coisas iro decorrer. A oratria forense, remete-nos para o

    passado pois os juizes ou jurados do tribunal decidem sobre actos que j decorreram. Por ltimo,

    na oratria de exibio (ou epidctica) o presente que se assume como dimenso temporal, pois

    a os ouvintes analisam e julgam a habilidade que o orador manifesta no preciso momento em que

    usa da palavra. Evidentemente que cada um destes trs gneros de oratria tem tambm o seu

    especfico objectivo: a oratria deliberativa procura obter uma certa utilidade ou proveito, a

    oratria forense visa a justia e a oratria de exibio serve ao enaltecimento do orador, ainda

    que custa do elogio de algum. No que respeita aos meios de persuaso propriamente ditos, os

    exemplos so mais adequados oratria deliberativa e os entinemas oratria forense, ainda

    que ambos se utilizem numa e outra. Quanto ao encarecimento ou elogio, esse mais frequente

    na oratria de exibio.

    2.2- As premissas de cada tipo de oratriaO orador far uso abundante dos entinemas que so o principal instrumento de persuaso

    de que dispe. O entinema uma inferncia ou deduo (um silogismo, segundo a terminologia

    aristotlica) parecido na forma com a demonstrao cientfica mas menos rigoroso, ainda que

    tanto ou mais convincente quando usado perante um pblico menos culto. No entinema comem-

    se com frequncia as premissas, aparecendo s algumas e subentendendo-se as outras. Alm

    disso, as premissas no precisam de ser verdadeiras, basta que sejam verosmeis. Nem o que as

    premissas do entinema formulam em geral necessita cumprir-se sempre, basta que se cumpra

    com frequncia. A tcnica retrica deve proporcionar um amplo repertrio de premissas

    verdadeiras ou verosmeis ou geralmente aceites acerca de cada tema, de tal modo que a partir

    delas se possa construir os entinemas. Por isso Aristteles dedica os captulos IV, V, VI, VII e VIII

    do Livro I da sua Retrica apresentao de lugares ou tipos de premissas utilizveis em

    discursos deliberativos.

    2.2.1- Na oratria deliberativaOs temas mais frequentes na oratria deliberativa, perante a assembleia popular, so por

    excelncia, os temas polticos, nomeadamente, impostos, guerra e paz, defesa, comrcio exterior

    e legislao e tambm sobre eles que Aristteles faz uma srie de consideraes da maior

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  • utilidade para o orador, aps o que chama a ateno para o facto de, em ltima instncia, toda a

    gente decidir tendo em vista a sua prpria felicidade, coisa que o orador poltico ou deliberativo

    deveria ter em conta. A tcnica retrica dever ento proporcionar ao orador premissas sobre a

    felicidade, que comearo pela sua prpria definio e a dos seus elementos, pois apelando

    felicidade que esse orador conseguir convencer os membros da assembleia. Aristteles d uma

    definio da felicidade que pode ser facilmente aceite por todos: "Seja pois felicidade a

    prosperidade unida excelncia ou suficincia dos meios de vida, ou a vida mais agradvel,

    acompanhada de segurana ou plenitude de propriedades e do corpo, bem como a capacidade

    de os salvaguardar e usar, pois pode dizer-se que todos coincidem em que a felicidade consiste

    numa ou mais destas coisas 5. Mas como por vezes se apela no felicidade plena mas somente

    a uma das suas partes, o orador deve dispor tambm de premissas sobre essas partes da

    felicidade que so, nomeadamente, a nobreza, a riqueza, a boa fama, as honras, a sade, a

    beleza, o vigor e a fora, o ter muitos e bons amigos, a boa sorte e a excelncia ou virtude.

    Quando o orador recomenda algumas coisas assembleia, apresenta-as como proveitosas

    ou convenientes, ou seja, como bens ou como permitindo a obteno de bens. Necessita por isso

    de dispor tambm de premissas sobre os bens, a comear pela sua prpria definio e classes

    em que se podem agrupar. Esses bens so, em primeiro lugar, a felicidade, depois, a riqueza, a

    amizade, a glria, a eloquncia, a memria, a perspiccia, os saberes, as tcnicas e a justia.

    Aristteles preocupa-se em oferecer sobre todos esses bens pontos de vista que podem ser

    utilizados como premissas, por exemplo aquilo cujo contrrio um mal, ele mesmo um bem.

    Nas situaes em que todos esto de acordo em que duas propostas convm ou so boas, o que

    se torna necessrio dizer qual delas convm mais ou melhor. Por isso Aristteles fornece uma

    bateria de critrios de comparao que podem ser usados pelo orador para apresentar um bem

    como prefervel a outro.

    2.2.2- Na oratria forenseNa oratria forense, que tem lugar no tribunal, o tema bsico saber se se cometeu ou no

    injustia num caso determinado. E tambm ao orador forense a tcnica retrica deve oferecer um

    vasto conjunto de definies, classificaes, critrios e dados que ele possa utilizar com

    premissas dos seus entinemas. Aqui a noo fundamental que est em jogo a de acto injusto

    que Aristteles define como equivalente a causar voluntariamente um dano contrrio lei 6. Ou

    seja, para que haja injustia so necessrios trs requisitos: a produo de um dano, inteno de

    o provocar e violao da lei. Por sua vez, o acto intencional quando praticado sem estar

    forado ou submetido a uma violncia ou a uma necessidade exterior. Considerando que tudo o

    que se faz voluntariamente, ser agradvel ou dirigido ao prazer, Aristteles define este ltimo

    como "um processo de alma e um retorno total e sensvel sua forma natural de ser 7 e descreve

    os diversos tipos de prazeres tais como prazeres naturais do corpo, prazeres da imaginao e

    10/128

  • recordao, prazer de se vingar, prazer de vencer, prazer da honra, prazer do amor, prazer de

    aprender, prazer de mandar, etc., ao mesmo tempo que fornece as opinies geralmente aceites e

    utilizveis como premissas ao falar sobre se o acto foi realizado voluntariamente ou no e o que

    com ele poderia ter querido obter o agente.

    Um outro conjunto de premissas para possveis entinemas referem-se a quem provvel

    que cometa injustia e quem provvel que a sofra. Assim, diz-nos que quem pode facilmente

    cometer injustia so os que pensam que sairo dela impunes, porque ficaro ocultos ou porque

    conseguiro esquivar-se do castigo graas a determinadas influncias, como acontece, por

    exemplo, com aqueles que so amigos das vtimas dos seus delitos ou dos juizes, porque os

    amigos no se previnem contra as injustias e preferem chegar a um acordo antes de recorrer aos

    tribunais, enquanto que os juizes favorecem os seus amigos, absolvendo-os ou impondo-lhes

    castigos leves 8. Quanto aos que considera que facilmente podem ser vtimas de injustia, so os

    que no tm amigos, os estrangeiros e os trabalhadores. Recordemos que o acto para ser injusto

    tem de ir contra a lei. Aristteles porm distingue a lei particular, que a polis estabelece para si

    prpria, da lei comum resultante da natureza humana. Dentro da lei particular distingue

    igualmente a escrita da no escrita (costume). Diz ainda que a equidade vai mais alm da lei

    escrita e que tem mais a ver com a inteno do legislador do que com o esprito da letra. Por isso

    apela mais a uma arbitragem que a um juzo, porque o rbitro atende ao equitativo, enquanto o

    juiz atende lei.

    Por ltimo, Aristteles estabelece os meios de persuaso que considera imprescindveis nos

    julgamentos e que so cinco: as leis, os testemunhos, os contratos, as declaraes sob tortura e

    os juramentos. E aqui que nos aparece como eminente tcnico retrico, colocando-se num

    plano amoral, capaz de atacar e defender qualquer posio e de dar a volta a qualquer

    argumento, como se espera de um bom advogado. Chega ao ponto de mostrar como a prpria lei

    pode ser manipulada: (...) Falemos, portanto, em primeiro lugar, das leis e de como delas se deve servir quem exorta

    ou dissuade e quem acusa ou defende. Pois evidente que quando a lei escrita seja contrria ao

    nosso caso, h que recorrer ao geral ou ao razovel como melhores elementos de juzo, pois isso o

    que significa com o melhor critrio, no recorrer a todo o custo s leis escritas. E tambm que o

    razovel permanece sempre e nunca muda, como sucede com a lei geral (pois conforme

    natureza), enquanto que as leis escritas o fazem com frequncia (....) atenderemos tambm ao que

    o justo, no sua aparncia, o que verdadeiro e conveniente, de forma que a escrita no lei,

    porque no serve como a lei. E tambm que o juiz como o contrastador de moeda, que deve

    distinguir entre a justia adulterada e a legtima (....). Pelo contrrio, quando a lei seja favorvel ao

    caso, h que dizer que o com o melhor critrio no serve para julgar contra a lei, mas sim para

    evitar prejuzos pelo desconhecimento do que a lei prescreve. E que ningum escolhe o bom em

    absoluto, seno o que bom para ele .

    Em resumo, se a lei escrita nos favorvel, h que aplic-la. Se a mesma no nos favorece

    11/128

  • h que ignor-la e substitu-la pela no escrita ou pela equidade.

    No que se refere aos testemunhos, Aristteles elabora tambm algumas regras tcnicas de

    como proceder, quer quando dispomos de testemunhas, quer quando no as possumos.

    "Argumentos convincentes para quem no tem testemunhos so que necessrio julgar a partir

    do verosmil e que isto o que significa com o melhor critrio, j que o verosmil no pode

    enganar, ao contrrio do suborno, nem pode ser afastado por falso testemunho. Ao invs, para

    aquele que tem testemunhos, frente ao que no os tem, os argumentos sero que o verosmil no

    algo que possa submeter-se a juzo e que no fariam falta os testemunhos se fosse suficiente a

    considerao dos argumentos apresentados 10.

    Quanto aos contratos Aristteles diz que "o seu emprego nos discursos consiste em

    aumentar ou diminuir a sua importncia, torn-los fidedignos ou suspeitos. Se nos favorecem,

    fidedignos e vlidos, e o contrrio, se favorecem a outra parte. Pois bem, fazer passar os

    contratos por fidedignos ou suspeitos em nada se diferencia do procedimento seguido com as

    testemunhas, pois os contratos so mais ou menos suspeitos, segundo o sejam os seus

    contratantes ou fiadores. Se o contrato reconhecido e nos favorece, h que engrandecer a sua

    importncia, sobre a base de que um contrato uma norma privada e especfica, no que os

    contratos constituam uma lei obrigatria, mas porque so as leis que fazem obrigatrios os

    contratos conformes lei, e que, em geral, a prpria lei uma espcie de contrato, de tal forma

    que quem desconfia de um contrato ou o rompe tambm rompe com as leis 11. Igualmente no

    caso das confisses realizadas sob tortura, formula regras tcnicas de proceder conforme tais

    confisses nos so ou no favorveis. "As declaraes sobre tortura so tambm testemunhos e

    do a impresso de que que tm credibilidade, porque h nelas uma certa necessidade

    acrescentada. Nem sequer difcil ver os argumentos precisos no que a elas se refere e cuja

    importncia devemos engrandecer, no caso de nos serem favorveis, no sentido de que so estes

    os nicos testemunhos verdicos. No caso de nos serem contrrios e favorveis outra parte,

    trataremos de minimiz-los, falando em geral sobre qualquer gnero de tortura, pois no se mente

    menos quando algum se v coagido, seja enchendo-se de coragem para no dizer a verdade,

    seja recorrendo facilmente a mentiras para terminar a tortura mais cedo 12. Por aqui se v como,

    no que respeita persuaso, Aristteles acaba por se colocar num plano estritamente tcnico,

    estudando os meios sem tomar partido pelos fins. Com isso se afasta definitivamente do exaltado

    moralismo platnico, compreendendo, assim, o ponto de vista dos retricos profissionais, que

    assume agora como seu.

    2.2.3- Na oratria de exibioNa oratria de exibio ou epidctica, recordemos, pretende-se acima de tudo fazer luzir o

    orador, embora a pretexto de elogiar algum. E para tal, Aristteles recomenda, antes de mais,

    12/128

  • que se tenha em conta em que lugar e perante que auditrio se ir pronunciar o discurso, para

    que se louve o que em cada lugar mais se estime ou valorize. certo, porm, que, o que sempre

    se elogia costuma ser um qualquer tipo de excelncia. Logo, o que o orador epidctico precisa

    de dispor de um repertrio de opinies admitidas ou lugares acerca da excelncia.

    Mas o que a excelncia? Aristteles define a excelncia como a faculdade de criar e

    conservar bens, mas tambm como faculdade de produzir muitos e grandes benefcios, de prestar

    numerosos e importantes servios. Elementos ou partes da excelncia, so a justia, a valentia, a

    temperana, a liberalidade, a magnanimidade e a racionalidade. Sobre todas estas excelncias ou

    virtudes d Aristteles preciosas opinies e conselhos tcnicos. Considerando que se elogia

    algum pelas suas aces e que prprio de um homem insigne actuar por vontade deliberada,

    recomenda que se procure mostrar que o elogiado agiu deliberadamente. mesmo conveniente

    realar que assim agiu muitas vezes, nem que para tal seja preciso tomar as coincidncias e

    casualidades como se fizessem parte do seu propsito 13.

    2.3- Premissas comuns aos trs tipos de oratria

    2.3.1- Induo e deduoNos captulos XVIII a XXV do Livro II da Retrica, Aristteles refere os tpicos ou lugares

    comuns que podem ser muito teis ao orador em qualquer dos trs tipos de oratria j definidos.

    Para ele, os principais recursos lgicos de que se pode valer um orador para persuadir so o

    exemplo e o entinema, que correspondem induo e deduo, respectivamente. A induo

    costuma implicar uma certa passagem do particular ao geral, da parte para o todo. Porm, no

    exemplo, considerado como uma espcie de induo retrica, no se vai da parte para o todo,

    como na induo propriamente dita, nem do todo para a parte como na deduo, mas sim, de

    uma parte a outra parte, do semelhante para o semelhante e tem lugar quando os dois casos

    pertencem ao mesmo gnero, mas um mais conhecido que outro. Seria como dizer que Dionsio14, ao pedir uma escolta, aspira tirania, s porque antes, tambm Pisstrato pedira uma escolta

    com essa inteno e depois de a obter, fez-se um tirano, alis, como sucedera com outros,

    quando diz Aristteles no se sabe ainda se por isso que ele pede a escolta 15. O exemplo

    ento um caso particular que o orador utiliza para apoiar a sua afirmao sobre outro caso

    anterior, distinto, mas do mesmo gnero, por apresentar certas caractersticas comuns. H dois

    tipos de exemplos: os casos realmente sucedidos e os casos inventados. Entre os exemplos

    inventados contam-se as parbolas e as fbulas. As fbulas - diz Aristteles - so muito

    adequadas para os discursos ao povo e tm a vantagem de ser mais fcil compor fbulas do que

    achar exemplos de coisas semelhantes realmente ocorridas. Contudo, "os acontecimentos so

    mais proveitosos para a deliberaco, pois a maioria das vezes o que vai ocorrer semelhante ao

    13/128

  • que j ocorreu 16.

    O entinema, por sua vez, uma deduo em que as premissas so opinies verosmeis,

    provveis ou geralmente admitidas. E depois de ter elaborado separadamente premissas por cada

    tipo de oratria, Aristteles oferece agora outras orientadas para temas ou tpicos comuns a

    todos eles. assim que agrupa opinies e critrios por tpicos como o possvel e o impossvel, se

    algo ocorreu ou ir ocorrer, sobre a magnitude, sobre o mais e o menos, as quais podem ser

    muito teis em todo o tipo de situaes oratrias. Entre as opinies geralmente admitidas, que

    podem usar-se como premissas de entinemas, encontram-se as mximas, sentenas ou

    provrbios. Uma mxima uma afirmao sobre temas prticos relativos aco humana,

    tratados em geral. Algumas mximas so evidentes, triviais e no requerem justificao alguma.

    Outras, mais ambguas, j requerem um eplogo que as explique ou justifique o que vai convert-

    las, por sua vez, numa espcie de entinema. Mas porque recomenda Aristteles o uso de

    mximas? Porque estas, por serem comuns e divulgadas, como se todos estivessem de acordo

    com elas, so consideradas justas.

    2.3.2- Persuaso pelo carcterPara ser um bom orador so necessrias duas coisas: saber argumentar bem e possuir

    perspiccia psicolgica. Por isso Aristteles para alm de analisar e sistematizar os recursos

    argumentativos, estuda tambm os factores psicolgicos da persuaso, a comear pelo carcter

    (ethos) do orador.

    Com efeito, o poder de convico do orador sobre o seu auditrio no depende s dos

    factos que aduza, das premissas que empregue, nem da sua boa argumentao. "Os argumentos

    no s derivam do raciocnio demonstrativo, como tambm do tico, e acreditamos em quem nos

    fala na base de que nos parece ser de uma determinada maneira, quer dizer, no caso de parecer

    bom, benvolo ou ambas as coisas 17. No se trata portanto - frise-se uma vez mais - da opinio

    prvia que o auditrio possa ter sobre o orador nem to pouco do carcter que este realmente

    possui, mas sim, do que aparenta ter quando se dirige ao auditrio. isso que pode ser decisivo

    para inclinar o auditrio a aceitar as suas propostas. Persuade-se pelo carcter quando o

    discurso se pronuncia de forma que torna aquele que fala digno de crdito pois damos mais

    crdito e demoramos menos a faz-lo, s pessoas moderadas, em qualquer tema e em geral,

    mas de maneira especial parecem-nos totalmente convincentes nos assuntos em que no h

    exactido mas sim dvida (....) e no h que considerar, como fazem alguns tratadistas da

    disciplina, a moderao do falante como algo que em nada afecta a capacidade de convencer,

    mas antes, que o seu comportamento possui um poder de convico que , por assim dizer,

    quase o mais eficaz 18.

    Para despertar a confiana nos ouvintes, o orador precisa que estes lhe reconheam trs

    14/128

  • qualidades: racionalidade, excelncia e benevolncia. Porque se o orador no racional na sua

    maneira de pensar, ento ser incapaz de descobrir as melhores solues. J um orador racional

    mas sem escrpulos, pode encontrar a soluo ptima mas ou no a comunica ou tenta enganar,

    propondo gato por lebre. S num homem insigne, a um tempo racional, excelente e bondoso, se

    pode confiar. Logo, o orador deve dar a impresso de que possui um tal carcter, se pretende

    persuadir, pois o seu xito no depende s do que disser mas tambm da imagem que de si

    prprio projectar no auditrio.

    Sendo importante que o orador saiba dar a impresso de possuir um carcter digno de

    confiana, igualmente necessrio que conhea o carcter dos seus ouvintes e a ele saiba

    adaptar-se. Por isso Aristteles nos captulos XII a XVII do Livro II da Retrica procede anlise e

    classificao do carcter em relao com a idade e a fortuna. No que respeita idade, distingue

    trs classes: os jovens, os adultos e os velhos. Os jovens so apaixonados, prdigos, valentes e

    volveis. Os velhos, so calculistas, avarentos, covardes e estveis. S os adultos maduros

    adoptam uma atitude intermdia e sensata. "Falando em termos gerais, o homem maduro possui

    as qualidades proveitosas que esto distribudas entre a juventude e a velhice, ficando num termo

    mdio e ajustado, pois que uma e outra ou se excedem ou ficam aqum do necessrio 19. Em

    relao fortuna, Aristteles considera os factores de nobreza, riqueza, poder e boa sorte. Assim,

    os nobres tendero a ser ambiciosos e depreciativos, os ricos sero insensatos e insolentes e os

    poderosos parecero como ricos, mas ainda mais ambiciosos e viris.

    2.3.3- As paixes do auditrioO orador de xito no pode contudo limitar-se ao conhecimento passivo do carcter dos

    seus ouvintes. Tem tambm que influenciar activamente o seu estado de nimo, provocando-lhes

    as emoes ou paixes (pathos) que mais convenham causa, pois este despertar das paixes

    adequadas no auditrio um dos mais importantes recursos de persuaso. que, como j ficou

    dito a propsito dos jurados e juzes, segundo a emoo que experimentem num dado momento,

    os ouvintes estaro predispostos a decidir num sentido ou no seu oposto. Nos captulos II a XI do

    Livro II da Retrica, Aristteles estuda as paixes dos ouvintes e fornece ao orador lugares,

    opinies, informaes e critrios que o ajudaro a provocar essas paixes quando isso for do seu

    interesse. F-lo agrupando as paixes em pares de contrrios, como por exemplo a ira e a calma,

    o amor e o dio, etc. De cada paixo d uma definio, considerando alm disso, a disposio

    mental em que surgem, as pessoas sobre quem recaem e os objectos ou circunstncias que as

    provocam. Por exemplo, em relao ao amor, define-o como "o querer para algum o que se

    considera bom, no seu interesse, e no no nosso, e estar disposto a lev-lo a efeito, na medida

    das nossas foras 20. Daqui deriva a sua concepo de amizade pois que para ele amigo o que

    ama e correspondido no seu amor 21. Mas apesar da profundidade com que analisa cada uma

    15/128

  • das paixes, a sua finalidade sempre eminentemente tcnica: "Portanto, evidente que

    possvel provar que tais pessoas so amigos ou inimigos; se no o so, dar a impresso de que

    so e se se presume que o sejam, refut-los, e se discutem por ira ou inimizade, lev-los para o

    terreno que se prefira 22. Com isto Aristteles leva a cabo, de certo modo, o programa que Plato

    traara na sua obra Fedro para uma possvel tcnica retrica genuna e onde punha como

    condio o conhecimento dos diversos tipos de emoo e de carcter, a fim de que fosse possvel

    actuar tambm sobre cada carcter despertando nele a emoo adequada.

    2.3.4- O discurso: estilo e ordemOs captulos I a XII do Livro III da Retrica tratam da elocuo, a que Aristteles chamava a

    expresso em palavras do pensamento. Na prosa cientfica essa expresso directa, sem

    adornos, como convm aos que tm esprito aberto e buscam a verdade. Mas no costumam ser

    assim os ouvintes da oratria, pois trata-se maioritariamente de gente vulgar e sem grande

    preparao intelectual. Aristteles reconhece que o justo "seria no debater mais que os puros

    factos, de sorte que tudo o que excede a demonstrao suprfluo. Contudo, [tal excesso] tem

    muita importncia, devido s insuficincias do ouvinte 23.

    A intensidade e o tom da voz que emprega, o ritmo que d ao seu discurso e a gesticulao

    com que o acompanha, configuram aquilo a que se pode chamar a actuao do orador, que neste

    aspecto, como um actor de teatro. Ser necessrio cuidar da expresso j que "no suficiente

    que saibamos o que devemos dizer, foroso tambm saber como devemos dizer, pois isso

    contribui em muito para que o discurso parea possuir uma determinada qualidade 24. Por isso a

    tcnica retrica deve abranger a actuao do orador.

    Quanto ao discurso retrico propriamente dito, pode dizer-se que, ao contrrio da prosa

    cientfica, ele tem pretenses literrias, pois brilhar, surpreender e at divertir, pode contribuir

    decisivamente para persuadir o auditrio. Mas isso, segundo Aristteles, no deve confundir-se

    com o recurso a um estilo potico, pesado, como o de Grgias, j que o uso de um estilo sereno,

    claro e natural o mais adequado quando se pretende ser convincente. "Por isso no convm

    que se note a elaborao nem dar a impresso de que se fala de modo artificial mas sim natural

    (este ltimo o persuasivo, pois os ouvintes predispem-se para contrariar, quando ficam com a

    ideia de que se est a met-los numa armadilha, tal como acontece com os vinhos misturados) 2

    5. O recurso literrio mais importante da oratria a metfora. Mas preciso saber encontrar

    metforas adequadas, nem muito obscuras nem triviais. Por outro lado, o discurso, embora sem

    cair no verso, no pode renunciar ao ritmo. E Aristteles explica porqu: "a forma que carece de

    ritmo indefinida e deve ser definida, ainda que no seja em verso, j que o indefinido

    desagradvel e difcil de entender 26. Aristteles critica o estilo pomposo, potico e artificial, o

    abuso de palavras complicadas, de eptetos desnecessrios e de metforas obscuras. O discurso

    16/128

  • deve ser claro, adequado, escorreito e ser pronunciado de forma eficaz. Defende igualmente que,

    embora o estilo escrito costume ser mais exacto e o falado mais teatral, mais apropriado

    interpretao, o orador tcnico dever dominar os recursos de ambos.

    Nos captulos XIII a XIX do Livro III, Aristteles aborda a ordem do discurso e define que as

    suas partes essenciais so a exposio do tema e a argumentao persuasiva da tese do orador.

    Diz, alm disso, que costuma juntar-se no incio do discurso um prembulo que equivale ao

    prlogo do poema e ao preldio da composio musical e no final, um eplogo. A funo principal

    do prembulo a de expor qual o fim a que se dirige o discurso, de modo a que o ouvinte possa

    seguir melhor o fio do mesmo. No eplogo, pelo contrrio, refresca-se a memria do ouvinte sobre

    o que (supostamente) foi provado. E isto, no s porque " natural que depois de se ter

    demonstrado que algum sincero e o seu contrrio, um mentiroso, por meio deste recurso se

    elogie, se censure e finalize 27, mas tambm porque a recapitulao dos pontos essenciais em

    que se baseou a argumentao ir facilitar a formao de uma opinio final sobre o seu grau de

    acerto ou eficcia.

    Como j ficou dito, a Retrica de Aristteles ter constitudo, em parte, a realizao do

    programa platnico exposto em Fedro de uma verdadeira tcnica retrica. S que enquanto

    levava a cabo essa tarefa, Aristteles foi-se afastando das posies moralistas de Plato, ao

    mesmo tempo que se aproximava cada vez mais da concepo tcnica neutral dos oradores e

    Mestres da altura, sobretudo, de Iscrates.

    3- A retrica clssica: retrica das figuras

    Durante a Idade Mdia, a retrica foi apenas utilizada como meio para o estudo de textos,

    menosprezando-se o seu uso prtico. Nessa medida, foi alis da maior importncia na

    constituio do discurso literrio durante o renascimento e o barroco, assim como influenciou os

    planos de estudos das humanidades e marcou particularmente a oratria sagrada. Chaim

    Perelman interroga-se sobre as razes que tero levado a que "a retrica dita clssica, que se

    ops retrica dita antiga, tenha sido reduzida a uma retrica das figuras, consagrando-se a

    classificao das diversas maneiras com que se podia ornamentar o estilo" 28. E a principal

    explicao sobre o modo como ter ocorrido essa transformao, vai encontr-la num artigo que

    Grard Genette escreveu na revista Communications, denominado La rhtorique restreinte :Aparentemente desde o incio da Idade Mdia que comea a desfazer-se o equilbrio prprio

    da retrica antiga, que as obras de Aristteles e, melhor ainda, de Quintiliano, testemunham: o

    equilbrio entre os gneros (deliberativo, judicirio, epidctico), em primeiro lugar, porque a morte das

    instituies republicanas, na qual j Tcito via uma das causas do declnio da eloquncia, conduz ao

    desaparecimento do gnero deliberativo, e tambm, ao que parece, do epidtico, ligado s grandes

    17/128

  • circunstncias da vida cvica: Martianus Capella, depois Isidoro de Sevilha, tomaram nota destas

    defeces, rhetorica est bene dicendi scientia in civilibus quaestionibus; o equilbrio entre as partes

    (inventio, dispositio, elocutio), em segundo lugar, porque a retrica do trivium, esmagada entre

    gramtica e dialctica, rapidamente se v confinada ao estudo da elocutio, dos ornamentos do

    discurso, colores rhetorici. A poca clssica, particularmente em Frana, e mais particularmente

    ainda no sculo XVIII, herda esta situao, acentuando-a ao privilegiar incessantemente nos seus

    exemplos o corpus literrio (e especialmente potico) relativamente oratria: Homero e Virglio (e

    em breve Racine) suplantam Demstenes e Ccero; a retrica tende a tornar-se, no essencial, um

    estudo da lexis potica 29.

    Genette, no mesmo artigo, vai mais longe ainda, quando identifica a histria da retrica com

    a restrio do seu prprio mbito: O ano de 1969-70 viu aparecer quase simultaneamente trs textos de amplitude desigual, mas

    cujos ttulos convergem de maneira bem sintomtica: trata-se da Rhtorique gnrale do grupo de

    Lige, cujo ttulo inicial era Rhtorique gnralise; do artigo de Michel Deguy Pour une thorie de la

    figure gnralise; e do de Jacques Sojcher, La mtaphore gnralise: retrica-figura-metfora:

    sob a capa denegativa, ou compensatria, duma generalizao pseudo-einsteniana, eis traado nas

    suas principais etapas o percurso (aproximativamente) histrico de uma disciplina que, no decurso

    dos sculos, no deixou de ver encolher, como pele de chagrm, o campo da sua competncia, ou

    pelo menos da sua aco. A Retrica de Aristteles no se pretendia geral (e ainda menos

    generalizada): ela era-o, e de tal modo o era na amplitude da sua inteno, que uma teoria das

    figuras ainda a no merecia qualquer meno particular; algumas pginas apenas sobre a

    comparao e a metfora, num livro (em trs) consagrado ao estilo e composio, territrio exguo,

    canto afastado, perdido na imensido de um Imprio. Hoje, intitulamos retrica geral o que de facto

    um tratado das figuras. E se temos tanto para generalizar, evidentemente por termos restringido

    demasiado: de Corax aos nossos dias, a histria da retrica a de uma restrio generalizada 30.

    Paul Ricoeur, na sua obra sobre a metfora, veio clarificar ainda mais esta restrio de que

    j nos fala Genette, ao lembrar que "a retrica de Aristteles cobre trs campos: uma teoria da

    argumentao que constitui o seu eixo principal e que fornece ao mesmo tempo o n da sua

    articulao com a lgica demonstrativa e com a filosofia (esta teoria da argumentao cobre, por

    si s, dois teros do tratado), uma teoria da elocuo e uma teoria da composio do discurso.

    Aquilo que os ltimos tratados de retrica nos oferecem , na feliz expresso de G. Genette, uma

    'retrica restrita', restringida em primeiro lugar teoria da elocuo, depois teoria dos tropos (....)

    Uma das causas da morte da retrica reside a: ao reduzir-se, assim, (...) a retrica tornou-se uma

    disciplina errtica e ftil. A retrica morreu quando o gosto de classificar as figuras suplantou

    inteiramente o sentido filosfico que animava o vasto imprio retrico, mantinha unidas as suas

    partes e ligava o todo ao organon e filosofia primeira" 31.

    18/128

  • Sobre as figuras, no entanto, necessrio proceder a uma importante distino. Como diz

    Ricouer, ao lado da retrica fundada na trade retrica-prova-persuaso, Aristteles elaborou

    tambm uma potica que no tcnica de aco mas sim tcnica de criao e que corresponde

    trade poisis-mimsis-catharsis. Ora, ao referir-se metfora nos dois tratados, Aristteles

    mostra-nos que a mesma figura pertence aos dois domnios, exercendo no s uma aco

    retrica, como desempenhando tambm um papel na criao potica. por isso que Chaim

    Perelman estabelece uma diferena ntida entre figuras de retrica e figuras de estilo, quando

    afirma: "Consideramos uma figura como argumentativa se o seu emprego, implicando uma

    mudana de perspectiva, parece normal em relao nova situao sugerida. Se, pelo contrrio,

    o discurso no implica a adeso do auditor a esta forma argumentativa, a figura ser entendida

    como ornamento, como figura de estilo. Ela poder suscitar admirao, mas no plano esttico, ou

    como testemunho da originalidade do orador" 32. indispensvel, por isso, examinar as figuras

    dentro do contexto em que surgem. De outro modo, escapa-nos o seu papel dinmico e todas se

    tornaro figuras de estilo. "Se no esto integradas numa retrica concebida como a arte de

    persuadir e de convencer, deixam de ser figuras de retrica e tornam-se ornamentos respeitantes

    apenas forma do discurso" 33.

    Perelman fixa a instaurao da retrica clssica no sc. XVI, quando Pedro Ramo define a

    gramtica como a arte de bem falar (falar correctamente), a dialctica como a arte de bem

    raciocinar e a retrica como a arte de bem dizer (fazer um uso eloquente e ornamentado da

    linguagem). Note-se a amplitude com que a dialctica surge nesta classificao, abrangendo tanto

    o estudo das inferncias vlidas como a arte de encontrar e julgar os argumentos. Com esta

    ampliao da dialctica, naturalmente, a retrica de Aristteles teria que ficar privada das suas

    duas partes essenciais, a inveno e a disposio, restando-lhe apenas a elocuo, traduzida

    pelo estudo das formas de linguagem ornamentada. E na sequncia desta classificao de

    Pedro Ramo, que o seu amigo Omer Talon, publica em 1572, na Colnia, a primeira retrica

    sistematicamente limitada ao estudo das figuras, sob o entendimento de que a figura uma

    expresso pela qual o desenvolvimento do discurso difere do recto e simples hbito 34. aqui

    que Perelman estabelece o nascimento da retrica clssica, uma retrica das figuras que, por

    degenerescncia, iria conduzir progressivamente morte da prpria retrica.

    No mesmo sentido vai Philippe Breton quando se interroga sobre as razes porque a partir

    do sc. XIX, a retrica, como matria de ensino, desapareceu dos programas escolares e

    universitrios em Frana. Tambm ele pensa que o definhamento da retrica comeou muito

    antes do sc. XIX, fundando essa sua posio, nomeadamente, no pensamento de Roland

    Barthes: "este descrdito trazido pela promoo de um valor novo, a evidncia (dos factos, das

    ideias, dos sentimentos) que se basta a si mesma e passa sem a linguagem (ou cr poder

    passar), ou pelo menos, finge j se servir dela apenas como de um instrumento, de uma

    19/128

  • mediao, de uma expresso. Esta 'evidncia' toma, a partir do sc. XVI, trs direces: uma

    evidncia pessoal (no protestantismo), uma evidncia racional (no cartesianismo), uma evidncia

    sensvel (no empirismo)" 35. E justamente no cartesianismo e na sua rejeio do verosmil que

    se deve localizar a grande dificuldade da retrica em manter um lugar central nos sistemas de

    pensamento moderno. Em traos gerais, pode dizer-se que este foi um perodo de confrontao

    entre a cultura da evidncia e a cultura da argumentao, com esta ltima a ficar para trs, alvo

    de um descrdito que afinal, no lhe diz respeito, na medida em que tal descrdito se relacionava

    apenas com o aspecto esttico do discurso. Como sublinha Breton, foi preciso esperar at aos

    anos 60 para renascer o interesse da retrica, precisamente numa poca em que se comea a

    tomar conscincia da importncia e do poder das tcnicas de influncia e de persuaso

    aperfeioadas ao longo de todo o sculo e em que a publicidade comea a invadir com fora a

    paisagem social e cultural 36.

    Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 51

    Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 51

    Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 55

    Ibidem, p. 64

    Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 71

    Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 104

    Ibidem, p. 108

    Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 117

    9 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, pp. 130-131

    0 Ibidem, p. 134

    1 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 135

    2 Ibidem, p. 136

    3 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 101

    4 Dionsio, tirano de Siracusa, em 405 a.C.

    5 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 61

    6 Ibidem, p. 197

    7 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 94

    20/128

  • 8 Ibidem, pp. 53-549 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 185

    0 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 152

    1 Ibidem

    2 Ibidem, p. 156

    3 Ibidem, p. 239

    4 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 237

    5 Ibidem, p. 242

    6 Ibidem, p. 263

    7 Aristteles, Retrica, Madrid: Alianza Editorial, 1998, p. 314

    8 Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 16

    9 Cit. in Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 17

    0 Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 17

    1 Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 18

    2 Ibidem, p. 19

    3 Ibidem

    4 Perelman, C., O imprio retrico, Porto: Edies ASA, 1993, p. 23

    5 Breton, P., A argumentao na comunicao, Lisboa: Publicaes D. Quixote, 1998, p. 16

    6 Ibidem, p. 17

    II PARTEA NOVA RETRICA

    1. Crtica do racionalismo clssicoO renascimento do interesse pela retrica muito deve chamada "Escola de Bruxelas" 1, onde

    - no obstante as diferentes perspectivas de anlise - trs dos seus maiores representantes,

    Duprel, Perelman e Meyer, convergiam num ponto fundamental: a crtica ao racionalismo

    clssico. justamente a partir dessa ruptura com uma razo necessria, evidente e universal

    que Perelman vai elaborar a filosofia do razovel com que, epistemolgica e eticamente,

    recobre a sua nova retrica, propondo um novo conceito de racionalidade extensivo ao

    21/128

  • raciocnio prtico, mais compatvel com a vivncia pluralista e a liberdade humana do que o

    consentiria a respectiva noo cartesiana de conhecimento. Sabe-se, com efeito, como ao

    fazer da evidncia o supremo critrio da razo, Descartes "no quis considerar como racionais

    seno as demonstraes que a partir de ideias claras e distintas, propagariam, com a ajuda de

    provas apodcticas, a evidncia dos axiomas a todos os teoremas" 2. O que surgisse ao

    esprito do homem como evidente, seria necessariamente verdadeiro e imediatamente

    reconhecvel como tal. Por princpio e por mtodo, no se deveria conceder qualquer crena

    quando se trate de cincia, da qual, afirma Descartes, cumpre eliminar a menor dvida. , de

    resto, nesta linha de pensamento que surge a sua conhecida tese de que a cada vez que

    sobre o mesmo assunto dois cientistas tenham um parecer diferente " certo que um dos dois

    est enganado; e at nenhum deles, parece, possuiu a cincia, pois, se as razes de um

    fossem certas e evidentes, ele poderia exp-las ao outro de uma tal maneira que acabaria por

    convenc-lo por sua vez" 3. Mas, como sublinha Perelman, a questo no reside no mtodo

    cartesiano em sim mesmo, mas sim, no desmesurado mbito da sua aplicao, que

    relembremos, seria o de "todas as coisas que podem cair no conhecimento dos homens" 4.

    que Descartes to pouco quis limitar as suas regras ao discurso matemtico, antes se props

    fundar uma filosofia verdadeiramente racional e a, como acentua Perelman, que ele d

    "...um passo aventureiro, que o conduz a uma filosofia contestvel, quando se lembra de

    misturar uma imaginao propriamente filosfica com as suas anlises matemticas,

    transformando as regras inspiradas pelos gemetras em regras universalmente vlidas" 5.

    A sua filosofia teria assim como finalidade a descoberta da verdade e como fundamento a

    evidncia. Seria uma filosofia inteiramente nova, uma verdadeira cincia que progrediria de

    evidncia em evidncia. Apenas enquanto no se alcanasse por este mtodo o conhecimento

    da verdade seria necessrio deitar mo a uma moral provisria cuja necessidade Descartes

    justifica do seguinte modo: "para no ficar irresoluto na minha conduta, enquanto a razo me

    obrigasse a s-lo nos meus juzos, e, para no deixar de viver, desde ento, o mais felizmente

    possvel, formei para mim prprio uma moral provisria constituda somente por trs ou quatro

    mximas...." 6.

    H aqui, como bem observa Rui Grcio, uma ntida distino entre os domnios da teoria e da

    prtica e o implcito reconhecimento das dificuldades que o recurso epoch sempre coloca

    quando se trate de articular a razo com a aco. que se "teoricamente, possvel

    permanecer-se irresoluto, sendo mesmo, como Descartes pensa, indispensvel esse momento

    de purificadora suspenso para que o esprito se purgue de todo o tipo de preconceitos e para

    que as opinies possam ser ajustadas 'ao nvel da razo', j no domnio da aco o mesmo no

    se passa, pois estamos sempre, irremediavelmente in media res, incontornavelmente inseridos

    em contextos e situaes, apegados a valores, convices e normas ou, para o dizer

    abreviadamente, indissociavelmente ligados a uma ordem prvia determinante das

    22/128

  • possibilidades de sentido para a nossa aco" 7. Daqui decorre o diferente estatuto que o

    cartesianismo confere a todo o conhecimento anterior. No plano terico, tudo o que prvio

    surge como no confivel, como potencial fonte de erro e obstculo clareza e distino de

    uma razo que se cr portadora de uma garantia divina e que por isso mesmo contm em si

    prpria o critrio para distinguir o verdadeiro do falso. No plano prtico, porm, o prvio impe-

    se como indispensvel sob pena de se ficar condenado a uma total arbitrariedade. o que

    Descartes reconhece quando depois de ter formulado os seus preceitos morais provisrios,

    atribui a estes um fundamento que no vai alm da utilidade instrumental de que se revestem:

    "as trs mximas precedentes [as regras da sua moral provisria] outro fundamento no tinham

    seno o propsito de continuar a instruir-me...." 8.

    Ficam assim evidenciadas as duas principais aporias da teoria do conhecimento cartesiana, por

    um lado, o carcter associal e an-histrico do saber e por outro, a ntida separao entre teoria

    e prtica, aporias que iro ser, de resto, o principal alvo da vigorosa crtica de Perelman. Com

    efeito, no dizer do "pai da nova retrica", Descartes elaborou uma teoria do conhecimento no

    humano, mas divino, de um esprito nico e perfeito, sem iniciao e sem formao, sem

    educao e sem tradio. E deste ponto de vista, a histria do conhecimento seria unicamente

    a dos seus crescimentos e nunca a das suas modificaes sucessivas, pois "se, para chegar

    ao conhecimento, mister libertar-se dos preconceitos pessoais e dos erros, estes no deixam

    nenhum vestgio no saber enfim purificado" 9. Por outro lado, a separao clara e absoluta

    entre a teoria e a prtica, faz com que, quando se trate, no da contemplao da verdade mas

    do uso da vida, na qual a urgncia da aco exige decises rpidas, o mtodo cartesiano no

    nos sirva para nada.

    Mas Perelman no poderia estar em maior oposio tese cartesiana. Rejeitando a

    possibilidade de acedermos ao absoluto, vai condicionar a qualificao de conhecimento

    dimenso probatria do saber afirmado: "enquanto a intuio evidente, nico fundamento de

    todo o conhecimento, num Descartes ou num Locke, no tem a menor necessidade de prova e

    no susceptvel de demonstrao alguma, qualificamos de conhecimento uma opinio posta

    prova, que conseguiu resistir s crticas e objeces e da qual se espera com confiana, mas

    sem uma certeza absoluta, que resistir aos exames futuros. No cremos na existncia de um

    critrio absoluto, que seja o fiador de sua prpria infalibilidade; cremos, em contrapartida, em

    intuies e em convices, s quais concedemos nossa confiana, at prova em contrrio" 10.

    J se antev o relevo que a prova vai ter na sua concepo de saber e, em especial, na

    recuperao do mundo das opinies para a esfera da racionalidade, uma racionalidade assim

    alargada, que no se confinando mais aos estreitos limites da verdade ou certeza absoluta,

    opera igualmente e com no menor eficcia nos domnios da razoabilidade onde o critrio

    qualificador do racional ser o acordo ou consenso e j no a evidncia cartesiana. Para isso,

    necessrio afastar do esprito qualquer ideia de uma razo impessoal e absoluta. E o que

    23/128

  • Perelman faz, quando rejeita a identificao do racional com o necessrio e do no-necessrio

    com o irracional, no reconhecimento de que h entre esses dois extremos absolutos todo um

    imenso campo em que a nossa actividade racional se exerce enquanto instncia da

    razoabilidade. Analisando sobretudo as caractersticas do raciocnio prtico, ele prope-se

    mostrar como a razo apta a lidar tambm com valores, a ordenar as nossas preferncias ou

    convices, logo, a determinar, com razoabilidade, as nossas decises. Esse o campo da

    argumentao que ele identifica com a retrica e por cuja reabilitao e renovao se bate ao

    fundar a sua teoria da argumentao numa filosofia do razovel. Desse modo, a razo

    humaniza-se e ganha um novo rosto: a racionalidade argumentativa.

    2. Por uma lgica do prefervel: demonstrao versus argumentao

    Sabe-se como Perelman foi conduzido retrica. Inicialmente interessado na investigao de

    uma hipottica lgica de juzos de valor que permitisse demonstrar que uma certa aco seria

    prefervel a outra, acabou por retirar desse estudo duas inesperadas concluses: primeiro, que

    no existia, afinal, uma lgica especfica dos juzos de valor e, segundo, que aquilo que

    procurava "tinha sido desenvolvido numa disciplina muito antiga, actualmente esquecida e

    menosprezada, a saber, a retrica, a antiga arte de persuadir e de convencer" 11. Confessa,

    alis, que foi da leitura e estudo da retrica de Aristteles e de toda a tradio greco-latina da

    retrica e dos tpicos que lhe surgiu a surpreendente revelao de que "nos domnios em que

    se trata de estabelecer aquilo que prefervel, o que aceitvel e razovel, os raciocnios no

    so nem dedues formalmente correctas nem indues do particular para o geral, mas

    argumentaes de toda a espcie, visando ganhar a adeso dos espritos s teses que se

    apresentam ao seu assentimento" 12. Da que parta igualmente da distino aristotlica entre

    duas espcies de raciocnio - os raciocnios analticos e os raciocnios dialcticos - para

    evidenciar a estreita conexo destes ltimos (os dialcticos) com a argumentao. Percebe-se

    que Perelman quer deixar bem clara a diferena entre estas duas espcies de raciocnio,

    porque, alm do mais, a anlise dessa diferena serve na perfeio para ilustrar a

    indispensabilidade da retrica. Para o efeito socorre-se dos Analticos onde Aristteles estuda

    formas de inferncia vlida, especialmente o silogismo, que permitem inferir uma concluso de

    forma necessria, sublinhando o facto de a inferncia ser vlida independentemente da

    verdade ou da falsidade das premissas, ao contrrio da concluso que s ser verdadeira se as

    premissas forem verdadeiras. Assim, a afirmao se todos os A so B e se todos os B so C,

    da resulta necessariamente que todos os A so C, traduz uma inferncia que puramente

    formal por duas razes: vlida seja qual for o contedo dos termos A, B e C (na condio de

    que cada letra seja substituda pelo mesmo valor sempre que ela se apresente) e estabelece

    uma relao entre a verdade das premissas e a da concluso. Naturalmente que se a verdade

    24/128

  • uma propriedade das proposies, independentemente da opinio dos homens, o raciocnio

    analtico s pode ser demonstrativo e impessoal. Esse no , porm, o caso do raciocnio

    dialctico, que Aristteles define como sendo aquele em que as premissas se constituem de

    opinies geralmente aceites, por todos, pela maioria ou pelos mais esclarecidos (o verosmil

    ser ento aquilo que for geralmente aceite, cabendo aqui referir, no entanto, que, para

    Perelman a expresso geralmente aceite no deve ser confundida com uma probabilidade

    calculvel, por ser portadora de um aspecto qualitativo que a aproxima mais do termo

    "razovel" do que do termo "provvel"). Mas se o raciocnio dialctico parte do que aceite,

    com o fim de fazer admitir outras teses que so ou podem ser controversas, porque tem o

    propsito de persuadir ou convencer, de ser apreciado pela sua aco sobre outro esprito,

    numa palavra, porque no impessoal, como o raciocnio analtico. Pode ento fazer-se a

    distino entre os raciocnios analticos e os raciocnios dialcticos com base no facto dos

    primeiros incidirem sobre a verdade e os segundos sobre a opinio. que, como diz Perelman,

    seria ...to ridculo contentarmo-nos com argumentaes razoveis por parte de um

    matemtico como exigir provas cientficas a um orador" 13.

    Constata-se assim uma ntida preocupao de revalorizar os raciocnios dialcticos, sem

    contudo pr em causa a operatividade dos raciocnios analticos. O que Perelmam denuncia a

    suposta "purificao" feita pela lgica moderna, especialmente depois de Kant e dos lgicos

    matemticos terem identificado a lgica, no com a dialctica, mas com a lgica formal,

    acolhendo os raciocnios analticos, enquanto os raciocnios dialcticos eram pura e

    simplesmente considerados como estranhos lgica. Essa denncia assenta basicamente na

    constatao de que se a lgica formal e as matemticas se prestam a operaes e ao clculo,

    tambm inegvel que continuamos a raciocinar mesmo quando no calculamos, no decorrer

    de uma deliberao ntima ou de uma discusso pblica, ou seja, quando apresentamos

    argumentos a favor ou contra uma tese ou ainda quando criticamos ou refutamos uma crtica.

    Em todos estes casos, no se demonstra (como nas matemticas), argumenta-se. Da que

    Perelman conclua: " pois normal, se se concebe a lgica como estudo do raciocnio sob todas

    as formas, completar a teoria da demonstrao, desenvolvida pela lgica formal, com uma

    teoria da argumentao, estudando os raciocnios dialcticos de Aristteles" 14.

    No mbito da nova retrica, porm, o estudo da argumentao, visando a aceitao ou a

    rejeio duma tese em debate, bem como as condies da sua apresentao, no se limita

    recuperao e revalorizao da retrica de Aristteles. Comprova-o, desde logo, o facto de

    Perelman assumir um diferente posicionamento quanto relao entre a retrica e a dialctica.

    Recordemos que nos seus Tpicos, Aristteles concebe a retrica como oposta dialctica,

    chegando a consider-la mesmo como o reverso desta ltima. Essa oposio, contudo,

    fortemente tributria da distino que o velho filsofo fazia entre uma e outra: a dialctica como

    estudo dos argumentos utilizados numa controvrsia ou discusso com um nico interlocutor e

    25/128

  • a retrica, como dizendo respeito s tcnicas do orador "dirigindo-se a uma turba reunida na

    praa pblica, a qual no possui nenhum saber especializado e que incapaz de seguir um

    raciocnio um pouco mais elaborado" 15. Mas a nova retrica vem romper totalmente com essa

    distino, na medida em que passa a dizer respeito aos discursos dirigidos a todas as espcies

    de auditrios, quer se trate de reunies pblicas, de um grupo fechado, de um nico indivduo

    ou at, de ns mesmos (deliberao ntima). Essa , alis, uma das novidades da nova retrica

    em que Perelman pe mais nfase e para a qual apresenta a seguinte justificao:

    "Considerando que o seu objecto o estudo do discurso no-demonstrativo, a anlise dos

    raciocnios que no se limitam a inferncias formalmente correctas, a clculos mais ou menos

    mecanizados, a teoria da argumentao concebida como uma nova retrica (ou uma nova

    dialctica) cobre todo o campo discursivo que visa convencer ou persuadir, seja qual for o

    auditrio a que se dirige e a matria a que se refere" 16. Quando muito, Perelman admite que

    se possa completar o estudo geral da argumentao com metodologias especializadas em

    funo do tipo de auditrio e o gnero da disciplina, o que levaria elaborao, por exemplo,

    de uma lgica jurdica ou de uma lgica filosfica, as quais mais no seriam do que aplicaes

    particulares da nova retrica ao direito e filosofia. Nesta afirmao poderemos surpreender

    uma outra inovao no seu pensamento retrico, pois dela decorre, como ele prprio assume,

    uma subordinao da filosofia retrica, ao menos, no momento em que se trate de verificar

    se as teses da primeira merecem ou no ser acolhidas. A questo esta: ou se admite que se

    pode fundar teses filosficas com base no critrio da evidncia e, nesse caso, a filosofia

    bastar-se- a si prpria, no s quanto sua elaborao mas tambm no tocante sua

    demonstrao ou no se admite que se possa fundar teses filosficas sobre intuies evidentes

    e ser preciso recorrer a tcnicas argumentativas para as fazer prevalecer. Como j vimos,

    Perelman toma partido por esta segunda hiptese, o que o leva a considerar a nova retrica

    como um instrumento indispensvel filosofia, na convico de que "todos os que crem na

    existncia de escolhas razoveis, precedidas por uma deliberao ou por discusses, nas

    quais as diferentes solues so confrontadas umas com as outras, no podero dispensar, se

    desejam adquirir uma conscincia clara dos mtodos intelectuais utilizados, uma teoria da

    argumentao tal como a nova retrica a apresenta 17. Vislumbram-se aqui os primeiros

    alicerces fundacionais daquilo a que, numa das suas obras, vir a chamar O imprio retrico

    e que se tornam ainda mais visveis quando afirma que a nova retrica no se limitar, alis,

    ao domnio prtico, mas estar no mago dos problemas tericos para aquele que tem

    conscincia do papel que a escolha de definies, de modelos e de analogias, e, de forma mais

    geral, a elaborao duma linguagem adequada, adaptada ao campo das nossas investigaes,

    desempenham nas nossas teorias 18.

    Torna-se pois imperioso distinguir entre demonstrao e argumentao, o que Perelman faz

    com assinalvel clareza, comeando por salientar que, em princpio, a demonstrao

    26/128

  • desprovida de ambiguidade (ou, pelo menos, assim entendida) enquanto a argumentao,

    decorre no seio de uma lngua natural, cuja ambiguidade no pode ser previamente excluda.

    Alm disso, a demonstrao - que se processa em conformidade com regras explicitadas em

    sistemas formalizados - parte de axiomas e princpios cujo estatuto distinto do que se observa

    na argumentao. Enquanto numa demonstrao matemtica, tais axiomas no esto em

    discusso, sejam eles evidentes, verdadeiros ou meras hipteses, e por isso mesmo no

    dependem tambm de qualquer aceitao do auditrio, na argumentao, a discutibilidade est

    sempre presente, j que o seu fim "no deduzir consequncias de certas premissas mas

    provocar ou aumentar a adeso de um auditrio s teses que se apresentam ao seu

    assentimento" 19. Pode ento dizer-se que, no quadro do pensamento perelmaniano, a

    diferena entre demonstrao e argumentao surge umbilicalmente ligada ao modo como nele

    se distingue a lgica tradicional da retrica. No surpreende, por isso, que a prpria noo de

    prova tenha que ser significativamente mais lata do que na lgica tradicional e nas concepes

    clssicas de prova pois a necessidade e a evidncia no se coadunam com a natureza da

    argumentao e da deliberao. Nem se delibera quando a soluo necessria, nem se

    argumenta contra a evidncia. Da que Perelman venha dizer-nos que ao lado da prova para a

    lgica tradicional, dedutiva ou indutiva, impe-se considerar tambm outro tipo de argumentos,

    os dialcticos ou retricos. Este alargamento da noo de prova, mostra-se, alis, em perfeita

    harmonia com o j referido alargamento da prpria noo de razo. Organizada por um

    conjunto de processos que tendem a enfatizar a plausibilidade da tese que se defende, a

    prova retrica manifesta-se pela fora do melhor argumento, que se mostrar mais forte ou

    mais fraco, mais ou menos pertinente ou mais ou menos convincente, mas que, pela sua

    natureza, afasta, partida, qualquer possibilidade de poder ser justificado como correcto ou

    incorrecto. Alm disso, o acto de provar fica assim indissociavelmente ligado a uma dimenso

    referencial que implica a considerao das condies concretas do uso da linguagem natural e

    da ambiguidade sempre presente nas noes vagas e confusas que integram aquela. Do que

    se trata agora de realizar uma prova nas e para as situaes concretas em que se elabora e

    face s quais se apresenta como justificao razovel de uma opo, pois, como diz Perelman,

    a possibilidade de conferir a uma mesma expresso sentidos mltiplos, por vezes inteiramente

    novos, de recorrer a metforas, a interpretaes controversas, est ligada s condies de

    emprego da linguagem natural. O facto desta recorrer frequentemente a noes confusas, que

    do lugar a interpretaes mltiplas, a definies variadas, obriga-nos muito frequentemente a

    efectuar escolhas, decises, no necessariamente coincidentes. Donde a obrigao, bem

    frequente, de justificar esta escolha, de motivar estas decises 20. Rui Grcio assinala aqui

    uma deslocao fundamental na noo de prova, no sentido da sua desdogmatizao, sem

    que, contudo, se tenha de cair no cepticismo radical. O que se passa que as exigencias de

    rigor e certeza deixam de se cingir polaridade certeza absoluta-dvida absoluta, passando a

    27/128

  • ser apreciadas luz de uma lgica do prefervel (ou informal) que j no visa a verdade

    abstracta, categrica ou hipottica, mas to somente o consenso e a adeso. Abre-se assim

    espao a um livre confronto de opinies e argumentos que permite dimensionar criticamente o

    acto de provar, ajustando-o s possibilidades e limites da condio humana (ligao com o

    passado, historicidade, impossibilidade de uma linguagem pura ou de um grau zero do

    pensamento) e mostrar que a prpria exigncia de provar s tem verdadeiramente um sentido

    humano quando nela se vem implicadas a nossa responsabilidade e a nossa liberdade" 21.

    que se o raciocnio terico, onde a concluso decorre das premissas de uma forma impessoal,

    permite elaborar uma lgica da demonstrao puramente formal, de aplicao necessria, o

    raciocnio prtico, pelo contrrio, ao recorrer a tcnicas de argumentao, implica sempre um

    determinado poder de deciso, ou seja, a liberdade de quem julga a tese, para a ela aderir ou

    no. O fim do raciocnio prtico no j o de demonstrar a verdade, mas sim, mostrar em cada

    caso concreto, que a deciso no arbitrria, ilegal, imoral ou inoportuna, numa palavra,

    persuadir que ela motivada pelas razes indicadas.

    3. A adeso como critrio da comunicao persuasiva

    3.1. O duplo efeito da adeso

    Que a retrica visa persuadir e que a adeso , simultaneamente, o fim e o critrio da

    comunicao persuasiva, ponto assente. Mas qual a natureza e extenso dessa adeso?

    Quando se pode afirmar que h ou no adeso? Bastar para tanto que o interlocutor ou o

    auditrio passem a comungar da mesma ideia que o orador? Poder-se- falar de adeso

    passiva e adeso activa? Mais: ser possvel estabelecer alguma distino entre adeso e

    convencimento? Santo Agostinho vem ao encontro deste conjunto de questes quando

    considera que o auditrio s ser verdadeiramente persuadido "se conduzido pelas vossas

    promessas e aterrorizado pelas vossas ameaas, se rejeita o que condenais e abraa o que

    recomendais; se ele se lamenta diante do que apresentais como lamentvel e se rejubila com o

    que apresentais como rejubilante; se se apieda diante daqueles que apresentais como dignos

    de piedade e se afasta daqueles que apresentais como homens a temer e a evitar" 22. Dele

    nos diz Perelman que, falando aos fiis para que acabassem com as guerras intestinas, no se

    contentou com os aplausos e falou at que vertessem lgrimas, testemunhando assim, que

    estavam preparados para mudar de atitude. Evidentemente que no podemos, hoje em dia,

    aceitar integralmente as ideias retricas de Santo Agostinho, nomeadamente quando nos fala

    de "verdades prticas" e preconiza o aterrorizar do auditrio. O que interessa aqui destacar a

    sua visvel preocupao por aquilo a que podemos chamar de "adeso activa", ou seja, a ideia

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  • de que em muitos casos, ao orador no bastar levar o auditrio a concordar com a sua tese -

    o que em si mesmo se traduziria pelo mero assentimento ou disposio de a aceitar - antes

    ter de se certificar que a adeso obtida configura tambm a aco ou a predisposio de a

    realizar. Ora a nova retrica contempla igualmente esse duplo efeito da adeso, j que "(...) a

    argumentao no tem unicamente como finalidade a adeso puramente intelectual. Ela visa,

    muito frequentemente, incitar aco ou, pelo menos, criar uma disposio para a aco.

    essencial que a disposio assim criada seja suficientemente forte para superar os eventuais

    obstculos" 23. Um discurso argumentativo ser ento eficaz se obtiver xito num dos dois

    objectivos possveis: ou conseguir do auditrio um efeito puramente intelectual, ou seja, uma

    disposio para admitir a plausibilidade de uma tese (quando a tal se limite a inteno do

    orador) ou provocar uma aco a realizar imediata ou posteriormente. Logo, com base no

    critrio da tendncia para a aco, poderemos configurar o primeiro dos efeitos como "adeso

    passiva" e o segundo, como "adeso activa". Num e noutro caso, porm, sempre est em

    causa a competncia argumentativa do orador, os metdos e as tcnicas retricas a que

    recorre e, de um modo muito especial, o tipo de auditrio sobre o qual quer agir.

    3.2. Persuaso e convencimento: do auditrio particular ao auditrio universal

    Segundo Perelman, justamente pela anlise dos diversos tipos de auditrio possveis que

    poderemos tomar posio quanto distino clssica entre convencimento e persuaso, no

    mbito da qual se concebem os meios de convencer como racionais, logo, dirigidos ao

    entendimento e os meios de persuaso como irracionais, actuando directamente sobre a

    vontade. A persuaso seria pois a consequncia natural de uma aco sobre a vontade

    (irracional) e o convencimento, o resultado ou efeito do acto de convencer (racional). Mas se,

    como sugere Perelman, analisarmos a questo pela ptica dos diversos meios de obter a

    adeso das mentes, foroso ser constatar que esta ltima normalmente conseguida por

    uma diversidade de procedimentos de prova que no podem reduzir-se nem aos meios

    utilizados em lgica formal nem simples sugesto 24. o caso da educao, dos juzos de

    valor, das normas e de muitos outros domnios onde se julga impossvel recorrer apenas aos

    meios de prova puramente racionais. Alm disso, afigura-se igualmente muito problemtica a

    possibilidade de determinar partida quais os meios de prova convincentes e aqueles que o

    no so, segundo se dirijam ao entendimento ou vontade, pois que, como se sabe, o homem

    no constitudo por faculdades completamente separadas. Acresce que Aquele que

    argumenta no se dirige ao que consideramos como faculdades, como a razo, as emoes, a

    vontade. O orador dirige-se ao homem todo... 25. Da que a distino entre persuaso e

    convencimento, quando centrada nos ndices de confiabilidade e validao inerentes ao par

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  • racional/irracional, parea nada poder vir a acrescentar compreenso do acto retrico. Estar

    mesmo contra-indicada pois os critrios pelos quais se julga poder separar convico e

    persuaso so sempre fundamentados numa deciso que pretende isolar de um