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MR 05 – Título: a Organização do Espaço Urbano em Roma: Aspectos da Política Imperial Coordenador: Gilvan Ventura da Silva A REPRESENTAÇÃO DA CIDADE DE ROMA E DO IMPÉRIO NOS OMINA IMPERII E OMINA MORTIS DE SEPTÍMIO SEVERO E CARACALA Ana Teresa Marques GONÇALVES Desde os períodos da Realeza e da República Romanas se fazia o uso político dos prodígios, usando sua possibilidade de instrumentalização na vida política. No Principado, após a morte de Cômodo, se fez imprescindível conhecer a vontade dos deuses para escolher um Imperador que assumisse o poder, pois a forma sucessória dos Antoninos estava encerrada. A interpretação dos prodígios, sonhos e oráculos (omina et prodigia imperii) tornara-se fundamental para apresentar o novo Imperador como eleito pelos deuses (Montero, 1991:14). Septímio Severo soube como nenhum outro Príncipe apresentar o seu destino, frente à plebe, às suas legiões e aos senadores, como determinado pelos deuses, tornando público o apoio do mundo divino às suas ações e à sua presença no comando imperial. Durante as guerras civis, que se estenderam de 193 a 197 d. C., as melhores formas de se conseguir apoio político eram os rumores, os panfletos (hypomnemata) e as cópias das proclamações imperiais distribuídas à plebe e aos soldados, assim como a circulação de profecias e prodígios (omina imperii) (Rubin, 1990:23-30), pois não dava tempo para controlar eficazmente todas as emissões monetárias e as construções públicas, outros suportes propagandísticos. Segundo Herodiano, durante as guerras civis: “O haviam (Septímio) persuadido uns sonhos que o faziam vislumbrar uma certa esperança neste sentido (ser o dono do Império) e também oráculos e outros presságios que aparecem para a previsão do futuro”(Herod., II, 9.3 e II,11.3).

Ana Teresa Marques Gonçalves

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MR 05 – Título: a Organização do Espaço Urbano em Roma:Aspectos da Política ImperialCoordenador: Gilvan Ventura da Silva

A REPRESENTAÇÃO DA CIDADE DE ROMA E DO IMPÉRIO NOSOMINA IMPERII E OMINA MORTIS DE SEPTÍMIO SEVERO ECARACALA

Ana Teresa Marques GONÇALVES

Desde os períodos da Realeza e da República Romanas se fazia o uso político dos

prodígios, usando sua possibilidade de instrumentalização na vida política. No Principado,

após a morte de Cômodo, se fez imprescindível conhecer a vontade dos deuses para

escolher um Imperador que assumisse o poder, pois a forma sucessória dos Antoninos

estava encerrada. A interpretação dos prodígios, sonhos e oráculos (omina et prodigia

imperii) tornara-se fundamental para apresentar o novo Imperador como eleito pelos deuses

(Montero, 1991:14).

Septímio Severo soube como nenhum outro Príncipe apresentar o seu destino, frente

à plebe, às suas legiões e aos senadores, como determinado pelos deuses, tornando público

o apoio do mundo divino às suas ações e à sua presença no comando imperial. Durante as

guerras civis, que se estenderam de 193 a 197 d. C., as melhores formas de se conseguir

apoio político eram os rumores, os panfletos (hypomnemata) e as cópias das proclamações

imperiais distribuídas à plebe e aos soldados, assim como a circulação de profecias e

prodígios (omina imperii) (Rubin, 1990:23-30), pois não dava tempo para controlar

eficazmente todas as emissões monetárias e as construções públicas, outros suportes

propagandísticos.

Segundo Herodiano, durante as guerras civis:

“O haviam (Septímio) persuadido uns sonhos que o faziam vislumbrar uma

certa esperança neste sentido (ser o dono do Império) e também oráculos

e outros presságios que aparecem para a previsão do futuro”(Herod., II,

9.3 e II,11.3).

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Na História Augusta, conta-se que Severo quando foi estudar em Roma, já havia

sonhado que uma loba lhe amamentava, como havia ocorrido com Rômulo e Remo, o que o

fez crer que um dia no futuro chegaria ao comando imperial (HA, Vida de Severo, I.1).

Quando servia na Hispânia, ele teve outro sonho. Primeiro, lhe ordenaram reconstruir o

templo de Augusto em Tarragona, que estava desmoronando, e a seguir contemplou, do alto

de um monte elevadíssimo, Roma e toda a Terra, enquanto as províncias cantavam para ele

acompanhando-se da lira e da flauta (HA, Vida de Severo, III.3). Obviamente, Severo

interpretou estes sonhos como indicações de seu futuro poder. Ao restaurar um templo

dedicado ao próprio Augusto, ele se colocava como futuro restaurador do Império que

Augusto criara, e ao ver as províncias cantando para ele era sinal de seu futuro poder sobre

todas elas, e, portanto, sobre toda a Terra conhecida. Septímio visitou vários áugures e

adivinhos ao longo de toda a sua vida. Visitou astrólogos da África (HA, Vida de Severo,

II), consultou adivinhos e astrólogos na Sicília (HA, Vida de Severo, IV) e interrogou

áugures durante a peleja travada com Clódio Albino (HA, Vida de Clódio Albino, IX). Diz-

se que teria se iniciado nos Mistérios de Êleusis em Atenas, como anteriormente já o havia

feito Marco Aurélio (Dion Cássio, LXXII, 32.1), procurando toda a proteção divina

possível para o seu governo.

Ainda durante os anos de guerra civil que antecederam o seu governo, Septímio

mandou divulgar que áugures da Panônia haviam previsto a sua vitória sobre os outros

candidatos ao poder imperial, e muitos dos que estavam ao lado de Clódio Albino

desertaram (HA, Vida de Severo, XI.1), mostrando as conseqüências práticas que a

divulgação destas notícias poderiam acarretar. Também divulgou-se que houve uma ajuda

divina direta na vitória das tropas de Septímio sobre as legiões de Pescênio na Capadócia,

quando violentas chuvas derrubaram uma fortificação estrategicamente importante para a

conclusão do embate (Herod., III,3.6-8).

Na obra de Dion Cássio, enumeram-se para Severo vários omina imperii, sendo que

destes presságios, seis são sonhos tidos pelo Imperador. No primeiro, no dia em que ele foi

admitido no Senado, ele sonhou que se alimentava numa loba como Rômulo havia feito.

No segundo, quando ele estava para se casar com Júlia Domna, ele sonhou que Faustina, a

mulher de Marco Aurélio, preparava pessoalmente o quarto nupcial no templo de Vênus,

próximo ao Palácio. No terceiro, ele sonhou que água jorrava de suas mãos como se elas

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fossem uma fonte. No quarto, quando ele era governador em Lugdunum (Lion), ele sonhou

que todos os domínios romanos se aproximaram dele e o saudaram. No quinto, ele estava

instalado sobre um monte do qual ele tinha uma ampla vista, contemplando todas as terras e

todos os mares, quando ao passar os dedos sobre estas terras e estes mares à maneira de um

músico tocando um instrumento de cordas, terras e mares teriam ressoado um concerto

musical. No sexto, e mais conhecido sonho, ele estava no Forum Romano, próximo à Via

Sacra, e viu um cavalo derrubando Pertinax. O cavalo se aproximou dele e lhe ofereceu a

sela (Dion Cássio, LXXV, 3.1-3).

Herodiano também conta este último sonho, de forma mais pormenorizada

(Herod., II, 9.5-7). Afirma que ele ocorreu no dia em que se anunciou a sucessão de

Pertinax, depois que Severo ofereceu sacrifícios públicos e prestou juramento de

fidelidade ao Império. Depois deste sonho, Severo acreditou que a divina providência o

havia chamado para ocupar o mais alto cargo do Império, e começou a efetuar

pesquisas sobre o parecer dos soldados.

Os seis sonhos são alegóricos, ou seja, requerem uma certa interpretação. No

primeiro, Severo se compara a Rômulo, como um novo fundador de Roma, imagem

anteriormente usada por Augusto. Não é por acaso que Otávio Augusto e Septímio Severo

foram os dois Príncipes que mais se preocuparam em divulgar os seus omina imperii, pois

ambos se consideravam reconstrutores da res publica (Bertrand-Ecanvil, 1994:523 e

Barzanò, 1972:266). Rufus Fears demonstrou como os omina imperii foram

majoritariamente utilizados pelos fundadores de novas dinastias, como forma de legitimar

sua aquisição do poder imperial, pois os omina imperii tinham na maioria das vezes uma

circulação oficial (Fears, 1977:263-275). No segundo sonho, Severo se vincula à família de

Marco Aurélio, ou seja, aos Antoninos, e isso bem antes de se proclamar filho de Marco

Aurélio. No terceiro, ele se apresenta como a encarnação da fonte da vida, de onde jorrava

toda a fecundidade. No quarto, todos os domínios romanos o saúdam e o aceitam como

Imperator. No quinto, todos os mares e todas as terras tocam para ele, a partir do momento

em que ele os tocam, encarnando o poder do cosmocrator. E no sexto sonho, Severo ocupa

o lugar deixado por Pertinax, com o cavalo representando a própria Roma. Sabe-se que uma

estátua eqüestre de Septímio realmente foi erguida no Forum em comemoração a este

sonho, no local onde ele teria visto o cavalo lhe oferecer a sela, próximo à Via Sacra.

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Infelizmente, esta estátua se perdeu (Rubin, 1990:23), mas temos sua representação

divulgada em moedas cunhadas neste período (Hill, 1977:68).

Porém, não adiantava apenas sonhar. Para conferir a estes sonhos um conteúdo

político, era necessário interpretá-los e divulgá-los da forma mais ampla possível, usando

todos os suportes existentes, como as moedas, as estátuas, as inscrições epigráficas, os

panfletos, as obras de História, entre outros.

Em outro sonho relatado na História Augusta, Septímio teria tido um dos seus

omina mortis, isto é, presságios ou sinais que indicavam que o final de seu governo estava

próximo. Ele sonhou que era levado para o céu por quatro águias. Depois de um tempo, viu

Júpiter que o chamava e lhe dava assento entre os Antoninos (HA, Vida de Septímio

Severo, 22.1). Portanto, os sonhos e outros presságios acompanhavam o Imperador da sua

ascensão à sua morte.

Dion Cássio relata outros omina mortis de Septímio. Como quando ele resolveu

lutar contra os Bretões, e um raio caiu em uma de suas estátuas, na qual ele aparecia de pé,

e apagou três letras de seu nome na dedicatória que se encontrava no pedestal da mesma.

Os adivinhos interpretaram que ele não voltaria da guerra e que morreria no terceiro ano de

batalha (Dion Cássio, LXXVII, 11.2).

Septímio demonstrava acreditar bastante na ação de forças sobrenaturais. Segundo a

História Augusta, ele se casou com Júlia Domna porque ela tinha um horóscopo que

indicava que ela seria a esposa de um Imperador (HA, Vida de Severo, III.2). Dion Cássio

nos informa que Septímio mandou pintar nos tetos das salas do Palácio, nas quais ele fazia

os julgamentos (prestava a justiça), o seu horóscopo, ou seja, mandou pintar como estavam

posicionadas as estrelas no céu no dia do seu nascimento, com exceção da porção do céu

que determinava a hora de seu nascimento, para que as pessoas que vissem as pinturas

soubessem que ele era um protegido dos deuses, mas que não tivessem como fazer a análise

total do horóscopo e não pudessem fazer previsões a partir disso (Dion Cássio, LXXVII,

11.1).

Deve-se também lembrar que Septímio mandou construir em 203 d.C., quando

começou a preparar a cidade de Roma para os festejos dos ludi saeculares, que ocorreriam

em 204 d.C., o chamado Septizonium. Segundo a História Augusta, a obra servia para

chamar a atenção dos que chegavam da África. Se conta que Septímio desejava abrir uma

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nova entrada para o Palácio, ou seja, um magnífico átrio, na fachada que estava dirigida

para o lado onde ficava a África, mas na sua ausência o Prefeito da Cidade colocou no meio

da construção uma estátua de Severo (HA, Vida de Severo, XXIV). Apesar do que afirma a

História Augusta, os arqueólogos têm apresentado outras versões para o monumento. Irene

Iacopi defende que o prédio foi construído para guardar uma estátua colossal de Septímio,

que nunca foi encontrada (Iacopi, 1986:498). E. Strong acredita que se tratava de um

nymphaeum, construído como diz a História Augusta para mostrar a magnificência de

Roma para todos os viajantes que entravam na cidade pela Via Appia (Strong, 1929:139-

140), e que contava na sua composição com as estátuas das sete divindades planetárias

dispostas em nichos dos quais saíam água. Mas a maioria dos estudiosos, como Julien Guey

(Guey, 1946:147-166) e J. B. Ward-Perkins (Ward-Perkins, 1981:126-135) crêem que se

tratava de um monumento religioso-político, a partir da análise de seu nome, conjugada

com as informações fornecidas pela História Augusta.

A palavra Septizonium era um termo técnico usado na astrologia antiga. Para os

antigos, a Terra era imóvel e sete “planetas” (corpos celestes) giravam em torno dela:

Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mercúrio e Lua. O Septizonium era o edifício

construído para representar estas sete zonas celestes ocupadas pelos sete corpos que

giravam em torno da Terra. Conhece-se mal este monumento construído por Septímio

porque dele só restaram a sua localização na Forma Urbis, a planta de mármore da cidade

de Roma, mandada confeccionar por Septímio nesta mesma data (203 d.C.), que nos

chegou em pedaços, e as representações que artistas do Renascimento Italiano, ao longo do

século XVI, principalmente, fizeram do que restava de sua fachada antes de tudo ser

demolido. Este monumento começou a ser destruído ainda na idade Média, por volta de

1257 d.C., e o que restou foi totalmente derrubado a mando do Papa Sisto V, entre os anos

de 1585 e 1589 d.C., para usar o seu mármore na reconstrução de monumentos cristãos.

Portanto, o que sabemos dele é que sua fachada tinha três andares de colunata e que

tinha uma ligação astrológica. Jean-Luc Desnier defende a união de duas possibilidades:

que o monumento fosse ao mesmo tempo um nymphaeum e uma manifestação da crença

astrológica de Severo (Desnier, 1993:600-611). Ele tentou, em seu artigo “Omina et

Realia”, analisar o Septizonium a partir dos omina imperii que foram divulgados com o

aval imperial. Ele se lembrou de um sonho de Septímio, descrito por Dion, no qual jorrava

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água das mãos do soberano e outro no qual todas as províncias se aproximavam dele e o

saudavam (Dion Cássio, LXXV, 3.1-3). Conjugando o significado destes presságios com a

construção do monumento, ele chegou a conclusão de que o Septizonium servia para passar

as mesmas idéias ao público. Sabemos que uma das estátuas do monumento era a de

Septímio. Alguns pesquisadores acham que ela ficava no centro do monumento

representando a Terra (Guey, 1946:156), outros que sua imagem representava o sol

(Turcan, 1978:1032). O que importa é que onde quer que sua imagem estivesse, ela

indicava que ele era o senhor do universo conhecido, o cosmocrator por excelência, como

no sonho em que todas as províncias lhe saudavam. Possivelmente havia água saindo dos

nichos onde se encontravam as estátuas, passando a imagem do gerador de fertilidade,

mesma idéia transmitida pelo sonho no qual água jorrava de suas mãos.

Infelizmente sua inscrição dedicatória foi encontrada incompleta (CIL, VI, n.1032).

Temos apenas o início e o fim da mesma. Ela começa apresentando todos os Antoninos,

desde Nerva, como ancestrais de Severo, e termina designando Caracala como

Fortunatissimus Nobilissimusque, título prolongado comum após a damnatio memoriae de

Geta. Assim, sabe-se que esta dedicatória teve o nome de Geta apagado, para dar lugar a

este título extenso de Caracala, muito comum em outras inscrições que também foram

mexidas após o assassinato de Geta.

Devemos ainda destacar que a localização deste monumento não foi aleatória, bem

como o local de construção da estátua eqüestre de Septímio no Forum. Como vimos, ele

foi erguido numa das entradas de Roma, mais precisamente naquela pela qual entrariam os

viajantes vindos da África. Porém, concordamos com Desnier, quando ele afirma que este

monumento não tinha a função somente de maravilhar os africanos, mas a todos que

transitassem pela Via Appia e pela Via Triunphalis, demonstrando todo o poder do

Imperador e a sua capacidade em velar pelo bem estar material de todos os sujeitos do

Império, reafirmando sua posição de patrono e recriador imperial (Desnier, 1993:608-610).

Caracala, por sua vez, como o pai, estava sempre muito interessado em consultar

oráculos, sábios, astrólogos e arúspices, gostando de conhecer e de mexer com magia, pois

se preocupava muito com as conspirações, e os augúrios deveriam lhe avisar com

antecedência a possibilidade de eclosão de uma revolta. Segundo Herodiano, ninguém que

praticava a magia lhe passava despercebido (Herod., IV, 12.3-6). Com medo de

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conspirações, ele consultava todos os videntes por todo o Império. Tanto que ele foi

assassinado quando se dirigia a um templo em Carras na Mesopotâmia para pedir a

proteção divina de Selene (Herod., IV, 13.3-6).

Como de costume, esta morte foi precedida de presságios. Em uma de suas viagens,

um leão saiu de uma montanha e correu ao lado de Caracala (Dion Cássio, LXXIX, 2.1),

como se Hércules, sua divindade mais querida, se afastasse dele. Caracala também teria

sonhado com o pai. No sonho, Septímio empunhava uma espada e, reprovando o

assassinato de Geta, disse-lhe: “Como você matou seu irmão, eu irei destruir você” (Dion

Cássio, LXXIX, 7.1-2), tratando-se do caso típico do morto que voltava para indicar os

erros dos vivos durante os sonhos. Um adivinho consultado mandou Caracala tomar

cuidado com saídas durante o dia. Mais tarde, um grande fogo apareceu no interior do

templo de Sarapis em Alexandria, destruindo a espada com a qual Caracala tinha matado

seu irmão Geta. Quando o fogo foi apagado, várias estrelas se tornaram visíveis durante o

dia. Em Roma, um espectro, tendo a aparência de um homem, conduziu um asno até o

Capitólio e depois ao Palácio, gritando que Antonino estava morto e que Júpiter era o novo

Imperador, sumindo em seguida. Depois, o cavalo, que carregava a estátua de Marte

durante uma procissão em honra ao reino de Severo, caiu. Então, a facção dos verdes foi

derrotada no Circo, e logo em seguida apareceu uma gralha no alto do obelisco e todo o

público passou a gritar: “Marcial”!, que era como a gralha era chamada, aparentando haver

uma inspiração divina, pois o nome do centurião que matou Caracala era Marcial. Mais

tarde, Caracala leu uma carta no Senado em que dizia: “Suspendam as preces e aclamações

que eu serei Imperador por cem anos”. Como se tratava de uma prece impossível, todos

perceberam que seu governo não iria longe. Durante um banquete na Nicomédia, oferecido

pelo Imperador, do qual Dion Cássio foi partícipe, durante as Saturnálias, o soberano citou

versos de Eurípides que se referiam à morte. Depois da morte do Príncipe, passou-se a crer

que os versos também foram uma espécie de oráculo, que saiu da boca do próprio

Imperador inspirado por alguma divindade (Dion Cássio, LXXIX, 7.1-5 e 8.1-6).

Não se pode afirmar se estes eventos ocorreram realmente ou se foram invenções

posteriores à morte de Caracala. Poderiam ser também fatos que realmente ocorreram e que

receberam uma interpretação dirigida a explicar a vontade dos deuses em finalizar o

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governo de Caracala. Pois o importante não era a sua ocorrência ou a sua invenção, mas o

significado que lhes era dado.

E é interessante notar, ainda, que a maior parte destes prodígios era difundida após a

ocorrência de suas previsões e com a anuência do Príncipe, pois a busca de indicações

relativas ao futuro do Imperador e do Império era proibida por lei sob pena de morte

(Barzanò, 1972:262). Vemos um caso desses relatado por Dion Cássio. Segundo este autor,

em 205 d.C., um homem foi acusado por sua ama de ter lhe contado um sonho, no qual ele

se tornava Imperador, e este homem teria empregado algumas artes mágicas para atingir

este fim. A ama foi torturada, bem como um escravo doméstico do homem, um senador

chamado Aproniano, e ambos admitiram ter escutado a narrativa do sonho e o escravo

ainda acrescentou que um outro senador calvo tinha participado das práticas mágicas.

Houve um processo de traição por adivinhação, Aproniano foi acusado in absentia, sem

chances de se defender, pois ele estava na província da Ásia como Governador (Procônsul),

sendo imediatamente assassinado. Os senadores ficaram horrorizados, tentando descobrir

quem era o calvo cúmplice, numa posição absurda e humilhante. Eles chamaram o escravo

e este reconheceu um outro senador, chamado Baebio Marcelino, que tinha sido edil e era

extremamente calvo, que acabou também sendo executado (Dion Cássio, LXXVII, 8.1-9).

Possivelmente, Septímio aproveitou-se deste rumor para se livrar de dois opositores

senatoriais ao seu governo.

De acordo com a História Augusta, Septímio matou muitos homens que tinham

perguntado quanto tempo ia durar sua vida a adivinhos e astrólogos. Suas suspeitas

recaíam, não por acaso, sobre os mais capacitados para assumir o poder imperial (HA, Vida

de Severo, XV.6). Percebe-se, então, como o Príncipe usava este tipo de justificativa para

controlar a oposição ao seu governo e evitar possíveis tentativas de conspiração.

Estudando alguns editos promulgados por Septímio, quando esteve em visita ao

Egito, A . K. Bowman e G. Woolf descobriram um papiro no qual havia a seguinte ordem:

“Portanto, que nenhum homem, por meio de oráculos, ou seja, por meio de documentos

escritos supostamente concedidos pelos deuses, nem por meio do desfile de imagens ou de

qualquer outra charlatanice semelhante, finja saber coisas além do conhecimento humano

ou professe conhecer a obscuridade das coisas futuras; que nenhum homem tampouco se

coloque à disposição daqueles que fazem perguntas, tentando respondê-las de alguma

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forma”. Segundo os autores, esta foi uma das tentativas deste soberano de impedir a

circulação de oráculos e de evitar a disponibilidade de textos indesejáveis (Bowman,

Woolf, 1998:11). Sabe-se, por Dion Cássio, que em suas viagens, Septímio sempre se

preocupou com o sobrenatural. Ele fez oferendas ao deus Sol em Hatra e promoveu

sacrifícios para o espírito de Pompeu na Palestina (Dion Cássio, LXXVI, 13.1), e quando

visitou o Egito:

“Ele investigou sobre todas as coisas, incluindo assuntos muito ocultos.

Para ele, nada, nem humano nem divino, podia ficar sem investigação.

Ele visitou todos os santuários e recolheu todos os livros que ele achou e

que continham qualquer tipo de segredo, e os trancou na tumba de

Alexandre. Deu ordem para que no futuro ninguém visse o corpo de

Alexandre ou lesse o que estava escrito nos mencionados livros” (Dion

Cássio, LXXVI, 13,2).

Esta informação, fornecida por Dion, está de acordo com o edito de Septímio

encontrado e estudado por Bowman e Woolf, e retrata a preocupação deste Imperador com

a efetivação e com a divulgação de presságios, oráculos e outros tipos de prognósticos.

A utilização de práticas mágicas realmente servia como justificativa para a abertura

de processos de traição contra o governante. Este expediente também foi usado por

Caracala, durante seu governo. Ele mandou matar o senador Cecílio Emiliano, que havia

sido governador da Bética, sob acusação deste ter consultado o oráculo de Hércules em

Gades, na Hispânia, para saber de suas chances de chegar ao comando imperial (Dion

Cássio, LXXVIII, 18.4). Segundo Dion, Caracala havia se afastado dos deuses tradicionais

e se aproximado de mágicos e adivinhos como forma de manter o seu poder (Dion Cássio,

LXXVIII, 15.6) e perseguia todos aqueles que ele achava que estavam usando expedientes

mágicos contra ele. Além disso, era proibido divulgar oráculos ou quaisquer outros tipos de

previsões mágicas relacionadas a pessoa do Imperador.

Sem uma lei sucessória definitiva, o poder, para ser obedecido, precisava de um

fundamento divino, estrangeiro ao capricho, às paixões dos homens e ao sucesso

temporário da força. Os omina ajudavam a ilustrar que os eventos eram encarados como

fatos previstos e predeterminados pelos deuses (Turcan, 1978:1030-1032). A guerra era o

meio mais imediato para tentar obter o consenso, mas não mantinha o poder. Para isso era

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necessário criar um consenso mais duradouro, a partir da utilização de instrumentos de

propaganda. Septímio Severo e Caracala podiam, desta forma, fazer a síntese entre duas

experiências políticas marcantes e germinais: a júlio-claudiana e a antonina (Desnier,

1993:547-549 e 612), usando elementos já ratificados pela tradição e inovando em outros

pontos. Para Keith Hopkins, foram os romanos ilustres que mantiveram e fomentaram a

idéia de uma estreita associação do Imperador com o divino (Hopkins, 1978:247). Por isso,

não deve causar estranheza que o maior número de omina esteja recolhido na obra

composta por um senador, como Dion Cássio, pois a aceitação de sua função legitimadora

dos atos imperiais não estava restrita à plebe, mas era compartilhada por todos os

segmentos sociais.

Alguns pesquisadores, como Robin S. Lorsch e Gianna Dareggi, defendem que

estes sonhos e presságios foram meras criações dos membros da corte, para auxiliar na

legitimação do soberano (Lorsch, 1997:286 e Dareggi, 1998:139 e 150). Já Anita B.

Kolenkow viu nesses prodígios e sonhos os primórdios dos milagres do cristianismo

(Kolenkow, 1980:1471-1502). Entretanto, para nós a divulgação destes sonhos, oráculos,

augúrios e presságios de todo o tipo, não importando se eram verdadeiros ou falsos,

serviram principalmente para auxiliar no difícil processo de legitimação da ascensão de um

homem ao poder imperial e para explicar o final de seu governo, como decisões

definitivamente vinculadas à vontade dos deuses.

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Dados Pessoais: Profa. Ana Teresa Marques Gonçalves

Mestre me História Social pela USP

Doutoranda em História Econômica na USP

Professora de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de Goiás (UFG)

[email protected]

Palavras-Chaves: História de Roma; Severos; Poder

O NASCIMENTO DE UMA CIDADE: CONSTANTINOPLA E SUA

HERANÇA PAGÃ E CRISTÃ

Gilvan Ventura da Silva

Ao longo da história, a fundação de poucas cidades desempenhou um papel tão

significativo para os séculos posteriores quanto Constantinopla, a capital do Império

Romano do Oriente situada na margem ocidental do Bósforo, sobre um promontório

servido a norte por uma magnífica baía, curva como uma foice ou um chifre, de cerca de

onze quilômetros de extensão conhecida como o Chifre de Ouro. A criação de

Constantinopla se deu a partir da reconstrução da cidade de Bizâncio, fundada

provavelmente em meados do século VII a.C. por colonos oriundos da polis de Mégara, os

mesmos que alguns anos antes haviam se estabelecido em Calcedônia, do outro lado do

Bósforo. O controle da rota do trigo proveniente da Trácia e que era escoado por

intermédio do Ponto Euxino conferiu a Bizâncio uma posição estratégica no contexto do

mundo grego, razão pela qual a sua conquista por Alexandre representou uma etapa

preliminar fundamental para a construção da Oikoumene alexandrina.

Mais tarde, com a expansão romana em direção ao Oriente, Bizâncio celebra com

os novos conquistadores um tratado de auxílio mútuo, passando então a receber proteção

contra os ataques rotineiros desencadeados pelos habitantes da Trácia. Em 73, a cidade é

definitivamente incorporada ao Império por Vespasiano, o qual suprime os seus privilégios,

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anexando-a inicialmente à província da Bitínia e depois à da Trácia. Na guerra civil

desencadeada em 193 com o assassinato de Pertinace, Bizâncio converteu-se na base de

operações do então governador da Síria, Pescênio Nigro, na sua cruzada rumo ao Império, o

que lhe valeu um tratamento desfavorável da parte de Septímio Severo após a derrota de

Nigro em 194 (Norwich, 1989:62). Ao término de um sítio de quase três anos, Severo não

apenas destruiu as imponentes muralhas que protegiam a cidade como também rebaixou o

seu status, tornando-a dependente de Perinto em termos administrativos, punição que não

durou muito tempo. Ainda sob Severo, as fortificações de Bizâncio foram reconstruídas, ao

passo que Caracala, sucedendo ao pai, cuidou de restabelecer a sua autonomia. Em meados

do século III, em plena Anarquia Militar, Bizâncio foi invadida por Galieno, o que facilitou

o deslocamento dos piratas godos, os quais se aproveitaram da situação vulnerável da

cidade para atravessar o Bósforo e o Dardanelos, lançando-se sobre o Egeu. Sob a

Tetrarquia, tornou-se evidente a necessidade de melhorar a defesa da cidade, o que foi feito

mediante a construção de novas muralhas (Gwatkin, 1936:17). A posição estratégica de

Bizâncio, situada na confluência entre o Oriente e o Ocidente, fez dela a principal fortaleza

de Licínio na guerra movida contra Constantino a partir de 323. Em 18 de setembro de

324, Licínio foi definitivamente derrotado em Crisópolis, tornando-se Constantino senhor

de todo o Império. Bizâncio e Calcedônia imediatamente abriram suas portas ao novo

imperador (Barnes, 1981:77). Cerca de dois meses depois, em 8 de novembro de 324,

Constantino iniciou a ampliação das muralhas da cidade, fato que coincide com a elevação

de Constâncio, seu filho, à dignidade de César (Tem. Or. IV, 58B).

Nada nos autoriza a concluir, entretanto, que já em 324 Constantino pretendessefazer de Bizâncio a sede do poder imperial no Oriente. No que diz respeito ao conjuntode reformas empreendidas, devemos considerar dois momentos distintos. Numprimeiro momento, tudo leva a crer que Constantino tenha pretendido tão somenterealizar algumas obras de embelezamento na antiga fortaleza de Licínio. Já numsegundo momento, possivelmente após a comemoração das Vicenálias do imperadorem Roma, acontecimento que teve lugar em julho de 326, decidiu-se que Bizâncio setransformaria na “Nova Roma”, ou seja, na capital das províncias orientais, comocomprova o aumento considerável nas emissões monetárias pelo ateliê da cidade apartir de 327 (Bruun, 1966:562). A adoção do nome de Constantinopla, mesmo emtermos oficiosos, deve remontar a 324, uma vez que a reconstrução de cidades pelosimperadores romanos, com a conseqüente alteração do topônimo a fim de perpetuar amemória do evergeta, era uma prática comum no Império, a exemplo do que vemosocorrer com Trajanópolis e Adrianópolis. De fato, já a partir de 326 as moedascunhadas em Bizâncio portam no reverso as iniciais CONS, indicando pertencerem ao

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ateliê de Constantinopla (Bruun, 1966:569). Na realidade, a iniciativa de Constantinoem restaurar Bizâncio pode ser compreendida dentro de toda uma tradição segundo aqual a realização de obras públicas era uma das atividades rotineiras dos imperadores,especialmente ao término das guerras civis, quando o poder imperial necessitavareafirmar a sua legitimidade. Disso nos dá testemunho o autor anônimo da OrigoConstantini (VI,30), uma curta biografia de Constantino escrita logo após a sua morteem maio de 337, ao declarar que o imperador renomeou Bizâncio em memória da suavitória sobre Licínio. A construção de uma nova capital destinada a rivalizar emdimensão e beleza com a cidade de Roma, no entanto, é um fato único, merecendo semdúvida um tratamento mais cuidadoso. Os imperadores da Tetrarquia, é bem verdade,optaram por não fixar residência em Roma, preferindo instalar-se em cidades comoMilão, Sírmio e Nicomédia, as quais foram restauradas e embelezadas para abrigarem asede do poder imperial, ainda que o imperador não permanecesse nelas por muitotempo em função dos múltiplos deslocamentos aos quais estava sujeito por força docargo. Mesmo assim, não verificamos nesses casos qualquer propósito explícito detornar tais cidades equivalentes a Roma.

A decisão de Constantino em fazer de Constantinopla a réplica de Roma noOriente deve ser situada, ao que tudo indica, entre 327 e 328, quando o imperador,retornando da celebração das suas Vicenálias, começa a buscar em território orientalum sítio adequado para a nova cidade que planejava fundar. Nesse ponto coincidem asdeclarações de Eusébio de Nicomédia, Zózimo, Sozomeno e do autor anônimo doChronicon Pascale, uma obra do século VII que registra ano a ano os principaisacontecimentos da História de Roma.1 O imperador teria começado a edificar a suanova cidade em Ílion, na Tróade, plano que logo abandonou em favor de Bizâncio,como nos informam Zózimo (II,30,1) e Sozomeno (II,3,2). Infelizmente, as razões quelevaram Constantino a mudar de opinião não são tratadas de modo satisfatório pornossos autores. Apenas Sozomeno (II,3,3) nos fornece uma explicação mais detalhadaao pretender que Constantino teria abandonado Ílion por força de um sonho oracular noqual Deus o transportara a Bizâncio, mostrando-lhe que ali deveria ser erigida a suacidade. Mesmo que não aceitemos a explicação de Sozomeno, não resta dúvida que adecisão de Constantino em transformar Constantinopla na capital do Oriente apresentauma inequívoca conotação religiosa, havendo duas versões, uma pagã e outra cristã,para o ritual de fundação da cidade. Segundo uma tradição conservada por João Lídio,a data para a realização da consecratio de Constantinopla teria sido fixada por meio decálculos astrológicos, ocorrendo no dia em que o Sol se encontrava na constelação deSagitário e na hora regida por Câncer. A cerimônia de lançamento do milion, a pedrafundamental a partir da qual foram demarcadas as fronteiras urbanas, teria sidopresidida pelo hierofante Pretextato e pelo neoplatônico Sôpatros (Norwich, 1989:64).Filostórgio, um autor cristão escrevendo cerca de um século mais tarde, nos fornece umrelato da consecratio, a consagração religiosa do território da cidade, no qual sãoeliminados quaisquer indícios genuinamente pagãos, substituídos pela referência a um

1 Dentre tais autores, a obra póstuma de Eusébio de Cesaréia intitulada Vida de Constantino é amais antiga fonte disponível para o estudo da fundação de Constantinopla, datando a suapublicação de 340-341. A História Eclesiástica de Sozomeno e a História Nova, de Zózimo, datamde 441-443 e 498-527, respectivamente. Já o Chronicon Pascale é uma obra anônima do séculoVII.

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poder celestial genérico, o que sem dúvida tornaria o ritual mais aceitável para asconsciências cristãs. Segundo o autor (Phil. II,9) Constantino, ao traçar o perímetro dacidade,

(...) caminhou em torno dela com a lança em suas mãos. Quando os seusassistentes pensaram que ele estava traçando um espaço muito extenso, um delesse dirigiu [ao imperador] e perguntou-lhe: “até onde, ó príncipe?”, ao que oimperador respondeu: “até aquele que vai à minha frente parar”. Por estaresposta, manifestava claramente que algum poder celestial o estava conduzindo edizendo o que fazer.

Uma vez realizada a consecratio, as obras prosseguiram em ritmo acelerado,recebendo Constantinopla inúmeras construções destinadas a fazer dela uma réplica deRoma. Assim como Roma, o novo território da cidade, agora quatro ou cinco vezesmaior que o traçado original e gozando do ius italicum, a isenção de impostos sobre apropriedade fundiária, passou a compreender sete colinas e quatorze regiões (Lemerle,1991:18). A cidade recebeu também um hipódromo, banhos públicos (as termas deZeuxipo), uma domus imperial, um fórum e uma basílica para as reuniões do Senado(Chron. Pasc. année 328). Um pouco depois, em 332, iniciou-se a distribuição gratuitade trigo à plebe urbana, assim como ocorria em Roma, o que suscitou mais tarde areprovação de Eunápio (Vit. Soph. p. 381). A despeito da reticência de Millar(1992:55) em atribuir a Constantino o desejo de construir uma cidade que fosse aréplica de Roma no Oriente, considerando que a equiparação entre ambas foi oresultado de uma evolução posterior, parecem subsistir poucas dúvidas acerca dasintenções do imperador. Assim é que o seu biógrafo anônimo não hesita em atribuir-lhe o desejo de equiparar Constantinopla a Roma (Orig. Const. VI,30). Do mesmomodo, Aurélio Vítor (Ces. XLI) registra a opinião corrente no IV século segundo a qualConstantino, aos olhos dos seus contemporâneos, foi tido como o fundador de umaNova Roma. E se dermos crédito ao depoimento tardio de Sócrates (XVI,21), vemosque o imperador determinou que a cidade fosse oficialmente designada como NovaRoma, fazendo gravar a lei em um pilar de pedra erigido no Strategium, próximo a suaestátua eqüestre. Para cumprir uma obra tão grandiosa em tão pouco tempo,Constantino promoveu uma espoliação sistemática dos templos pagãos provinciais,transportando para a nova capital inúmeras estátuas e demais monumentos (Eus. Vit.Const. 54, 1-4).

Muito embora as obras de reconstrução de Constantinopla tenham prosseguido atépelo menos 336, estabeleceu-se que a dedicatio dos novos edifícios públicos deveriacoincidir com as comemorações dos vinte e cinco anos de reinado do imperador. Adata escolhida para a inauguração foi 11 de maio de 330, dia no qual se celebrava ofestival em honra a São Mócio, um mártir de Bizâncio sob Diocleciano ou Licínio, oque enfatizava a derrota do último dos perseguidores por Constantino (Barnes,1981:222), tendo sido a cidade dedicada ao “Deus dos mártires” segundo o depoimentode Eusébio de Cesaréia (Vita. Const. III, 48, 1).2 A dedicação solene da nova capital aoDeus cristão parecia traduzir o desejo imperial de construir uma cidade inteiramentecristã, isenta de qualquer elemento pagão, o que sem dúvida estaria em contradição

2 Além de escolher o dia do festival de São Mócio para a dedicatio de sua cidade, Constantinoerigiu ainda um martyrium ao santo uma milha além do perímetro urbano (Barnes, 1981:222).

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flagrante com o epíteto “Nova Roma” a ela atribuído. Na realidade, a matriz intelectualda tradição que concebe Constantinopla como uma cidade erigida para honra e glóriado cristianismo pode ser facilmente identificada, possuindo seus fundamentos nabiografia de Constantino escrita por Eusébio de Cesaréia, o qual declara que oimperador:

Impregnado por completo de sabedoria divina, considerou justo purgar detoda idolatria aquela cidade [i.e. Constantinopla] que por decisão sua sedestacaria levando seu próprio nome, de modo que em nenhum lugar dela haveriarastro algum de estátuas dos pretensos deuses que costumavam ser objeto de cultonos templos, nem altares sujos com jorros impuros de sangue, nem vítimasdevoradas pelo fogo, nem festividades demoníacas, nem nada ao qual poderiamestar acostumadas as pessoas supersticiosas (Eus. Vit. Const. III,48,1-2).

A opinião de Eusébio aqui expressa é compartilhada também por Sozomeno (Hist.Eccles. II,3,7), o qual afirma que Constantinopla, tendo se tornado capital nummomento em que o cristianismo se encontrava em ascensão, não conheceu aexperiência nem dos altares ou sacrifícios pagãos, salvo a que foi tentada mais tarde,durante um breve período, por Juliano, quando foi imperador. Naturalmente que aexposição pública em Constantinopla das estátuas das divindades pagãs arrancadas aostemplos, fato impossível de ser ocultado, deveria receber uma justificativaminimamente plausível por parte dos autores cristãos.3 Assim é que para Eusébio (VitaConst. III,54,1-7), Constantino teria utilizado os espólios dos templos na decoração desua cidade com a finalidade de dessacralizar os ícones do paganismo, fazendo-ostransportar de um lugar para o outro amarrados com cordas, como se fossem escravos.Cerca de um século mais tarde, o mesmo argumento é retomado por Sócrates (Hist.Eccles. I,XVI), sugerindo-se que Constantino destruiu a superstição dos pagãos aotrazer as suas imagens à contemplação pública para ornamentar a cidade deConstantinopla.

Na opinião corrente entre os autores cristãos da época, Constantinopla terianascido sob a égide do cristianismo, fato comprovado não apenas pela dedicação dacidade ao “Deus dos mártires” , como mencionado anteriormente, mas pela instalaçãodo símbolo da cruz, convertido em talismã tutelar do Império por Constantino, no tetoda sala principal do palácio (Eus. Vita Const. III,49). O notório apego de Constantino àpotência mágica da cruz o levou igualmente a erigir sobre o milion, um quadriláteroformado por arcos do triunfo encimados por uma cúpula, a venerável Cruz de Cristotrazida de Jerusalém por sua mãe, Helena, quando da peregrinação empreendida entre326 e 327 (Norwich, 1989:65). Por tudo isso, Constantinopla parece ser dotada de umainequívoca vocação missionária, razão pela qual Sozomeno (II,3,7) declara que elaatrai de modo tão intenso para a fé no Cristo que muitos judeus e quase todos ospagãos aí se tornam cristãos. Que os autores cristãos compreendam a fundação deConstantinopla nestes termos não constitui motivo de admiração. No entanto, a ênfase

3 Constantinopla se encontrava repleta dos mais belos e significativos monumentos pagãos daAntigüidade, como por exemplo o Apolo de Delfos, as musas do Hélicon, as trípodes de Delfos (umconjunto de três serpentes entrelaçadas) e o Pã que Pausânias da Lacedemônia e as cidadesgregas dedicaram em agradecimento à vitória na guerra contra os persas (Cf. Eus. Vit. Const.III,54,2 e Soz. II,5.4)

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na mística cristã que envolve a cidade de Constantino é reproduzida sem maioresreservas por diversos historiadores, os quais se apressam a concluir pela filiação cristãda cidade em detrimento das suas permanências pagãs. Essa é a posição adotada porBarnes (1981:212), para quem a nova capital deveria ser uma cidade cristã na qual osimperadores cristãos poderiam residir em um ambiente não maculado pelos edifícios,ritos e práticas de outras religiões. Opiniões semelhantes são compartilhadas poroutros autores, como por exemplo Baynes (1996:14), Stein (1959:128) e, em certamedida, Norwich (1989:63). Em oposição frontal a esta tese, há uma correntehistoriográfica que advoga a coexistência de tradições religiosas distintas no contextode fundação da capital, o que nos impediria de atribuir a Constantinopla uma naturezaexclusivamente cristã, ao menos para os primeiros tempos da sua criação4. A consultaà documentação disponível parece apoiar muito mais os defensores das permanênciaspagãs em Constantinopla do que os da cristianização plena. Mais que isso, asevidências sugerem, de modo notável, a existência de um autêntico sincretismo entre asduas correntes religiosas, tendo a figura imperial como denominador comum. Vejamoscomo isso é possível.

Em primeiro lugar, tendo sido construída para exaltar a grandeza do poder

imperial, Constantinopla expressava em seus monumentos a nova representação da realeza

que se afirma na passagem do Principado para o Dominato, conforme sugere muito

corretamente Diehl (1961:53). Suas festividades e seus monumentos se ajustam com

perfeição ao conjunto de símbolos que configuram a basileia, a realeza sagrada

helenístico-cristã, a qual possui como uma das suas características mais significativas a

conversão do imperador em uma entidade de natureza divina e sua realeza em algo

arquetípico, autêntica mimesis da realeza sobrenatural, com a reestruturação do culto

imperial de modo a enfatizar os atributos místicos do soberano reinante em detrimento dos

demais divi já falecidos. Nesse sentido, Constantinopla é dominada pela figura de seu

criador, o qual faz da cidade um espelho a refletir toda a sua majestade celestial. De fato,

no centro do vasto e suntuoso fórum, inteiramente pavimentado em mármore, erguia-se

uma coluna de pórfiro vermelho trazida especialmente de Heliópolis, a cidade egípcia do

Sol. A coluna se apoiava em um pedestal de mármore no interior do qual Constantino

havia introduzido o Paládio, uma antiga estátua de Atená que, segundo a mitologia, havia

sido transportada de Tróia para Roma por Enéias e entregue aos cuidados das vestais. Junto

da estátua foram colocados também, conforme uma lenda corrente, o machado com o qual

Noé havia construído a Arca, as cestas com as sobras do pão multiplicado por Jesus para

alimentar a multidão faminta e o jarro da unção utilizado por Maria Madalena. No alto da

4 Vide, por exemplo, Burckhardt (1938:394); Piganiol (1972:54); Ostrogorsky (1984:59-60) eLemerle (1991:16).

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coluna de pórfiro foi erigida uma grande estátua de Constantino proveniente da Frígia. O

imperador aparecia representado aqui com a cabeça rodeada de raios solares

confeccionados em bronze, atributo característico das divindades solares. (Chron. Pasc.

anée 328).

A estátua de Constantino se assemelhava, assim, ao Sol Invictus, expressando a

equiparação do imperador com os seus congêneres cósmicos. Muito embora convertido à

fé cristã, Constantino nunca abandonou por completo nem a devoção a Apolo que havia

marcado os seus primeiros anos de governo nem a tradição familiar que o fazia herdeiro de

Cláudio, o Gótico, o qual se acreditava pertencer a uma estirpe solar (Maurice, 1911). Na

qualidade de Sol Invictus, ele é não apenas o guardião onipotente, onipresente e invencível

da capital, mas também a reatualização de Enéias, o herói fundador de Roma, conjugando-

se no monumento todos os elementos que compunham o universo religioso da época.

Incrustradas nele, tanto as relíquias cristãs quanto as pagãs são preservadas para a

eternidade, postas aos cuidados de um soberano que é o paredro terrestre do Sol Invictus,

uma divindade reverenciada por todo o Oriente. A assimilação entre a imagem de

Constantino e o Sol Invictus se tornou tão intensa que a estátua logo se converteu em objeto

de adoração para os habitantes de Constantinopla. Filostórgio (II,17) declara que os

cristãos ofereciam sacrifícios a uma imagem de Constantino colocada sobre uma coluna

de pórfiro e a honravam com lâmpadas acesas e incenso, e ofereciam votos a ela como a

Deus, e faziam súplicas a ela para desviar as calamidades. Desse modo, na suposta capital

cristã do Oriente o culto imperial que durante três séculos havia sido um motivo de

tormento permanente para os cristãos recebe um extraordinário impulso. Nesse momento,

as oferendas votivas que outrora eram reservadas apenas aos deuses passam a ser

consagradas ao próprio imperador.

A presença dominante de Constantino na capital não é evocada apenas por

intermédio da monumental estátua erguida no fórum, mas pela cerimônia anual de

comemoração da dedicatio. No decorrer dessa cerimônia, diante da população reunida no

hipódromo, era apresentada para adoração uma estátua do imperador confeccionada em

madeira e revestida de ouro. Na mão direita da estátua se encontrava a representação de

uma Tyche, a Fortuna da cidade. Conduzida sobre um carro por um cortejo solene de

soldados vestidos com a clâmide e portando círios brancos, a estátua se deslocava em torno

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do hipódromo até parar diante da tribuna imperial, ocasião na qual o imperador se

levantava e se prosternava diante da imagem de Constantino e da Fortuna (Chonic. Pasc.

Anée 330), no que era acompanhado por todos os espectadores. A cerimônia aqui descrita

é a da adoratio, a adoração da pessoa sagrada do imperador, a qual integrava o conjunto de

rituais próprios da basileia. Nesse caso específico, a cerimônia tem por finalidade exigir,

da parte do imperador reinante, o reconhecimento e a reverência devidos para com o

fundador de Constantinopla. Ritual de natureza pagã e cumprido diante das imagens dos

deuses pelos suplicantes, a adoratio foi assimilada sem maiores traumas pela elite

eclesiástica após a conversão de Constantino, de modo que a sua existência dentro de um

Império cada vez mais cristão não deve nos causar surpresa. Já a presença no ritual da

imagem da Fortuna, a qual deveria ser reverenciada juntamente com o imperador,

representa sem dúvida uma inovação significativa, atestando uma inequívoca permanência

das tradições pagãs em Constantinopla.

O culto à Fortuna na qualidade de protetora ou fundadora das cidades, e não

apenas como a divindade tutelar dos indivíduos, remonta ao início da época helenística,

quando os Diádocos dividiram entre si o Império de Alexandre. Deusa caprichosa,

responsável pelos imprevistos incoerentes e até mesmo injustos da existência humana, a

Fortuna personifica ao mesmo tempo a opulência das cidades, razão pela qual seus atributos

principais são a pátena e a cornucópia (Hild, s/d.). No caso de Constantino, a deferência

para com o culto à Fortuna é um fato incontestável. Por intermédio da narrativa de Zózimo

(II,31,3), temos conhecimento de que o imperador teria feito erguer um templo ou uma

êxedra em homenagem à Fortuna próxima a um dos pórticos que integravam o conjunto

arquitetônico do fórum. Além disso, em 328 Constantino celebrou também um sacrifício

não sangrento no decorrer do qual batizou a Fortuna da cidade com o nome de Anthousa,

em grego “Florescente” (Chron. Pasc. Anée 328). Em uma moeda de prata cunhada para

as comemorações da dedicatio de 330, vemos a imagem de Antusa portando a cornucópia

(Bruun, 1966:578, n º 53). Mediante o culto à Fortuna, associado agora ao próprio culto

imperial, Constantino sem dúvida pretendia garantir para a sua nova capital a mesma

eternidade da qual gozava Roma, o que o levou a declarar que havia dotado Constantinopla,

por mandato de Deus, com um nome eterno (C. Th. XIII,5), muito provavelmente o nome

de Flora ou Antusa, denominações sacerdotais secretas de Roma (Burckhardt, 1938:394).

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A adoração à Fortuna não foi o único culto pagão permitido oficialmente em

Constantinopla. Graças ao testemunho de Zózimo (II,31,1-2), sabemos que próximo ao

hipódromo foi erguido também um templo aos Dióscuros, os gêmeos mitológicos filhos de

Zeus, muito provavelmente como uma referência à irmandade entre Roma e

Constantinopla. Outra divindade a receber um templo ou um santuário foi Réia-Cibele, a

deusa frígia cujo culto era desde a República um dos mais importantes de Roma. A estátua

da deusa, trazida de Cícico, teria sido adulterada por Constantino, que retirou os leões que a

ladeavam, convertendo-a em uma orante a velar pela cidade (Zoz. II,31,1-2), o que se

adequava melhor ao espírito sincrético da capital. De qualquer modo, as informações

contidas em Zózimo contrariam de modo flagrante a afirmação dos autores eclesiásticos

segundo a qual Constantinopla teria sido preservada de qualquer influência pagã.

De acordo com a mentalidade romana, a conexão entre a ordem visual e o regime

político era indissolúvel, necessitando os imperadores que o seu poder fosse evidenciado,

de modo duradouro, por intermédio de monumentos e obras públicas (Sennet, 1997:81),

razão pela qual se esmeraram sempre em construir ou reconstruir cidades como uma forma

de celebrar a sua glória sobre a terra. Disso resulta que as cidades, erigidas em pedra e

devotadas à eternidade, representavam um poderoso instrumento de perpetuação da

memória imperial, assinalando que a missão civilizadora de Roma diante do mundo bárbaro

se cumpria por determinação dos imperadores. A ação de Constantino, nesse caso, não

foge à regra, exceto pelo fato de o imperador ter projetado não uma cidade qualquer, mas

uma réplica oriental de Roma, o centro do mundo então conhecido, pólo irradiador da

romanidade sobre o território circundante. A obra de Constantino o equiparava ao mesmo

tempo a Enéias e a Rômulo, não sendo por acaso que a fundação de Constantinopla se

encontrava relacionada, desde o início, a Tróia. Nesse aspecto, a Nova Roma recolhia

todas as tradições pagãs acerca da criação da Urbs, herança essa da qual, em nossa opinião,

Constantino jamais pretendeu se afastar. Por outro lado, a influência cristã em

Constantinopla é um fato inegável, tendo a cidade cedo se constituído no mais importante

bispado do Oriente, rivalizando com sés antigas e veneráveis, tais como Alexandria,

Antioquia e Jerusalém (Angold, 2002:19).

Na verdade, a criação de Constantinopla representa um feito espetacular na medida

em que o basileus surge, frente à sociedade romana da época, como um ser capaz de dotar o

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mundo de um novo centro, melhor dizendo, de reordenar o próprio cosmos, delimitando um

novo espaço a partir do qual o sagrado se difunde sobre a superfície terrestre, protegendo-a

da ameaça permanente do caos (Eliade, 1992:34). No contexto de redefinição dos

fundamentos do poder imperial, de construção de uma realeza sagrada eivada de elementos

pagãos e cristãos, era necessário que Constantino produzisse uma nova abertura por meio

da qual se pudesse realizar a comunicação entre o céu e a terra. Roma não era inadequada

aos propósitos de Constantino por ser uma cidade pagã, mas por ser o baluarte de uma

concepção política de origem republicana que relutava em reconhecer os imperadores vivos

como seres sagrados. Já Constantinopla, encravada na fronteira entre o Oriente Próximo e

a Grécia, compartilhava de todas as tradições helenísticas sobre a realeza, as quais por sua

vez resultavam da reelaboração de símbolos e rituais que remontam sem dúvida à

monarquia faraônica, como comprova a perpetuação ao longo de todo o Império do

costume de se atribuir aos imperadores a titulatura própria dos antigos soberanos egípcios.

Em termos simbólicos, fazia-se necessário encontrar uma nova capital que pudesse

expressar o sincretismo e as novas concepções que cercavam a basileia, e a escolha

finalmente recaiu sobre Bizâncio, por razões de ordem diversa que não temos condições de

discutir aqui. O importante é registrar que em Constantinopla o basileus romano

representa, tanto na vida como na morte, uma autêntica epifania, tornando-se o seu corpo,

depositado no mausoléu anexo à Igreja dos Santos Apóstolos, objeto de culto e veneração.

Desse modo, Constantinopla se convertia em um extraordinário santuário a conservar para

a eternidade as relíquias dos seus imperadores embalsamados e depositados em sarcófagos

de ouro e madeira, como convinha a membros de uma estirpe sagrada.

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Palavras-Chave

- Constantinopla

- Império Bizantino

- Paganismo

- Cristianismo

Gilvan Ventura da Silva

Doutor em História Econômica pela USP

Page 24: Ana Teresa Marques Gonçalves

Professor de História Antiga do Departamento de História da UFES

E-mail: [email protected]