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MARIA DE FÁTIMA BONIFÁCIO ANTÓNIO BARRETO POLÍTICA E PENSAMENTO

ANTÓNIO BARRETO A PRESENTAÇÃO Retirou-se muito cedo da vida política activa (1991), com 49 anos. Chegou talvez alto demais cedo demais: aos 34 anos já era ministro (e antes disso

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M A R I A D E F Á T I M A B O N I F Á C I O

A N T Ó N I O B A R R E T O

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Nota da Autora

APRESENTAÇÃO

PRIMEIRA PARTE – A POLÍTICA COMO ACÇÃO

I. Crescer e viver em Vila Real nos anos 50II. Coimbra: estúrdia e iniciação políticaIII. Genève A formação do intelectual e do militante A demissão do PCPIV. O intelectual revolucionárioV. Tempo de hesitaçãoVI. Tempo de consolidaçãoVII. Abril de 1974VIII. Novembro de 1975IX. ReapreciaçõesX. No VI Governo ProvisórioXI. No I Governo ConstitucionalXII. Ministro da Agricultura e Pescas A Reforma Agrária A Lei Barreto

ÍNDICE

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XIII. Na encruzilhada O «Manifesto Reformador» e suas sequelasXIV. António Barreto, Mário Soares e o Partido Socialista XV. O regresso O MASP – Movimento de Apoio Soares à PresidênciaXVI. Sobre um plano inclinado

EpílogoXVII. Balanço Um intelectual na política “De passagem” A acção política, a esquerda, a liberdade A acção política A esquerda A liberdade

SEGUNDA PARTE – A POLÍTICA COMO REFLEXÃO

XVIII. Três vultos: Salazar, Cunhal, Soares Salazar Cunhal SoaresXIX. Duas décadas de Opinião (1991-2009) XX. A ilusão da eternidade Jornalismo: um “suicídio” “Os meus livros” A ilusão da eternidade

Portugal. Um Retrato Social, et al. Televisão, comunicação social e democraciaXXII. Academia Genève Lisboa A nova (velha) Faculdade de Direito Política e academia

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XXIII. Ontem, hoje e amanhã Portugal: erros nossos ou má fortuna? Revisão constitucional e reforma do Estado Sistema político e partidos Portugal, a Europa e o MundoXXIV. E agora? A Civilização Ocidental Globalização e «pensamento único» Estado e poder político Fim das ‘grandes ideologias’? O valor da liberdade

BIOBIBLIOGRAFIA DE ANTÓNIO BARRETO

ÍNDICE ONOMÁSTICO

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NOTA DA AUTORA

Sobre o código de utilização das aspas

• As aspas altas, “ ”, são exclusivamente reservadas a António Barreto. Citações dele, sejam de frases compridas ou curtas ou de simples expressões de uma palavra só, são sempre colocadas entre duas aspas: “……”

• Quando, no decurso de uma citação de A.B., ocorrem frases ou simples expressões de terceiros – que ele próprio cita –, estas são colocadas entre outro tipo de aspas, que as diferencia, no caso as duplas baixas: « ». Ou seja: numa citação de terceiros por A.B. no meio do que já é uma citação dele (feita por mim), a de terceiros é assinalada da forma seguinte: “……«……»……”

• As aspas de tipo apóstrofo, ‘…’, são exclusivamente reservadas para mim, para palavras ou expressões minhas que não podem ser con-fundidas nem com o que é de A.B., nem com o que é de terceiros citados por A.B. dentro do seu próprio discurso.

• Isto vale também para certos casos em que o próprio A.B. cita ter-ceiros em discurso directo: “Soares entrou na sala: «Você vai para ministro do Comércio.»” Ou para certos (poucos) casos em que eu pretendo sublinhar a assertividade com que A.B. responde a uma pergunta minha ou reage a um comentário meu, como por exem-plo: A Presidência da República não lhe interessa. “«Não, não.»”

• Finalmente, as aspas baixas, « », são mais ‘polivalentes’, não es-tão exclusivamente reservadas às aspas dentro de aspas, aplico-as

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em geral a expressões convencionais ou à designação de certas en-tidades, instituições ou fenómenos, ou a citações feitas por mim de outros autores ou testemunhos que não António Barreto, etc., etc.

• Em suma: pretende-se que não haja qualquer confusão entre ‘o que é meu’, o que “é de António Barreto”, e o que «é de terceiros citados por A.B.» ou por mim própria.

Maria de Fátima Bonifácio

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Hannah Arendt

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APRESENTAÇÃO

Este não é um «livro autorizado». Nasceu da minha curiosidade -

das, e com quem mantenho há muitos anos uma relação de grande amizade. O que esta amizade me foi dando a conhecer permitiu-me ir reunindo alguns elementos que podem explicar um paradoxo que suscita grande perplexidade em muita gente que tem acompanhado a carreira pública de António Barreto como político, como intelec-tual, como opinion leader, como académico e sociólogo.

Ultimamente, sobretudo na televisão, é apresentado como um «senador do regime»: alguém que vem de longe, que se destacou na fundação da Democracia, que derrotou o comunismo no Alentejo e com isso ajudou a salvar «Abril»; que participou durante muito tempo nas atribulações por que a democracia passou, que viu por cá muita coisa e se manteve sempre atento às mudanças que se operavam no mundo. Ao longo de anos e décadas, foi acumulando uma extraor-dinária experiência e uma invulgar sabedoria. António Barreto conti-nua até hoje a impor-se no palco nacional por mérito próprio – pela sua independência tranquila, a respeitabilidade da sua pessoa, a au-toridade das suas palavras esclarecedoras, o seu juízo sólido, madu-ro, equilibrado, quase sempre dissonante do mainstream ou das «ideias recebidas»; quase sempre crítico do poder.

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Retirou-se muito cedo da vida política activa (1991), com 49 anos. Chegou talvez alto demais cedo demais: aos 34 anos já era ministro (e antes disso já fora secretário de Estado). Nessa época, considerava--se que a idade madura chegava bem mais tarde do que hoje em dia. Esta precocidade, porém, não desfaz o paradoxo que tanta gente de há muito estranha. António Barreto tinha tudo para ser tudo o que há para ser em Portugal. E não foi. Porquê? Este livro pretende for-necer uma explicação satisfatória para um fenómeno que permanece singular, misterioso, intrigante.

Este livro apresenta o resultado das minhas ‘indagações’ sobre An-tónio Barreto: como se fez a si mesmo, como foi fazendo a sua vida, como foi construindo o pensamento; que obstáculos atrapalharam o seu percurso, que oportunidades desperdiçou, que boas estrelas en-controu. Que balanço faz ele próprio – ou pode o público fazer –,

aparição neste mundo. Em suma, o que deixa para a História – a per-gunta com que todo o homem público acaba sempre por se defrontar.

As fontes que usei são de várias espécies, e nem todas seriam aceites como válidas num trabalho académico – que este livro não é. Desde logo não oferece o aparelho crítico exigido a um trabalho académico. Mas é uma procura intelectualmente íntegra de verdade; um esforço honesto de objectividade; uma busca empenhada de imparcialidade. A minha memória pessoal de incontáveis horas de conversa e conví-vio é uma das minhas fontes, controversa mas inevitável, que só po-deria eliminar se tivesse o condão de magicamente varrer da cabeça tudo o que conheço de António Barreto. Este conhecimento nada tem de organizado e menos ainda de sistemático; não é susceptível

ingrediente quase inconsciente do meu pensamento, mas está ‘lá’, e

Não faltam, porém, fontes convencionais: livros, artigos, ensaios, entrevistas. Milhares de páginas publicadas que eu percorri, umas pela primeira vez, outras já lidas e meio esquecidas. Precisava de mais. Pre-cisava de mais petite histoire, de faits-divers, de detalhes factuais sobre a sua vida pública e política; precisava de saber a opinião do António sobre aqueles com quem se cruzou e colaborou; precisava de saber

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a razão exacta das suas opções fundamentais; precisava de conhecer o seu pensamento acerca dos problemas portugueses recentes; pre-cisava de saber como ele avalia o nosso País e a nossa democracia, de me inteirar sobre como ele olha o mundo contemporâneo e os futuros possíveis (e impossíveis) que entrevê. Para saber estas coisas e outras mais, precisei de entrevistas gravadas que foram transcritas para Word.1

Ordenada a matéria, comecei a escrever, mas não sob a forma de uma montagem de citações. Comecei a escrever com total e absoluta liberdade. Sob este aspecto, senti-me sempre como se estivesse a es-crever sobre Rodrigo, Costa Cabral, Fontes ou Saldanha. E tão livre me senti que em muitas passagens do meu texto, ao mesmo tempo

-dão, dei comigo a desenvolver e a prolongar o seu pensamento, como se estivesse a dialogar com ele em silêncio. Atrevi-me até, aqui e ali, a discordar e a explicar a minha discordância, ou a minha dúvida; e um caso ou outro houve em que me afoitei como uma ‘intrusa’. Porém, nunca me permiti, nem remotamente, fazer de António Barreto um

-António Barreto: Política e Pensamento. Se por

vezes me ‘meto na conversa’, é porque era impossível eliminar da es-crita tantos anos de convivência e conhecimento mútuo.

A bem da clareza, devo acrescentar que, depois do livro acabado, dei-lho a ler. Corrigiu algumas datas, nomes e locais, e deu sinais de que no essencial se revia no que eu escrevera, com o que me dei por muito satisfeita. Não fez sugestões, não fez reparos, não fez críticas, nem insinuações. Foi então que verdadeiramente percebi quanto era autêntico, profundo e incondicional o respeito de António Barreto pela liberdade dos outros.

Maria de Fátima Bonifácio15 de Fevereiro de 2016

1 Dezassete entrevistas, realizadas entre 1 de Junho de 2013 e 30 de Setembro de 2015, transcritas para Word e disponibilizadas ao público no Arquivo de História Social do Insti-tuto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa a partir de 1 de Janeiro de 2017.

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I . Crescer e viver em Vila Real nos anos

António Miguel de Morais Barreto nasceu no Porto em 30 de Outubro de 1942. Media 62 centímetros e pesava 6 quilos. Pouco mais de dois anos depois, em 1945, é levado para Vila Real, onde o pai, Manuel da Costa Pinto Barreto, engenheiro civil, virá a ser alto funcionário do Ministério das Obras Públicas, responsável pela Direc-ção-Geral de Urbanização, que abrangia todo o distrito. Ali se criou e cresceu, numa família profundamente católica (o pai era quase de comunhão diária), com ascendência em grande parte monárquica e uma minoria republicana, mas tradicionalmente de direita. “Nunca houve na família gente de esquerda.”2 Havia, para trás, admiradores de Paiva Couceiro. Um tio-avô participara nas ‘incursões monárqui-cas’ de 1911 e tudo perdera em consequência da vitória republicana; na mesma altura, um outro tio-avô desfraldou no Porto uma bandei-ra da monarquia na Torre dos Clérigos, e foi preso; outro, ainda, im-plicado na tentativa de restauração monárquica, escondera-se numa pipa para escapar a represálias.

Histórias que corriam na família e vieram até à geração de Antó-nio. António teve uma educação religiosa, militou na Acção Cató-lica e chegou a presidente da JEC (Juventude Escolar Católica) aos 14 anos. Em casa dos pais e dos avós de Vila Real e da Régua havia

2 António Barreto, entrevista, 1.6.2013. Daqui em diante, referido simplesmente por AB.

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biblioteca, e tanto o pai como a mãe eram pessoas cultas. Mas com

estudos superiores a todos eles ou alimentar sonhos de um futuro grandioso. Imerso numa bisonha cidade de província, António, na adolescência, tinha à sua frente um destino banal. Actualmente, apa-rece colocado em lugar cimeiro na lista dos 21 «homens ilustres» de Vila Real destacados pela Wikipedia, dada a sua notoriedade nacional.

Vila Real era capital do distrito do mesmo nome e da antiga Provín-cia de Trás-os-Montes. Mantinha com Chaves, ligeiramente mais desen-

profundo, e com a primeira delas até agressões físicas por ocasião de

3. Vila Real orgu-lhava-se da sua ancestralidade. Nascera havia 700 anos, então um peque-no agregado localizado num planalto onde convergem os rios Corgo e Cabril. No tempo em que António por lá crescia, tinha à volta de seis a oito mil habitantes e pouca ou nenhuma indústria.

Vivia-se sobretudo de empregos no funcionalismo do Estado ou do Município: no Governo Civil, na Junta Distrital, na própria Au-tarquia, nas Direcções de Finanças, de Urbanização, de Obras Públi-cas, no Tribunal; em 1922, a cidade foi elevada a Diocese. Vivia-se um pouco da agricultura – só algumas freguesias do concelho de Vila Real faziam parte da região demarcada do Douro – e também do co-mércio. Para além dos (poucos) cafés – Pastelaria Gomes, Brasileira, Pompeia, Excelsior – e dos antigos ‘lugares’ e mercearias, existiam umas quantas lojas de roupa, algumas de ‘moda’, com destaque para a Casa Castelo e a Garota das Meias. Tudo modesto e provinciano. Mas tinha Liceu Nacional, o que Chaves não podia ostentar; um Li-ceu “confortável”, que já dispunha de aquecimento central. Os ra-pazes e as (poucas) raparigas de Chaves ou da Régua, bem como de Alijó, Murça e outras vilas, tinham de se deslocar para Vila Real se quisessem prosseguir estudos secundários. Vila Real tinha ainda o

3 AB, entrevista, 1.6.2013.

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privilégio de acolher uma delegação do Banco de Portugal. O que

Era uma cidade de pequenos e médios funcionários públicos, algu-

desprovida de “grande aristocracia local”, mal-grado os pergaminhos

muito vaguíssimos…”. A “grande aristocracia da Casa de Mateus”, representada pelos Mangualdes, e mais um nome ou dois relacionados com eles, “não ligava nada a Vila Real”4. Oriundos de Lisboa, Porto e Mangualde, vivendo há cem anos fechados no recinto do grande palácio semimanuelino de Vila Real e barroco de Mateus, nem sequer se davam à maçada de passar pela capital transmontana.

Na infância, António brincava, como todos os meninos; à medida que cresceu, começou “a ler livros e a fazer disparates, como todas as juventudes e todas as infâncias”. À medida que cresceu, também, foi-se apercebendo das limitações de que Vila Real sofria. Era uma pequena cidade fechada e isolada do Mundo: faltavam jornais e ha-via apenas dois cinemas. O Comércio do Porto chegava a meio da tar-de; o Diário de Notícias, com um ou dois dias de atraso. Os jornais locais eram indigentes: a Voz de Trás-os-Montes (da Igreja Católica) e a Ordem Nova (órgão da União Nacional) “não prestavam para nada”5. Os (poucos) jornais nacionais eram lidos no Clube de Vila Real, onde advogados e notários jogavam às cartas e comentavam

não se passava nada, o marasmo quotidiano só era sobressaltado pela arribação de um director-geral, o que na altura era “muito mais importante” do que é hoje a visita de um ministro – “nem se com-para”. Para receber tão augusta personagem, a cidade enchia-se de bandeiras, pessoas, soldados fardados, bombeiros. O pai de António preparava-se durante semanas para a vinda do ministro, que uma vez de dois em dois anos “passava como um relâmpago” a caminho de uma qualquer inauguração.

4 AB, entrevista, 24.10.2014.5 AB, entrevista, 24.10.2014. Havia em Portugal alguns jornais locais razoáveis, como

em Braga e no Funchal, e o célebre Jornal do Fundão.

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um singular ‘fenómeno’ que nada fazia prever: o famoso «circuito de Vila Real», uma corrida anual de automóveis que se estreou em 1931, patrocinada pelo representante local da Ford e do Automóvel Clu-be de Portugal, com o apoio do presidente da Autarquia. Na edição de 1936 já captou a participação de pilotos estrangeiros. O primeiro automóvel fora lá avistado em 1902, suscitando logo um especial en-tusiasmo e curiosidade. O «circuito», com impacto nacional e inter-

a Segunda Guerra, recomeçou em 1948 e viveu nas décadas de 50 e 60 o seu período áureo, marcado pela presença regular de grandes nomes do automobilismo mundial. Ainda hoje se não compreende totalmente esta devoção dos vila-realenses pelo automóvel e pelas corridas, nem se descortinou a chave exacta do êxito duradoiro que tiveram. As edições do «circuito» faziam vibrar a cidade onde duran-te o resto do ano quase nada mexia.

António Barreto recorda a sucessão monótona dos dias, meses e anos. Uma “pequena burguesia ridícula”, de ar apessoado e vestuário provinciano, toma o chá às mesmas horas, café às mesmas horas, pas-seia pelos mesmos sítios nos mesmos dias, fala dos mesmos assuntos, comenta os mesmos casos e repete as mesmas intrigas. De Verão, o passeio nocturno pela Av. Carvalho Araújo era obrigatório. Subia--se e descia-se pelos lados dos três canteiros centrais da artéria, com belas acácias a toda a volta, convertida numa espécie de ‘picadeiro’ onde sobretudo no Verão a sociedade à noite se mostrava, iluminada por bonitos candeeiros de ferro. Lá, no coração de Vila Real, erguia--se a estátua do marinheiro José Botelho Carvalho Araújo6, em pose heróica, tendo a seus pés dois homens em luta, um português e um alemão. A rapaziada da cidade, incluindo os Barretos, aparecia por

serem mostradas pelos pais. Na fase intermédia entre a adolescência e a juventude, era comum a “malta” escapulir-se do passeio com os

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de Outubro de 1918, ao comando de um caça-minas, protegeu o vapor São Miguel de ser afundado por um submarino alemão. Foi deputado à Assembleia Constituinte da I Repú-blica pelo círculo de Vila Real.

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pais para “fazer diabruras”, cuja atracção ainda superava os encantos das ‘burguesinhas’ levadas pelos braços paternos.

Em casa, no meio da galfarragem dos Barretos, não era fácil im-por disciplina. “A primeira grande, grande, grande característica [dos pais] era serem religiosos.”7 O pai levantava-se diariamente às sete horas, ia à missa e comungava. Até aos 16 anos, quando António “se deixou dessas coisas”, todos os dias rezavam o terço juntos, antes do jantar, chamados por “uns sininhos” que a mãe accionava. Lá vinha a ‘trupe’ do andar de cima, sussurrando rabugices. O ritual durava uns 15 a 20 minutos – “parecia uma eternidade”. Entre cada um dos cinco mistérios, gozosos e dolorosos, em que se dividia o terço, o

A partir dos 16 anos, António passou a faltar, e outros irmãos co-meçaram abertamente a “resmungar”. Acabaram as sessões colecti-vas de oração obrigatória.

A mãe de António, Maria do Céu de Morais Taborda, provinha -

nada. Do seu lado constam dois viscondes, um de Moraes, outro de Gouvinhas. Do lado do pai, os antepassados plebeus eram todavia mais importantes: proprietários de vinho do Porto e de terras; dois advogados e um médico formados em meados do século XIX; donos de um palacete de família no centro da Régua, que acolhe hoje, após o devido restauro, a Biblioteca Municipal; três presidentes da Câmara, o mais novo dos quais recebe Paiva Couceiro e dois dias depois vai preso… É porém do lado da mãe que provém a história de família mais excêntrica e mais trágica. O avô materno de António, um Ta-

-delidades conjugais. Um dia apresentou-se à porta de casa da mulher legítima e implorou desculpa. Como os rogos não a demovessem, garantiu-lhe que se mataria com um tiro de pistola, ali à frente dela, caso persistisse em recusar recebê-lo. A senhora persistiu. Ele puxou de um revólver e matou-se mesmo, diante dela, à soleira da porta.

Maria do Céu parece que era dotada de uma personalidade mais forte do que o pai, com quem, apesar de muito crente, não partilhava

7 AB, entrevista, 24.10.2014.

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o pendor espiritualista e quase místico que fazia dele uma pessoa mais introvertida e menos assertiva. Maria do Céu andou num colégio de Doroteias nas imediações do Porto, ainda hoje o conhecido Colégio do Sardão. Não obteve um grau académico formal, mas sabia inglês,

-soas naquela altura”, especialmente do sexo feminino. “Era ela que se ocupava de nós todos os dias, a partir das cinco horas da tarde e so-bretudo depois do jantar”8, principalmente fora dos meses de Verão,

-vam” o francês. Os Barretos, uns melhores do que outros e consoan-te as fases, em geral tinham no Liceu “reputação de bons alunos”. Os sete Barretos, que todas as manhãs saíam ao mesmo tempo de uma casa onde se consumiam diariamente 64 pães, davam nas vistas.

Graças à mãe, António cedo começou a apreciar música clássi-ca, que escutava pela rádio. O pick up só chegou lá a casa “já muito tarde”, uma vez em que o pai, que não gostava de nenhuma espécie de música, “perdeu a cabeça” e ofereceu à mulher um aparelho des-ses equipado com um “altifalantezito”. As audições caseiras eram completadas pelas iniciativas da «Pró-Arte», “uma organização na-cional semiprivada” destinada aos “burguesotes” (em que António Barreto se inclui), que promovia a realização de concertos em todo o País. Os que chegavam a Vila Real tinham lugar no ginásio do Li-ceu. Concertos de câmara, por vezes apenas solos de piano ou duos; trios de piano, violino e violoncelo eram excepcionais e considerados um maná. Apesar desta iniciação necessariamente modesta, António Barreto ainda hoje lamenta que os pais não lhe tivessem dado uma educação musical a sério quando em Vila Real já existia uma profes-sora que dava aulas a três alunos em simultâneo, o que saía mais ba-rato. Todavia, no Liceu não passava nos testes de solfejo por “falta de ouvido”… Em casa, não se investiu “fortemente” na educação musical, ao contrário do que acontecia com a literatura e a pintura, esta apoiada nas reproduções dos livros, se bem que a preto e branco. Mais tarde, António começou a ver a cores os quadros de Leonardo

8 AB, entrevista, 24.10.2014.

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-vilhado. Foi então que “alguma coisa começou a acordar em mim”. Ainda hoje é capaz de se deslocar a uma cidade estrangeira proposi-tadamente para ver certos quadros.

Portanto, alguma, mas pouca música. Adolescente, aparentando pela estatura mais idade do que tinha, começou a acompanhar a mãe

de John Ford, mas só 20 anos mais tarde é que percebeu que Ford “era outra coisa… naquela altura era ”. Nos cinemas, que eram dois, existia “interclassismo”, mas era muito relativo. Havia nada me-nos do que três plateias, um balcão e até camarotes, que eram o mais chique; a primeira plateia custava 7 escudos, a terceira 25 tostões. Para esta ia a “ralé”: “putas, gajos doentes, pobres, mendigos, estava tudo ali dentro”9

etária. Antes disso, porém, ainda viu o Rebecca de Alfred Hitchcock, uma adaptação da Rebecca -me que viu na vida e que “ainda hoje mete medo”. E viu igualmente E Deus Criou a Mulher, com a Brigitte Bardot… Mas depois que os li-

maiores de 18 anos, idade que evidentemente não tinha, mal-grado a sua altura. Além da regulação estatal, o cinema era também sujeito

-pressas e enviadas por correio para todo o País, se pronunciava sobre

-nação” dos que considerava nefastos à formação dos jovens. Os pais

-tava, uma a uma, o seu index

Havia um ou dois espectáculos de música popular por ano. Teatro não existia. António fez uns dois entremezes em sete anos de Liceu. Graças a um professor entusiasta de teatro, fazia-se muito de vez em quando “umas coisas mais ou menos ridículas”. António Barre-to lembra-se da peça O Infante, em que o irmão Nuno actuava como Infante D. Henrique e ele próprio como o cosmógrafo. Talvez fosse

9 AB, entrevista, 24.10.2014.

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uma antecipação da vocação dramática desenvolvida mais tarde em Coimbra, quando foi actor e director do CITAC. Os entremezes cir-culavam depois por algumas terras de província, motivo de “grande excitação, mas eram coisas muito, muito pequeninas”. O circo, que

-rico”, “nem lá vivendo eu ia àquilo”; as trapezistas “tinham meias meio rotas”. O «circuito de Vila Real», produto de uma devoção au-tomobilística de que nem António Barreto conhece a nascente exac-ta (“uma coisa que eu nunca percebi porquê”10), era uma animação anual, um “grande momento”. Foi numa dessas ocasiões que António viu Stirling Moss em carne e osso, o celebérrimo vencedor britânico de 16 grandes prémios de Fórmula 1. O cineasta Manoel de Oliveira, bem como o irmão Casimiro de Oliveira, D. Francisco Mascarenhas,

entre famosas vedetas estrangeiras. De repente e por uns dias, Vila Real parecia estar no centro do mundo. Depois, mergulhava na ha-bitual modorra.

Em casa dos Barretos dava-se uma espécie de “ruptura epistemo-lógica” entre os três irmãos mais velhos, que a partir de certa idade tiveram chave de casa ao mesmo tempo, e os restantes quatro que vieram a seguir. Davam-se geralmente bem, apesar de uns “murros” ocasionais, que não deixavam cicatrizes. Os mais velhos, mal-grado a “ruptura epistemológica” que lhes dera acesso ao cobiçado privi-légio da chave de casa, nem por isso se coibiam de fazer “parvoíces” próprias de garotos. Um dia, o António e o Nuno meteram-se no quarto de banho com os mais novos, o mais pequenino com uns três anos. Aplicaram-lhes na cara sabão de barba em quantidades abundantes e raparam-nos com uma lâmina. Correu sangue, deram--se gritos e ouviu-se choro. A mãe acorreu, espavorida. Chamado pelo telefone, o pai veio a casa para lhes “bater” – “bofetadas e coisas assim”. Só o pai, baixo mas revestido da autoridade patriar-

-deram um amigo na cave com cordas, espalharam carqueja à volta

10 Barreto admite que ela se deva à iniciativa de um tal Sr. Barriga, um milionário local dos anos 30, apaixonado por automóveis.

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e atearam fogo. A paródia só acabou quando a mãe, no primeiro andar, cheirou o fumo. O Navega, já lambido nas pernas pelas cha-mas, teve de ser levado para o hospital. António Barreto atribui es-tes e outros divertimentos bárbaros a “um misto de ruralidade e de selvajaria de homens. Só homens. Acho que, se houvesse raparigas, punham um bocado de calma nisto”. Um dia, no quintal, Fernando, o quarto mais velho, ameaçou cortar-lhe “a pila” enquanto António urinava. Tendo-a este, depois de ameaçar matá-lo, recolhido por pre-

bocado com uma tesoura, e lá foi António parar ao hospital. “Os excessos eram muitos.”11 -líssimo”. Isto era “ser rural, pré-civilização, transmontano […]. Esta mistura toda e o facto de sermos homens”. A mãe era a única pre-sença feminina numa casa de oito homens.

“Era, era a nossa princesa. O meu pai muitas vezes... o meu pai anos depois disse-me «eu não pude deixar de ter um bocado de ciú-mes da vossa mãe». A nossa mãe era alta, grande, bonita, inteligen-te, mais esperta do que eu, mais extrovertida, tinha uma gargalhada bonita, grande [media 1,70 m], interessava-se por cinema, televisão [depois que esta lá chegou], lia livros e romances... E o meu pai era um chato e lia Salmos. Lia Salmos a duas vozes. Chegava a casa e ele chamava aquilo «vou carregar a bateria»”: metia-se no quarto, de porta fechada à chave. “Nós íamos pela varanda para espreitar pela janela o que é que ele estava a fazer. Estava em cuecas, na cama, deitadinho, a ler o Novidades, um jornal de direita e católico, e jornais religiosos

-

viver numa casa que está sempre a fazer barulho.”12 António Barreto só muito mais tarde, depois de regressar da Suíça,

“percebeu que o pai era mais interessante, mais inteligente do que -

logo jesuíta que procurou superar a antinomia entre a Fé e a Ciência, mal visto pela ortodoxia romana – e de romancistas “que tinham um

11 AB, entrevista, 24.10.2014.12 AB, entrevista, 24.10.2014.

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grãozinho” ou mesmo “um grão”, como Chesterton, Greene, Mau-

António Barreto achara na sua juventude de Vila Real (e Coimbra). Aliás, o grave e circunspecto Eng.º Manuel da Costa Pinto Barreto fora, antes de casar, um dos representantes em Vila Real do nacio-nal-sindicalista Rolão Preto; “deu o dinheiro todo para a causa”, que pelos vistos o atraía mais do que o soturno salazarismo, a que “nun-ca aderiu”, ao contrário do “penetralho”, que renegou os «camisas azuis» e se converteu ao Estado Novo. António Barreto nunca per-

que sobraram “lá em casa” uma bandeira e um bivaque, nem as suas simpatias “falangistas” sem nunca ter ido a Espanha, um alinhamen-to ideológico de que não havia tradição na família, apesar de “um ou dois tios, um tio-avô e um avô que foram muito de direita”. A ha-ver tradição, era “uma tradição monárquica e direitista”. Depois de a mãe morrer, António Barreto foi passar uma semana ao mosteiro de Singeverga, onde o pai se recolhera por algum tempo. Nem aí, ao longo de uma entrevista pormenorizada de muitas horas, percebeu exactamente as razões daquela extravagância ideológica, num homem que, segundo uma lenda familiar nunca comprovada nem desmenti-da, pensou em entrar para frade de um mosteiro dominicano numa

Apesar de católicos conservadores e monárquicos – iam ao beija--mão do pretendente, D. Duarte Nuno, quando este, de um em um ou dois em dois anos estanciava em Mateus –, os pais de António

estes liam, como os pais não ignoravam, Eça de Queiroz, Victor Hugo, Honoré de Balzac, obras que em princípio não se deviam co-nhecer. “Nunca houve represálias.” Os três mais velhos, com chave da porta, tinham autorização para sair de casa à noite, fumar, beber um copo. Os irmãos participavam anualmente no «1.º de Dezem-bro», umas festas da Academia de Vila Real – que era em suma o Li-ceu – que não passavam de uma réplica do que se fazia em Coimbra. Durante um mês, vários acontecimentos, como um cortejo nocturno com archotes e cartazes atrevidos, denotavam já uma relativa politi-zação das festividades: “graçolas” contra as Autoridades (governador

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civil, presidente da câmara, director-geral). De ano para ano, o atre-vimento aumentava. António, com 16 anos, era um dos ‘intelectuais’ que escreviam para o jornal anual 1.º de Dezembro “umas coisinhas já a puxar” sobre o futuro da juventude e a sorte dos pobres. Pela mesma altura, ele e alguns colegas fundaram um “clube” no aparta-mento emprestado por uma tia de um deles. No “clube” recebiam-se cartas e jornais, existiam um bar e móveis emprestados pelas famí-lias, que “não se importavam”. Ao cabo de cinco ou seis meses de actividade, porém, o reitor “meteu-se” e o Governo Civil “proibiu e foram todos despejados”. A experiência foi frutuosa: “Ninguém mais foi de direita.”13

chama ‘consciência política’: movia-os apenas a rejeição das Autori-dades, propensão para ser “do contra”, mais ou menos ‘contra tudo’. António começou a revelar uma especial tendência para a rebeldia.

A pouco e pouco, ia descobrindo que havia ‘outro mundo’ para além dos acanhados limites de Vila Real, onde imperava um provin-cianismo tacanho que veio a tornar-se irrespirável. Sobretudo, não havia “raparigas”, havia meninas que assomavam timidamente à ja-nela para logo se retirarem, chamadas por mães vigilantes; as poucas que frequentavam o Liceu não se prestavam a iniciações sexuais (o que veio a acontecer com uma criada lá de casa, conforme os costu-mes da época). Para um rapagão de 16 anos, em Vila Real “esta par-te é muito frustre”: “Não há bailes, não há beijos, não há cama, não há sexo.” Os namoros eram acidentados, duravam poucos dias, “os pais metiam-se logo”, tanto os do rapaz como os da rapariga. “Essa parte foi muito, muito frustre.”14

de 17, António foi passar dois meses a Inglaterra. Foi uma experiên-cia “decisiva”. Como não tinha dinheiro, empregou-se num campo de trabalho, onde apanhava morangos e batatas e plantava couves. Liderou logo uma greve por salário mais alto, sendo transferido, mais 30 ou 40 grevistas, para outro campo em que pagavam ainda menos. “Começámos a rosnar.” Considerado o “mentor” da ‘fronda’, não o

13 AB, entrevista, 1.6.2013.14 AB, entrevista, 24.10.2014.

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quiseram mais a trabalhar, e acabou numa fábrica de congelação de legumes. “Não tive qualquer iniciação política formal.”15 Mas falou com muita gente, frequentava pubs onde lia jornais e se exprimia li-

de liberdade e progresso”. Não a União Soviética, que “não o inte-ressava”. A URSS evocava-lhe a sua “primeira recordação política”, a invasão da Hungria em 56, cá difundida pelos jornais, embora com atraso, e pela Emissora Nacional, que fez “uma campanha fortíssi-ma anticomunista”. António em nada era atraído pelo comunismo: “eu era anticomunista e portanto vibrei com a malta revolucionária. Budapeste foi o baptismo político”. Mas foi uma exaltação passa-geira, ao contrário da impressão deixada pelo ‘fenómeno’ Humberto Delgado, em 1958.

Ao contrário também do que aconteceria com Cuba e Fidel Castro, que em Janeiro-Fevereiro de 1959, depois de anos de guerrilha, expul-sou o ditador Fulgêncio Batista e se tornou primeiro-ministro de um governo comunista. Apesar da vitória dos comunistas, uma nuance em que António talvez nem tenha reparado, isto sim, parecia-lhe que era

associava o termo a acção e movimento, a transgressão, a contestação e rebeldia contra as regras e os tabus impostos pela ordem estabeleci-da. Já pensava em Coimbra, que só conhecia de ouvir falar. Bastou para que António fosse formando a imagem do que era a deliciosa liberti-nagem estudantil. Também “queria ir às putas, queria jogar às cartas, queria fumar [e beber], queria livros e jornais proibidos, queria Cuba e Delgado, queria tudo o que não era permitido no nosso regime”16. Com tais ideias, sentimentos e inspirações, as notas no Liceu vieram por aí abaixo, ao mesmo tempo que o comportamento se degradou com igual rapidez. Chegou a “apalpar o rabo” à professora de alemão. Entre indisciplina e “notas péssimas”, começou a ter aulas em casa, acabando a ir a exame pelo Liceu apenas em três cadeiras.

Até que a certa altura o próprio António se assustou com o “des-calabro escolar”, que feria o seu “orgulho e amor-próprio”, que ainda

15 AB, entrevista, 1.6.2013.16 AB, entrevista, 1.6.2013.

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a tempo prevaleceram no percurso desviante por que tinha envere-dado. Meditou sobre um plano para reparar os estragos e conseguir passar no sétimo ano do Liceu. “Vou-me retirar”, disse ao pai. Retirar para o mosteiro de Singeverga, uma ordem hospitalária que acolhia pessoas de graça. Levou um carrego de livros e aplicou-se intensa-mente ao estudo. Chegada a hora, “arrancou” um sétimo ano “es-

de 1959-60 como “o melhor aluno” do distrito de Vila Real e um dos melhores do País, habilitado para receber o prestigiado Prémio Infante D. Henrique. Mas, três dias depois deste faustoso anúncio, o seu nome “foi barrado”, em virtude da fraca prestação e do mau comportamento anteriores, assim como não recebeu o prémio que

Mocidade Portuguesa, depois que um padre republicano de Vila Real

escuteiros. António nem hesitou.De outra coisa António também se aliviou quando estava prestes

a chegar à ‘idade da razão’. Foi em 1958, no tempo de Humberto Delgado. Um dia argumentou com um padre que “se não houves-se homens também não havia Deus”, subentendendo que só aque-les podiam ter inventado este, que portanto lhes devia a existência. O padre ripostou: “«essas perguntas não se fazem»”. António tinha vindo a abandonar a missa, a divorciar-se do catolicismo em que fora

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solvido nessa altura.”17 Só bastante mais tarde viria a ler O Drama de Jean Barois de Roger Martin du Gard (1913), um livro naquela épo-ca obrigatório para os atacados de crise religiosa, um padecimento, como vimos, por que António não passou. Como outras rupturas na sua vida, que no lugar devido se contarão, também o corte com a fé católica não causou dilaceração interior nem deixou feridas não cicatrizadas. António Barreto percorreu de ‘passagem’, mas sempre intensamente, cada uma das etapas da sua vida que o trouxeram até hoje. Este paradoxo entre a convicção, a entrega e até a militância, por

17 AB, entrevista, 1.6.2013.

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por outro, constitui um traço permanente da personalidade de Antó-nio Barreto, cujas transições e rupturas se operam sem dramatismo ou até sem nostalgia. O que não impediu a acumulação de experiên-

-sionado pela invasão soviética da Hungria em 56, e dos episódios de Cuba em Janeiro-Fevereiro de 59, que suscitaram as primeiras fan-tasias revolucionárias, e de Humberto Delgado na campanha presi-

política (e do qual oportunamente se falará). Ficou também, embora na altura ele ainda não soubesse, a semente de duas futuras paixões

e continuar estudos na Universidade de Coimbra, onde, além de (muita) libertinagem e apesar de um inextinto provincianismo e até resquícios de ruralidade, reinava um ambiente mais animado e urba-no, com um arremedo de vida nocturna, com raparigas mais ‘soltas’, com as livrarias que faltavam em Vila Real e pelas quais António se interessara crescentemente. Na capital transmontana, porém, estava limitado à Livraria Branco, onde o Adrianito “arranjava” por vezes à socapa um ou outro livro mais ‘perigoso’ e onde alguns rapazes com ‘interesses culturais’ se juntavam para conversar. É certo que em 58 ou 59, com a chegada da primeira furgoneta com a biblioteca itinerante da Gulbenkian, a escolha se tornou mais variada, tornando acessíveis livros proibidos que vinham às escondidas. A organização das bibliotecas itinerantes fora entregue a Branquinho da Fonseca, um homem de esquerda escolhido por Azeredo Perdigão. Na orga-nização estava metida “malta da esquerda”, que se encarregava de seleccionar obras ‘subversivas’ que remetiam para um mundo exte-

pela rádio em ondas curtas, muito escutada por António. Mas não havia nada que se pudesse chamar, com propriedade,

uma vida cultural. De resto, à excepção de Miguel Torga, que vivia na

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projecção nacional, nem artísticas, nem intelectuais e nem políticas, tirando o marechal Carmona… que casara em Chaves, ali perto, e de quem os vila-realenses por isso se orgulhavam. Em Coimbra, pelo contrário, na cultura como na política, havia personalidades com sa-liência nacional. Havia uma Associação Académica a sério, cafés ani-mados por estudantes de capa e batina, um CITAC, livrarias, cinema, espectáculos de música ou teatro, e, naturalmente, a Universidade.

Chegada a hora de partir e ingressar na Faculdade de Direito, porém, António deparou com a recusa dos pais, por incapacidade

Nuno.” Os pais já pagavam os estudos de João, o mais velho, na Fa-culdade de Medicina do Porto. Agora era a vez de o Nuno, por or-dem de idades, ir para Coimbra. O orçamento familiar já não dava

-mar: ele tinha tido muito melhores notas do que o Nuno – “in-justo!”; “Fiquei piurso”. Mas contra factos não havia argumentos. António não desistiu de ir para Coimbra, mas percebeu que teria de trabalhar para se manter – inscrever-se na Faculdade como estudante voluntário, dispensado das aulas mas sujeito a frequências e a exames,

Não desistiu. Mas precisava de arranjar um modo de vida. O pai, “muito contrariado”, recomendou-o a um amigo, proprietário da fá-brica de bolachas Triunfo, em Coimbra, e António lá se foi para a Lusa Atenas. Previsivelmente, detestou o emprego, que lhe rendia uns míseros 850 000 réis por mês. Daqui, como recusara um quar-to no lar da Acção Católica que o pai lhe arranjara, tinha de retirar 750 000 réis para pagar pensão completa na D. Benedita. Sobravam--lhe pois 100 000 réis para todas as outras despesas pessoais. Mais tarde dividiu o quarto com um amigo, o que aliviou o seu restrito orçamento. Inscreveu-se na Faculdade de Direito como «estudan-te trabalhador». Entrava o Outono de 1960. Mas além do tempo em que trabalhava para viver, Coimbra tinha outras atracções que o distraíram de um curso que veio a não lhe interessar, à excepção de duas ou três cadeiras. Nos primeiros dois anos marcou passo.

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Em contrapartida, descobriu outro ‘mundo’, muito principalmente o mundo da política, que o absorveria nas décadas seguintes, e que nos anos mais recentes, encerrada a sua militância partidária, se bem que com a distância de um espectador interessado, foi acompanhan-do atentamente. No presente18, essa atenção e interesse evoluíram para uma contemplação céptica da degenerescência dos partidos e do regime, e da irrelevância de Portugal.

18 Escrevo no Outono de 2014.