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in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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ANÁLISE DO SERMÃO
1. EXÓRDIO (Cap. I)
O exórdio, ou proemium, é uma parte do discurso que se reveste de grande importância na medida em
que é o primeiro passo para a capta tio benevolentiae dos ouvintes. O orador deverá ser sensível ao auditório
que tem à sua frente e desenvolver o seu discurso, tendo em conta as suas características. Não deverá
começar num tom muito monótono mas também não deve fazê-lo em tom muito elevado senão, como dizia
Terrones, poderá «espantar a caça».
No exórdio é proposto um tema dicotómico. Partindo do conceito predicável vos estis sal terrae, retirado
da Sagrada Escritura, o orador dá início ao sermão. Em muitos casos, o exórdio pode funcionar como um
«mini-sermão», é o que acontece neste. O tema é apresentado, desenvolvido e é dada uma possível solução.
Assim, sob forma de esquema, teremos:
“Vós sois o sal da terra”
Pregadores Mensagem Ouvintes evangélica PROPRIEDADES
Sal Pregadores
Conservar
Evitar a corrupção
Louvar o bem
Impedir o mal
Vieira sabe que o mal não está só do lado dos pregadores, os leigos também têm as suas culpas e todos
juntos concorrem para a destruição do Índio.
Religiosos, ou não, tornavam-se traficantes de índios e iam, a pouco e pouco, dizimando este povo. Numa
«Informação» que Vieira escreveu em 1652 pode ler-se o seguinte: «Os Índios têm cobrado grande medo aos
portugueses, pelas grandes crueldades que neste Estado têm executado; das quais baste por prova que, em
menos 40 anos, consumiram mais de dois milhões de índios, e mais de quatrocentas povoações, tão
populosas como grandes cidades, de que hoje se não vê nem o rasto onde estiveram».
«Não é tudo isto verdade? Ainda Mal.»
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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A terra está corrompida
Porque o sal não salga
(pregadores)
Porque a terra não se deixa salgar
(Ouvintes)
Motivos
Motivos
Os pregadores não pregam a verdadeira doutrina
Os pregadores dizem uma
coisa e fazem outra
Os pregadores pregam-se a si
mesmos e não a Cristo
Os ouvintes não querem receber a verdadeira doutrina
Os ouvintes querem imitar o que
os pregadores fazem e não o que eles dizem
Os ouvintes querem servir os seus
apetites em vez de servir a Cristo
O facto do sal não salgar é um problema que preocupa António Vieira como já foi preocupação de muitos
outros pregadores, incluindo Santo António:
«A humildade e a caridade ornam a sabedoria do pregador. Se delas o pregador estiver ornado, a
pregação será como um conceito de músicos. Quando a sabedoria exterior corresponde ao sabor da
consciência e a eloquência corresponde à vida, há um conceito de música».
Possível solução:
O que se há de fazer quando não cumprem as suas funções
Ao sal Aos pregadores
Resposta de Cristo
Resposta de Sto. António
lançá-lo fora como inútil
pisado por todos
mudou de púlpito
mudou de auditório
O primeiro parágrafo é todo construído através de uma engenhosa rede de jogos de palavras, onde
domina o emprego da disjuntiva «ou» e da conjunção «porque» sobre a procura das causas que impedem que
a terra se deixe salgar. Só aparecendo uma vez a adversativa «mas», introduz uma clarificação do problema
acerca do que foi anteriormente dito.
Com vista à captatio benerolentiae o orador socorre-se de vários artifícios. Para atingir a inteligência dos
ouvintes usa argumentos lógicos e sucessivas interrogações retóricas («… qual pode ser a causa desta
corrupção?» e «Não é tudo isto verdade?»). Para atingir o coração do auditório, as interjeições e exclamações
são a forma que ele encontrou mais adequada. «Não é tudo isto verdade? Ainda mal.»
No segundo parágrafo, a citação evangélica funciona como forma de legitimar os argumentos
apresentados.
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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Nas palavras de Cristo consegue o pregador solução para os maus pregadores. Tal como a citação
anteriormente referida, a figura de Santo António também funciona como autoridade, assim como os «outros
Santos Doutores da Igreja».
É de notar a pouca variedade de palavras neste parágrafo e a insistência sistemática da repetição de
algumas. Pouco vocabulário à disposição do pregador? Não, sobretudo a intenção de vincar determinadas
ideias, no que se refere às culpas que os pregadores têm do facto da terra não se deixar salgar!
No Sermão da Sexagésima Vieira diz mesmo: «Sabeis Cristãos porque não faz fruto a palavra de Deus?
Por culpa dos pregadores. Sabeis Pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa.» Aqui,
como em outras situações, Vieira assume a ineficácia da sua palavra. Portanto, assume-se como pregador-
pregado.
No terceiro parágrafo, tal como acontece ao longo do Sermão, Vieira assume o estatuto de narrador,
legando para segundo plano o de pregador.
Santo António ocupa um lugar especial. Todo o texto é um panegírico em torno da sua figura.
Aproveitando o facto de ter dificuldade em comunicar com os homens, ele decide, tal como fizera Santo
António, pregar aos peixes.
Segundo se conta, na cidade de Arimino, ou Rimini, existiam muitos hereges. Certo dia, na foz do rio
Marecchia, Santo António resolve pregar aos peixes já que os homens não lhe davam atenção.
Que outro Santo poderá haver para ser exemplo num Sermão que fala da falta de Sal se «S. António foi
sal da terra, e foi sal do mar»?
Atente-se no seguinte excerto:
«Deixa as praças, vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar».
Verifica-se que ele é pautado pelo sistema binário contendo, ao mesmo tempo, paralelismos lexicais e
fónicos e jogos antitéticos: «deixa»/«vai-se» e «praças»/«praias» .
Outros recursos presentes ao longo do exórdio:
Enumeração e polissíndeto - «Muitas vezes vos tenho pregado nesta Igreja, e noutras de manhã, e de
tarde, de dia, e de noite», dando a ideia de continuidade à acção.
É com a convicção de que «nas festas dos Santos, é melhor pregar como eles que pregar deles» que
Vieira veste a roupagem de Santo António e, à semelhança deste, se dirige aos peixes, uma vez que os
homens do Maranhão fechavam os ouvidos à doutrina: «O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra
tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis, e eu por vós o sinto».
A crítica é bem forte, o mal está não só do lado dos homens que não ouvem como, e sobretudo, dos
pregadores que não sabem pregar a verdadeira doutrina.
De uma forma irónica incita todos aqueles que não querem ouvir a verdade a abandonar o sermão «pois
não é para eles».
Termina o exórdio com uma invocação (divinii auxilii implora tio ) a Maria Domina Maris - Senhora do mar.
2. DESENVOLVIMENTO (Cap. II,III,IV E V)
A partir do Capítulo II, até ao final do Sermão, todo o texto é uma alegoria, uma vez que o auditório é os
peixes-gente.
2.1 Propositio (Cap. II até «E onde há bons, e maus, há que louvar e que repreender.» Cap. III).
A proposição corresponde a uma apresentação do tema e tem início com uma pergunta retórica: «Enfim,
que havemos de pregar hoje aos peixes?»
Este auditório muito específico tem qualidades mas também apresenta um grande defeito:
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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PEIXES
Qualidades Defeitos
Ouvem mas não falam
Não se convertem
É triste para um pregador dirigir-se a quem nunca se há-de converter, mas como ele mesmo afirma,
«...esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quasi não se sente.»
Apesar de não se converterem, para Santo António os peixes são símbolo da fé, tal como refere no
Sermão das Ladainhas:
«O peixe é a fé nas coisas invisíveis. Assim como o peixe nasce, vive e se alimenta sob a cobertura das
águas, também a fé em Deus invisivelmente se gera no coração, se consagra pela graça invisível do Espírito
através da água do Baptismo, se alimenta com o auxílio invisível da divina protecção, para não desfalecer,
obra o bem de que é capaz com a mira nos prémios invisíveis. Ou também a fé se compara ao peixe, porque
assim como ele é batido pelas frequentes ondas do mar, sem que morra com isso, também a fé não se quebra
com as adversidades (...)»
Quando refere «... não falarei hoje em Céu, nem Inferno ... » estamos perante uma preterição pois, como
poderemos verificar no capítulo seguinte, vai mesmo falar deste tema.
Falando com os «irmãos peixes» indica as funções do sal e do Sermão.
Existe um paralelismo entre o «Sal» e o «Sermão» e é através deste paralelismo metafórico que se irá
desenvolver todo o Sermão, assente num sistema binário.
Função
Sal Sermão
conservar o bem
preservar da corrupção
louvar o bem
repreender o mal
Em todo o lado há bons e maus, o mesmo acontece com os peixes. Já São Basílio dizia: «Não só há que
notar, (...) e que repreender nos peixes, senão também que imitar, e louvar». Do mesmo modo Cristo refere:
«E onde há bons, e maus, há que louvar, e que repreender.»
É novamente a figura de Santo António que aparece, não só para legitimar, como para engrandecer o
texto.
Finalidades do Serão de santo António aos Peixes
louvar as virtudes dos peixes
repreender os vícios dos peixes
A partir daqui todo o Sermão é uma alegoria. Os peixes são a metáfora dos homens, as suas virtudes são,
por contraste, a metáfora dos defeitos dos homens e os vícios são directamente a metáfora dos vícios destes.
O pregador fala aos peixes mas quem o escuta são os homens, os colonos do Maranhão.
O Sermão aparece organizado com base em dois contrastes: o Bem e o Mal. O pregador argumenta de
forma muito lógica. Partindo de duas propriedades do sal, divide o Sermão em duas partes:
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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* O sal conserva o são * O sal preserva da corrupção
O pregador louva as O pregador repreende os virtudes dos peixes vícios dos peixes
2.2 Divisio (Cap. I «Suposto isto,...» até «... vossos vícios.»)
O Sermão em estudo contém dentro da proposição uma divisão. O orador anuncia, de forma clara, o
assunto que vai tratar, bem como a sua divisão: «Suposto isto, para que procedamos Com clareza, dividirei,
peixes, o vosso Sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo
repreender-vos-ei os vossos vícios.» Desta forma o auditório está na posse do «esquema» do sermão e
poderá segui-lo com mais atenção e interesse.
O pregador vai partir sempre do geral para o particular. Assim, começará por falar das virtudes dos
peixes, em geral, e a seguir irá particularizar alguns casos. O mesmo acontecerá com as repreensões.
Louvores naturais aos peixes
«Vós fostes as primeiras criaturas que Deus
Criou.»
«os primeiros nomeados foram os peixes.»
«São os mais, e (…) os maiores.»
Virtudes naturais dos peixes
obediência
ordem
quietação
atenção
Tomando novamente o estatuto de narrador, conta outro episódio da vida de Santo António, no qual os
homens o queriam expulsar daquela terra enquanto os peixes se mantinham atentos ao seu Sermão. Existe
uma antítese entre a atitude dos homens e a dos peixes, por isso conclui de uma forma irónica e sarcástica:
«Quem olhasse neste passo para o mar, e para a terra (...) Poderia cuidar, que os peixes irracionais se tinham
convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras».
Uma outra narrativa é a de Jonas quando ia num navio e, durante uma tempestade, foi atirado ao mar
pelos homens para ser comido pelos peixes, mas um destes engoliu-o e foi colocá-lo em Nínive, onde
continuou a pregar. E numa apóstrofe conclui: «Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores
sois que os homens».
Cita outra grande autoridade, Aristóteles, filósofo grego, que refere que os peixes «... só eles entre todos
os animais se não domam nem domesticam.»
ANIMAIS QUE SE DOMAM OU DOMESTICAM
TERRESTRES DO AR
«o cão é tão doméstico» «o papagaio nos fala»
«o cavalo tão sujeito» «o boi tão serviçal» «o bugio tão amigo e lisonjeiro»
«até os leões e tigres ( ... ) se amansam»
«o rouxinol nos canta» «o açor nos ajuda e recreia» «grandes aves de rapina ( ... ) recebem o sus-
tento»
Existe uma gradação na enumeração dos animais que vivem próximo do homem, mas presos.
Contrariamente, os peixes:
«lá se vivem nos seus mares e rios»
«lá se mergulham nos seus pegos»
«lá se escondem nas suas grutas»
com que ouvem a palavra de Deus
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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A diferença entre os peixes e os outros animais é aqui marcada pelo advérbio de lugar «lá», longe dos
homens, e pelos pronomes possessivos «seus», «seu» e «sua». Não só vivem longe como num espaço que
lhes pertence.
Toda a liberdade de que usufruem os peixes é contraposta à prisão em que vivem os restantes animais
pela adversativa «mas»:
«Cante-lhe (...) o rouxinol»
«na sua gaiola»
«diga-lhes ditos o papagaio»
«na sua cadeia»
«vá com eles ( ... ) o açor»
«nas suas piozes»
«faça-lhe bofonerias o bugio»
«no seu cepo»
«contente-se o cão ( ... ) roer o osso»
«levado ( ... ) pela trela»
«preze-se o boi ( ... ) formoso e fidalgo»
«com o jugo sobre a cerviz puxando pelo arado e pelo carro»
«glorie-se o cavalo mastigar freios dourados»
«debaixo da vara e espora»
«tigre e leões comem carne» «presos e encerrados»
Por extensão, os animais que convivem com os homens foram castigados, pois estão domados,
domesticados, sem liberdade.
Depois de uma comparação entre peixes e homens conclui: «…quanto melhores sois que os homens» e
apresenta, ironicamente, uma crítica.
«Peixes!» Esta é uma das muitas passagens marcadas por uma certa ambiguidade, dirige-se aos peixes
para se dirigir aos homens. Os destinatários do discurso, ora são os homens, ora os peixes. O discurso torna-
se inesperadamente variado na medida em que umas vezes se dirige aos peixes na segunda pessoa, «Vós
peixes», como na terceira pessoa, «Os peixes (...) lá se vivem». Esta troca repentina de destinatários não
obscurece, de forma alguma, a mensagem, aumenta sim a sua capacidade de denúncia. É bem clara a
intencionalidade presente em «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens». Toda a
argumentação alegórica pretende demonstrar a maldade e vaidade dos homens que funcionava como um
espelho para os ouvintes. «…quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato, e familiaridade com eles,
Deus nos livre!» Neste, como noutros exemplos, nota-se a capacidade de se dirigir aos homens e aos peixes,
de uma forma ambígua.
Só os peixes não foram castigados aquando do dilúvio, nem ficaram limitados a um macho e uma fêmea.
Isso deveria ser um exemplo para os homens, que pouco ouvem, falam muito, e não respeitam a palavra de
Deus.
De tudo o que ficou dito se conclui que os homens não são amigos de ninguém pois, por isso, um grande
filósofo respondeu que a melhor terra do mundo era mais deserta «porque tinha os homens mais longe».
Termina o capítulo com o exemplo de Santo António que deixou Lisboa, Coimbra e Porto para se afastar
dos homens e, consequentemente, aproximar-se de Deus.
Note-se o paralelismo em «Para fugir dos homens deixou a casa dos Pais, (...) Para fugir, e se esconder
dos homens, mudou o Hábito (...)».
mas
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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No Capítulo III vai particularizar as virtudes de alguns peixes, representativos de determinado tipo de
homens.
Tomando novamente o estatuto de narrador vai contando histórias sucessivas. A primeira é a história de
Tobias e de um peixe que o parecia querer comer. O Anjo São Rafael, que o acompanhava, disse-lhe para não
o temer e sim arrastá-lo para terra pois as suas entranhas serviam para curar a cegueira e o coração para
afastar os espíritos. Tobias assim o fez. Com as entranhas curou a cegueira do pai. Queimou parte do coração
em casa de Sara, a quem o espírito havia morto sete maridos, o demónio desapareceu e Tobias casou com
ela.
Na sequência desta, vem Santo António que, comparado com este peixe, também tinha o poder de curar a
cegueira aos hereges e afastar os maus espíritos. É interessante a comparação e, ao mesmo tempo, a
imagem que nos é apresentada no excerto: «Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o atarem com
uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo António.»
Encadeada nestas duas narrativas aparece uma narrativa um pouco diferente pois Vieira fala de si. À
semelhança dos anteriores (peixe de Tobias e Santo António) também ele (Vieira) possui esse poder e os
homens também fogem dele com medo de serem comidos pela verdade.
Num perfeito encadeamento, Vieira chega ao ponto que pretende, que é a crítica aos homens do
Maranhão e à sua malvadez contra o Índio, que é a razão do seu sal não salgar.
Veja-se, em esquema, como estas três narrativas estão encadeadas, começando pela história de Tobias,
em que ele se dirige aos peixes, na narrativa de Santo António, já fala em «Ah homens» e, por fim, Vieira
dirige-se directamente aos moradores do Maranhão.
PERSONAGENS
PODERES DESTINATÁRIOS DA
MENSAGEM
Peixe de Tobias
«... 0 fel era bom para sarar a cegueira, e o coração para lançar fora os Demónios.»
«peixes» - «homens»
Santo António
«Ah homens, se houvesse um Anjo, que vos revelasse, qual é o coração desse homem, e esse fel, que tanto vos amarga, quão proveitoso, e quão necessário vos é»
«Ah homens»
Padre António Vieira
«Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração.»
«Ah moradores do Maranhão»
E de repente, de uma forma irónica, retoma a alegoria, dizendo «Mas ah, si, que me não lembrava! Eu
não vos prego a vós, prego aos peixes».
Note-se, no caso de Vieira, o pronome «eu», o imperativo «Abri, abri» e os pronomes demonstrativos
«estes» e «este»,
Nos seus sermões, Santo António também fez várias referências ao peixe de Tobias, como por exemplo no
Sermão do XX Domingo de Pentecostes:
«Vejamos o que significam o peixe, o seu coração, o fel e o fígado. O peixe é Cristo. Foi ele o primeiro a
subir, isto é, a oferecer-se à morte pela nossa redenção. (...) O coração designa a sabedoria; o fel, a
amargura; o fígado o amor de Cristo. Com o gosto da sabedoria condimenta a tua insipidez; mistura a
amargura do seu sofrimento à tua doçura; põe o seu amor acima de todo o amor: Amor sem amor de Cristo
não se deve dizer amor, mas dor.»
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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Verifica-se uma gradação descendente, do pescador para o peixe, e depois ascendente, do peixe para o
pescador.
Passando imediatamente ü crítica, Vieira refere: «Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem
lhe pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra!». Note-se a antítese em «Tanto pescar e
tão pouco tremer».
OBJECTOS DE PESCA NO MAR OBJECTOS DE PESCAR EM TERRA
Cana Varas, ginetas, bengalas, bastões, ceptros
De notar que nos objectos de pesca na terra existe uma gradação que vai da simples vara aos bastões e
ceptros (símbolos da alta nobreza) e todos pescam.
Nova narrativa de Santo António que, quando pregava um sermão, fez tremer vinte e dois pescadores (da
terra) e «…todos tremendo se lançaram a seus pés, todos tremendo confessaram seus furtos, todos tremendo
restituíram o que podiam ( ... )». Atente-se na repetição do verbo tremer, que intensifica o arrependimento
daqueles homens, e no paralelismo anafórico «todos tremendo», que volta a intensificar a ideia.
O último peixe a ser louvado é o Quatro-Olhos acerca do qual Vieira «…quis averiguar ocularmente a razão
deste nome», e na realidade possuía quatro olhos. Vieira não pode deixar de lamentar a antítese que existe
entre um peixe que possui tantos instrumentos de visão e, na terra, existirem tantos homens que sofrem de
cegueira. É uma cegueira metafórica pois ele refere-se àqueles que não querem ver os erros que cometem.
Este pequeno peixe, que possui um par de olhos virados directamente para cima e outro directamente
para baixo, acabou por se tornar em pregador de Vieira. Por isso refere: «…ensinando-me que se tenho Fé, e
uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando
que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno». Ora aqui se cumpre a preterição que Vieira referiu
no capítulo II ao dizer «…não falarei hoje em Céu, nem Inferno».
De notar que, em todos os exemplos apresentados, os peixes são sempre mais valorizados do que os
homens.
Para finalizar, agradece o facto deles ajudarem os homens a ir para o Céu, durante o período do jejum na
Quaresma, e «são sustento de pobres», sobretudo as sardinhas.
À medida que vai apresentando os argumentos vai tirando partido do contraste entre o Bem e o Mal,
referindo as palavras de São Basílio, de Cristo, de Moisés, de Aristóteles e São Ambrósio, todas referidas aos
louvores dos peixes.
Por fim, confirma-as com exemplos do Dilúvio, de Santo António, de Jonas e dos animais que se
domesticam.
Assim, temos em esquema as principais virtudes destes quatro peixes:
Cana
na mão
Treme
a cana
Treme
o braço
</l
« o::
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lJ..I
....J
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«
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z
71
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
9
VIRTUDES EFEITOS COMPARAÇÃO RAZÕES
Peixe de
Tobias
• O fel sara a
cegueira
• O coração
afasta os
demónios
• Sarou a cegueira
do pai de Tobias
• Lançou fora os
demónios
• Santo
António
• Abria a boca contra
os hereges
• Alumiava e curava a
cegueira
• Lançava fora os
demónios
Rémora
• Pequena no
corpo
• Grande na
força e no poder
• Pega-se ao leme
de uma nau
• Impede que ela
avance
• Santo
António
• A língua de Santo
António domou as
paixões humanas
Torpedo • Produz energia
• Faz tremer o
braço do pescador
• Impede que o
pesquem
• Santo
António
• Vinte e dois
pescadores tremeram
quando ouviram as
palavras de Santo
António e
converteram-se
Quatro- -Olhos
• Dois olhos
olham para cima
• Dois olhos
olham para
baixo
• Defende-se dos
peixes
• Defende-se das
aves
• Pregador
• O peixe ensinou o
pregador a olhar para
cima (céu) e para
baixo (inferno)
Para que fique claro que todo o sermão é uma alegoria o pregador refere frequentemente os homens,
utilizando:
Articuladores de discurso – «É assim, pois...»
Interrogações retóricas – «Que comparação na grandeza o Elefante com a Balea?»
Anáforas – «Come...»
Apóstrofes – «peixes, de vós...», «olhai, peixes...»
Comparações – «…também os homens se comem vivos, assi como vós»
Metáforas – O verbo comer associado aos homens.
Imagens – «…vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo, e comê-lo.»
Antítese – «…tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.»
Zeugma – «Poderia cuidar, que os peixes irracionais se tinham convertido em homens» – o
sublinhado não aparece nas frases seguintes, aparece subentendido.
Paralelismo – «come-o o Médico, que o curou, ou ajudou a morrer, come-o o sangrador, que lhe tirou
o sangue...»
Enumeração – «Comem-no os herdeiros, comem-no os testamentários, comem-no os legatários,
comem-no os acredores...»
Personificação – Apóstrofe aos peixes.
Gradação – Na enumeração dos animais que vivem próximos dos homens, mas presos.
A distância entre os homens e os animais é marcada pelo advérbio de lugar «lá» e pela adversativa
«mas».
Os pontos fundamentais amplificados ao longo da confirmação são:
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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censura os grandes (colonos)
critica a vaidade dos homens, os parasitas, ambiciosos, hipócritas e traidores
censura as terras de missão onde « ... há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas, e muito
maiores e mais perniciosas traições.»
Capítulo IV
«Antes porém que vos vades, assi como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas
repreensões.»
A primeira e grave condenação que tem a fazer é o facto de se comerem uns aos outros e, sobretudo, os
maiores comerem os mais pequenos.
Surge mais uma vez uma autoridade bíblica: Santo Agostinho. Através dele, Vieira constrói um
paralelismo invertido que se pode ver através do seguinte esquema:
Santo Agostinho
Santo António
pregava
pregava
aos homens
aos peixes
exemplificava nos peixes
exemplificava nos homens
Para comprovar a tese de que os homens se comem uns aos outros, o orador usa uma lógica implacável,
apelando para os conhecimentos dos ouvintes e dando exemplos concretos. Os seus ouvintes sabiam a
verdade do que ele afirmava, conheciam que os peixes se comem uns aos outros, os maiores aos mais
pequenos. Além disso, cita frequentemente a Sagrada Escritura, em que se apoia. Numa apóstrofe aos peixes
refere:
«Olhai, peixes, lá do mar para a aterra»
Matos e sertão Cidade
«Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros…»
«…muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos.»
Vedes
«Todo aquele bulir
todo aquele andar
aquele concorrer
aquele correr e cruzar
aquele subir e descer
aquele centrar e sair.»
«Pois tudo aquilo é
andarem buscando os homens como hão-de comer, e como se hão-de comer»
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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Dá dois exemplos:
UMA PESSOA QUE MORREU
Comem-no os herdeiros
Comem-no os testamentários Comem-no os legatários Comem-no os credores Comem-no os oficiais dos defuntos e dos ausentes
Come-o o advogado
Come-o o sangrador Come-o a mulher Come-o o coveiro Come-o o tocador dos sinos Comem-no os padres
Conclusão
«… enfim, ainda ao pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.»
Note-se o trocadilho que faz com a palavra terra.
Socorrendo-se da Sagrada Escritura dá o exemplo de Job, homem rico que tendo perdido todos os bens
materiais, era desprezado e humilhado por todos. Mas nunca perdeu a Fé dizendo «Deus mo deu, Deus mo
tirou». E Deus devolveu-lhe os seus bens a dobrar.
UM RÉU NO JULGAMENTO Come-o o meirinho Come-o o carcereiro Come-o o escrivão Come-o o solicitador
Come-o o inquiridor Come-o médico Come-o a testemunha Come-o o julgador
Conclusão
«…ainda não está executado nem sentenciado e já está comido.»
Em qualquer um dos casos é evidente o paralelismo anafórico a nível lexical e que nos dá a imagem de
um grande banquete em torno de uma pobre vítima.
No primeiro caso, existe uma forte crítica à exploração dos negócios que envolvem os mortos e, no
segundo, ao sistema judicial.
Deus também se havia queixado de todos aqueles que «comam, traguem e devorem» todo o seu povo. É
nítida a gradação que culmina com «devorant». E comem pessoas como se comessem um simples pedaço de
pão.
Também Santo António refere o pão como um alimento que se come a todo o momento: «Chama-se pão
por se comer com todo o alimento. Figura a caridade, que deve acompanhar todo o alimento da boa acção.
Assim como a mesa sem pão parece denotar miséria, também sem caridade as demais virtudes nada são.
Apenas são perfeitas na caridade». Interpela o auditório de uma forma violenta:
«Parece-vos bem isto, peixes? (...) Pois isto mesmo é o que vós fazeis.»
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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Neste passo Vieira adivinha e admira o espanto do auditório.
Reitera o facto dos maiores comerem os mais pequenos e, mais do que isso, «cardumes inteiros». Está
sem dúvida a referir-se às tribos índias que eram devoradas pelos colonos, desde as mais altas figuras até ao
mais reles funcionário
Faz uma crítica directa àqueles que iam de Portugal para o Brasil para enriquecerem, por isso «comiam»
sucessivamente os índios e quando voltavam ao Reino era a sua vez de serem comidos pelos seus superiores.
Santo Ambrósio faz uma advertência nesse sentido: «Guarde-se o peixe, que persegue o mais fraco para
o comer, não se acha na boca do mais forte, que o engula a ele». E exemplifica:
TUBARÃO > XARÉU > BRAGUE
Vieira adverte para o facto de serem já tantos os perigos que espreitam e os inimigos que se têm, que se
se continuar com esta antropofagia, onde iremos parar?
Tenta adverti-los
Torna-se exortativo: «Cesse, cesse, já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia;
e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos,
muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai
assim e sereis felizes».
Em forma de síntese temos a amplificação do raciocínio: Os homens são como peixes que se comem uns
aos outros, devoram e engolem todo um povo.
Neste momento é claro e directo o ataque feito aos colonos que exploram os índios, de uma forma
completamente desumana: «mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil,
para um só grande.»
A segunda crítica que tem a fazer no geral é a «... tão notável ignorância, e cegueira, que em todas as
viagens experimentam, os que navegam para estas partes». Interpela o auditório: «Dir-me-eis, que o mesmo
fazem os homens. Não vo-lo nego.»
Em Portugal os homens são iscados por um pedaço de pano pertencente à sua Ordem e aí encontram a
sua morte. No Maranhão não há ambição dos hábitos, mas também ali os homens se deixam pescar
facilmente. Coloca uma questão ao auditório:
«Não vedes que contra vós...»
«se emalham e entralham as redes»
«se tecem as nassas»
«trocem as linhas»
«dobram e farpam os anzóis»
«as fisgas e os arpões»
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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«Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê?»
Resposta
«Vem um Mestre de Navio de Portugal com quatro varreduras das lógeas, com quatro panos, e quatro sedas, que já se lhe passou a era...»?» .
«Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra.»
Consequência
«este trabalho de toda a vida»
na roca na cana no engenho no tabacal
«Quem o leva?»
Não compram «coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pagens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias;» Gastam esse dinheiro «No Triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano (...) e lá se vai a vida». .
Não usam o dinheiro do seu trabalho para o seu bem estar, a sua segurança, mas sim em prol da vaidade.
Lança nova questão em auditório:
«Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens, com que vos escusais?» E responde para eles
«Claro está que si: nem vós o podeis negar».
O orador expõe a repreensão e depois comprova-a. Dá o exemplo dos peixes que caem facilmente no
engodo da isca, passa, em seguida, para o exemplo dos homens que enganam os indígenas e para a facilidade
com que estes se deixam enganar. A crítica à exploração dos negros é cerrada e implacável. Conclui,
respondendo à interrogação que fez, afirmando que os peixes são muito cegos e ignorantes e apresenta, em
contraste, o exemplo de Santo António, que não se deixou enganar pela vaidade, abdicou dela, fazendo-se
pobre e simples e, desta forma, pescou muitos homens para a salvação.
Homens Peixes
vaidade ignorância / cegueira
enganados
perdem a vida
De notar a violência da metáfora «dá-lhe uma sacadela e dá-lhe outra, com que cada vez lhe sobe mais o
preço...»
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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Temos, ainda, toda uma série de anáforas, «de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra»,
que nos mostram a monotonia e pobreza em que levam a vida por um simples «trapo». E a enumeração «Não
o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem...».
O fascínio do homem pela vaidade é fortemente criticado por Vieira não só neste texto como no Sermão
do Demónio Mudo, como se pode ver no seguinte excerto:
«Enquanto no mundo não houve mais que Deus e Adão, conservou-se o paraíso. E quando se perderá este
paraíso? Quando nele além de Deus houver Eva… Se a serpente prometesse a Eva: serás como Deus: e o
espelho lhe dissesse: Verás em mim tua formosura; havia Eva de aceitar o partido e oferta do espelho e não a
promessa da serpente... Bem se viu depois que houve espelho, o apetite que herdaram da mesma Eva as
suas filhas».
Também Santo António critica a vaidade no XVI Domingo de Pentecostes: «O homem é levado pelo ar,
quando faz tudo para louvar humano. O ar tem mais raridade do que os demais elementos e, por isso,
significa a vaidade, que é uma mentira ténue e brilhantíssima. Ó mentiroso hipócrita, que pensas de ti
mesmo? Por que razão te vendes aos homens diferente do que a balança da verdade te pesa?»
Capítulo V
Dos peixes, em geral, repudiam-no a ictiofagia e a ignorância e cegueira mas, tal como fizera
anteriormente com os louvores, prossegue:
«Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós». E, desta forma,
apresenta os defeitos dos peixes.
Assim, os roncadores, pegadores, voadores e o polvo vão desfilando e mostrando os seus defeitos. Por
fim, contrapõe-nos a Santo António através de um paralelismo antitético.
O primeiro peixe a ser repreendido é o Roncador cuja imponente voz contrasta com o seu pequeno
tamanho.
Deus também tem um repúdio especial pelos Roncadores.
Tomando o estatuto de narrador, Vieira exemplifica com dois excertos bíblicos:
O que diziam
o que na realidade
faziam Conclusão
SÃO PEDRO
«Tinha roncado, e barbateado (...), que se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer, se fosse necessário»
«... bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer, e negar»
«O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela.»
GOLIAS ««.. era o ronca dos Filisteus.»
«Bastou um pastorzinho com um cajado, e uma funda, para dar com ele em terra.»
«Os arrogantes, e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo.»
«O que torna os homens roncadores?»<
Vieira exemplifica:
«Caifás roncava de saber: Vós não sabeis nada.» e «Pilatos roncava de poder: Desconheceis que tenho o
poder?»
Saber
Poder
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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A aplicação da metáfora roncar mostra bem o quão soberba era a sua atitude. Contrariamente a Caifás e
Pilatos, Santo António detinha o poder e a sabedoria e, calado, deu muito que falar. Estamos perante um
paralelismo antitético.
Para nos apresentar o segundo peixe, Vieira recorre a conhecimento que tem dos homens e constata que
o parasitismo também reina entre os peixes. Temos, assim, o Pegador, aquele que vive colado aos outros
fazendo disso o seu modo de vida.
Vieira não tem dúvidas que os peixes aprenderam isto com os portugueses «porque não parte Vice-Rei ou
governador para as conquistas, que não vá rodeado de Pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá
lhe matem a fome, de que lá não tinham remédio».
Cautela, poderemos chegar sempre perto dos maiores mas ter astúcia suficiente para se despegar a
tempo, senão «morre o Tubarão, e morrem com ele os Pegadores». Não é honesto viver às custas dos outros.
Da Sagrada Escritura tira o exemplo de Herodes que, ao morrer, com ele morrem lodos os que queriam
tirar a vida ao Menino.
Num tom mais agressivo diz «Eis aqui peixezinhos ignorantes, e miseráveis, quão errado, e enganoso é
este modo de vida, que escolhestes». De notar que o diminutivo aparece com sentido pejorativo e os dois
adjectivos que o qualificam também têm o mesmo sentido.
David e Santo António são considerados Pegadores de Deus, no entanto, este fez-se homem e morreu
«para que não morressem todos os que se apegassem a ele. »
Os Voadores também vão ser alvo de crítica. O primeiro parágrafo é quase todo composto por
interpretações aos Voadores e sucessivas questões para os chamar à realidade. Senão vejamos:
DESCRIÇÃO ENTÃO… CONCLUSÃO espinhas escamas barbatanas
… são peixes O seu elemento é a água
O facto de ter umas barbatanas maiores leva-os a utilizá-las como asas e voar, o que lhes traz perigos
dobrados:
Outros peixes matam-nos perigos do mar
Voadores matam-nos perigos
Note-se a aliteração presente em grande
parte deste parágrafo, como por exemplo «Vai o navio
navegando, e o Marinheiro dormindo, e o Voador (...) ao Voador
mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento». Estas aliterações em V remetem-nos para o campo
semântico do voar, vento, vaidade.
No segundo parágrafo o pregador já não ataca tão bruscamente o auditório. Vai, sim, demonstrar como é
enganosa a ambição deste peixe que o pode levar à morte.
fisga anzol
fisga anzol
Do mar
Do ar
fisga anzol
presunção capricho
vaidade
presunção capricho
vaidade
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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O seu elemento natural é a água (segundo), ele quis o ar (terceiro) e se tentar corre o risco de acabar
cozinhado no fogo (quarto). Assim, em vez de correr os riscos de um peixe, corre igualmente os riscos dos
outros elementos e, supostamente, terá uma vida mais curta.
Vieira retoma o seu estatuto de narrador e exemplifica tudo o que dissera anteriormente com a história de
Simão Mago retirada dos Apócrifos.
Através de poderes mágicos, Simão Mago disse ser filho de Deus e marcou um dia em que subiria aos
Céus para se encontrar com o Pai. Bastou uma oração de São Pedro para que a magia desaparecesse e Simão
se visse privado não só das asas para voar como dos pés para andar. E termina este exemplo como um aviso
aos Voadores: «Eis aqui Voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o
seu elemento».
Antes de terminar dá o exemplo de Santo António e, numa apóstrofe ao Santo, diz «Oh alma de António,
que só vós tivestes asas, e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo, e não para cima!» Por fim,
exorta-os: «…imitai o vosso Santo Pregador».
Encadeando o seu discurso, Vieira pega numa das últimas palavras «... no fundo em algüa cova» e inicia
assim novo parágrafo «Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão
polvo ... »
O Polvo vai ser alvo de uma crítica cerrada e implacável. As queixas que Vieira tem do Polvo não são coisa
recente. Já São Basílio e Santo Ambrósio se haviam referido a elas. Os seus defeitos são mais graves, como
se pode ver através do seguinte esquema:
DESCRIÇÃO DO POLVO COMPARAÇÃO capelo raios ausência de ossos (realidade)
monge estrela branduras / mansidão (ilusão)
CONCLUSÃO
«o maior traidor do mar»
PORQUÊ
muda de cor
CONSEQUÊNCIA
engana
inocentes distraídos
No excerto do polvo surgem várias figuras de estilo. São de salientar a adjectivação oxímora, «hipocrisia
santa»; a apóstrofe, «vê, peixe aleivoso e vil»; e a comparação por contraste o Polvo e Judas.
limos = verde areia = branca lodo = pardo pedra = cor da pedra
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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AMPLIFICAÇÃO DO RACIOCÍNIO
JUDAS .
POLVO .
«abraçou a Cristo, mas outros o prenderam»
«é o que abraça, c mais o que prende»
«com os braços fez o sinal»
«o polvo dos próprios braços faz as cordas»
CONCLUSÃO
«Vê, Peixe aleivoso, e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor.»
Apresentado que foi o grande traidor do mar, Vieira vai virar-se para os traidores da terra visando atingir
os moradores do Maranhão e os colonos: «Vejo, Peixes, pelo conhecimento que tendes das terras, em que se
batem os vossos mares, me estais respondendo, e convindo, que também nelas há falsidades, enganos,
fingimentos, embustes, ciladas, e muito maiores e mais perniciosas traições.» São grandes as atrocidades
cometidas contra os índios. Os colonos disfarçados em Bons Samaritanos enganam-nos e tiram-lhe tudo o que
podem, inclusive a própria vida. E continua «...sobre o mesmo sujeito, que defendeis, também podereis
aplicar aos semelhantes (subentenda-se os polvos ou traidores da terra) outra propriedade muito própria;
mas pois vós a calais, eu também a calo», não resiste à preterição e refere «Com grande confusão porém vos
confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois o não posso negar.» É tão evidente a hipocrisia que reina para
aqueles lados que é impossível não falar dela.
Louvando os peixes, Vieira condena os homens que possuem vícios opostos às virtudes daqueles.
«Ah! Fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torcessem haviam de lançar sempre».
Como não poderia deixar de ser, Santo António aparece como antítese do polvo: «ponde os olhos em
António vosso Pregador (...) onde nunca houve dolo, fingimento ou engano.»
ANTES HOJE
Ser
Português
Candura
Sinceridade
Verdade
Além dessas qualidades é necessário
ser-se Santo
Sintetizando as características dos peixes criticados obtemos o seguinte quadro:
PEIXES SIMBOLIZAM CARACTERÍSTICAS DE SANTO ANTÓNIO
Roncadores Soberba e orgulho Era detentor do saber e do poder e não se vangloriava por isso
Pegadores Parasitismo e adulação Pegou-se somente a Cristo
Voadores Ambição e presunção Tinha asas (sabedoria) e não as usou para exibição do seu valor
Polvos Traição Esteve sempre afastado da traição, sempre houve verdade e sinceridade
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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Para finalizar as repreensões o Pregador deseja fazer uma advertência. Uma vez que ocorrem tantos
naufrágios por aquelas paragens não se apoderem dos bens dos náufragos. É evidente que a advertência vai
direitinha para os colonos que roubam tudo o que podem. Tomando um exemplo da Sagrada Escritura e
passando para o estatuto de narrador, conta a história de São Pedro que pescou um peixe que trazia uma
moeda na boca: todos os que se apoderam de bens alheios têm morte curta, foi o que aconteceu com este
peixe. Aquela moeda não lhe pertencia, provinha de algum naufrágio, como tal, o peixe nunca a deveria ter
apanhado. A advertência vai para os homens que tentam enriquecer à custa de naufrágios. Isso pode-lhes
custar não só a morte física e nada pior do «...que morrer com alheio atravessado na garganta». Com morte
espiritual porque nem sempre São Pedro, nem o Sumo Pontífice os podem absolver.
3. PERORAÇAO (Cap. VI)
ANIMAIS TERRESTRES E AVES PEIXES
Sacrificam Sacrificam
sangue respeito
vida reverência
Tendo a perfeita noção que estas últimas palavras são aquelas que ficam mais presentes no espírito dos
ouvintes, o orador pretende com elas mover o auditório. Os dois aspectos que ele pretende salientar são os
seguintes.
Os peixes estão acima dos outros animais. O Levítico exclui-os como objecto de sacrifício. Isto não é
motivo de tristeza pois «Os outros animais ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar
ao sacrifício: os outros sacrifiquem a Deus o sangue, e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito, e a reverência.»
Os homens também chegam mortos ao altar porque vão em pecado mortal. A esse respeito refere Santo
António: «Infeliz aquele que entrar neste banquete sem a veste nupcial da caridade ou da penitência! Aquele
que o recebe indignamente recebe a condenação. Que sociedade há entre luz e trevas? Entre traidor Judas e o
Salvador? O animal, o homem bestial, se tocar no Corpo de Cristo será condenado». (Sermão da Ceia do
Senhor) Assim, Deus não os quer. Ele quer sim que eles sigam o exemplo dos peixes que mantêm respeito e
obediência a Deus.
Os peixes estão acima do pregador e este sente um pouco de inveja pois apresenta um retrato dele
próprio como pecador:
«Eu falo»
«eu lembro-me»
«eu discorro»
«eu quero»
«mas vós não ofendeis a Deus com»
«as palavras»
«a memória»
«o entendimento»
«a vontade»
As repetições põem em realce o paralelismo entre o orador e os peixes. As gradações intensificam o
sentido.
in Fernanda Carrilho, Sermão de Sto. António aos Peixes de Padre António Vieira – Análise da Obra. Texto Editora
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Vieira nunca se apresenta como o modelo acabado de um pregador. Ele tenta sê-lo mas sente que ainda
tem muito a aprender para alcançar esse mérito. Isto di-lo claramente no Vol. I dos Sermões:
«Quero começar pregando-me a mi. A mi será, e também a nós: a mi, para aprender a pregar, a nós,
para que aprendais a ouvir».
Antes de terminar, pede aos peixes para louvarem a Deus porque:
«Vos criou em tanto número»
«Vos distinguiu em tantas espécies»
«Vos vestiu de tanta variedade e formosura»
«Vos habilitou de todos os instrumentos necessários para a vida»
«Vos deu um elemento tão largo e tão puro»
«Chamou para si aqueles que connosco e de vós viviam»
«Vos sustenta» -
«Vos conserva»
«Vos multiplica»
«Servindo e sustentando ao homem.»
Termina com o hino Benedicite, que dá por encerrado o Sermão, com um tom festivo à comemoração de
Santo António, cuja festa se celebrava.